Ruy Carlos Ostermann: um encontro com o Professor, de Carlos Guimarães

Ruy Carlos Ostermann: um encontro com o Professor, de Carlos Guimarães

Resenha escrita para a revista Parêntese.

Há no RS algum apreciador de futebol com mais de 30 anos que não tenha ouvido, visto ou lido Ruy Carlos Ostermann? Não creio. Pedir distância crítica a qualquer um deles é impossível. Eu, por exemplo, comecei a ouvi-lo na Rádio Guaíba no distante ano de 1967 e de lá para cá o contato foi muito frequente. Para deixar ainda maior a proximidade, passei boa parte de minha vida trabalhando em dois empregos e eles me obrigavam a um deslocamento a partir das 16h, bem no horário do Gaúcha Entrevista, onde o Ruy, produzido por longo tempo pelo saudoso Paulo Moreira, entrevistava pessoas ouvindo-as com curiosidade e sem interrompê-las. Pois ele foi um comunicador multitemático, multimídia e aparentemente ubíquo.

Li Ruy Carlos Ostermann: um encontro com o Professor (436 páginas), em 3 dias e não me considero masoquista, ou seja, o livro e a extensiva pesquisa de Carlos Guimarães me prenderam por completo. São 35 capítulos diagramados com inteligência, deixando claros os depoimentos, as crônicas do biografado e o próprio texto de Guimarães, o que torna o livro um longo diálogo em que as comprovações do que está sendo dito aparecem de forma fluida.

O começo não promete muito. As origens familiares não são, digamos, fascinantes, mas isto dura pouco. Logo o texto ganha em velocidade e interesse. Também pudera! Seus pais tomam a atitude incompreensível de colocá-lo num internato a poucos metros de casa. E Ruy não parecia ser um problema. Ali parece nascer uma revolta que faria nascer outra pessoa, uma que, inclusive, teria dificuldades na escola e que aprenderia a dirigir seus interesses apenas para o que lhe interessava — a linguagem, a escritura, o pensamento e o esporte.

Ruy foi dos primeiros intelectuais que quebraram a falsa impossibilidade de alguém ser conhecedor de futebol e, ao mesmo tempo, uma pessoa de amplo conhecimento em áreas como arte, filosofia, literatura, história, ciências e música. De forma muito pessoal, ele foi o jornalista que trouxe a linguagem culta e elegante para o rádio, ao mesmo tempo que destronava o achismo reinante. Foi Ruy quem implantou as planilhas em seus comentários. Ele não dizia apenas que um time jogou melhor que o outro, depois enfiando um blá-blá-blá qualquer — nosso homem “de humanas” tratava de informar o número de chutes e de chances de gol, os escanteios, as defesas difíceis dos goleiros, etc. E tudo isto traduzido numa linguagem ausente de aridez. Imagino a festa que ele faria com as estatísticas de posse de bola e os mapas de calor que temos hoje.

Além disso, Ruy era um interessado observador de esquemas táticos, ou seja, ele podia descer alguns degraus em direção ao campo sem passar vergonha. Podia conversar com um técnico sem que este sugerisse a ignorância do jornalista.

O livro de Guimarães também oferece um belo e atraente painel da história do rádio e dos jornais de Porto Alegre, com destaque para o apogeu e declínio da Caldas Junior e a tomada de liderança pela RBS, através de uma administração mais sensata e da paulatina contratação das mesmas figuras que antes brilhavam na Guaíba. As fofocas, hesitações e desafios estão todos muito bem contados, inclusive a rivalidade entre Ruy e Lauro Quadros. Por muito tempo, Ruy foi chefe do departamento de esportes da Rádio Gaúcha e âncora de programas com a participação de Lauro.

Lauro e Ruy, de 85 e 90 anos de idade, parecem dois embaixadores. Eles negam quaisquer confusões, mas não era o que se dizia na época. De um lado e de outro, Guimarães tenta furar o bloqueio dos dois velhos, sem sucesso. São amigos. E as amizades são um importante ponto na vida de Ruy, Ele as cultivava com uma tão especial dedicação que elas foram o que impediu sua ida para a Globo, que lhe ofereceu “rios de dinheiro” para se transferir e que recebeu sempre a mesma resposta: a vida dele, a família e os amigos estavam aqui.

Recomendo o livro de Guimarães. E não apenas para os amantes do futebol.

Carlos Guimarães e Ruy Carlos Ostermann | Foto: Rogério Fernandes / Matinal

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Apresentando Middlemarch

Apresentando Middlemarch

Middlemarch é um mistério. Muitos clássicos do século XIX são de conhecimento quase geral entre leitores contumazes, mas o livro de George Eliot — que era uma mulher, nascida Mary Anne Evans — permanece ignorado pela maioria.

Acertando como sempre, Virginia Woolf escreveu que Middlemarch era “um dos poucos romances ingleses escritos para adultos”. Eu diria: “escrito exclusivamente para adultos”. O livro aborda temas muito atuais: o status das mulheres perante à sociedade, a ascensão da classe média e a crítica da moralidade, da religião e do casamento.

Sem exagero, trata-se de um livro estupendamente inteligente, publicado em 1871.

Middlemarch é o nome de uma cidade fictícia do interior da Inglaterra a a ação se passa lá volta de 1830. Como Anna Kariênina, o livro tem enredo múltiplo, centrando-se em dois casais, montando um quadro da vida rural inglesa e uma análise dos relacionamentos humanos em geral, especialmente das relações amorosas e do casamento.

O núcleo são os casais Dorothea e Edward Casaubon, Rosamond e Tertius Lydgate.

Dorothea, mulher excepcionalmente independente, politizada para sua época e de grande sede intelectual, casa-se com Casaubon, homem erudito e quase 30 anos mais velho. Ela o admirava, ele prometia muito, mas se revelou frio e chato. Um desastre.

Por outro lado, Lydgate é um médico entusiasmado, amante da ciência, que casa com a fútil Rosamond, que o faz gastar o que não tem. Outro desastre.

O curioso é o afastamento dos dois casais. algo muito semelhante novamente à Anna Kariênina. Um drama aqui, outro lá.

Mas nada desta apresentação faz sentido se não levarmos em conta as intervenções da narradora, com comentários cheios de ideias, pensamentos revolucionários e a colocação de situações morais muito originais.

Nas suas 800 páginas, há um bom número de personagens e tramas que encontram os temas subliminares, incluindo a situação das mulheres, a natureza do casamento, o idealismo e o interesse pessoal, religião e hipocrisia, reforma política e educação. Esse livro é maravilhoso!

Ah, tem algo que não era uma novidade no romance vitoriano, mas que Eliot professa como ninguém: sua profunda simpatia pelos personagens secundários, pelas pessoas simples, feias e pobres,

Vamos a um pouco mais de Virginia Woolf?

“A luta das heroínas de George Eliot, por conta da suprema coragem do empreendimento a que se dedicavam, termina em tragédia ou num compromisso que é ainda mais melancólico”.

Tudo porque, ainda nas palavras de Woolf, “o fardo e a complexidade da condição feminina não lhes era suficiente. Elas desejavam sair do santuário e colher para si mesmas os estranhos frutos da arte e do conhecimento”.

Temos Middlemarch na Livraria Bamboletras. Sim, a tradução da Martim Claret é boa.

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A mulher de dois esqueletos, de Julia Dantas

A mulher de dois esqueletos, de Julia Dantas

Este é um exemplar do chamado romance híbrido, isto é, aquele que mistura gêneros. Cada capítulo nos surpreende e não somente por seus saltos temporais. Começa com um (bom) conto escrito pela personagem principal, segue com a vida  da mesma durante a pandemia, há um capítulo-catálogo todo de medos e desejos relacionados à gravidez, etc. Na verdade, o romance parece um livro de contos com a mesma personagem em quase todos eles.

Não pretendo estragar a leitura de ninguém, mas digo que o capítulo-conto de abertura é bastante pânico, seguido por outro que traz uma discussão puxada pelo namorado da escritora a respeito do conto do primeiro capítulo. E aqui o livro segue já de outra forma. O chamado “namorado” não é abusivo, mas digamos que tende a ser. Ele não apenas complica a vida como pode, como vai invadindo o espaço físico da autora dentro do pequeno apartamento que dividem durante a pandemia. Ele é hábil nisso. Julia também é muito hábil e sutil ao descrever o relacionamento. Parece que ela também cede a ele. Se a personagem evita o conflito, Julia evita a crítica direta. Paradoxalmente, a contenção é um catalisador feminista fortíssimo para quem lê. (Posso dizer que estava lendo este capítulo durante a madrugada e que ele me acordou totalmente. Putz, achei o tal namorado um baita chato).

