Tá pensando que tudo é futebol?, de Franciel Cruz

Tá pensando que tudo é futebol?, de Franciel Cruz

Penso que o título deste livro de Franciel Cruz não seja irônico ou casual. Claro, são crônicas sobre futebol, mas também sobre aquilo que gira em torno dele: a infância, o humor, a pobreza, a sociedade maluca de nosso país. Tá pensando que tudo é futebol? fala do futebol como raiz de identidade e contradição. A pergunta provocativa do título — que parece vinda de alguém que detesta o ludopédio — pode ser alterada para o futebol está em tudo ou tudo pode ser futebol. Mais do que um livro de curiosas crônicas sobre o esporte ganha densidade ao se tornar um mapa de esperanças, ilusões e decepções — como aqueles que existem fora das quatro linhas.

Escrevi acima “curiosas crônicas”, pois boa parte do interesse do livro repousa sobre sua forma. A linguagem barroca + coloquial + erudita de Franciel acaba quase sempre criando expressões inusitadas, que apontam tanto para a glória de alguns acontecimentos como para a mais áspera das autodepreciações. É sua voz. A leitura provoca muitas risadas, algumas tristes. Como na música de Gil, Franciel está sempre rindo e sempre cantando, com humor e ironias refinadas.

Tá pensando que tudo é futebol? é um livro que pega o futebol e o transforma em literatura de carne e osso. Tem humor, alguma raiva, ternura e poesia, mostrando que cada crônica é sobre o Brasil — com suas manias, suas feridas, suas esperanças improváveis. O futebol vira espelho da política, da amizade e da desilusão. Vira vida, enfim.

Para conseguir o livro, só com o autor, parece.

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Música e literatura

Música e literatura

Relendo uma longa entrevista de László Krasznahorkai que até traduzi com a ajuda do Google (não sou tradutor, nem venham), notei não apenas a forte presença da música em sua vida — foi pianista de jazz, cantor de rock e é hoje um devoto do barroco, além de inimigo do romantismo –, como a influência da mesma em sua escrita.

Ele diz que escreve mentalmente muitas páginas até passá-las para o computador. Mas são muitas páginas mesmo, umas 30. Quando elas formam uma espécie de música, ele resolve se valem a pena. OK, é o jeito dele. A estrutura de Sátántangó é semelhante à do Cânon Caranguejo utilizado por Bach na Oferenda Musical. Isso sou eu quem está dizendo, não Lázsló.

Thomas Mann era um sujeito que poderia ter sido músico. Conhecia teoria musical como poucos e seus livros são como obras de Brahms ou Franck. Me parabenizei quando soube da admiração de Mann por ambos. Quem leu A Montanha Mágica deve lembrar de que alguém no sanatório chama a música de “politicamente suspeita”. Deve ter sido Settembrini, claro. O método de escrita de Mann era o de uma ou duas páginas por dia que eram relidas no dia seguinte antes de chegarem as uma ou duas do novo dia, jamais três.

Escrevo isso para expor minha total admiração pelos escritores-músicos. Dificilmente deixo de gostar de alguém que ama a música. Ian McEwan é membro importante deste time. Ele sempre fala naquele que considero o melhor lugar do mundo, o Wigmore Hall. No site do Wigmore há um poema de McEwan falando da sala.

(Certa vez, eu estava na fila de entrada do Wigmore, quando as pessoas começaram a olhar discretamente para mim. Depois de passar a mão no rosto, tratei de revisar minha roupa para ver se não havia algo de muito errado nela. Durante a revisão, me virei pra trás e vi que McEwan estava bem atrás de mim. Eu disse apenas “Sorry”, a palavra que os ingleses mais falam).

Não esqueçam que Mário de Andrade era musicólogo, que Machado sempre falava em música e a família Verissimo pai, filho e neto eram/são tarados por música. Enfim, são muitos os exemplos que me ocorrem. Por que larguei de ler Boris Vian?

Claro que na minha posição de livreiro só falo mal de escritores bem mortos, dos vivos só falo bem ou me calo. A suscetibilidade da raça é algo tão veemente que me dá medo. Mas sabem, em quase todo escritor que gosto acabo descobrindo música. Isso se dá quando Gustavo Melo Czekster escreve um romance sobre a du Pré, quando vejo o José Falero com um cavaquinho, quando descubro que Thomas Bernhard poderia ter sido um grande cantor lírico mas que uma doença o impediu, etc.

Sabem o que me fez pensar em todas essas coisas acima, antes mesmo de revisar a entrevista do László? O livro “A música na obra de Erico Verissimo — polifonia, crítica social e humanismo”, de Gérson Werlang, que, dizem, receberá uma espécie de relançamento aqui na Livraria Bamboletras, no dia 17 de dezembro, dia dos 120 anos de nascimento do Erico.

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Os Ratos, de Dyonelio Machado

Os Ratos, de Dyonelio Machado

— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio um leitor no final dos anos 70.

O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:

— Foi porque eu morri. Alguns escritores são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma delas me pegou, fazer o quê?

— Uma boa morte, pelo visto.

— Meu filho, não existe morte boa.

Comecemos pelo menos importante. Não sei o que Dyonelio Machado (1895-1985) cometeu contra a Editora Todavia para merecer uma capa tão idiota. Vejam a já velha capa da Planeta (abaixo), muito mais adequada. Mas hoje o que está disponível é a edição da Todavaia, editora que adoro, mas que desata vez merece… Vaias. Publicado em 1935, Os Ratos é uma das obras mais intensas e originais da literatura brasileira. É pra deixar e pânico qualquer pessoa dotada de empatia. Escrito em plena era Vargas, o romance abandona o tom épico e regionalista de boa parte da produção da época para mergulhar no labirinto mental de um homem comum — e endividado. É um romance urbano e, embora o autor não cite a cidade onde Naziazeno transita, sabemos que ele está em Porto Alegre. Aliás, dia desses aconteceu uma curiosa iniciativa. Um guia levou um grupo de pessoas pelos Caminhos de Naziazeno. Não pude ir, infelizmente. É que Dyonelio cita ruas e esquinas a cada momento. Todo o seu trajeto é muito claro para quem conhece o centro de nossa pobre cidade, tão castigada por nosso prefeito bolsonarista.

O protagonista, Naziazeno Barbosa, passa um único dia tentando conseguir dinheiro para pagar o leiteiro. Valor da dívida: 53 mil-réis. Tentei fazer uma conversão para os dias de hoje, 90 anos depois, e deu aproximadamente R$ 300,00. A partir deste ponto, Dyonélio constrói um retrato devastador da miséria e da culpa, conduzido por uma escrita tensa, febril, claustrofóbica. Eu tinha lido o romance ainda aluno do Colégio Estadual Júlio de Castilhos e, naquele tempo, não fiquei muito impressionado com o livro. Hoje, aos 68 anos, sua verossimilhança e a angústia de Naziazeno tomaram tais proporções que o romance foi-me difícil de suportar. E de largar.

O realismo de Dyonelio — influenciado pela psicanálise — faz de Os Ratos um romance de avassalador tumulto interior: pensamentos se embaralham, a razão se desfaz, o desespero toma forma. Uma das cenas mais marcantes nesta leitura é o momento em que o protagonista consegue fazer com que 5 mil-réis se tornem 75. Ele consegue a proeza jogando na roleta — permitida àquela época. Mas está tão mobilizado pelo desespero que nem se dá conta de que já tem os 53 mil-réis devidos ao leiteiro. Ele segue jogando até perder quase tudo. Age como o Alexei Ivanovich de O Jogador de Dostoiévski.

Além de médico psiquiatra, Dyonelio era do Partido Comunista Brasileiro. Foi até deputado constituinte, mas logo o partido foi posto novamente na ilegalidade e Dyonelio foi cassado junto com outros comunistas como Júlio Teixeira e Pinheiro Machado. Citei este fato para sair da área meramente psicológica e dizer que, sob esta, há uma crítica ao capitalismo e às humilhações sociais que ele impõe: em Os Ratos há o homem reduzido à dívida, o tempo medido pelo dinheiro, a dignidade corroída pela espera. O título é uma referência ao pesadelo do protagonista da história que sonha que ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.

Até os anos 60, o leite era entregue na porta das casas das pessoas. Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava um caderninho: num dia combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados, “passando a régua”. Ou deixava-se a porta aberta para que o leiteiro deixasse o produto na cozinha. O romance inicia com o ultimato do leiteiro. Ele suspenderá o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Ao final do dia, mesmo o descanso de Naziazeno não é verdadeiro. Seu triste papel do protagonista no mundo é contado sem sentimentalismos pelo texto de Dyonelio, altamente coloquial.

Dyonélio Machado escreveu Os Ratos em vinte noites, logo após chegar do trabalho como médico. Dormiu muito pouco naqueles dias e, cedo, deixava o que escrevera à noite para sua mulher fazer a primeira revisão. “Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria do Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Erico Verissimo. Ela datilografava o trabalho. Então, num dia, eu levava algumas folhas manuscritas e pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’ Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu descobri que tinha um romance”.

Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa, um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no caos social em que vive.

Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia, de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoiévski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e foram presos em meados dos anos 30.

Os Ratos é um livro sobre o Brasil — mas também sobre qualquer lugar em que a miséria se disfarce de normalidade. Sua modernidade é tamanha que, quase um século depois, ainda fala de nós.

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Entrevista com László Krasznahorkai (verão de 2018)

Entrevista com László Krasznahorkai (verão de 2018)

Entrevistado por Adam Thirlwell para a The Paris ReviewLink para o original

László Krasznahorkai nasceu em 1954 em Gyula, uma cidade provinciana da Hungria, durante a era soviética. Publicou seu primeiro romance, Satantango, em 1985, seguido por A Melancolia da Resistência (1989), Guerra e Guerra (1999) e O retorno do barão de Wenckheim (2016). Esses romances, com seus gigantescos acréscimos de linguagem, erudição global (ele está tão familiarizado com os clássicos da filosofia budista quanto com a tradição intelectual europeia), personagens obsessivos e paisagens encharcadas pela chuva, podem dar uma impressão de altivez endurecida do modernismo tardio, mas também são pontilhistas, elegantes e delicadamente engraçados. Sua gravidade tem elegância — uma colisão de tons visível em outras obras que ele produziu junto com os romances, que incluem contos como Animalinside (2010) e textos geograficamente mais vastos como Destruction and Sorrow Beneath the Heavens (2004) e Seiobo There Below (2008). 

Krasznahorkai em 1990

Embora Krasznahorkai ainda tenha uma casa na Hungria, mora principalmente em Berlim. A primeira vez que tentei chegar a Berlim vindo de Londres para começar esta entrevista, no inverno de 2016, meu voo foi cancelado devido à neblina. Algumas horas depois, com meu novo voo na pista, fomos informados de que problemas técnicos atrasariam ainda mais nossa partida. Tendo finalmente chegado a Berlim e encontrado um táxi — dirigindo em uma velocidade assustadoramente alta porque, como o motorista me disse, precisava desesperadamente encontrar um banheiro —, encontrei Krasznahorkai em frente à entrada do metrô na Hermannplatz, doze horas depois de ter saído de Londres. Eu poderia muito bem tê-lo encontrado em Pequim. Essa farsa de viagem contemporânea prolongada, pensei, parecia incongruentemente cômica. Mas então reconsiderei: a arte de Krasznahorkai sempre foi hospitaleira ao absurdo, às maneiras como o mundo se personifica e se torna um oponente implacável. 

Krasznahorkai fala inglês com uma sedutora inflexão da Europa Oriental e um sotaque americano ocasional, resultado de sua estadia no apartamento de Allen Ginsberg em Nova York, nos anos 90. Krasznahorkai é um homem grande e gentil, frequentemente rindo ou sorrindo, e cheio de carinho e cuidado. Ele me emprestou um suéter quando eu parecia estar com frio, me presenteou com a coletânea de poesias Una Storia Vera, de Durs Grünbein , e me recomendou gravações de György Kurtág. Com seus cabelos longos e olhos tristes, ele parece um santo benevolente. Ele também é um homem de absoluta privacidade; portanto, nunca quis nos encontrar em seu apartamento. Em vez disso, conduzimos longas sessões em seus arredores, em vários cafés e restaurantes ao redor de Kreuzberg.