Há um capítulo que lembra o Ítaca, do Ulysses de Joyce, mas sem as perguntas. É um interessante catálogo ou catecismo de medos e desejos da personagem-escritora a respeito de engravidar. Ela está com quase 40 anos e, se não tiver filhos agora, a biologia logo decidirá por ela. Muitos dos medos são irreais e lá vamos nós para mais uma intervenção do resenhista gonzo. (Afinal, um obstetra que leu o livro inteiro numa tarde — prova de sua alta qualidade — voltou aqui na Bamboletras e deu risadas sobre algumas das suposições da personagem. Elas seriam totalmente fantasiosas. Conheço um pouco o problema: minha ex teve dois filhos de mim e, se eu tinha mil receios do que poderia acontecer, imagine uma portadora imaginativa).

Para aumentar a dúvida, nos capítulos seguintes Julia passa a tratar seu parceiro não mais como “namorado” e sim como “companheiro”. Ora, parece que o cara é outro e este é bem legal, mais digno de ser pai, creio eu. (Sim, quem lhes escreve é um homem cuja barriga só cresce por ser glutão, mas achei o sujeito digno de uma paternidade, fazer o quê?).

Importante ressaltar que há muito humor no texto de Julia. Não vou contar o final, vou deixar para vocês saberem como Vitor Ramil, Caio Fernando Abreu e suas runas entram na história, mas afirmo que Julia Dantas leva brilhantemente sua história até a última página com um texto inteligente, interessante, leve… E dubitativo.

Recomendo!

Se eu fosse o “namorado”, jamais desalojaria Julia de sua cadeira de balanço. Tenho uma igual. Foto: Renan Mattos / Agencia RBS

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As Willis: Sexo, Morte e Escaravelhos, de Carlos Gerbase

As Willis: Sexo, Morte e Escaravelhos, de Carlos Gerbase

Não há nenhum problema em um livro ser divertido, né?, desde que seja bem escrito e com bons artifícios para a gente ficar preso à leitura. Um escritor não precisa tentar sempre escrever a bíblia. Por exemplo, várias histórias da incensada Mariana Enriquez — e eu sou dos que a adoram — são apenas isso: divertidos. Eu gostei demais deste As Willis, de Carlos Gerbase. Largava e pegava o livro novamente, para ler mais um capítulo. É preciso que haja livros assim, capazes de desviar nossa atenção da loucura diária e, se eles forem intrigantes e inteligentes, melhor. Ainda melhor se tiverem uma pitada de humor negro. E se incluir sexo, magnífico! Aqui tem tudo isso.

Originalmente, as Willis são espíritos de virgens que morreram antes de casarem e que aparecem no balé Giselle ou Les Willis, de Adolphe Adam. Giselle é um dos mais famosos balés românticos e costuma ser dançado na ponta dos pés, como manda a tradição. No argumento original, as Willis saem de suas tumbas à noite para atrair homens com a dança e levá-los à morte. O balé tem música bastante chata, mas, se esquecermos desta e dos bailarinos nas pontas dos pés, vai sobrar uma história perfeitamente gótica.

O gótico literário foi uma vertente do romantismo voltada para o obscuro. Fala de morte, insanidade, sonhos e demônios, coisas assim do tipo Frankenstein (1818), de Mary Shelley. A origem das Willis parece estar em Heine (1797-1856) que escreveu sobre uma lenda alemã em que os espíritos das noivas que morreram antes do casamento atraem seus noivos para a floresta, a fim de fazê-los dançarem até a morte. Acho que o nome deveria ser dito vilís (francês) ou vilis (alemão?) e não como o nome do ex-deputado Jean Wyllys, que não foi ameaçado exatamente por virgens.

As Willis tem quase tudo do gótico — claro, os cemitérios também se fazem presentes, no caso, o da Santa Casa em Porto Alegre. Não se preocupem, ninguém dança até morrer, não foi um spoiler, mas, obviamente, o autor baseou-se na história original e faz referências à tradição, apesar de desobedecê-la. Há uma Giselle na trama, há um Alberto apaixonado por ela — no original ele é Albrecht –, e há a Rainha das Willis, que se chama Myrtha em ambas as histórias. Tem também uma bailarina que se chama Margot (Fonteyn?).

Faço este “intermezzo culto” não para me mostrar nem para dizer que Gerbase copiou uma história existente. A história original é ínfima e há muito de invenção nas Willis de Gerbase, que também são virgens que morreram antes do casamento e que podem, sim, matar. E matam facilmente por serem belas e por se alimentarem de suas conquistas através de mecanismos não antropofágicos que não irei explicar por motivos óbvios. Estaria contando parte fundamental da história.

As Willis é um tremendo livro de entretenimento, passado todo em Porto Alegre. Eu me diverti bastante com a boa trama criada sobre a base que expliquei acima, A coisa funciona maravilhosamente. O livro não é sanguinolento, o bom humor perpassa toda a história. Há uma interessante dupla de policiais, uma dupla de irmãs Willis sensacionais e um pastor evangélico que é exatamente aquilo que se espera dele. E, já disse, a coisa funciona.

O livro é uma espécie de tese acadêmica muito livre, escrita por Irina, uma willi. Sabe-se que Gerbase é ou foi professor na PUCRS e que deve ter sofrido horrores com alunos e com o formato insípido das teses (opinião minha). Além de professor, Gerbase dirigiu e fez o roteiro de vários filmes e isto está claro no livro. Como numa boa série, ele consegue envolver o leitor, deixando para o final o desenlace de várias tramas. Eu engoli o livro rapidinho. E curti.

Recomendo!

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Que romance é tão essencial que até os mortos querem saber do que se trata? Descobri que no início do livro de Jean Giraudoux, Bella (1926, jamais traduzido para o português), o narrador, ao participar de um serviço funeral para os colegas de escola que caíram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, passa a ouvir as vozes de seus amigos mortos. A maior parte deles falam sobre coisas mundanas e militares: os desconfortos da guerra, os insuportáveis oficiais comandantes. Mas a última voz é a de um jovem atormentado pelo pensamento de que nunca teve a chance de ler certo romance. O que o jovem morto quer é que o narrador resuma A Cartuxa de Parma. Sim, este é um livro que você deve ler antes de morrer, para usar um lugar comum.

A Cartuxa de Parma, de Stendhal, é um belíssimo épico político, além de uma história muito íntima de intrigas amorosas e sérias frustrações eróticas, ambientado na corte principesca de Parma, durante a época do próprio autor. Desde o momento em que apareceu, em 1839, o último romance completo de Stendhal foi considerado uma obra-prima. Apenas um ano após sua publicação, Balzac o elogiou em uma longa resenha que imediatamente estabeleceu a reputação do romance. ”Vejo perfeição em tudo” foi apenas um dos louros que Balzac deu à Cartuxa, no que foi certamente um dos maiores atos de generosidade literária que se conhece. Sessenta anos depois de Balzac, André Gide classificou o livro como o maior de todos os romances franceses e uma das duas únicas obras em língua francesa que poderiam ser contadas entre as 10 melhores da literatura mundial. (O outro seria As Ligações Perigosas). E há mais: em um artigo de 1874, Henry James colocou Cartuxa “entre os dez melhores romances de todos os tempos”. Eu, pequeno e humilde, faço o mesmo.

À primeira vista, o esqueleto da história de Stendhal sugere um simples romance histórico. A história começa com a tentativa do jovem e obstinado aristocrata italiano Fabrício del Dongo de ter uma vida coerente consigo mesmo como soldado no exército de Napoleão. Ele não sabe nada de guerra ou de armas e a cena cômica de que ele participa em Waterloo sem saber bem onde está, o que deve fazer e sentindo nojo de tudo aquilo, ensinou o Tolstói de Guerra e Paz. O russo confessou que sabia este capítulo de cor e salteado. Mas sigamos o Cartuxa sem dar muitos spoilers. Depois, de forma absolutamente cínica, Fabrício tenta estabelecer-se como prelado na Igreja Católica Romana sem desgrudar de suas muitas amantes. Há as tentativas de sua bela tia Gina, duquesa de Sanseverina, e de seu amante, o astuto (e casado) primeiro-ministro conde Mosca, para ajudar a estabelecer Fabrício na corte. Há a prisão de Fabrício na temida Torre Farnese. Há também seu caso de amor infeliz com a linda — e um tanto chata — filha de seu carcereiro, Clélia.