—Adam Thirlwell

ENTREVISTADOR

Vamos falar sobre seu início como escritor. 

KRASZNAHORKAI

Eu achava que a vida real, a vida verdadeira, estava em outro lugar. Além de O Castelo, de Franz Kafka, minha bíblia por um tempo foi Sob o Vulcão, de Malcolm Lowry . Isso foi no final dos anos 60, início dos anos 70. Eu não queria aceitar o papel de escritor. Queria escrever apenas um livro — e depois disso, queria fazer coisas diferentes, especialmente com música. Queria viver com as pessoas mais pobres — achava que essa era a vida real. Vivi em vilarejos muito pobres. Sempre tive empregos muito ruins. Mudava de lugar com muita frequência, a cada três ou quatro meses, para escapar do serviço militar obrigatório. 

E então, assim que comecei a publicar algumas coisinhas, recebi um convite da polícia. Talvez eu tenha sido um pouco impertinente demais, porque depois de cada pergunta eu dizia: “Por favor, acredite em mim, eu não lido com política.” “Mas sabemos algumas coisas sobre você.” “Não, eu não escrevo sobre política contemporânea.” “Nós não acreditamos em você.” Depois de um tempo, fiquei um pouco irritado e disse: “Você realmente imagina que eu escreveria algo sobre pessoas como você?” E isso os enfureceu, é claro, e um dos policiais, ou alguém da polícia secreta, quis confiscar meu passaporte. No sistema comunista da era soviética, tínhamos dois passaportes diferentes, azul e vermelho, e eu só tinha o vermelho. O vermelho não era tão interessante porque com ele você só podia ir para países socialistas, enquanto o azul significava liberdade. Então eu disse: “Você realmente quer o vermelho?” Mas eles ainda o tiraram, e eu não tive passaporte até 1987. 

Essa foi a primeira história da minha carreira de escritor — e poderia facilmente ter sido a última. Recentemente, nos documentos da polícia secreta, encontrei anotações onde eles discutem potenciais informantes e espiões. Eles tiveram alguma chance com meu irmão, escreveram, mas com László Krasznahorkai, seria absolutamente impossível, porque ele era extremamente anticomunista. Isso parece engraçado agora, mas na época não era tão engraçado. Mas eu nunca fiz nenhuma manifestação política. Eu apenas morava em pequenas vilas e cidades e escrevi meu primeiro romance. 

ENTREVISTADOR

Como você publicou isso? 

KRASZNAHORKAI

Era 1985. Ninguém — inclusive eu — conseguia entender como era possível publicar Satantango, já que se trata de um romance tudo menos inofensivo para o sistema comunista. Naquela época, o diretor de uma das editoras de literatura contemporânea era um ex-chefe da polícia secreta, e talvez quisesse provar que ainda tinha poder — poder suficiente para mostrar que tinha coragem de publicar este romance. Acho que essa foi a única razão pela qual o livro foi publicado.

ENTREVISTADOR

Que tipo de trabalho você estava fazendo?

KRASZNAHORKAI

Fui mineiro por um tempo. Era quase cômico — os verdadeiros mineiros tinham que me substituir. Depois, tornei-me diretor de várias casas de cultura em vilarejos distantes de Budapeste. Cada vilarejo tinha uma casa de cultura onde as pessoas podiam ler os clássicos. Essa biblioteca era tudo o que tinham no dia a dia. E às sextas ou sábados, o diretor da casa de cultura organizava uma festa musical, ou algo parecido, o que era muito bom para os jovens. Eu era diretor de seis vilarejos bem pequenos, o que significava que eu sempre me mudava de um para o outro. Era um ótimo trabalho. Eu adorava porque estava muito longe da minha família burguesa. 

O que mais? Eu era vigia noturno de trezentas vacas. Era o meu favorito — um estábulo em terra de ninguém. Não havia vila, cidade ou vilarejo por perto. Fui vigia por alguns meses, talvez. Uma vida pobre com Sob o Vulcão em um bolso e Dostoiévski no outro.

E, claro, nessas Wanderjahre, comecei a beber. Havia uma tradição na literatura húngara de que os verdadeiros gênios eram bêbados completos. E eu também era um bêbado louco. Mas chegou um momento em que eu estava sentado com um grupo de escritores húngaros que concordavam, tristemente, que isso era inevitável, que qualquer gênio húngaro tinha que ser um bêbado louco. Recusei-me a aceitar isso e fiz uma aposta — de doze garrafas de champanhe — que nunca mais beberia. 

ENTREVISTADOR

E você não fez isso? 

KRASZNAHORKAI

Não. Mas, ainda assim, naquela época, entre os prosadores contemporâneos, havia um escritor e bebedor em particular — Péter Hajnóczy. Ele era uma lenda viva e um alcoólatra completo e profundo, como Malcolm Lowry. Sua morte foi o maior acontecimento da literatura húngara. Ele era muito jovem, talvez quarenta anos. E essa era a vida que eu vivia. Eu não me preocupava com nada — era uma vida muito aventureira, sempre em trânsito entre duas cidades, em estações de trem e bares à noite, observando as pessoas, tendo pequenas conversas com elas. Lentamente, comecei a escrever o livro na minha cabeça. 

Era bom trabalhar assim, porque eu tinha uma forte sensação de que a literatura era um campo espiritual — que em outros lugares, na mesma época, Hajnóczy, János Pilinszky, Sándor Weöres e muitos outros poetas maravilhosos viveram e escreveram. A literatura em prosa era menos poderosa. Gostávamos muito mais de poesia porque era mais interessante, mais secreta. A prosa era um pouco próxima demais da realidade. A ideia de um gênio da prosa era alguém que se mantinha muito próximo da vida real. É por isso que, tradicionalmente, os prosadores húngaros, como Zsigmond Móricz, compunham em frases curtas. Mas não Krúdy, meu único escritor querido da história da literatura em prosa húngara. Gyula Krúdy. Um escritor maravilhoso. Certamente intraduzível. Na Hungria, ele era um Don Giovanni — dois metros de altura, um homem enorme, um homem fenomenal. Ele era tão sedutor que ninguém conseguia resistir.

ENTREVISTADOR

E suas frases? 

KRASZNAHORKAI

Ele usava frases de forma diferente de qualquer outro prosador. Sempre soou como um homem ligeiramente bêbado, muito melancólico, sem ilusões sobre a vida, muito forte, mas cuja força é totalmente desnecessária. Mas Krúdy não era um ideal literário para mim. Krúdy era uma pessoa para mim, uma lenda que me dava algum poder quando decidi escrever algo. János Pilinszky era minha outra lenda. Em um sentido literário, Pilinszky era muito mais importante para mim por causa de sua linguagem, seu jeito de falar. Tentarei imitá-lo. 

Caro Adam, não deveríamos esperar por um apocalipse, estamos vivendo agora em um apocalipse. Meu querido Adam, por favor, não vá a lugar nenhum, a lugar nenhum…

Muito agudo, lento, com todas essas pausas entre as palavras. E as últimas letras de cada palavra eram sempre expressas com muita clareza. Como um padre numa catacumba — sem esperança, mas com uma esperança enorme ao mesmo tempo. Mas ele era diferente de Gyula Krúdy. Pilinszky era como um cordeiro. Não um ser humano — um cordeiro.

ENTREVISTADOR

Havia muita coisa disponível em tradução? 

KRASZNAHORKAI

Houve uma época, nos anos 70, em que tínhamos muita literatura ocidental. William Faulkner, Franz Kafka, Rilke, Arthur Miller, Joseph Heller, Marcel Proust, Samuel Beckett — quase toda semana havia uma nova obra-prima. Como não podiam publicar suas próprias obras sob o regime comunista, os maiores escritores e poetas se tornaram tradutores. É por isso que tínhamos traduções maravilhosas de Shakespeare, Dante, Homero e de todos os grandes escritores americanos, de Faulkner em diante. A primeira tradução de O Arco-Íris da Gravidade, de Pynchon, foi realmente maravilhosa. 

ENTREVISTADOR

E Dostoiévski? 

KRASZNAHORKAI

Sim. Dostoiévski desempenhou um papel muito importante para mim — por causa de seus heróis, não por causa de seu estilo ou de suas histórias. Você se lembra do narrador de “Noites Brancas”? O personagem principal é um pouco como Mishkin em O Idiota , uma figura pré-Mishkin. Eu era um fã fanático desse narrador e, mais tarde, de Mishkin — de sua vulnerabilidade. Uma figura angelical e indefesa. Em todos os romances que escrevi, você pode encontrar uma figura assim — como Estike em Satantango ou Valuska em Melancolia , que são feridos pelo mundo. Eles não merecem essas feridas, e eu os amo porque eles acreditam em um universo onde tudo é maravilhoso, incluindo a existência humana, e eu honro muito o fato de que eles são crentes. Mas sua maneira de pensar sobre o universo, sobre o mundo, essa crença na inocência, não é possível para mim. 

Para mim, pertencemos mais ao mundo dos animais. Somos animais, somos apenas os animais que venceram. No entanto, vivemos em um mundo altamente antropomórfico — acreditamos que vivemos em um mundo humano, no qual há um lugar para os animais, para as plantas, para as pedras. Isso não é verdade. 

ENTREVISTADOR

Então você quer dizer que sua própria filosofia seria puro materialismo? 

KRASZNAHORKAI

Ah, não, Mishkin também é real. Desculpe.

ENTREVISTADOR

Não, conte-me mais.

KRASZNAHORKAI

Franz Kafka é uma pessoa. Ele é Franz Kafka, com sua história de vida, com seus livros. Mas K. está lá, em um espaço celestial no universo, e talvez alguns personagens dos meus romances também vivam lá. Por exemplo, Irimiás e o médico de Satantango, ou o Sr. Eszter e Valuska de Melancolia, ou, do meu novo romance, o Barão. Eles são absolutos — eles vivem. Eles existem no lugar eterno.

Você pode argumentar que Mishkin é apenas ficção? Claro. Mas não é a verdade. Mishkin pode ter entrado na realidade através de outra pessoa, através de Dostoiévski, mas agora, para nós, ele é uma pessoa real. Cada personagem na chamada ficção eterna surgiu através de pessoas comuns. Este é um processo secreto, mas tenho certeza absoluta de que é verdade. Por exemplo, alguns anos depois de ter escrito Satantango, eu estava em um bar e alguém tocou meu ombro. Era Halics de Satantango. Sério! Não estou brincando! É por isso que me tornei mais cuidadoso com o que escrevo. Por exemplo, o texto original de Guerra e Guerra era bem diferente da versão que publiquei. As primeiras cem páginas originalmente tratavam da autodestruição de Korin, mas eu tinha medo de encontrá-lo naquela condição mais tarde e não ser capaz de ajudá-lo. Eu tinha medo da possibilidade de que ele nunca mais deixasse sua pequena cidade. Foi por isso que escolhi tirá-lo de lá — com seu desejo de ir apenas uma vez, no fim da vida, para o centro do mundo. Eu não tinha decidido que seria Nova York, mas foi assim que me libertei da história de que ele viveria para sempre naquele lugar provinciano. 

ENTREVISTADOR

Estou pensando no que você disse sobre os humanos viverem em um mundo antropomórfico. Às vezes me ocorre que romances são tão alegremente antropocêntricos. Onde estão os polvos? Onde estão as algas? Uma das coisas que adoro nos seus romances é que eles tentam não ser tão, por assim dizer, provincianos humanos . Mas também parece um paradoxo. O que mais poderiam ser? 

KRASZNAHORKAI

Isso é muito importante. A estrutura do romance pode ser antropocêntrica demais. É por isso que o problema do narrador é o primeiro problema, e permanece assim para sempre. Como remover o narrador de um romance? No meu romance mais recente, em cada página há apenas pessoas conversando entre si — e essa é uma maneira de evitar o narrador, mas é apenas uma técnica. Porque concordo com você — a estrutura do romance e do mundo é antropocêntrica. Mas se eu tivesse que escolher entre o universo sem estrutura e a humanidade com estrutura, eu escolheria a humanidade. 

Não temos a mínima ideia do que é o universo. Pessoas sábias sempre nos disseram que isso é a prova de que não devemos pensar, porque pensar não leva a lugar nenhum. Você apenas constrói sobre essa enorme construção de mal-entendidos, que é a cultura. A história da cultura é a história dos mal-entendidos de grandes pensadores. Portanto, sempre temos que voltar ao zero e começar de forma diferente. E talvez dessa forma você tenha a chance de não entender, mas pelo menos de não ter mais mal-entendidos. Porque este é o outro lado da questão — sou realmente tão corajoso a ponto de cancelar toda a cultura humana? De parar de admirar a beleza da produção humana? É muito difícil dizer não. 

ENTREVISTADOR

Mas você ainda escreve romances. 

KRASZNAHORKAI

Sim, mas talvez isso seja um erro. Eu respeito a nossa cultura. Respeito a alta articulação humana em todas as suas formas. Mas a raiz dessa cultura é falsa. E se não fizermos nada, tudo continua do mesmo jeito. E talvez isso seja o mais importante. Tudo deve continuar sem pensar em essências, no que é, e outras questões semelhantes. 

ENTREVISTADOR

Como se a escrita, e toda forma de arte, devesse se tornar um ritual sem teologia? 

KRASZNAHORKAI

Talvez seja possível pensar na escrita como um ritual a ser realizado — algo repetido, palavra após palavra, frase após frase. Não no sentido da vanguarda clássica do início do século XX, como o Dadá, por exemplo, que não levou grandes artistas a lugar nenhum porque negligenciaram o conteúdo e esse foi, pobres gênios, o erro deles. Mas se você pensar na escrita como um ritual que você realiza, e se você for capaz de se ver ao mesmo tempo, que você está lá na Terra e escreve palavra após palavra após palavra… e então você tem um livro. Você para. Você fecha o livro. E você abre outro, com páginas em branco. E você escreve novamente, escreve novamente, escreve novamente. Palavra após palavra. Frase após frase. Fecha o livro. O próximo… Isso é um ritual. Talvez não seja como você pensa sobre sua escrita, mas talvez seja o que você faz. 

Mas este é o ponto em que devemos nos lembrar dos nossos leitores. Porque os leitores precisam, espero, dos nossos escritos. E neste pequeno espaço — onde escrevemos livros, romances, poemas — também há um lugar para os nossos leitores. Essa simpatia, esse sentimento é muito importante — encontrar uma essência comum entre escritores, que criam formas, e leitores, que precisam do que fazemos. Isso também dá algum sentido a este pequeno espaço, que de um nível mais alto vemos como um completo absurdo. Então, talvez o universo esteja cheio de pequenos espaços — cada um com seu próprio tempo, essência, personagens, criação, eventos e assim por diante. Diferentes ideias de tempo para diferentes espaços. Assim como estamos aqui, no universo, dentro do nosso pequeno espaço humano. 

ENTREVISTADOR

Como você chegou ao seu estilo — essas frases grandiosas e vastas? 

KRASZNAHORKAI

Encontrar um estilo nunca foi difícil para mim, porque eu nunca o procurei. Eu vivia uma vida reclusa. Sempre tive amigos, mas apenas um de cada vez. E com cada amigo, eu tinha um relacionamento em que falávamos um com o outro apenas em monólogos. Um dia, uma noite, eu falava. No dia ou noite seguinte, ele falava. Mas o diálogo era diferente a cada vez, porque queríamos dizer algo muito importante para a outra pessoa, e se você quer dizer algo muito importante, e se você quer convencer seu parceiro de que isso é muito importante, você não precisa de pontos finais ou pontos finais, mas de respirações e ritmo — ritmo, andamento e melodia. Não é uma escolha consciente. Esse tipo de ritmo, melodia e estrutura de frases veio, na verdade, do desejo de convencer outra pessoa. 

ENTREVISTADOR

Nunca foi literário? Nunca se relacionou com outros estilos, como o de Proust ou o de Beckett? 

KRASZNAHORKAI

Talvez quando eu era adolescente, mas isso era mais uma imitação da vida deles, não da linguagem, não do estilo deles. Tenho uma relação especial com Kafka porque comecei a lê-lo muito cedo, tão cedo que não conseguia entender do que se tratava, digamos, O Castelo. Eu era muito jovem. Eu tinha um irmão mais velho e queria ser como ele, então roubava os livros dele e os lia. É por isso que Kafka foi meu primeiro escritor — um escritor que eu não conseguia entender, mas também um sobre o qual eu me questionava como pessoa. Um dos meus livros favoritos quando eu tinha doze ou treze anos era Conversas com Kafka , de Gustav Janouch. Com este livro, eu tinha um canal especial para Kafka. 

E talvez tenha sido por isso que estudei Direito — para ser como Kafka. Meu pai ficou um pouco surpreso. Ele queria que eu fosse para a faculdade de Direito, mas tinha certeza de que eu recusaria, porque eu só me interessava por arte — literatura, música, pintura, filosofia, tudo, exceto Direito. Mas eu aceitei, em parte, acho, porque queria lidar com psicologia criminal. Naquela época, início dos anos 70, era uma ciência proibida na Hungria. Era ocidental e, portanto, suspeita. Mas o principal motivo, eu acho, foi Kafka. É claro que, depois de três semanas, eu não aguentava mais o clima e saí — não apenas da faculdade de Direito, mas da cidade em si.  

ENTREVISTADOR

Onde foi isso?

KRASZNAHORKAI

Uma cidade chamada Szeged. Por causa do sistema de serviço militar, não foi fácil sair. Se eu saísse, tinha que voltar para o serviço militar. Normalmente, o serviço militar durava dois anos, mas se você se formasse, só precisava cumprir um ano. No entanto, se você saísse da universidade mais cedo, tinha que voltar para o segundo ano. Então, morei por um tempo em Budapeste, estudando religião e filologia. Continuei meus antigos estudos de grego e latim, mas os exames eram difíceis porque eu não estava na universidade. Então, finalmente, depois de quatro anos, tive filhos. E com filhos, o problema do serviço militar estava resolvido, porque se você tivesse dois filhos, estaria livre dessa terrível obrigação. 

O serviço militar, para mim, era quase uma morte. Durante o ano inteiro, nunca obtive permissão para sair do campo. Eu não era um herói nem um pacifista, mas se você estivesse em um posto de observação, tinha que ficar lá com uma arma e não fazer nada. Às vezes, um oficial vinha me observar, e se eu estivesse lendo Kafka, não conseguia parar porque Kafka era mais interessante do que um oficial idiota, então eu sempre recebia punições na prisão do campo. Isso não era tão terrível, mas também significava que eu não conseguia permissão para sair do campo. E isso era terrível — estar lá, o tempo todo. 

O início do meu serviço foi o mais difícil. Quando entrei no trem noturno, com outros novos soldados, fiquei completamente destruído. Não conseguia falar com ninguém. Todos queriam fazer piadas, menos eu. Descobri outro rapaz, um rapaz jovem, que estava no mesmo estado, então conversamos um pouco. Conversamos sobre como, se tivéssemos a oportunidade, nos visitaríamos. E depois de cerca de uma semana, quando tive um tempinho livre, fui ao prédio onde ele trabalhava e perguntei: “Onde posso encontrar esse cara?”. E alguém disse: “Terceiro andar”. No terceiro andar, perguntei novamente: “Onde posso encontrar esse cara?”. E alguém disse que ele estava no depósito de munições por causa de uma punição. Ele estava limpando as armas e, quando abri a porta, ele deu um tiro na boca. Exatamente no mesmo momento. Abri a porta e meu amigo deu um tiro na própria boca. Eu era criança. Éramos crianças. Mal tínhamos dezoito anos. 

Qual era sua pergunta? 

ENTREVISTADOR

Estou apenas tentando fazer uma cronologia aproximada. Você nasceu em Gyula, depois prestou serviço militar, estudou em Szeged, fez Wanderjahre e publicou Satantango. Você chegou a Berlim em 1987 e retornou à Hungria em 1989. 

KRASZNAHORKAI

E sempre de volta para a Alemanha.

No início dos anos 90, comecei a escrever Guerra e Guerra. Originalmente, eu queria saber o que a fronteira significava para o Império Romano. Fui, por exemplo, à Dinamarca, à Grã-Bretanha, à França, à Itália, à Espanha, a Creta — tentando encontrar ruínas, vestígios de defesas militares. Eu estava sempre viajando. Foi só em 1996, eu acho, que comecei realmente a escrever Guerra e Guerra , enquanto estava em Nova York, no apartamento de Allen Ginsberg.  

ENTREVISTADOR

Como você conheceu Ginsberg? 

KRASZNAHORKAI

Tínhamos um amigo em comum. E Allen era um cara muito simpático. No apartamento dele, a porta e a fechadura eram completamente desnecessárias. As pessoas entravam e saíam, entravam e saíam. Era fantástico estar lá, mas também muito perturbador fazer parte do círculo de Ginsberg. Durante o dia, eu podia trabalhar, e à noite, que era quando Allen realmente ganhava vida, eu podia participar das festas, das conversas e da música. Nunca contei a eles que vim de Gyula, mas nunca consegui esquecer, sabe? Que eu era, na verdade, o mesmo garoto provinciano, só que sem cabelo e com alguns dentes faltando, que ficou em choque quando se sentou na cozinha ao lado de Allen e entraram aqueles músicos, poetas, pintores — pessoas imortais. 

ENTREVISTADOR

Lembro-me de você uma vez falando sobre a sensação de atemporalidade que você sempre sente e relacionando isso ao fato de ter crescido sob o império soviético, que havia acabado com a história. 

KRASZNAHORKAI

Era uma sociedade atemporal porque queriam que você pensasse que as coisas nunca mudariam. Sempre o mesmo céu cinza e árvores sem cor e parques e ruas e prédios e cidades e vilas, e as bebidas terríveis nos bares e a pobreza e as coisas que você era proibido de dizer em voz alta. Você vivia em uma eternidade. Era muito deprimente. Minha geração foi a primeira que não só não acreditava na teoria comunista ou no marxismo, mas achava isso ridículo, constrangedor. Quando vivi o fim deste sistema político, foi uma maravilha. Nunca esquecerei o sabor da liberdade política. É por isso que agora tenho cidadania alemã, porque para mim a União Europeia significa, acima de tudo, liberdade política contra a estupidez agressiva que agora é o deus da Europa Oriental. Eu vim de um mundo burguês, onde a teoria comunista nunca desempenhou qualquer papel. Éramos social-democratas, minha família. 

ENTREVISTADOR

E seus pais eram judeus, não é? 

KRASZNAHORKAI

Meu pai tinha raízes judaicas. Mas ele só nos contou esse segredo quando eu tinha uns onze anos. Antes disso, eu não fazia ideia. Na era socialista, era proibido mencioná-lo. 

ENTREVISTADOR

Como seu pai sobreviveu à guerra?

KRASZNAHORKAI

Nosso nome original era Korin, um nome judeu. Com esse nome, ele jamais teria sobrevivido. Meu avô era muito sábio e mudou nosso nome para Krasznahorkai. Krasznahorkai era um nome irredentista. Após a Primeira Guerra Mundial, a Hungria perdeu dois terços de seu território, e a principal linha política do governo nacionalista conservador após a guerra era restaurar esses territórios perdidos. Havia uma canção muito famosa, uma canção insuportavelmente sentimental, sobre o Castelo de Krasznahorka. Após a guerra, ele se tornou parte da Tchecoslováquia. A essência da canção é que o Castelo de Krasznahorka é muito triste e sombrio, e tudo é sem esperança. Talvez seja por isso que meu avô o escolheu. Eu não sei. Ninguém sabe, porque ele era um homem muito silencioso. Isso foi em 1931, antes das primeiras leis judaicas húngaras. 

ENTREVISTADOR

Vamos falar mais sobre sua escrita. Uma coisa que me intriga é que você parece ter deixado bem claro que escreveu apenas quatro romances. 