Então o que, exatamente, torna o Cartuxa tão indispensável para o soldado de Giraudoux? Ora, parece-me que Cartuxa exala um ar incomparável do qual todo ser humano precisa absolutamente ter respirado pelo menos uma vez. Não que este ar seja puro… Em nossos dias, estamos quase tão longe do romance de Giraudoux quanto os personagens de Giraudoux estavam da publicação de Stendhal. Por que o romance continua tão novo?

Em 4 de novembro de 1838, Stendhal (o mais famoso dos mais de 200 pseudônimos usados ​​por Henri-Marie Beyle, um diplomata de carreira nascido em Grenoble e amante de todas as coisas italianas, principalmente das mulheres) sentou-se em sua mesa no número 8 da Rue Caumartin em Paris, deu ordens para que não fosse incomodado mesmo que a cidade estivesse pegando fogo e começou a ditar um romance. O manuscrito foi concluído em apenas sete semanas, no dia seguinte ao Natal — um feito impressionante, quando você pensa que uma edição típica tem 500 páginas. A rapidez de sua composição se reflete na vivacidade narrativa pela qual o livro é tão bem conhecido. (Há momentos onde a velocidade claramente cobrou seu preço. Duas ou três vezes, Stendhal volta para explicar fatos que deixou para trás, mas até isso faz com grande charme).

A ideia do livro estava martelando a cabeça de Stendhal há algum tempo. Seus diários do final da década de 1820 estão cheios de anotações sobre as histórias complicadas da nobreza italiana. Os esboços do romance devem muito a uma crônica do século XVII sobre a vida de Alessandro Farnese, mais tarde Papa Paulo III, que Stendhal conhecia. (Farnese, que se tornou Papa em 1534, tinha uma linda tia, Vandozza Farnese que era amante do astuto Rodrigo Borgia. Ele assassinou o criado de uma jovem. Foi preso e escapou. Finalmente, manteve como amante uma mulher chamada Cléria.) Então, embora a extraordinária velocidade da composição do romance possa ser atribuída a um lampejo quase sobrenatural de inspiração, ela também pode ser vista como resultado de um longo processo.

Assim como as circunstâncias de sua criação, o romance parece espontâneo. O ritmo rápido da narrativa é compensado por uma avaliação fria e sarcástica da natureza humana e, em particular, da política. Stendhal era um liberal que, como jovem idealista, seguiu Napoleão para a Itália, Áustria e Rússia. Depois, viu-se como diplomata em uma época de alto cinismo político. O desgosto com a complacência burguesa de seus compatriotas desempenhou um papel importante em sua admiração pelos italianos, que considerava mais autênticos — mais profundos e mais suscetíveis a emoções violentas –, como ele escreveu em seu diário. A paixão italiana está evidente no livro, mas é o ímpeto, a velocidade do romance, que o faz uma leitura tão boa.

O que torna incontornável A Cartuxa de Parma não é seu estilo urgente, até mesmo impaciente (“Aqui pediremos permissão para passar, sem dizer uma única palavra sobre eles, por um intervalo de três anos”). O livro é uma lição de política, da linha tortuosa da política. Mosca e Gina são craques. Gina é também uma hábil manipuladora amorosa, mas parece desejar o impossível. Os personagens são vítimas de emoções incontroláveis. Há também o herói do romance, Fabrício, que, quando adolescente, desobedece seu pai conservador e foge para lutar por Napoleão. O que mais ressoa para os leitores não é o idealismo de Fabrício — que é, afinal, endêmico entre os protagonistas de romances românticos –, é que ele é sistematicamente desmentido pelas duras e ocasionalmente ridículas realidades da vida. (Fabrício, para nossa alegria como leitores, dorme durante boa parte de Waterloo). Mas há mais alguma coisa moderna: a forma com que o bom senso lhe escapa, às vezes disfarçado de inteligência…

Fabrício tenta se moldar a algum plano — um plano que, como o romance demonstra, nunca é capaz de seguir. Isto mais parece século XXI do que XIX. Não é de se admirar que ele se expresse tão frequentemente na interrogativa: “O que vi foi uma batalha? Essa batalha foi Waterloo?”, “Sou tão hipócrita?”. Uma medida irônica da incapacidade de Fabrício de dominar a arte de viver é que ele encontra a verdadeira felicidade apenas na segurança uterina de sua cela de prisão na Torre Farnese (como muitos notaram, ele está preso por exatamente nove meses), da qual ele reluta em escapar depois de se apaixonar por Clélia.

Fabrício não é o único personagem vívido e estranhamente contemporâneo aqui; você poderia facilmente argumentar que os verdadeiros heróis são sua tia e seu amante. Mestres políticos e sociais, eles são muito mais complicados e interessantes do que o jovem que eles passam tanto tempo tentando, em vão, estabelecer numa vida adulta. (Mosca para Gina: “Podemos encontrar para você um marido novo e acomodado. Ele teria que ser extremamente avançado em anos, pois por que você deveria me negar a esperança de eventualmente substituí-lo?”) Gina, em particular, é uma das grandes criações da imaginação romanesca do século XIX: brilhante, sedutora, astuta, vulnerável, apaixonada e, ainda assim, impotente, presa de uma paixão proibida por seu lindo sobrinho. Nós a conhecemos aos 13 anos, tentando conter uma risadinha diante da aparência esfarrapada de um oficial napoleônico que foi alojado no opulento palácio de seu irmão e daquele momento em diante nunca conseguimos tirar os olhos dessa mulher que, apesar de sua posição social e do dilema em que se encontra, nunca é menos do que totalmente humana. Mosca, também, que, na geometria perfeita do amor não correspondido, adora Gina desesperadamente de uma forma que ele sabe que nunca será correspondido, é uma criação intrincada, complexa e conflituosa em sua vida pública e privada. Além disso, é vítima de paixões eróticas que o agarram, na prosa extraordinária de Stendhal, “como uma cãibra”.

Não podemos esquecer que o ímpeto narrativo é claramente o trabalho de um escritor que, como seu herói, se rebelou em sua juventude contra sua família estupidamente convencional, um homem que queria ser conhecido como um artista e amante de mulheres. (O epitáfio de Stendhal, em italiano, que ele concebeu quando ainda tinha 30 anos, diz: “Ele viveu. Ele escreveu. Ele amou.”) Mas A Cartuxa também é o trabalho de um diplomata experiente, muito familiarizado com a política e os compromissos que a vida impõe. A voz mais velha do autor aparece no destino que ele escolhe para seus personagens.

Então, o romance é parte Fabrício e parte Mosca e Gina. Ou, para colocar de outra forma, ele contém as melhores qualidades de seus rivais franceses contemporâneos: ele tem as conspirações de Balzac, com assassinatos, documentos forjados, disfarces e a hipocrisia motivada pela política, e também o estilo glacial de Flaubert. Em outras palavras, tem algo para todos.

A Cartuxa transmite claramente o que Henry  James chamou de ”inquietação” da ”mente superior” de Stendhal por meio de uma série de escolhas sutis, mas bastante concretas. Há romantismo, mas há o estilo muito francês que Proust chamou de “voltairiano”, o estilo de ironia do século XVIII.

Antes de explicar o que significa, afinal, cartuxa, posso tentar dizer o que há no mundo de A Cartuxa de Parma? Há acertos públicos e erros privados, erros públicos e acertos privados, banquetes com inimigos, velocidade, história épica com detalhes jornalísticos, amores desastrosamente insatisfeitos, idealismo, cinismo, negligência da juventude satisfeita, tristes sabedorias da velhice, minutos dos quais a gente lembra em detalhes e três anos que não interessam, grandeza, desordens, magnificência.

Não é de se admirar que o jovem soldado de Giraudoux tenha sentido que precisava conhecer A Cartuxa de Parma. O que mais os mortos desejariam que não fosse a vida?

P.S. — Stendhal gostava de títulos estranhos. Ele jamais explicou o motivo pelo qual outra obra-prima sua se chamava O Vermelho e o Negro. Já a tal A Cartuxa de Parma é citada de passagem apenas no antepenúltimo parágrafo do livro… O que é? É um convento da ordem religiosa dos cartuxos. Esta ordem religiosa de grande austeridade foi fundada por São Bruno em 1066.