KRASZNAHORKAI

Há SatantangoA melancolia da resistênciaGuerra e guerra e O retorno do barão de Wenckheim.

ENTREVISTADOR

Onde você colocaria, digamos, um texto como Animalinside ?

KRASZNAHORKAI

Animalinside é um romance, embora não no sentido estrito. Mas se algo é um romance ou um conto não depende do número de páginas. Escrevi alguns contos no início da minha carreira, em Relações da Graça (1986). Esses contos se desenvolvem em um espaço muito pequeno, em um período de tempo muito confinado, no meio do qual há um único personagem. Um romance contém uma construção enorme, como uma ponte, um arco, do início ao fim. No caso de um conto, não há necessidade de um arco. Em vez disso, um conto é uma caixa-preta, na qual ninguém sabe o que aconteceu. 

ENTREVISTADOR

E então, sobre o que é o novo romance, O retorno do barão de Wenckheim? É uma espécie de odisseia? 

KRASZNAHORKAI

Sim. Para o personagem principal, este é um retorno ao lar no final da vida. Ele é um homem muito idoso que mora em Buenos Aires. É um homem muito sensível e muito alto, como Gyula Krúdy. Mas muito azarado — ele sempre comete erros. 

ENTREVISTADOR

Então ele é seu Mishkin, seu personagem indefeso? 

KRASZNAHORKAI

Sim, como Estike. Porque este romance é o meu resumo, na verdade, de todos os meus romances — você pode encontrar muitos paralelos com outros personagens, outras histórias. Faço piadas sobre a palavra “satantango” e assim por diante. Este é o meu melhor romance, eu acho. 

ENTREVISTADOR

O seu melhor? 

KRASZNAHORKAI

O mais engraçado. O livro mais engraçado. Não está cheio de mensagens apocalípticas. Em vez disso, este é o apocalipse. Ele já chegou. 

ENTREVISTADOR

Mas então, sinto, em todos os seus livros, que o apocalipse já chegou, secretamente. Eu me pergunto se existem dois tipos de romancistas. Aqueles que veem cada romance como um objeto separado, e aqueles que pensam que escreveram um romance, que todos os seus romances se encaixam. 

KRASZNAHORKAI

Já disse mil vezes que sempre quis escrever apenas um livro. Não fiquei satisfeito com o primeiro, e por isso escrevi o segundo. Não fiquei satisfeito com o segundo, então escrevi o terceiro, e assim por diante. Agora, com Barão, posso encerrar esta história. Com este romance, posso provar que realmente escrevi apenas um livro na minha vida. Este é o livro — SatantangoMelancoliaGuerra e Guerra e Barão . Este é o meu único livro. 

ENTREVISTADOR

Você já desejou escrever algo completamente fora dos termos dessas ficções? 

KRASZNAHORKAI

Não. Não me incomoda que Johann Sebastian Bach permaneça o mesmo a vida toda. 

ENTREVISTADOR

Você frequentemente retorna a Bach — e a outros compositores barrocos, como Rameau. Qual a importância do Barroco para você? 

KRASZNAHORKAI

A música de Bach é estruturalmente complicada por causa da harmonia, e é por isso que não suporto música romântica. Depois do Barroco tardio, a música tornou-se cada vez mais vulgar, e o auge dessa vulgaridade ocorreu na época dos românticos. Existem alguns compositores excepcionais, como Stravinsky, Shostakovich, Bartók ou Kurtág, que eu admiro muito, mas sempre os considero exceções. Para mim, a história da música é uma descida. E depois de dois mil anos, isso também está acontecendo na literatura. Mas é muito difícil analisar esse processo de vulgarização. A terrível revolução que sempre aconteceria nas sociedades modernas, de fato, aconteceu. Não que a cultura de massa tenha vencido, mas o dinheiro. Ocasionalmente, uma obra literária de altíssimo nível acaba dizendo algo no nível médio e alcançando mais leitores — e talvez esse seja o destino de muitos escritores contemporâneos.

ENTREVISTADOR

E seus romances?

KRASZNAHORKAI

Não, meus romances não funcionam de jeito nenhum no nível intermediário, porque eu nunca faço concessões. Escrever, para mim, é um ato totalmente privado. Tenho vergonha de falar sobre minha literatura — é o mesmo que se você me perguntasse sobre meus segredos mais íntimos. Nunca fiz parte da vida literária porque não conseguia aceitar ser escritor no sentido social. Ninguém pode falar sobre literatura comigo — exceto você e algumas outras pessoas. Não fico feliz se tiver que falar sobre literatura, especialmente sobre a minha literatura. Literatura é algo muito privado. 

Quando escrevo um livro, o livro já está pronto na minha cabeça. Desde pequeno, eu trabalhava assim. Na minha infância, minha memória era bastante anormal. Eu tinha memória fotográfica. Então, eu encontrava a forma exata, uma frase, algumas frases, na minha cabeça, e quando estava pronto, eu escrevia. 

ENTREVISTADOR

Você não revisa? 

KRASZNAHORKAI

Trabalho quase o tempo todo, como um moinho que não para de girar. Se estou doente, não consigo. E se estou bêbado, não consigo. Mas, com essas exceções, trabalho e trabalho, porque uma frase começa e, ao lado dela, cem mil outras frases, como fios finíssimos de uma aranha. E uma delas será, de alguma forma, um pouquinho mais importante do que todas as outras, e eu a extraio, o suficiente para poder trabalhar com a frase, corrigi-la. E é por isso que, embora existam traduções maravilhosas dos meus livros, gostaria que vocês pudessem lê-las no original, porque quando estou trabalhando, a primeira coisa que faço com uma frase na cabeça é aperfeiçoar o elemento rítmico. Quando trabalho, uso o mesmo mecanismo comum à composição musical e à composição literária. Música, literatura e artes visuais têm uma raiz comum — estruturas de ritmo e andamento — e eu trabalho a partir dessa raiz. O conteúdo é absolutamente diferente no caso da música e no caso dos romances. Mas a essência, para mim, é realmente semelhante. 

ENTREVISTADOR

Você era uma espécie de prodígio do jazz, não? E tocava em bandas de jazz quando era jovem? 

KRASZNAHORKAI

Fui músico profissional dos quatorze aos dezoito anos.

ENTREVISTADOR

E Thelonious Monk foi o seu grande herói como pianista. Por que Monk? 

KRASZNAHORKAI

Muitas vezes me faço a mesma pergunta. Olhando para trás, é difícil explicar por que nosso gosto musical sob o regime soviético era tão perfeito. Estou tentando não parecer vaidoso. Eu tocava não apenas em uma banda de jazz, mas também em uma banda de rock, regularmente. Nossos shows eram festas para pessoas da classe trabalhadora. Recentemente, encontrei um pedaço de papel com os títulos das músicas que tocávamos, e tínhamos, sem dúvida, o melhor gosto. Não o meu gosto, mas o gosto da nossa geração. Naquela época, as fontes de jazz ou rock eram muito pequenas. Havia duas estações de rádio — a Rádio Free Europe, de Munique, e a Rádio Luxemburgo. Nossas gravações eram de péssima qualidade, já que gravávamos diretamente do rádio — em segredo, é claro, porque era proibido. Eu tinha um conhecido, um médico em um hospital em Gyula, que tinha uma enorme coleção de LPs, e ele me permitiu fazer gravações da coleção dele. Mas como escolhi as melhores músicas, eu não sei. Tocávamos Cream, Them, Blind Faith, Jimi Hendrix, Aretha Franklin, Dusty Springfield. O grupo mais convencional era o Kinks. O que mais? Troggs, Animals, Eric Burdon. Rolling Stones, claro. Nada de Beatles. Não sei por quê, mas nada de Beatles. E muito blues. 

No trio de jazz, eu tocava com um baterista de cinquenta anos e um baixista que também tinha uns cinquenta. Eu tinha quatorze. Tocávamos com todo mundo, de Erroll Garner a Thelonious Monk. E não tenho explicação para o porquê de Monk ser o meu favorito. Porque agora sou um velho e ainda diria a mesma coisa. 

ENTREVISTADOR

E você cantou também? 

KRASZNAHORKAI

No grupo de rock, sim. Eu tinha uma voz muito aguda, como um contratenor. Então, eu só cantava músicas de mulheres — Dusty Springfield e Aretha Franklin. 

ENTREVISTADOR

E quanto à cena artística? Você estava ouvindo Bowie, Velvet Underground? 

KRASZNAHORKAI

Entrei para o fã-clube de Bowie tarde, depois que me tornei amigo de Béla Tarr. Béla morava em um apartamento pequeno e maravilhoso no centro de Budapeste. Ele andava pelo mesmo cômodo o dia todo, sempre ouvindo música. David Bowie, Lou Reed, Nico…

ENTREVISTADOR

Você começou a trabalhar com Tarr no filme Damnation logo após a publicação de Satantango , em 1985 — certo? E então fez duas adaptações dos seus romances, Satantango, em 1994, e Harmonias de Werckmeister , uma versão de A Melancolia da Resistência , em 2000. 

KRASZNAHORKAI

No começo, fizemos Damnation porque, sob os comunistas, fomos proibidos de fazer Satantango . Toda essa história começou em 1985, depois que o romance foi publicado. Béla, sua esposa, Ágnes, e eu queríamos fazer um filme de Satantango , mas Béla era um homem odiado no mundo do cinema húngaro. Ele foi para uma empresa cinematográfica e outra. Finalmente, alguém nos disse que era proibido fazer Satantango . E eu disse a Béla: Ok, você vai para casa, eu vou para casa, acabou. Talvez duas semanas depois, Ágnes veio até mim e me implorou para escrever um novo roteiro, porque senão Béla cometeria suicídio . Eu o conheço, ela disse. Ele vai cometer suicídio se não puder fazer um filme com você. Claro, isso era uma armadilha, uma história para me fazer trabalhar com ele. 

ENTREVISTADOR

Tarr é o único diretor com quem você trabalhou?

KRASZNAHORKAI

Eu só trabalhei com Béla. Com ele, foi mais do que uma colaboração. Eu dei tudo a ele, e ele levou tudo. Sempre trabalhamos juntos depois que eu escrevi os roteiros, mas eram filmes dele. O cinema é uma arte sem justiça. Se você é um escritor e um diretor de cinema quer adaptar sua obra, você deve aceitar que ele é o diretor. Este filme será dele. Caso contrário, você está cometendo um erro. 

Meus roteiros sempre foram obras literárias. Eu usava a forma, usava diálogos, mas quando escrevia sobre um personagem principal, “Ele pensa em um mundo sem Deus”, Béla dizia: “Isso não é um roteiro. Como posso mostrar isso?”. É por isso que eu tinha um pouco de medo durante esses projetos. Por exemplo, quando Estike sobe para o céu. Béla perguntava: “Como posso fazer uma tomada disso?”. No final, a única possibilidade era colocar a câmera talvez oitenta centímetros na frente do rosto de Irimiás. E se, no filme, pudéssemos ver em seu rosto o que aconteceu com Estike, então tudo bem, ganhamos. Se não, é um fracasso. Enquanto isso, eu posso escrever em um livro e é interessante e tem um fundo filosófico. O que é a realidade? O fantasma de Estike é real? Para a câmera, não.

ENTREVISTADOR

Mas para a linguagem, sim.

KRASZNAHORKAI

Exatamente. E isso significa que, se você tiver uma dúvida sobre o universo, sempre terá algumas possibilidades — em particular por meio da linguagem. O poder da palavra é, para mim, a única maneira de me aproximar dessa realidade oculta. Todo mundo é uma pessoa fictícia e, ao mesmo tempo, uma pessoa real. Eu pertenço ao mundo fictício e ao mundo real — estou presente em ambos os impérios. Você também. E todos neste restaurante. E também este objeto e tudo o que podemos perceber e também coisas que não podemos perceber, porque sabemos que, com nossos cinco sentidos, alguma parte da realidade é imperceptível. Não estou sendo esotérico. A realidade é tão importante para mim que sempre quero estar ciente de todas as possibilidades. 