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O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

Este livro é um torpedo, uma obra-prima. Simenon era um mestre da análise psicológica. Em O homem que via o trem passar, acompanhamos Kees Popinga, um sujeito de lógica nada normal. Normal, Popinga assim parece nas primeiras páginas. Em sua bela vila em Groningen, na Holanda, ele leva uma vida pacífica e previsível com sua esposa, a quem chama de “mãe” — exceto na cama, espero — e seus dois filhos, Frida e Carl. Popinga exerce uma importante posição na melhor casa de importação e exportação da região, a de Julius de Coster en Zoon. Em suma, está tudo certo, tudo está bem planejado e certinho nesta vidinha enfadonha. Kees proíbe-se de entrar em certos bares que são taxados de inadequados. Quanto ao bordel local, onde, durante anos, estivera Pamela, a mulher que ele considerava a mais atraente que existia, Popinga nunca colocaria seu pé. Por nada no mundo. Pamela era uma das amantes de de Coster.

Sem spoilers. Tudo que contarei agora está no início do livro. Um dia, ocorre um problema na firma e Popinga precisa falar com o chefe à noite.  Não o encontra, mas, finalmente, por acaso, ao passar por um bar, Popinga o vê pacificamente instalado numa mesa de bar. O chefe também o vê e gesticula mui gentilmente para que Popinga entre. Com total tranquilidade e cinismo, Julius anuncia ao seu encarregado de negócios que a Companhia será declarada em liquidação muito em breve porque, entre outras coisas, ele, Julius, contrabandeia e contrabandeia há vinte anos. Então, Julius conta-lhe que decidiu desaparecer discretamente, naquela mesma noite, para se refugiar na Inglaterra, onde uma poupança o espera. E aconselha Popinga a fazer algo semelhante. Ali mesmo, de Coster lhe entrega uma graninha e faz uma vaga promessa de retomar futuramente seus negócios com Popinga.

E o mundo de Kees cai. Em primeiro lugar, com o dinheiro que lhe foi dado por de Coster, Popinga compra uma passagem para Amsterdam. Acontece que de Coster abandonou ali, no Carlton Hotel, a famosa Pamela, que ali mantinha há algum tempo. Popinga se apresenta a ela e, sem preâmbulos, por achar natural seu pedido (“afinal, era o trabalho dela, não era?”), exige passar uma hora de sexo com ela. A jovem cai na gargalhada na cara dele. Azar dela.

Depois, ele vai para Paris. Embora os personagens que o rodeiam — principalmente Jeanne Rozier, seu amante Louis e um bando de bandidos — pertençam à realidade, existe, para Popinga, apenas uma realidade: a sua. Kees Popinga reina supremo, está nas manchetes, escreve aos diretores de certos jornais para corrigir o que, segundo ele, é falso nas matérias a seu respeito. Ele até se dá ao luxo de escrever ao Comissário que o persegue. Aos poucos, ele se deleita com a fama, mas sobretudo com a habilidade excepcional com que escapa de seus perseguidores, pessoas que vivem dentro das normas. Ele acaricia, lisonjeia e constantemente insiste no valor de sua inteligência. Kees Popinga escapa de todos porque é o mais esperto.

O livro é enormemente envolvente. Kees é de enorme verossimilhança. Simenon explora seu personagem em profundidade, lá de dentro de seu cérebro de psicopata. O resultado é espetacular. Não pensem em um livro sangrento, nada disso. Sangue não é com Simenon, seu negócio são seres humanos. E, apesar do desvio e da perversão e da megalomania, é a impressão de um ser humano que o leitor leva de Kees Popinga, O homem que via o trem passar.

Georges Simenon (1903-1989)

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Na praia, de Ian McEwan

Na praia, de Ian McEwan

Este é um dos melhores McEwan que já li. O livro localiza-se num ponto muito curioso dos costumes do século XX, pouco antes da liberação sexual dos anos 60, bem no final da repressão na Inglaterra, coisa que seguiu aqui no Brasil por mais alguns anos, conforme meu corpo pode testemunhar com certa tristeza.

Edward Mayhew e Florence Ponting acabaram de casar. Ele é um historiador de uma família mais pobre, ela é uma talentosa violinista principal de um quarteto de cordas com aspirações a Wigmore Hall — diga-se de passagem, o melhor lugar do mundo. Ambos tem 22 anos. Sua história de amor cresce muito a partir da primeira frase do livro, que antecipa o que leitor lerá depois: “Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente  impossível”.

A lua de mel acontece na praia Chesil, em um hotel. Eles comem a ceia nupcial sob a guarda de dois garçons, como intrusos. Logo eles irão embora, deixando-os com os problemas de uma retidão moral que só os atrapalha. Florence parece preferir nunca ter ninguém a tocando, nem mesmo esse homem que ela verdadeiramente ama. Ela ficou muito preocupada após a leitura de um manual de casamento que só falava em mucosas, glande e penetração, jamais em prazer. Enquanto isso, Edward sonha silenciosamente com o deleite sem fim que será possuir Florence. Esses dois mundos já colidiram (ou colidem) várias vezes, e não costuma dar certo. Poderia dar uma bela comédia, mas o momento é grave e o tratamento de McEwan também, além de poético e compreensivo.

Como já disse, os dois se amam, mas a inexperiência de Edward e aquilo que Florence sente como um ataque à sua virtude, serão um drama verdadeiro. McEwan acha o tom perfeito para lidar com esse relacionamento, transformando-o em algo muito perturbador. Tanto Edward quanto Florence temem que ela seja “frígida”, essa palavra antiga, e veem esse estado como espécie de maldição para todo o sempre.

McEwan interrompe a narrativa com dois capítulos longos e maravilhosos que detalham seus passados e o encontro de Florence e Edward, junto às pequenas mitologias que eles estabelecem um com o outro. O idílio na aldeia da infância de Edward é perturbado por um acidente sofrido por sua mãe quando a guerra termina. Florence é sufocada em uma casa burguesa, por uma mãe filosófica e um pai rico. As implicações dessas diferentes educações reverberam neles. Nos romances de McEwan, sabemos, ninguém escapa de sua classe social.

O final, belo e triste, traz uma qualidade de conto de fadas à novela. Claro, seria horrível contá-lo aqui. McEwan é o malvado de sempre. O olhar de Florence pelo Wigmore Hall na cena final é puríssima (e boa) literatura.

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Memento Mori, de Muriel Spark

Memento Mori, de Muriel Spark

É inacreditável que Muriel Spark (1918-2006) tenha escrito o divertido Memento Mori em 1959, com apenas 41 anos. Seu conhecimento sobre as pessoas velhas já era enorme! A expressão Memento mori significa “lembre-se de que é mortal” ou “lembre-se de que vai morrer”. (Na antiguidade, era usada pelos filósofos estoicos como expressão de reflexão. Nos mosteiros católicos, é uma saudação utilizada pelos monges como um exercício diário de aceitação da morte.) E é isso que ouve um grupo de velhinhos ingleses  quase todos os dias de um anônimo que lhes telefona. Alguns estão em clínicas geriátricas, outros flanando por aí, alguns ricos, outros não. E chamam a polícia para descobrir o autor das mensagens, sempre ditas assim, sem mais. Este mote filosófico e brilhante é o estopim para um belo livro de Dame Muriel.

Eles suspeitam que quem telefona é um de seus inimigos ou parentes hostis. Quem estaria tentando assustá-los? Ou estariam interessados nas heranças? Mas o chamador fala com vozes e sotaques diferentes para pessoas diferentes e tem um conhecimento inexplicável de seus movimentos. Várias explicações sobre a origem das ligações são propostas, mas nenhuma se encaixa em todas as evidências. A polícia fica perplexa, e o inspetor aposentado Mortimer, ele mesmo um suspeito aos olhos de alguns, conclui: “na minha opinião, é a própria Morte”. Quem será?

Embora o assunto seja a inevitabilidade da morte e as várias aflições, físicas e mentais, da velhice, o romance está longe de ser mórbido ou deprimente. Pelo contrário, é maravilhosamente engraçado do começo ao fim.

Um romance sobre a morte pode ser engraçado? Sim, se ele for sobre como sobre a morte é percebida, temida, negada e antecipada de várias maneiras pelos idosos. À medida que o tratamento médico e a tecnologia continuam a melhorar, a morte é adiada cada vez mais para mais e mais pessoas, mas isso é uma bênção mista. Temos que viver mais com todas as indignidades e aflições da velhice, da incontinência ao Alzheimer, enquanto aguardamos o fim inevitável, sobre o qual só a fantasia das pessoas tem algo de reconfortante a dizer.

A ficção inglesa dos anos 50 é muito boa. Lembro agora apenas de Lucky Jim e de Sábado à noite, domingo de manhã, duas obras-primasDeve ser o Alzheimer. Ops, o telefone está tocando. Já volto.