ENTREVISTADOR

Eu me pergunto se é por isso que a tradução parece tão estranha. Como pode a realidade inventada pela versão húngara de Satantango ou Barão Wenckheim ser a mesma que a realidade inventada pelas palavras em inglês ou francês? Não há problema equivalente para outras formas de arte. Bach faz uma cantata e é uma tentativa, para ele, de expressar algum tipo de ideal transcendente…

KRASZNAHORKAI

Não, não. Bach é apenas um músico. Quando começou sua carreira e começou a compor suas próprias cantatas, ele lidava apenas com questões musicais — estrutura, a forma da fuga, o prelúdio, o falsobordone . Ouvimos sua música e temos uma imagem de Bach como um homem santo, sempre olhando para o céu. Mas, na verdade, todos os gênios se interessam apenas pelo físico, pela técnica. Se você olhar para a Turíngia, de onde Bach veio, a Turíngia estava cheia de Bachs — músicos, geração após geração. Bach era realmente sinônimo de um bom músico. 

Quando estive no Japão, fui a uma oficina onde esculturas de Buda estavam sendo restauradas por especialistas. Eram trabalhadores incríveis, gênios, verdadeiros artistas, mas estavam totalmente absortos na questão técnica: como posso consertar esta escultura quebrada? Então, quando o Buda restaurado foi devolvido ao seu lugar, ele agora era sagrado e alguém podia orar a ele. Você pode dizer que isso é uma contradição, mas não havia contradição para eles. O escultor e o restaurador são a mesma coisa. E quando alguém é um verdadeiro poeta, significa que sabe que a palavra tem poder e que sabe usar palavras. Se você tem essa habilidade, só precisa lidar com questões técnicas. 

ENTREVISTADOR

Então você quer dizer que as únicas verdadeiras questões artísticas são questões de técnica? 

KRASZNAHORKAI

Um artista tem apenas uma tarefa: dar continuidade a um ritual. E ritual é uma técnica pura.

ENTREVISTADOR

Acredito que deveríamos destacar uma obra específica para uma análise mais técnica…

KRASZNAHORKAI

Acho que isso se relaciona com outra questão. Se falamos de Homero, Shakespeare, Dostoiévski, Stendhal ou Kafka, todos eles estão neste império celestial. E uma vez que alguém cruza essa fronteira, é proibido dizer: O Idiota é maravilhoso, mas ‘Noites Brancas não é tão bom”. Ou Thelonious Monk — não nos é permitido dizer que sua interpretação não é tão boa em um lugar, ou em outro é muito dissonante. Essas são pessoas sagradas! Não devemos falar de detalhes, mas da totalidade da obra ou da pessoa. Se você criou uma vez, apenas uma vez, uma obra que é de gênio, depois disso, aos meus olhos, você é livre. Você pode fazer merda. Você continuará sendo absolutamente a mesma pessoa sagrada, e essa merda é uma merda sagrada, porque, tendo cruzado essa fronteira, essa pessoa é invulnerável. 

Estou convencido de que Franz Kafka é um fato em um império que eu, à distância, só posso admirar. Sinto alegria por esse império existir e por figuras como Dante, Goethe, Beckett e Homero terem existido, e ainda existirem, para nós. Tenho certeza de que todos os pensamentos sobre essas figuras, essas figuras sagradas, têm algo em comum. Minha imagem de Kafka não será tão diferente da sua imagem de Kafka.

Isso responde à sua pergunta? 

ENTREVISTADOR

Bem, só que é uma recusa em responder à minha pergunta! Posso colocar de outra forma? O que você está dizendo sobre Bach parece relacionado à sua ideia de que qualquer significado que uma obra possua será alcançado através da pura concentração na técnica. Você escreveu certa vez: “O mundo, se existir, tem que estar nos detalhes”. E talvez a obra, se existir, tenha que estar nos detalhes também — como se fossem aspectos diferentes da mesma coisa?

KRASZNAHORKAI

Para mim, os detalhes são os mais importantes, sim. Os menores detalhes são uma questão de vida ou morte. Um erro numa frase me mata. É por isso que não suporto ler meus livros, porque é quase impossível escrever um livro, em trezentas páginas, sem um único erro de ritmo. E talvez não seja uma questão de perfeição, mas sim um desejo de me importar com os menores detalhes, porque não há diferença de importância entre os menores detalhes e o todo. Qual é a diferença entre uma gota do oceano e o oceano como um todo? Nada. Nada.

ENTREVISTADOR

Isso também está relacionado ao que você disse antes — que você tem quase o livro inteiro na cabeça antes mesmo de começar o processo real de escrita?

KRASZNAHORKAI

Sim, mas há algo mais. Quem escreve os livros? Se você tem a sensação de que pode decidir algo no meio da obra, então você não está na obra — você está fora dela. Se você tem a sensação de que está escrevendo o livro, você está fora da obra em si.

ENTREVISTADOR

Há implicações para a interpretação da obra, para a crítica literária? Se eu perguntasse sobre o significado de A Melancolia da Resistência , seria uma pergunta estúpida? 

KRASZNAHORKAI

Estúpida? Não. Depende de quem pergunta. Falar com você é um tipo diferente de conversa. Eu honro o que você faz. Não é por acaso que estamos aqui, porque normalmente não me sento duas ou três vezes, durante dois ou três dias, com alguém. E, claro, presumo que você também tenha seu próprio interesse na resposta à sua pergunta — essa questão sobre significado. Ela sempre retorna ao problema do todo e dos detalhes, de como os detalhes se tornam um todo. 

ENTREVISTADOR

Você está dizendo que as duas coisas — os detalhes e o todo — são tão interdependentes que não se pode pensar em uma sem pensar na outra? De modo que, de certa forma, uma obra é uma terceira coisa, nem os detalhes nem o todo? 

KRASZNAHORKAI

Buda nunca permitiu que alguém falasse sobre totalidade porque era uma abstração — porque totalidade carece de realidade. Temos que ter muito cuidado ao usar a palavra totalidade . Por exemplo, acreditamos que o mundo, o universo, é infinito. Isso é um fiasco, porque se o mundo fosse realmente infinito, então este objeto [ apontando para um copo de chá ] não poderia existir. 

ENTREVISTADOR

Por que não?

KRASZNAHORKAI

Porque tudo o que você pode experimentar na existência é finito. Neste copo, há pequenas partes finitas, elementos subatômicos e assim por diante. Intangíveis para nós, mas não infinitos. 

ENTREVISTADOR

Há um momento no final de Satantango em que percebemos que o romance está em um loop — que os últimos versos são também os primeiros versos do romance, como escritos por um de seus personagens. Acho que é o único momento metaficcional em seus romances, a única regressão absoluta. Era óbvio para você desde o início que o livro teria essa estrutura circular?

KRASZNAHORKAI

De jeito nenhum. Quando trabalho, começo do começo e nunca sei mais do que meus personagens. No início de Satantango, eu não tinha ideia de que, no final, toda essa construção, como uma forma musical, voltaria e começaria novamente do começo — mas em outro nível, porque quando você relê este livro, você o lê com a consciência de que foi escrito por alguém que é um personagem do livro. Não, eu nunca trabalhei com essa concepção.

ENTREVISTADOR

Porque torna o romance infinito.

KRASZNAHORKAI

Ah, não. Não, acho que não. Só o incontável finito pode existir.  

ENTREVISTADOR

O que quero dizer é que, teoricamente, ele é capaz de ser lido infinitamente, ou infinitamente, em uma espécie de círculo. 

KRASZNAHORKAI

Você se lembra do que Buda nos disse sobre o círculo?

ENTREVISTADOR

Não. 

KRASZNAHORKAI

Se você seguir um círculo, depois de um tempo entenderá que um círculo não existe. É simplesmente um ponto que não existe. Há uma grande diferença entre o infinito e o finito incontável. Afinal, o que você acha que acontece quando o dançarino sufi se dissolve no nada? 

ENTREVISTADOR

Mas, para finalizar a questão dos finais, você disse que Barão Wenckheim seria seu último romance. Mas eu sei que você ainda está escrevendo. Isso significa que o que você está escrevendo agora não é um romance? 

KRASZNAHORKAI

Pequenas coisas, não uma grande construção. Já escrevi três pequenos livros desde o último romance. O primeiro, Projeto Manhattan (2017), é um prólogo para a segunda obra, meu livro sobre Nova York. Um título provisório poderia ser algo como “Trabalho de campo para um palácio”. E também terminei um livro que queria escrever desde o início, porque adoro Homero desde a minha juventude. Fiz uma viagem no outono passado à Dalmácia, na costa do Adriático. Essa jornada me levou a uma ilha no Adriático, e um mito da Odisseia subitamente retornou, e escrevi um livro sobre ele. Um pequeno livro, como uma novela.

ENTREVISTADOR

Você realmente não acha que escreverá outro romance depois do O retorno do barão de Wenckheim?

KRASZNAHORKAI

Romance? Não. Quando você ler, vai entender. O retorno do barão de Wenckheim, deve ser o último. 

 

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Pessoas Normais, de Sally Rooney

Pessoas Normais, de Sally Rooney

Eu procurei ler a irlandesa Sally Rooney (1991) logo após saber de suas  lógicas e firmes posições políticas, assim como de seu receio de ser presa ao entrar na Inglaterra, onde evitou ir até para receber premiações (vá se informar, prezado leitor!). Quando soube dela, logo pensei: aí está uma pessoa interessante. Tinha lido recentemente o extraordinário Pequenas coisas como estas, da também irlandesa Claire Keegan e achei que devia encarar a segunda irlandesa do ano. Valeu a pena.

Em Pessoas Normais (Normal People, 2018), Rooney constrói um romance de aparente simplicidade, mas que se revela uma análise bastante fina sobre o amor e, por assim dizer, a desigualdade emocional. A história é contada em ordem cronológica dando saltos temporais, o que pode parecer cinematográfico, mas que funciona no livro. A história acompanha Marianne e Connell, dois adolescentes irlandeses que vivem uma relação secreta. Explica-se: ele era popular, pobre e inseguro; ela, solitária, rica, confiante, mas emocionalmente ferida. Pode parecer uma fórmula já lida e vista, mas o tratamento de Rooney é muito inteligente e criativo. Com o tempo, já na universidade e depois, os dois se separam e se reencontram, a atração física permanece, mas o resto é tenso, ambíguo, inexplicável.

O mérito de Rooney é o de transformar matéria íntima em matéria filosófica e política. Não há gestos heroicos nem paixões arrebatadas, mas uma sucessão de pequenos mal-entendidos, mensagens não compreendidas, hesitações. O que ela narra, talvez, seja a dificuldade de ser fraco. Marianne e Connell se amam, mas não conseguem existir satisfatoriamente um diante do outro.

O estilo de Rooney é econômico. Sua prosa não tem floreios. Ela escreve como quem observa, e não como quem explica. Tal contenção esconde um pouco do subtexto emocional que pulsa em cada gesto. Nota-se que o que se diz, o que se cala e o que se escreve — a linguagem, principalmente a errada — é o campo de batalha das relações.

Sou obrigado a ir adiante. Pessoas Normais é também um romance sobre o cuidado — sobre como o amor é o único espaço onde se pode ensaiar a cura. Rooney escreve com empatia sobre a dor, mas sem ceder à tentação do consolo. Sua compaixão é lúcida, jamais sentimental.

O livro também é uma reflexão sobre classe social, um tema que a autora — formada em sociologia — trata com naturalidade e rigor. A diferença econômica entre Marianne e Connell não é mero pano de fundo: é a estrutura invisível que determina o modo como cada um se percebe e é percebido. Nesse sentido, Pessoas Normais é um romance político, ainda que sem slogans.

No final, o leitor entende que o “normal” do título é apenas uma ironia: de perto ninguém é normal, já dizia Caetano, e nada é normal quando se ama. O amor, em Sally Rooney, é a melhor forma de estar perdido — e quando não estamos?

Sally Rooney

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Um eco muito distante, de Muriel Spark

Um eco muito distante, de Muriel Spark

Gosto muito de Muriel Spark (1918-2006). Seus pequenos romances são inteligentes, bem-humorados e sinceros. Não é muito difícil se identificar com um outro personagem, mesmo que haja um crime ou um fato muito lúgubre. Um eco muito distante (A Far Cry from Kensington, 1988) é um dos romances mais refinados e enigmáticos de Muriel Spark, um livro que combina a leveza irônica de seu texto com uma reflexão profunda sobre ética, memória e poder — tanto o poder da linguagem quanto o das pequenas tiranias cotidianas.

A narradora, Mrs. Hawkins, é tranquila e sensata. É uma jovem viúva de guerra que trabalha numa editora londrina do pós-guerra. O cenário é de reconstrução: Londres ainda está em ruínas e as pessoas tentam retomar a vida entre empregos precários, além de morarem em pensões modestas e manterem aquele típico cinismo inglês. Mas Spark não chega a se interessar pelo pano de fundo social: o que a fascina é o comportamento humano sob pressão moral.

Mrs. Hawkins é tipicamente “sparkiana”: ao mesmo tempo serena e implacável. Passa por um período de sobrepeso e decide comer a metade do que comia de uma forma muito particular. Serve-se e deixa a metade. Emagrece, claro. Mas isto é apenas curiosidade. Quando, num impulso de franqueza, ela chama um escritor pretensioso de “pisseur de copie” — algo como “mijador de texto” ou, em português, um sujeito que escreve sob diarreia mental, um merda da palavra como tantos –, essa ofensa aparentemente trivial deflagra uma série de desdobramentos que alteram sua vida e a de todos ao redor. O livro se transforma, então, não apenas num retrato ferino da vaidade literária e da mediocridade editorial, mas também num estudo sobre como uma única expressão pode conter um juízo moral devastador.

Spark articula tudo isso com seu estilo inconfundível: economia de meios, ritmo preciso e ironia compassiva. Sua prosa é sempre enxuta — não há frase sem função, um detalhe que não revele nada. E, como em boa parte de sua obra, o humor é o bisturi com que disseca a hipocrisia.

Mas, pensando melhor, creio que o romance seja ainda mais uma meditação sobre integridade: a necessidade de manter-se fiel à verdade, mesmo quando isso nos custa conforto, emprego, ou relações. (Aliás, parece que tenho doutorado nisso e em me lascar por isso). Um eco muito distante é, nesse sentido, um livro sobre o preço da lucidez — e sobre o prazer, certamente secreto e nada adequado do ponto de vista econômico, de permanecer de pé num mundo que se curva.

Se A Primavera da Srta. Jean Brodie é o livro de Spark sobre a sedução da autoridade, Um eco muito distante é o livro sobre a responsabilidade do julgamento. No fim, o eco (ou o grito) do título é o da própria consciência — a distância entre quem fomos e quem nos tornamos quando, em nome da verdade, ousamos dizer o que pensamos.

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O Primeiro e o Segundo Homem, de Luiz Sérgio Metz

O Primeiro e o Segundo Homem, de Luiz Sérgio Metz

O Primeiro e o Segundo Homem é um livrinho que efetivamente merece o tom de reverência que lhe é habitualmente reservado. Publicado em 1988, esta coleção de contos ocupa um lugar distinto, mais ou menos o mesmo que Guimarães Rosa ou Simões Lopes Neto ocupam — sem comparações. É aquele lugar entre o mito e a memória, o sagrado e o cotidiano, ou do cotidiano tornado sagrado. O gaúcho rural de Luiz Sérgio Metz (1952-1996) é o missioneiro e é bem diferente dos arquétipos literários comuns ao gauchesco. O protagonismo de índios guaranis em vários dos contos é uma das bem-vindas anormalidades que mudam o imaginário do leitor. Metz — seus amigos o conheciam mais pelo apelido de Jacaré — constrói narrativas de uma alta densidade poética que parece brotar ou da terra ou do sonho. Seus personagens habitam um mundo arcaico, quase bíblico, violento e nostálgico, todos falando gauchês, porém carregando ecos profundos da experiência contemporânea: a pobreza, a solidão, a culpa, a perda do sentido, o trabalho que ofende. Metz escreve com uma intensidade que me fez lembrar do lirismo seco de João Cabral — Não sei porque estou me esforçando para encontrar paralelos para um livro tão diferente, denso e musical.

Os contos de O Primeiro e o Segundo Homem estão na contramão de qualquer facilidade. Sua literatura é profundamente gaúcha, de resistência e de pureza, mas não da resistência falsa da Semana Farroupilha e sim da pureza de quem lembra a infância pobre e nada heroica passada no interior jogando bolita ou catando lixo. (O conto da bolita é meu preferido, como eu era ruim jogando aquilo!).

O Primeiro e o Segundo Homem é um livro severo, belo e perturbador. Recomendado fortemente para aqueles que buscam uma literatura brasileira contemporânea que ousa ser profunda, que não tem medo do silêncio e da escuridão interior, e que herda o legado de autores como Guimarães Rosa e Autran Dourado.

Tem na Bamboletras, claro.

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“A beleza salvará o mundo”? Pelamor, né, gente?

“A beleza salvará o mundo”? Pelamor, né, gente?

E essa frase de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”? Pelamor, né, gente?

Vamos devagar com ela.

Em primeiro lugar, quem a disse foi o Príncipe Míshkin de “O Idiota”. Não foi dita por Dostoiévski, mas por um de seus personagens e isso faz toda a diferença. Míshkin é um ingênuo, um doente, um inadaptado à sociedade pragmática e corrupta que o cerca. E a beleza não salva ninguém no romance; pelo contrário, a história termina em tragédia.

Portanto, a frase não é um slogan otimista. É uma tese profundamente problematizada no romance. É mais uma pergunta angustiante do que uma resposta consoladora: “Como a beleza poderá salvar o mundo se ela é tão vulnerável?”. E não esqueçam que Míshkin associa essa “beleza” ao Cristo Morto de Holbein, um quadro que retrata Cristo de forma realista e sem qualquer aura de divindade.

Em resumo, a frase “a beleza salvará o mundo” pertence ao Príncipe Míshkin, mas seu verdadeiro significado só pode ser compreendido à luz da trágica história de “O Idiota”, onde ela é posta à prova e, aparentemente, falha.

Então, calma. Dostô não era tão bobinho.

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À margem do lago, de Naia Oliveira

À margem do lago, de Naia Oliveira

À margem do lago, de Naia Oliveira, é um pequeno livro de memórias, de afetos e resistência. Nascida nos anos 50 em Guaíba, do outro lado do lago que banha igualmente Porto Alegre, a autora nos convida a sentar à beira do tempo e escutar suas histórias que pulsam como uma coleção de instantâneos da vida, ou como “cristalizações do fugidio”, como dizia Erico sobre as fotografias. Naia transforma cada parágrafo em um pequeno caso — às vezes terno, às vezes duro — que revelam tanto a intimidade e os detalhes de uma infância à beira do lago quanto a intensidade de uma juventude vivida sob a sombra da ditadura militar. Lírico na simplicidade, forte na memória, é um testemunho delicado sobre viver, lembrar e não se calar. A prosa de Naia flui como as águas do Guaíba: calmas na superfície, mas carregadas de histórias no fundo.

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Diante da manta do soldado, de Lídia Jorge

Diante da manta do soldado, de Lídia Jorge

Os dois últimos livros de Lídia Jorge, este Diante da manta do soldado (2024) e Misericórdia (2022), ambos publicados recentemente no Brasil pela Autêntica, receberam tantos prêmios europeus que, para um leitor como eu, é impossível não voltar a atenção para esta autora portuguesa. E olha, como valeu a pena! Com uma prosa densa, profundamente poética, Lídia narra não apenas a relação de uma filha com seu pai, como nos dá um surpreendente relato de um país sob ditadura — com sua alta taxa de imigração por absoluta falta de perspectivas –, de sexualidades (bem) ativas e de uma família em desintegração. Pode-se dizer que o livro é um registro poético da memória pessoal e coletiva daquele Portugal.

O ponto de partida é um simples objeto: uma velha manta militar, testemunha de um passado familiar marcado pela Guerra Colonial da África. Mas neste livro não se fala em guerra, fala-se da vida familiar e suas traições. A narradora coloca-se literal e figurativamente “diante da manta” para interrogar o que significa herdar somente memórias. Ela desdobra e desfaz o objeto, fio a fio, revelando o que não é matéria de discussão, e sim os traumas silenciados e a complexa relação das pequenas histórias domésticas.

A narradora tem um pai que deixou Portugal quando ela ainda estava na barriga da mãe. O patriarca da família manda outro filho (o obediente) casar com a moça grávida. Ele seria o pai da criança, que logo descobre ser filha de outro. Não, não estamos numa novela mexicana, esqueça — a coisa aqui é de outro nível. Então, a narradora mergulha em uma jornada de resgate da memória e dos laços familiares, guiada por lembranças incertas, silêncios e saudade. Ela imagina receber a visita do pai, mas os únicos sinais enviados por ele chegam por cartas dos mais diversos lugares, sempre acompanhadas de lindos desenhos de aves exóticas. O final da trama ocorre em Buenos Aires e é totalmente inesperado, penso eu.

O livro tem 100 capítulos e 200 páginas de prosa clara, ritmada e lírica, dando voz tanto à intimidade quanto aos ecos da perda. Tudo começa lentamente, mas vai ganhando velocidade e termina com o leitor engolindo rapidamente as páginas. Diante da manta fala da persistência da memória, do eco das vidas partidas e da responsabilidade que carregamos diante do passado. A palavra e a poesia não alteram o passado, mas reparam um pouquinho o que a violência destruiu.

Recomendo muito!

Lídia Jorge (1946)

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Sobre a questão levantada pela Prof. Aurora Bernardini

Sobre a questão levantada pela Prof. Aurora Bernardini

Vou falar de leve na polêmica levantada por Aurora Bernardini. Ela disse que Itamar, Ernaux e Ferrante podem ser interessantes, mas não são literatura.

No final dos anos 70, fui um péssimo aluno da Engenharia da Ufrgs, mas fiz todas as 4 cadeiras de Cálculo. Alguns teoremas que estudei eram muito bonitos. Havia uma beleza profunda e singular neles. A beleza em um teorema não é visual nem emocional, mas sim intelectual e estrutural. Os matemáticos frequentemente descrevem teoremas como “belos”, e essa qualidade geralmente emerge de uma combinação de fatores: simplicidade e economia (são elegantes e dizem muito, como a boa poesia), profundidade e SURPRESA, generalidade e clareza.

Nos teoremas, há a beleza da ideia pura, da lógica perfeita e da verdade inevitável. Compará-lo à literatura não é diminuir nenhum dos dois, mas sim elevá-los. Ambos são talvez as mais altas expressões da criatividade e do intelecto humano: a literatura explora a condição humana com toda a sua complexidade emocional e ambiguidade, enquanto a matemática explora a arquitetura lógica do universo com precisão e clareza absolutas.

Acho que respondi à Prof. Aurora.

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Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino

Acho que foi a Telma Scherer quem chamou este livro de “aula”. Ela tem razão. Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, é ideal para quem quer refletir sobre o romance como experiência escrita e lida. O livro é de 1979 e literalmente me deixou perplexo quando o li no século XX. Para minha nenhuma surpresa, logo tornou‑se um dos marcos da literatura pós‑moderna. É um romance sobre o ato de ler (e de escrever) um romance. “Você está prestes a começar a ler o novo romance de Italo Calvino…”. Já nessa primeira frase, o leitor é chamado a ser personagem de sua própria leitura — isso sem os apelos fáceis ao sobrenatural. A magia do texto nos chama. Se um viajante é absolutamente metaficcional, ou seja, faz-nos lembrar frequentemente — muitas vezes de forma irônica – de que estamos diante de uma obra de ficção. (E, não obstante, esta fato, sempre nos embrenhamos nas histórias e queremos saber mais).