Muriel Spark

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Sergio Faraco é o novo patrono da Feira do Livro, Rafael Guimaraens fica na fila

Sergio Faraco é o novo patrono da Feira do Livro, Rafael Guimaraens fica na fila

Desejava que o Rafael Guimaraens fosse o patrono da Feira do Livro, é sempre um reconhecimento. Ele há anos escreve sobre Porto Alegre e seus livros são cada vez melhores. Mas houve uma enchente este ano e ele tem um livro sobre a Enchente de 41. Talvez algumas ôtoridades ficassem de nariz torcido com um sujeito que, além disso, criticou bastante a postura de alguns deles durante os eventos de maio.

Só que escolheram Sergio Faraco, o maior contista brasileiro, um fantástico escritor que jamais tinha sido patrono. A escolha de Faraco evita qualquer protesto. Claro, basta abrir um livro dele para fechar a boca. O cara é genial.

De minha parte, sempre fui meio avesso à feira do livro. Lembro que lá em 2014 ou 15, quando ainda não era dono de livraria — era jornalista do Sul21 –, fui chamado a improvisar algo sobre a Feira para o jornal.

Tenho aquele defeito de ser sincero. É uma droga isso. Parei na frente da câmera pilotada pela querida Roberta Fofonka e, em plena praça, disse algo que era mais ou menos assim, de costas para a Rua da Ladeira.

“Esta é a festa das editoras e das distribuidoras. Fora os sebos, é uma feira de lançamentos, a maioria de autoajuda. Não há grande atenção pelo que está sendo vendido. É meio nauseante passar entre as maiores bancas, pois elas vendem os mesmos livros. Então, se você quiser literatura (e apontei para trás), suba a Ladeira e dobre à esquerda na Riachuelo. Ali está o que você procura”.

A coisa foi ao ar e alguém da organização pediu para falar com minha chefe. Ela deu risada e me chamou. Tomamos um café juntos.

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Bambino a Roma, de Chico Buarque

Bambino a Roma, de Chico Buarque

Bambino a Roma é um livro escrito com leveza, narrando as aventuras do menino Chico Buarque na Itália durante os dois anos em que seu pai deu aulas na Universidade de Roma — entre 1953 e 1955. Sérgio Buarque de Hollanda viajou de navio com a esposa e os sete filhos do Rio de Janeiro até Gênova e de lá para Roma. Eu achei uma delícia ler o livro. O texto tem a dimensão do tema tratado, além de não se desviar de temas espinhosos. Há, por exemplo, alguns abusos, como os cometidos por Mr. Welsh, um professor de inglês que gostava de passar a mão na bunda dos alunos por dentro de suas cuecas, Chico incluído.

Mas o abuso não é o principal, o principal é a amizade com Amadeo (o filho do quitandeiro com o qual jogava futebol), a relação com as meninas, sua paixão por algumas delas, a relação com os irmãos, a apendicite, as fugas da escola, as correrias por Roma de bicicleta e o pai sempre distante como eram os pais do passado — alguns ainda o são, certo? E as coisas de guri… Afinal, levante a mão quem teve uma irmã mais velha e não a observou pelo buraco da fechadura para ver como era! Tive duas.

O humor do relato nos deixa espreitar as fragilidades daquele menino que dançou numa festa com Alida Valli, quase sufocado por seus seios. Ele tinha 10 dez anos. Durante a narrativa, Chico algumas vezes põe em dúvida o que conta, riscando partes daquelas imagens saudosas e nos fazendo abordar certas partes com um olhar oblíquo.

O tom do livro me parece perfeito — sem ser exageradamente nostálgico ou piegas, lemos uma visita compreensiva de um velho a uma parte de sua infância. Os capítulos finais do livro (sem spoilers, apesar de que estou louco para contar) são extremamente sutis e bonitos. E um tanto angustiantes.

É biografia ou autoficção? Certamente é autoficção. Chico modifica detalhes, enrola a gente com humor e perspicácia e… Entrega elegantemente o jogo, mas apenas para os leitores atentos. Ah, o livro tem algumas fotografias de família assim como de alguns bilhetes da época.

Recomendo!

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O Banquete, de Muriel Spark

O Banquete, de Muriel Spark

Um belo divertimento. O Banquete, da escocesa Muriel Spark (1918-2006), começa e termina em um jantar. Os anfitriões ricos servem mousse de salmão e têm criados que não permitem que suas taças de vinho esvaziem.  Conversam sobre um assalto (me senti estuprado!), uma lua de mel em Veneza e um casamento. Margaret Murchie e William Damien se casaram recentemente (eles se conheceram na seção de frutas da Marks & Spencers, como é repetido ironicamente no livro) e se tornaram tema de muitas especulações. A moça é esquisita, mas eles parecem se gostar. O anfitrião não dá um ano para o casamento. Margaret parece atrair incidentes infelizes e Hilda Damien, sua sogra também ricaça, simplesmente não consegue superar um sentimento desconfortável a respeito dela. É instinto maternal ou simplesmente suspeita infundada?

O Banquete é um Spark clássico. Embora use um evento aparentemente despreocupado como ponto de partida, ele traz uma riqueza de situações estranhas, incluindo violências, maldade em um convento, uma clínica de loucos e uma conspiração criminosa. Começa com conversa fiada e de repente revela os pensamentos mais profundos e sombrios de seus personagens. Como em muitos romances de Spark, você tem a sensação de que alguém vai morrer. O que é antecipado sem problemas pela autora. Ela diz ao leitor quais coisas desagradáveis ​​vão acontecer e, em seguida, deixa-o por vários capítulos descobrindo como e quando.

O Banquete tem muitos personagens, mas não está lotado. É um texto inteligente e provocativo, atravessado por uma veia diabólica de humor negro. Como sempre, Spark consegue colocar muita coisa em seus pequenos romances. Durante a narrativa, há roubos, assassinatos, rixas familiares e todo tipo de comportamento desonesto. Conhecemos servos suspeitos, tios loucos e um convento de freiras, uma das quais é muito comuna. Tudo é tratado com a segurança característica. Este é um romance afiado de Muriel Spark, que destaca como as pessoas podem não ser tão inocentes quanto parecem à primeira vista. Um deleite.

Trevor Leighton / National Portrait Gallery, London

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O Burgomestre de Furnes, de Georges Simenon

O Burgomestre de Furnes, de Georges Simenon

Georges Simenon é um clássico. Sempre lhe pediram que escrevesse um grande romance e ele achava graça. “Meu grande romance é o mosaico formado por minhas pequenas novelas”.  Está respondido, não? Para que o grande romance se há 200 deliciosos pequenos romances — seja com ou sem o detetive Maigret? Gosto de seus policiais com Maigret, mas prefiro os “romances sérios” (expressão de Simenon) como O Gato, O homem que via o trem passar, Sangue na Neve e tantos outros. Há estas e mais muitas outras obras perfeitas formando o vaso mosaico do escritor.

Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde, obviamente, o mal comanda. Parece o Rio Grande do Sul.

O burgomestre de Furnes é de uma crueza e verossimilhança extraordinárias. Parece um estudo sobre o perversidade e o embrutecimento de um homem. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a algumas tragédias, recentes e antigas: um jovem funcionário lhe pede dinheiro e diz que se matará se não receber — o moço cumpre a promessa; uma filha doente mental é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela; ele tem um filho fora do casamento – o qual é apenas suportado por Terlink, que mantém sua mãe como empregada da casa – e a própria gestão de Furnes é… Deixa assim. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de pessoas que têm dificuldade de viver sem ele. A segurança com que Simenon leva sua narrativa também não demonstra compaixão. Por que o livro é tão bom? Ora, por Simenon explorar cada poro e, afinal, mostrar certas vulnerabilidades de seu monstro.

Georges Simenon (1903-1989)

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Ao Farol (ou Passeio ao Farol), de Virginia Woolf

Ao Farol (ou Passeio ao Farol), de Virginia Woolf

Em diferentes fases da vida, eu li três vezes este livro. E sempre o li como se comesse chocolate, sempre com a intenção de me deliciar mais um pouquinho. Isso não acontece devido a alguma reviravolta na trama, nem a réplicas espirituosas, nem a envolvimentos românticos. Na verdade, Virginia Woolf frequentemente ignora a trama em favor do exame das minúcias, colocando sob seu microscópio as emoções humanas ou, como na seção central deste livro, a maneira como uma casa se decompõe, como se a casa fosse humana. Eu sou um sujeito, acho, que exijo consistência e profundidade naquilo que leio, mas com VW esqueço de tudo. Está frio em Porto Alegre e fiquei mais do que contente em afundar de novo no banho quente deste livro e isso, creio, foi devido aos personagens.