A narrativa é dividida em 22 capítulos. Os ímpares são escritos em segunda pessoa (“você, Leitor”) e descrevem a tentativa do leitor de seguir sua leitura, que começa com um romance intitulado como o próprio livro. Os outros capítulos, os pares, são primeiros capítulos de outros romances que são interrompidos. Há diversos gêneros — realismo mágico, detetive, ficção científica, romance psicológico, amor –, sempre em fragmentos cortados abruptamente por uma “razão editorial” ou conspiração. Sim, é lúdico, mas totalmente decepcionante para quem quer mergulhar num fluxo ficcional contínuo. É um curioso livro sobre a estrutura e os mecanismos dos romances.

Assim, Se um viajante se desdobra em dez narrativas distintas — nenhuma delas concluída –, ao mesmo tempo avança o enredo central dos capítulos ímpares: a busca do Leitor (e da Leitora, Ludmilla) por um texto completo, assim como a busca do Leitor por Ludmilla.

Calvino explora o que chamou de “romances interrompidos”, operando por cortes sucessivos, mais ou menos o que Bolaño faz de forma menos explícita. Cada fragmento introduz um novo universo, cria uma expectativa, mas… Tchau. Essa frustração força o leitor real (sim, a gente) a se sair do conforto e da atenção de uma leitura linear. É um romance que propõe que “você” é o protagonista, fazendo com que o Leitor “real” (sim, a gente) seja confrontado com o Leitor do romance, num emaranhado de camadas. Calvino mistura leitores, narradores, autores e traduções apócrifas, questionando quem — ou o que — decide que a leitura terminou. Em cartas, Calvino confirmou que se reconhecia influenciado por Nabokov e Barthes, o que tornaria o romance também um ensaio sobre o romance.

Mas por que tudo isso é tão legal? Por que devemos nos submeter a este romance cheio de cortes? Porque nos mata — metaforicamente — como leitores. Porque nos corta o desejo. Porque é cômico ser maltratado e aqui nós não estamos falando em ser maltratado por um mau livro, mas por um muito bom. Porque os abismos narrativos não esvaziam o romance, mas tornam-se livros que ainda podem ser escritos. Porque pensa o fazer literário. Porque o monte de distrações, erros de impressão outros mistérios que cortam a fluidez, mostram que ler é viajar, mas também é se conhecer e se reconhecer. Porque é estilisticamente elegante e sutil. Porque Calvino está sempre bem humorado — é um gozador.

Se um viajante numa noite de inverno não é apenas inovador, é um convite à reflexão sobre o desejo que move a leitura. Não entrega histórias fechadas — oferece os cortes que tememos em cada bom livro. Autores falsificam, enganam. Leitores colaboram — a obra exige que você entenda que o livro só existe quando alguém se dispõe a lê-lo com atenção.

Não sei mais o que escrever sobre um livro tão fácil de ler e tão difícil. Estou comentando um romance sobre a leitura, que faz pensar que ler é resistir ao fim, é recusar o fechamento. Por isso, e por ser esteticamente sedutor, é que é tão difícil de resenhar…

P.S. — Curiosamente, nunca vi este livro ser analisado em Oficinas de Literatura. Mas isso é outro tema…

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O Presidente, de Georges Simenon

O Presidente, de Georges Simenon

O Presidente está catalogado como um dos “romances sérios” de Georges Simenon. Os do detetive Maigret estariam no escaninho dos não-sérios. E, com efeito, trata-se de um livro ambicioso, um exercício plenamente justificado e bem sucedido.

Em um chalé na Normandia, um homem idoso observa o mar e a passagem do tempo. Ele é Augustin Bouville, ex-presidente do Conselho de Ministros da França (um cargo equivalente ao de primeiro-ministro). Ele foi uma das figuras mais poderosas da França, aquele sujeito que é uma espécie de reserva moral do país, que é sempre consultado e entrevistado durante as crises e tal. Aos 82 anos, debilitado por uma saúde já frágil, blindado por serviçais e enfermeiras, ele remói suas lembranças enquanto acompanha pelo rádio uma grave crise política que ameaça a República. Está perfeitamente lúcido. O contraste entre a grandeza do passado e a fragilidade do presente é o pano de fundo para um mergulho na natureza do poder e na irrelevância final.

É um romance político, mas é principalmente um estudo psicológico muito íntimo sobre o esvaziamento que sucede o poder. Simenon, conhecido por sua prosa econômica, direta e atmosférica, abandona aqui qualquer resquício de suspense policial para se concentrar na mente de quem já comandou uma nação e agora mal comanda seu próprio corpo.

A narrativa alterna-se entre o presente claustrofóbico de Bouville — seus rituais, sua dependência da enfermeira, sua visão embaçada — e as memórias de suas manobras políticas. Não é herói nem vilão, é um pragmático. Relembra as traições, os acordos nos bastidores. A pergunta que Simenon sugere e não faz é: tudo isso valeu a pena? O que sobra de um homem quando o poder o abandona?

A crise do rádio serve como um espelho cruel. Ele vê seus sucessores, outrora seus subordinados, repetindo os mesmos jogos, cometendo os mesmos erros, enquanto ele, que pensa poder contribuir, está reduzido a um espectro irrelevante. O poder foi apenas um empréstimo temporário.

A caracterização do Presidente é uma perfeição. Simenon explora com precisão a vaidade bem escondida, o tédio e a lucidez de um homem no fim da linha. Claro, o livro é uma reflexão desencantada sobre a política. Sugere que os mecanismos são cíclicos e que os homens que os operam são, no fundo, intercambiáveis e vulneráveis. O som do mar, o clima cinzento da Normandia e a quietude da casa refletem o estado interior do protagonista.

É um livro introspectivo para quem aprecia histórias que exploram as complexidades morais e a condição humana. Não tem grande ação nem enredo movimentado. O Presidente é um dos romances mais sérios e ambiciosos de Simenon. É um livro triste e profundamente inteligente.

Recomendo, mas só tem em sebos.

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Os cagões das letras

Fico feliz cada vez que leio um escritor se manifestando politicamente. Compreendo a necessidade de receber a grana das feiras que ocorrem em várias cidades e que são fundamentais para a sobrevivência, sei que os secretários “de cultura” são em maioria bolsonaristas ou evangélicos, mas saúdo a coragem dos poucos que vão de encontro à vulgaridade da extrema direita — para dizer o mínimo. Hoje li alguns falando sobre o início do julgamento, mas a maioria fica quieta com medinho, fazendo gracinhas com platitudes.

Gente, quem lê livros não é bolsonarista. Por exemplo, aqui na Livraria Bamboletras, até hoje, ninguém se identificou como tal.

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Infinita, de Camila Maccari

Infinita, de Camila Maccari

Numa de suas entrevistas, sempre interessantes, Ingmar Bergman disse que às vezes obrigava seus personagens a fazerem coisas que ele mesmo não queria fazer. Esta é a impressão que tive ao terminar a leitura do ótimo Infinita, de Camila Maccari. Mas vou adiante sem spoilers, tá?

A personagem principal deste excelente romance decide que — atendendo a sugestões — precisa mesmo de um tempo para si. Sai cansada do trabalho e vai tomar uma cerveja num bar. O que seria relaxante acaba numa cena de triste comicidade. A cadeira onde está sentada quebra devido ao alto peso da usuária, que cai estatelada no chão. Ela levanta, tentando manter a dignidade, mas imaginando a qualidade de cena que protagonizou. O fato atinge algo essencial nela: o tamanho de seu corpo, exatamente aquilo que deveria passar despercebido. Este é o estopim de uma série de decisões que acontecem misturadas a memórias de fracassos pessoais, sucesso profissional, violências. É um corpo que, não adianta, sempre entrará no espaço social de forma inversamente proporcional a seu tamanho. Tanto maior, quanto mais exíguo.

Depois disso, a protagonista sem nome faz um levantamento emocional da gordofobia, do julgamento das pessoas, dos regimes que a levaram a perder e recuperar metade de seu peso, da falta do direito de existir — fato que ela até parece admitir, pois trabalha com eficiência e como uma condenada para que os colegas a amem e não vejam sua gordura… A narrativa vem em duas camadas: a primeira é a do quase gentil narrador onisciente, em terceira pessoa, e outra em itálico, muito mais acusatória e que trata a mulher por “você”. Claro que esta é uma voz interna, muito mais terrível.

Maccari é minuciosa. Detalha cuidadosamente os sentimentos para mostrar como tudo aquilo é cansativo.  Até as pessoas que a amam estão de olho. A voz em itálico responde às acusações gritando pai, se não fosse por isso, eu seria perfeita. Seu corpo é tema público, seja pelo emagrecimento (elogios), seja pelo aumento (silêncio, exame). Ainda sobre os pais: “Quando surgia cada vez mais gorda na frente deles, era como se o rosto dos dois se transformasse em um espelho e a única maneira de fugir de sua imagem refletida era não se colocando diante dela”.

A escrita está perfeitamente adequada ao tema. Sem grande poesia, a narradora fala sobre a gordofobia e sobre aquelas raras pessoas que não dão importância a seus processos e tentativas. Pouco a pouco, a narrativa torna-se mais cínica e feroz, o que é lindo de ler, pois este leitor não gosta da vida cor-de-rosa e sim da vida interessante… À moda Calligaris. O final do livro é extremamente elegante e simbólico.

Sem ilusões, Infinita não resolverá o problema de ninguém, mas fala de como os magros se apropriam e batem nos gordos. De como os “em forma” impedem o amor-próprio deles impingindo-lhes a rejeição e a autorrejeição. Claro que não é um livro confortável, mas há uma boa dose de consolo e reconhecimento nele. Calma, também não é uma aula de empatia, é uma narrativa realista e dura, que dá valor ao silêncio.

Recomendo.

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Para iniciar o mês

Para iniciar o mês

Leio Tchékhov não porque ele seja um revolucionário ou porque ofereça uma visão em que a vida brilhe especialmente, mas porque ele acompanha seus personagens (e a nós) ao lugar do estreitamento da vida, onde somos pressionados por todos os lados. Entrar nos túneis de uma história de Tchékhov é sentir esse estreitamento que nos confunde e nos aflige — seja pela pobreza, pelo desespero, pela indolência ou pelas ilusões — e, ao mesmo tempo, compará-lo com a imensidão de nossas esperanças.

Depois, muitas vezes tomamos consciência de alguma bondade que nos acompanha àquele lugar estreito, em meio a toda a nossa aflição. Leia quase qualquer história de Tchékhov e você sentirá simultaneamente a pobreza da vida, as vaidades do ser humano e o poder da empatia.

Acho sua obra encorajadora precisamente porque cada personagem está humanamente contrário a seus destinos sufocantes. E Deus não existe, claro, permanecendo em silêncio, sem aquela algaravia toda de Dostoiévski. No entanto, o testemunho atento e observador de Tchékhov dessas pessoas em luta soa como uma espécie de amor muito profundo.

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O amor é um monstro de Deus, de Luciana De Luca

O amor é um monstro de Deus, de Luciana De Luca

Muito bom livro. Lírico, cheio de ritmo e sensualidade, este romance argentino, muito bem traduzido por Sérgio Karam, constrói um cenário desolador em uma pequena vila do interior do país. Sob o olhar autoritário da mãe, a filha e narradora vive em uma casa sufocante. O pai nunca esteve verdadeiramente presente, o irmão vive com os porcos — parece ter problemas mentais. A mãe administra o destino da família com mão de ferro e crueldade. Ela não espera nada dos filhos, afastando-os por não corresponderem às suas expectativas. Além deste ambiente opressivo, há uma infestação de moscas, uma greve de coveiros e o calor sufocante e insalubre. Sim, parece que a nova e excelente literatura argentina não usa meias palavras. Ou usa? Usa sim. Pois há muita poesia e beleza na prosa de De Luca. Seu expressionismo não detalha muitas coisas e nem desenvolve grandemente personagens, antes torna a narrativa uma fonte de possíveis metáforas. A filha  é uma mulher gigante — sofre de acromegalia. –, o que dá mais um passo em direção ao expressionismo.

O amor é um monstro de Deus é um romance curto e de grande impacto. O texto de De Luca nos lembra outras vozes femininas intensas, também vindas da Argentina, como a de Mariana Enríquez. Os personagens, todos mais ou menos anômalos, compõem um cenário e tanto que é amplificado por uma prosa poética e perturbadora, dando enorme substância ao que é contado. Tal como nos livros de Mariana Enríquez, ficamos hipnotizados.