A história acompanha a família Ramsay e suas visitas à Ilha de Skye, na Escócia, de 1910 a 1920. Lá, há enormes ondas, há um céu sempre mudando de humor e, claro, há o brilho do farol. Quando você entra no fluxo da prosa, é difícil escapar. O estilo de escrita de Woolf é propositalmente inovador. Ela cria frases gigantescas seguidas por linhas abruptas e mais curtas. É quase um poema disfarçado de romance. Normalmente não sou fã de poesia. Sempre preferi uma experiência de leitura mais tangível, uma que não seja movida por imagens.

A proximidade com os personagens, a compreensão que VW tem deles é o que os tornou tão envolventes. Eles não são extraordinários — na verdade, até pelo contrário. São tipos intelectuais de classe média, do tipo que você encontra em muitos livros. Pode-se até dizer que eles não oferecem nada de novo, nada para surpreender ou excitar um leitor. No entanto, para mim, a familiaridade com eles era uma prova da habilidade com que foram descritos – porque todo mundo conhece alguém como eles. Virginia Woolf, em algumas centenas de páginas, pareceu capturar exatamente a essência de certas pessoas — certos traços, peculiaridades e maneirismos que posso reconhecer da minha vida, do meu mundo, apesar de estar a cem anos de distância.

Se a Sra. Ramsay é a baseada na figura da mãe de VW, o que dizer de Lily Briscoe? Sua posição fora da família Ramsay torna sua perspectiva uma das mais interessantes e importantes do romance. Sempre senti uma conexão emocional com Lily enquanto ela anseia pelo apoio e amor dos outros. Ela vê a família Ramsay como um símbolo idealizado de amor e união perfeita; no entanto, as outras perspectivas revelam uma realidade muito diferente. Lily é uma constante em todo o romance, assim como o próprio farol. Mesmo quando o tempo passa e certos personagens vêm e vão, Lily está sempre lá com sua pintura, otimismo e introspecção fascinante. Ela é feminina e independente, uma figura contrastante com a Sra. Ramsay. Ou melhor, a feminilidade convencional, representada pela Sra. Ramsay na forma de casamento e família, confunde Lily, e ela, bem, ela talvez seja VW x sua mãe.

Ah, o farol. É o fio condutor que atravessa todo o romance, aquele destino tão desejado pelos filhos da Sra. Ramsay e tão persistentemente evitado pelo Sr. Ramsay. A ênfase contínua em visitar o farol… Ele parece representar uma espécie de objetivo final inatingível. Quando James finalmente chega ao farol depois de anos querendo visitá-lo, ele percebe que ele não se compara ao farol que ele imaginou quando criança. É interessante ver o relacionamento de todos com o farol conforme o romance avança, especialmente na sua seção final.

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Duas línguas, de Laura Cohen Rabelo

Duas línguas, de Laura Cohen Rabelo

Este é o terceiro livro consecutivo de ficção que resenho e que envolve muita música. Não por acaso, o trio todo é da editora Zain, que parece ser especializada no gênero. Bem, sou viciado nisso. Meu livro preferido na vida já foi o Doutor Fausto de Thomas Mann. Meu livro de contos — um livrinho bem premiado, lembram? — tem algumas histórias cheias de música e aquele romance que estou escrevendo há algum tempo também. Mas tergiverso.

Duas línguas é um livro que trata da vida de um intérprete erudito. Como sou casado com uma, fica fácil dizer que, normalmente, suas vidas começam com um professor local, logo após vão para uma faculdade também local, depois seguindo para e Europa para estudar com um figurão. Neste ponto, o instrumentista ou cantor ou fica na Europa ou retorna a seu país de origem. Onde ele vai se fixar depende de seu calibre ou de sua vontade. O violonista B. cumpriu todo o périplo, foi do Brasil para a Inglaterra e voltou, quando o habitual seria permanecer na Europa.

Laura Cohen Rabelo descreve a vida e as inquietações de B. não como uma documentarista, mas com boa arte literária — ou um bom jorro literário. B. está retornando de uma de suas muitas viagens para concertos no exterior. Chega de madrugada em casa. Sua mulher e filhos dormem. Só a cachorra vai recebê-lo. B. entra no banheiro e vê uma foto sua de 30 anos atrás. Está fora do lugar. A partir dali — no ínterim entre a chegada ao banheiro, o inevitável passeio de madrugada com a cachorra e a volta para a casa –, ele inicia um severo fluxo de consciência que o leva da infância até os dias atuais. Recebemos um relato cerrado da vida profissional e amorosa de B. desde os problemas com a tia professora de piano meio abilolada, seus professores (assediadores ou não…), a ida para Londres, etc. Também os problemas com seus violões são bem narrados.

Não sei se B. existe, creio que não. Acredito mais que ele seja um amálgama de vários violonistas. Por exemplo, fui ver uma entrevista do deus do violão Sérgio Abreu no YouTube e me surpreendi pelo fato de ele dizer coisas que B. disse no livro sobre “gravar discos”. Mas não pense que o livro de Rabelo é uma biografia de Sérgio Abreu. O dito cujo é, inclusive, personagem como o são outros grandes mestres do violão: Julian Bream, Andrés Segovia, etc. Ou seja, B. aparece metido entre personagens e instituições reais.

B. é de primeira linha. Não é qualquer um que toca no Wigmore Hall, por exemplo. E Laura Rabelo acompanha seu personagem igualmente em alto nível. Realmente a vida de um artista internacional difere em muito de outras. Para além dos erros e problemas comuns de todos nós, há fontes de angústia a mais em diversos pontos, ainda mais que B. é um tanto… E percebemos que não era apenas a foto que estava fora do lugar.

Recomendo!

Laura Cohen Rabelo

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Floresta de Lã e Aço, de Natsu Miyashita

Floresta de Lã e Aço, de Natsu Miyashita

Os japoneses são diferentes, até os prêmios são diferentes no país. Em 2016, este romance ganhou o prêmio como o livro que os livreiros japoneses mais gostavam de vender aos clientes. Ele vendeu mais de um milhão de exemplares e também foi adaptado para o cinema com o mesmo nome (The Forest of Wool and Steel, em inglês). É um livro lindamente escrito com descrições poéticas do interior do Japão e com aquela sutileza típica dos japoneses. Pouco é dito neste romance, boa parte é intuído, ou seja, podemos dizer que é um livro de entrelinhas e que estas não são pesadas, mas antes poéticas.

Floresta de Lã e Aço conta a história da juventude de Tomura. Quando ainda era um estudante do ensino médio, foi escalado para acompanhar um afinador de piano, o Sr. Itadori, ao ginásio da escola a fim de afiná-lo. Tomura ouviu-o trabalhar, ouviu os sons que ele prodizia, o que lhe fez evocar imagens da floresta ao cair da noite. A sua floresta lá do lugar remoto onde nasceu. Ali, era o único lugar onde Tomura se sentia bem-vindo e em paz. Essa experiência o afeta tão profundamente que ele decide fazer um curso de afinador de piano, embora nunca tenha tocado o instrumento e nem tenha muito ouvido para música. Depois de concluir seu curso, ele entra como aprendiz na empresa onde trabalhava o Sr. Itadori, em Hokkaido, no extremo norte do Japão.

Passamos a segui-lo enquanto ele aprende com cada pequena experiência — tentativas de afinação por conta própria, acompanhando seu mentor, Sr. Yanagi, e outros afinadores experientes da empresa (incluindo o não tão agradável Sr. Akino), ou simplesmente ouvindo apresentações, seja em salas de concertos ou em residências, já que diferentes músicos, profissionais e amadores, abordam o piano de forma diferente e exigem coisas muito diversas dele. Em tudo isso, sua busca não é simplesmente se tornar um mestre ou um tipo específico de afinador, mas alcançar aquele tipo de som sublime que o Sr. Itadori criou lá no início e que o inspirou a fazer o curso. Aquela sensação de frescor e juventude. Entre os vários clientes estão as gêmeas Yuni e Kazune, alunas mais jovens do que Tomura e cuja jornada com o piano está de certa forma entrelaçada com o que ele vive.

Durante todo o tempo, Tomura é atormentado por dúvidas, perguntando-se se algum dia será bom o suficiente, se será capaz de superar os detalhes técnicos e ser o melhor que você pode em algo que ama. Tomura, além de questionar as próprias habilidades, está sempre considerando — de uma forma que me parece muito japonesa — para quem está afinando: para o cliente, para o público, para o próprio instrumento? O consistente conhecimento da autora sobre o processo impressiona. Tomura passa a considerar várias nuances de afinação – a umidade, se as cortinas de uma sala estão abertas ou fechadas, até mesmo a altura do banco ou a posição das rodas do piano.

Todo esse conhecimento flui naturalmente pelo texto, sem ser despejado como faço aqui. Outro aspecto que torna este livro muito agradável são as imagens e sons que são invocados – Tomura pensa muitas vezes na sua floresta. Não precisamos ser grandes amantes de música para gostar de Floresta, quem busca ou buscou ser o melhor possível em sua vocação vai adorar. Ah, e quem gosta de Murakami também!

Recomendo!

Natsu Miyashita

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Se um dia eu escrever um livro…, de Ademir Furtado

Se um dia eu escrever um livro…, de Ademir Furtado

Não, não há nada de errado com o Bildungsroman, gênero que começou lá com Goethe — mais exatamente com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister —, e que gerou uma série de grandes obras bem diferentes entre si, como O Apanhador no Campo de Centeio, A Montanha Mágica e a Tetralogia Napolitana da Ferrante. O Brasil não me parece muito adepto do gênero. Ciranda de Pedra e Mãos de Cavalo são Bildungsroman, certamente. Será forçar a barra colocar O Ateneu no grupo?

O Bildungsroman é um gênero de romance que apresenta o processo de formação de um personagem principal. De sua infância ou adolescência até tornar-se um jovem adulto. Seu desenvolvimento moral, psicológico, político, sexual e estético estão lá descritos, bem como as pessoas que o influenciaram — ou que lutaram pela sua alma, se lembro bem do Hans Castorp, de A Montanha Mágica, em tradução do amigo Herbert Caro.

E é um Bildungsroman que anuncia e faz Ademir Furtado no ótimo E se um dia eu escrever um livro… No livro de Furtado temos Ângelo, um jovem que vive em Porto Alegre com todas os problemas de um pós-adolescente. Ele ainda leva uma vida confortável com pai e mãe, um casal estável. Seu pai parece que fez uma bobagem qualquer no trabalho e está sofrendo um processo administrativo. Nada de dramas, Ângelo tem mais o que fazer, tem que tratar de sua vida — afinal, adota uma forma tão romântica e literária de abordar as meninas que as perde, arranja um mentor num brilhante e despachado livreiro, é muito interessando em arte, ignora o que fará no futuro, etc. E como todos moram em Porto Alegre e são espertos, acabam frequentando os melhores lugares da cidade.

Apesar de falar de uma geração posterior à minha, o livro me interessou muito. Me identifiquei, ué. Boa parte do que era Ângelo, eu fui. Acho que o mesmo vale para o autor… O fato de conviver com pessoas que escreviam livros, ao mesmo tempo que também escrevia, mas não mostrava nem contava nada pra ninguém — eu fazia isso. O fato de passar para o papel seus sonhos noturnos — eu fazia isso. O fato de perder meninas por puras bobagens ou inabilidade ou indecisões — isso era eu. O fato de andar por aí meio tarado — bem, vocês já cansaram.

Como atração especial, Se um dia eu escrever um livro… tem uma série de contos de Zezé, amiga de Ângelo, no que seria uma pequena obra dentro de outra. Fala ainda sobre a pressão imobiliária para substituir um sebo por algo mais “útil”. Também há várias e boas discussões sobre problemas artísticos, além de nos dar uma visão da formação das amizades e dos círculos literários porto-alegrenses, o que deve ocorrer de forma mais ou menos semelhante em várias cidades, apesar de Porto Alegre parecer um criadouro de escritores. Às vezes aparece um bom como Ademir.

Eu curti. Recomendo. E tem na Bamboletras.

Ademir Furtado

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Leopold, de Luiz Antonio de Assis Brasil

Leopold, de Luiz Antonio de Assis Brasil

Para um amante da música, dificilmente a literatura brasileira oferecerá um banquete melhor servido do que este Leopold. Li o livro em voz alta para minha mulher Elena e Assis Brasil quase destruiu minha garganta com seus longos capítulos, parágrafos e frases, prova de nosso envolvimento com a narrativa. Era difícil interromper a leitura. AB ajustou sua prosa para que o discurso transmitisse uma ideia crível e realista do pensamento de Leopold Mozart durante toda uma viagem de volta a Salzburg após visitar seu filho em Viena. É um longo fluxo de consciência raramente interrompido e sem as ousadias formais que costumam acompanhar este gênero de narrativa. No começo da leitura, há também a surpresa com a fala em primeira pessoa de uma figura histórica pertencente a uma cultura alienígena.

Bem, se você não sabe, o filho de Leopold chamava-se apenas Wolfgang Amadeus Mozart e, se você não sabe quem é, talvez não devesse estar lendo este texto.

Durante a leitura, pensava que AB fizera uma pesquisa de mais ou menos uma década. Porém, o autor afirma no posfácio que trabalhou apenas 4 anos no projeto, mas que W. A. Mozart era (é) uma paixão antiquíssima e que “caso me candidatasse nesses concursos de televisão que aferem o conhecimento da pessoa acerca de qualquer assunto, eu teria ficado milionário respondendo sobre a vida e obra de Wolfgang Amadeus Mozart.” Ou seja, considerando a parte Mozart (a partir de agora, quando escrever Mozart, estarei me referindo a Wolfgang Amadeus), talvez tenha sido uma pesquisa informal de toda uma vida. E a citada paixão deve apontar também que Leopold seja o opus magnum do autor. E é.

1785. Mozart tem 29 anos, Leopold tem 66 e viaja numa diligência acompanhado de um casal adormecido. Atribui-lhes nomes e, sussurrando ou não — para não acordá-los — passa a narrar sua vida de pai de um gênio. A história se desdobra como nossos pensamentos, a coisa vai e volta, às vezes sem direção — artifício perfeito para quem conta uma história para ninguém, para quem conta uma viagem interior durante uma viagem –, às vezes de forma atônita com o talento do próprio filho.

Leopold demonstra ser uma pessoa autoritária, centralizadora e difícil, que desejava e procurava impor aquilo que via como melhor para seu Mozart: uma postura mais pragmática a fim de que este alcançasse a segurança financeira, uma esposa adequada e, sob sua orientação, a chegada ao Olimpo de melhor compositor de todos os tempos. Mas então Haydn, o grande Haydn, derruba a fantasia do pai ao dizer que Mozart era um compositor melhor do que ele próprio e o maior da Europa.

E o mundo de Leopold vai ao chão, pois o que ele teria a ensinar a seu filho se Haydn dissera aquilo? E, se Mozart era melhor do que Haydn, o que sobraria para Leopold ensinar? Ele se vê esvaziado. Nos últimos tempos, vivendo em Salzburgo afastado do filho em Viena, Leopold mandava-lhe cartas com instruções e exercícios… Mas claro que Mozart fazia o que bem entendia há muito tempo. E Leopold finalmente vê-se frente a si mesmo, como alguém que não escreveu uma obra digna de imortalidade, apenas um Método de Violino. Como alguém consciente de que, no futuro, o nome Mozart seria sempre utilizado para designar Wolfgang Amadeus e que ele sempre precisaria de um Leopold antes para saber de quem se tratava.

Neste jogo entre ser pai, mentor, professor e também compositor é que Leopold tem que se virar. Só que sendo um catolicão com aspirações iluministas na pequena Salzburgo, um empregado do arcebispo, a coisa não é tão simples. E esta é uma das universalidades do livro. Muitos de nós somos pais e mães que se tornam perfeitamente inúteis para os filhos. E a presença próxima de um imortal parece acentuar a impressão de finitude do pai e também da irmã… Mas tergiverso. Termino dizendo que o final do livro é muito bonito.

Saibam que Assis Brasil chegou lá. Escreveu um tremendo romance, uma consistente obra de arte que aponta para as intercertezas mais importantes da vida — envolvendo amor, arte, deus e morte.

Recomendo fortemente a leitura.

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Só uma coisa, meu caro Luiz Antonio, sou bachiano de quatro costados e não gostei muito desse negócio de ficar repetindo que o maior de todos é outro, tá?