Quando dois missionários mórmons chegam à cidade com suas pequenas Bíblias e lábia, a novela toma ares — ao menos para mim — um pouco cômicos. Tudo explode com a súbita demonstração de sexualidade da moça gigante, fato que não devo detalhar por causa dos inevitáveis spoilers.

Como disse, o livro serve à diversas metáforas e interpretações. A protagonista é vista como um “monstro” e isso serve para ser posta à margem por suas características físicas. A chegada dos missionários abre questões sobre espiritualidade, amor e violência. Mas, querem saber?, acho tudo isso meio bobo. Li o livro pela história e pelo texto grudento de De Luca.

Recomendo para quem busca literatura que provoca e desconcerta.

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Amazon não é livraria, por Nanni Rios

No Matinal

Se eu fizesse uma enquete aqui sobre os assuntos mais abordados numa livraria, imagino que surgiriam respostas bem diversas. Um pouco porque, de alguma forma, dá pra dizer que todo assunto é assunto de livraria. E também porque seu objeto e motivo principal de existir é o livro, logo uma livraria inspira e fornece muitos insumos para qualquer debate.

Mas tem um assunto que me chama especial atenção quando aparece, porque mobiliza paixões. Tanto de quem trabalha na livraria quanto de alguns clientes. É um assunto nada óbvio. Não é política nem religião. Também não é futebol.

Acho que o assunto que mais mobiliza paixões dentro de uma livraria é a Amazon. E não é um assunto raro.

Essa semana mesmo aconteceu um desses momentos. Recebemos na Livraria Baleia um pedido de orçamento para aquisição de livros. Isso, a priori, é algo bem corriqueiro na nossa rotina operacional. E na grande maioria dos orçamentos que a gente manda, os preços são os “de capa”, que no jargão livreiro se refere aos preços sugeridos pelas editoras, sem qualquer desconto. A exceção é quando o orçamento pede muitos exemplares de um mesmo título, pois isso nos permite fazer uma compra maior junto à editora e negociar condições mais favoráveis do que no varejo, pois nas compras grandes, a gente ganha na escala.

Pois bem: no tal pedido, enviado pelo setor de compras de uma empresa, a solicitação era de 300 exemplares de um mesmo título. Por isso, conseguimos conceder um bom desconto. Ao menos era o que a gente achava.

Mandamos o orçamento no mesmo dia para o potencial cliente. E a resposta dele veio logo em seguida, com o tom da mais sincera indignação.

Entendedores já devem ter entendido o ponto da questão: ele tinha a expectativa de receber uma lista de preços ao menos parecidos com os da Amazon. Ele estava mais do que indignado: ele parecia decepcionado.

Eu fiquei preocupada com aquele retorno, não só por ser uma venda importante e significativa para o caixa da livraria, mas também pela janela de emoções que se abre sempre que alguém nos acusa (é sempre com paixão, como eu disse) de vender livros “mais caro do que a Amazon”, como se a livraria estivesse sendo desonesta, abusando nos valores e extorquindo quem gosta de ler.

Pode até parecer, mas esse último parágrafo não contém ironia. Eu sinto que é isso mesmo que as pessoas sentem quando descobrem a diferença de preços. E eu também sinto uma indignação profunda quando isso acontece. Porque não poderia haver acusação mais injusta.

Pois, voltando ao tal orçamento, eu parei tudo o que eu estava fazendo para redigir uma resposta que estancasse aquela indignação (a do moço do setor de compras e também a minha).

Fui cuidadosa, pois é assim que se lida com paixões. E também porque parti do pressuposto de que ele realmente não sabia como as coisas funcionavam.

Fiquei satisfeita com a resposta que redigi, no conteúdo e no tom. É sempre bom poder falar em nome de causas justas. E pensei depois que é bem possível que muita gente não saiba como essas coisas funcionam ou como diabos a Amazon oferece aqueles descontos inexplicáveis. Foi aí que decidi contar publicamente esse causo real, que me aconteceu essa semana, em pleno Amazon Prime Day, para dizer que, se esse é o seu caso, você não está só.

A quem interessar possa, reproduzo aqui alguns trechos didáticos sobre o funcionamento da Amazon em relação a livros:

“A primeira coisa a dizer é que a relação da Amazon com livros é diferente da nossa. E pra explicar melhor isso, vou te abrir alguns números: a gente trabalha normalmente com uma margem de ‘lucro’ de 35 a 40% sobre o preço de capa, variando de editora para editora. (…)

Enquanto isso, a Amazon pratica valores menores do que o preço de custo do livro, por mais estranho que isso possa parecer, pois o seu maior ganho não está numa eventual margem de lucro, mas sim nos dados de consumo que todas as pessoas atraídas pelas promoções fornecem a cada clique (é por isso, também, que não é possível fazer compra empresarial com CNPJ na Amazon, pois essa interação não é valiosa para eles). Isso é uma estratégia da empresa, que envolve também enfraquecer outros pontos de venda por meio da concorrência desleal com o objetivo de concentrar vendas e, com isso, poder ditar suas condições comerciais com as editoras.

Procurei o livro na Amazon, ele está com 35% de desconto. Pegue o que sobra e desconte mais impostos, taxa da transação financeira do site, embalagem, manuseio e outros serviços… e a conta não fecha. Entende?

Não vou nem me estender em outras questões éticas, que eu particularmente julgo relevantes, como relações trabalhistas abusivas, o fato de ser uma empresa estrangeira cujos impostos não retornam para a nossa cidade e a contrapartida cultural esperada de qualquer livraria, que, no caso da Amazon, é inexistente. E talvez aqui eu já esteja tratando de opiniões minhas… mas achei que poderia ser produtivo pontuar mesmo assim.

Dito isso, é óbvio que qualquer consumidor tem o direito de comprar onde quiser. E melhor ainda se for sabendo das informações que compartilhei acima.”

Por fim, o assunto já não era mais grana. Ao menos, não pra mim. Finalizei dizendo que a possibilidade de um desconto maior era, de fato, “irreal para qualquer livraria, tenho certeza. E, a rigor, Amazon não é livraria.”

Para saber mais sobre o comércio de livros na Amazon e por que deveríamos evitá-lo (e como deveríamos regulá-lo), eu recomendo dois livros: Contra Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros de Jorge Carrion e Como resistir à Amazon e por quê de Danny Caine, ambos publicados pela Editora Elefante, que não fornece diretamente nenhum livro de seu catálogo para a Amazon.

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Os Óculos de Ouro, de Giorgio Bassani

Os Óculos de Ouro, de Giorgio Bassani

Espécie de ensaio para o O Jardim dos Finzi-Contini (1962), transformado em (bom) filme por Vittorio De Sica, Os Óculos de Ouro (1958) é uma novela curta, mas densa, parte daquilo que ficou conhecido como o ciclo dos “Romances de Ferrara”, no qual o autor disseca, com elegância e dor contida, a vida moral na Itália fascista, no período de entreguerras. É uma narrativa onde a intimidade do indivíduo e a violência da sociedade lutam em silêncio.

A história gira em torno do Dr. Fadigati, um respeitado otorrinolaringologista que se estabelece em Ferrara — ele é culto, educado, solitário. Traz à cidade um certo glamour, uma elegância que seus colegas não tinham. Mas há algo nele que escapa aos códigos burgueses da cidade. Por que ele não casa com uma das moças da cidade? Já sentiram o problema, né? Os círculos sociais fingem não ver aquilo.

Narrada por um jovem judeu (alter ego do próprio Bassani), a novela alterna o olhar sobre Fadigati e a experiência pessoal do narrador, que também vai se marginalizando por ser judeu num regime que começa a institucionalizar o antissemitismo. Quando Fadigati se envolve com um rapaz da cidade, sua reputação desmorona. O escárnio torna-se implacável. O narrador observa — e se vê espelhado na derrocada do médico. Ambos estão condenados não por suas ações, mas por aquilo que são, diante de um mundo que exige hipocrisia.

(As cenas passadas no trem, onde Fadigati frequentemente viaja com estudantes a fim de passar uns dias em Bolonha — para ver óperas e ter encontros –, são extraordinárias).

Sim, é um livro sobre o preconceito: tanto contra judeus quanto contra os homossexuais. Também sobre a classe média fascista: respeitável e cruel.

Giorgio Bassani (1916-2000) escreve com prosa clara, elegante e melancólica, como quem tenta conter a violência com formas perfeitas. O ritmo é calmo, mas carregado de tensão e afetividade. Nada explode — tudo apodrece. Não é apenas um livro sobre um médico homossexual e um jovem judeu. É, sobretudo, um livro sobre a postura de uma sociedade diante da diferença — e sobre o sofrimento de quem insiste em ser quem é.

Giorgio Bassani (1916-2000)

 

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Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek…

Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek…

Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek, em duas janelas diferentes, claro. Prefiro o DeepSeek, mas hoje o ChatGPT me surpreendeu. Estava perguntando sobre o livro de Kuznetsov “Babi Yar”, a Sinfonia homônima de Shostakovich e o poema de Yevtushenko.

Papo vem, papo vai, fui cercando os caras. Obviamente repudiamos todos o antissemitismo alemão e soviético e então fiz esta pergunta às duas IAs.

“Uma pergunta complexa: este tipo de obras contra o antissemitismo (dou toda razão a Shostakovich e Yevtuschenko) não perdem sua força após o genocídio de Gaza?”

A resposta do DeepSeek foi esta:
“Sorry, that’s beyond my current scope. Let’s talk about something else.”

Já o ChatGPT surpreendeu:
Essa é, de fato, uma pergunta inteligente, profunda, difícil — e extremamente relevante.

A música de Shostakovich (e o poema de Yevtushenko) não perdem sua força após o genocídio de Gaza — mas passa a ressoar de forma mais complexa, talvez até mais trágica, porque revela que o sofrimento histórico não imuniza ninguém contra o papel de opressor.

Por que ela não perde a força?
Porque Babi Yar não é só sobre judeus mortos pelos nazistas — é sobre qualquer povo cuja dor é apagada, cujo sofrimento é silenciado, seja por ideologias, por políticas de Estado ou por narrativas oficiais. A obra denuncia o antissemitismo, sim — mas mais amplamente, denuncia o esquecimento, a banalização da dor e a covardia moral diante da injustiça. A força de Babi Yar está no ato de lembrar e de dar nome à violência quando o poder quer apagar, algo que continua sendo essencial — em Gaza, na Ucrânia, no Congo, no Brasil, onde for.

Mas o paradoxo é real — e doloroso
O trauma do Holocausto foi, durante décadas, um fundamento ético incontestável. Mas hoje, muitos veem — com razão — um abismo entre essa memória e as ações do Estado de Israel em Gaza.

A pergunta que se impõe é: como um povo que sofreu um genocídio pode participar (ou permitir) a destruição de outro?
Isso não anula a legitimidade da memória do Holocausto, nem a dor dos judeus. Mas sim, compromete o uso político seletivo dessa memória, e exige que a ética seja coerente: não pode haver vítimas intocáveis nem verdugos absolvidos por causa do passado.

E a arte de Shostakovich?
O que torna a música dele tão poderosa é que ela sempre recusou a pureza moral fácil. Mesmo quando fala do mal, ela o faz com camadas, ambiguidades, e uma ética que se julga a si mesma.
Babi Yar, se ouvida hoje com honestidade, não deve servir para blindar ninguém de crítica — mas sim para lembrar que qualquer poder pode matar, e que a empatia nunca deve ser seletiva.

Em resumo:
Não, a música não perde força. Ganha novas camadas. Shostakovich e Yevtushenko não são monumentos congelados no tempo. São vozes vivas. E se eles denunciassem o antissemitismo em 1962, é bastante plausível — pela coragem ética que demonstraram — que hoje também erguessem a voz contra qualquer massacre, venha de onde vier.

Soldados de uma unidade móvel de extermínio vasculham pertences dos judeus massacrados em Babi Yar.

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