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As Irmãs (& Outros Causos), de Antonio Prates

As Irmãs (& Outros Causos), de Antonio Prates

Não sou nada dado à classificações. Não costumo ler um livro e colocá-lo neste ou naquele escaninho, mas classifiquei este livro num pequeno vídeo que fiz ontem. Para minha própria surpresa, eu enfiei um “neorregionalista”. Agora, com mais espaço e sem a pressão de uma câmera, tentarei explicar meus motivos. Ora, entendo regionalismo quando o autor se utiliza de uma grupo particular de palavras, expressões e maneirismos linguísticos de uma determinada localização geográfica. Geralmente, tal linguagem origina-se em fatores históricos da cultura regional. O prefixo neo correu por conta de minha insegurança e da minha necessidade de diferenciá-lo do romance regionalista dos anos 30 do século passado. Mas comparei-o a Sergio Faraco — na minha opinião e na de muita gente o maior contista brasileiro vivo — e esta é uma comparação válida pelos temas e região.

Sem contrapor As Irmãs com outros livros, digo-lhes que aqui o gauchismo está misturado à mitos e tragédias gregas, havendo inclusive um mapa para a melhor compreensão da relação contos x mitos ao final do livro. Novamente sem querer confrontar alhos e bugalhos, explico que o mapa é parecido com aquele que temos no Ulysses de Joyce, só que aqui os mitos passeiam por Rosário do Sul, Cruz Alta ou São José dos Ausentes, cidades deste nosso pobre e malgovernado Rio Grande do Sul, e os textos não são nada intrincados.

Li os contos inteiramente esquecido dos mitos a que se referiam porque as histórias são realmente boas e interessantes. Ou seja, o livro é uma delícia que pode ser lida como literatura de alta qualidade sem mais. Mas alguém mais culto ou curioso irá notar ou pulará direto ao mapa para ver que mito é aquele, coisa que, repito, não fiz.

O que fiz foi me divertir com as histórias de Prates nestes dias terríveis em nosso estado. Destaco os contos que têm a presença de Nhô Salustiano, o peão contador de histórias, além de As Trovoadas, A Travessia, As Irmãs, A Lanterna e O Retorno.

Recomendo!

Antonio Prates

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Vidas Secas, de Graciliano Ramos

Vidas Secas, de Graciliano Ramos

Caiu-me nas mãos este clássico que li quando adolescente e lá se vão 50 anos. Por que não relê-lo? É um dos livros mais importantes de nossa literatura e, mesmo 50 anos depois, lembrava-me de todo o capítulo da morte da cachorra Baleia em detalhes, quase palavra por palavra, principalmente o final. Nesta segunda leitura, ficou clara a intenção inicial de que Vidas Secas (1938) fosse um livro de contos. Cada capítulo pode ser lido separadamente, mas o todo forma um estupendo romance. O que parecia um mosaico bem montado na primeira leitura, me apareceu mais avulso agora, como se fossem fatos jogados muito artisticamente pelo velho Graça. Ou como quadros de uma exposição.

Vidas Secas foi o único romance que Graciliano escreveu na terceira pessoa. Por motivos de ordem puramente financeira, ele enviava os capítulos para jornais e revistas. Dos 13 capítulos, oito saíram antes em periódicos. Baleia, que é o Capítulo 9, foi o primeiro a ser escrito e publicado. Era um conto sobre a morte de uma cachorra. O quarto, Sinhá Vitória foi o segundo a ser escrito. Mudança, o primeiro, foi o terceiro a ser escrito. Não havia um roteiro. O foco era dado em momentos-chave daquelas seis vidas sofridas — pai, mãe, 2 fihos, mais Baleia e o papagaio –, mas as algumas peças podem ser retiradas do romance e a ordem pode até ser alterada, desde que com cuidado. A unidade vem do tema. Rubem Braga chamou-o, com razão, de “romance desmontável”.

A história é de retirantes nordestinos fugindo da seca, passando fome e sendo enganados financeiramente pelo proprietário da fazenda, que se utiliza da ignorância e do medo de Fabiano, o pai e marido. O estilo é igualmente seco, minimalista, sem firulas. Mesmo aquilo que poderia ser patético ou ridículo, como a prisão e a ida à festa, é narrado com enorme economia, sem julgamentos ou teorizações. Foi assim e pronto. Não é um ensaio, é pura ficção cortante. O que interessa à Graciliano é o homem e seu sofrimento. o ser primitivo e (muito) limitado que tenta sobreviver a um ambiente hostil e injusto. Graciliano não era um sujeito apenas engajado politicamente, era um artista e escritor comunista. Creio que isto fique bem claro neste livro.

Vidas Secas é uma curta obra-prima que desde janeiro, quando a obra de Graça caiu em domínio público, está custando até R$ 19,90. Aproveitem!

Gracilano Ramos (1892-1953)

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Compre o livro na Livraria Bamboletras, na Av. Venâncio Aires, 113. Ah, não mora em Porto Alegre? Use o WhatsApp 51 99255 6885. A gente manda!

 

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Cem milagres, de Zuzana Růžičková (com Wendy Holden)

Cem milagres, de Zuzana Růžičková (com Wendy Holden)

Num domingo à tarde, aqui na Bamboletras, eu estava ouvindo alguma coisa de Bach para cravo. O que ouvia era muito bonito e bem tocado. Fui conferir o nome da cravista, que já tinha visto ser impronunciável: Zuzana Růžičková (1927-2017), uma tcheca.

Consultei o Google para saber quem era. Soube que ela tinha sido a primeira pessoa a gravar a obra completa de Bach para teclado. Foram 21 LPs (depois 20 CDs) gravados entre 1965 e 74. Mas o que me impressionou mesmo foi que ela tinha vivido 90 anos e passado por três campos de extermínio nazistas. Um deles tinha sido Auschwitz.

Judia, ela sobreviveu, claro. Se não o tivesse, não estaria tocando na Livraria… Descobri também que ela tinha escrito uma autobiografia. Só que eu estou cheio de ler livros sobre o Holocausto. Mas, OK, pedi o livro, que é recente.

Depois de passar dois meses no hospital, minha mulher Elena ainda tem dificuldades para dormir. Então eu leio livros para ela todas as noites. Já terminamos vários. E comecei a ler “Cem Milagres” em voz alta para ela. O livro é ótimo e mudamos de problema, porque a Elena ia ficando cada vez mais acordada enquanto leio.

Foi escrito a 4 mãos. Uma jornalista inglesa gravou as memórias de Zuzana e passou para o papel. Um dos milagres foi que a cravista faleceu 5 dias após finalizarem as entrevistas. Ela conta não apenas sua vida com os nazistas — permaneceu quase 5 anos presa –, mas sua vida sob o desconfiado stalinismo tcheco do pós-guerra, quando dava concertos em Paris, Londres mas também em pequenas cidades do interior da Tchecoslováquia, para operários, ou conhecedores de música.

O livro não obedece a ordem cronológica. Ainda bem, porque ler juntos os capítulos sobre os campos de Terezín, Auschwitz e Berger-Belsen seria insuportável para o leitor. A verossimilhança e o detalhamento da narrativa são muito abrasivos para qualquer um. Então a biografia alterna capítulos de diversas fases da vida de Zuzana e seus diversos milagres. Milagres de sorte, de azar, de talento, de ter vivido sob o nazismo e o comunismo, de ser mulher e judia, de ser cravista em vez de pianista, de ser uma pioneira, de tentar lembrar da música nas piores condições possíveis e muitas vezes esquecê-la.

É um livro profundamente humano sobre uma grande personalidade que, sempre que não sabia para onde correr, perguntava a si mesma: e agora, o que faria Bach? Imaginem que ela foi professora de Christopher Hogwood e Mahan Esfahani, que foram residir em Praga durante um bom período para aprenderem com ela.

E quando ela fala em milagres, não está brincando. Só para dar o exemplo de uma ocorrência que está no primeiro ou segundo capítulo: certa vez, em 1960, ela estava dentro de um trem que bateu em outro. Ela voou dentro do vagão e sua mala cheia de partituras caiu sobre ela. Com uma dor forte nas costas, dispensou uma maior investigação — pois tinha um estúdio reservado para uma gravação — e foi para a casa carregando suas coisas. Na manhã seguinte, foi gravar apenas as difíceis Variações Goldberg, de Bach. Um trabalhão, ainda mais que as costas doíam muito. Depois de gravar, foi ver um médico e… Soube que tinha simplesmente quebrado a espinha dorsal. O médico não sabia como ela conseguia caminhar… A gravação? Quando já estava imobilizada, disseram-lhe que ficou ótima e que ia ser lançada.

Então, se você quer um livro encharcado em humanidade, é este.

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