É uma discussão bem comum. Li ambos e, se Guerra e Paz é um oceano (imenso, cheio de correntes e vida), Anna Kariênina é um abismo (profundo, íntimo e vertiginoso). Eu escolho o abismo e não estou sozinho: tem muita gente boa que leu GP e se atira no abismo. Em AK, Tolstói tem uma precisão que Guerra e Paz, pela própria natureza épica, não exigia. Dezenas de personagens… Prefiro até o mais focado A Cartuxa de Parma. Sabiam que Tolstói podia dizer de cor a cena da batalha napoleônica que Stendhal descreveu na Cartuxa com o Fabrizio del Dongo totalmente perdido? No AK, cada capítulo avança como um movimento de sinfonia — nada está fora do lugar. Tb em AK, Tolstói constrói personagens de enorme profundidade. A desintegração emocional de Anna, sua obsessão, seus ciúmes e desespero são retratados com uma crueza que dói. Mas é claro que compreendo quem prefere GP. É uma questão de gosto. Não sou amante dos painéis, prefiro os microscópios.
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Sobre o Capítulo XXIII de Daniel Deronda

Ontem, lemos um capítulo absolutamente arrebatador de “Daniel Deronda” (1876). Trata-se da cena (Cap. XXIII) em que Herr Klesmer desencoraja Gwendolen a seguir uma carreira artística. É um momento especialmente incômodo, revelando muito sobre os temas da ilusão da emancipação feminina na obra de George Eliot (não esqueçam que Eliot era uma mulher).
Gwendolen, uma jovem bonita, orgulhosa e na pindaíba, considera se tornar uma cantora ou atriz profissional para manter seu status e independência. Ela acredita que seu talento amador e beleza sejam suficientes para o sucesso. No entanto, Klesmer, um pianista e compositor rigoroso (talvez inspirado em Liszt), desmonta suas expectativas com uma crítica honesta, fria e implacável.
Ele diz que o talento de Gwendolen é medíocre e que o mundo artístico exige disciplina e sacrifício — algo que ela não possui. Ele diz que fazer sucesso entre amigos e parentes provincianos é uma coisa, outra coisa é o mundo e suas disputas. Ele sugere que a sociedade não respeita as mulheres de talento medíocre, associando-as ao sexo fácil. Ainda mais quando são bonitas.
E volta aos méritos inexistentes da bela moça: você já tem 21 anos, deveria ter começado a estudar disciplinadamente há mais de sete anos. Está tarde.
Gwendolen fica humilhada, pois percebe claramente que a imagem que tinha de si era uma fantasia. Este banho de realidade fará com que ela arranje um casamento rico ligeirinho, aposto.
Mas George Eliot é genial e deixa um subtexto social: o da frivolidade da educação feminina da época, que preparava mulheres para serem “ornamentos” da sociedade, jamais para profissões sérias. Mesmo que Gwendolen quisesse independência, as opções para mulheres sem talento excepcional eram poucas — muitas vezes, apenas o casamento ou a pobreza.
Eliot, que vivia como escritora profissional, pode estar destacando parte do que viveu. Gwendolen, sem talento, sem opões, certamente acabará presa em um casamento. Já Eliot sempre foi a outra, a amante. Só casou bem mais velha, com um jovem, quando o primeiro morreu.
Voltemos. A intervenção de Klesmer não é apenas sobre arte — é sobre a dura verdade de que nem todos podem escapar de suas circunstâncias apenas pela vontade. Gwendolen, ao contrário de heroínas como Jane Eyre, não tem um talento salvador, e sua tragédia reside nessa limitação.
P.S. — O que faz Romola Garai ornamentando o post? Ora, ela atuou como Gwendolen numa série da BBC.
Daniel Deronda 1

Quando a Elena esteve no hospital, adquirimos o hábito de eu ler livros em voz alta para ela. Claro, agora ela pode lê-los sozinha — aliás, mesmo no hospital ela podia ler, tanto que lia Nabôkov no original “para não perder a inteligência” –, mas ela diz que é fácil se acostumar com o que é bom. Chega a dizer que gosta da minha voz, o que julgo ser totalmente impossível.
Mas o que interessa é que estou lendo o maior de nossos calhamaços até hoje: trata-se de “Daniel Deronda”, de George Eliot e 700 páginas. DD não é um “Middlemarch”, mas é ótimo e cheio de detalhes inusitados para um romance vitoriano.
Quando do primeiro encontro de um casal, ela coloca as falas de cada um e, entre parênteses, o que um está pensando e observando no outro. É um trecho onde brilha o enorme virtuosismo da autora. Disse Marcelo Coelho que George Eliot não é uma artista que nos faça ver o mundo segundo uma perspectiva original, como Kafka fazia, mas, como Tolstói, é uma artista que nos faz ver o mundo de acordo com nossos próprios olhos. Só que “nossos próprios olhos” parecem ganhar lentes de aumento; e em toda a literatura ocidental poucas lentes são tão claras, tão penetrantes, como as que George Eliot nos oferece.
Uma lista sensacional de melhores romances ingleses

Eu sempre tive um caso de amor com os ingleses. Não pensem que eu ignoro o que fez o Império Britânico ou as posições recentes sistematicamente ao lado dos EUA. Não pensem que eu gostava de Thatcher, por exemplo. Na verdade, eu amo três coisas: a literatura inglesa, a cidade de Londres e seus habitantes.
Não sei se um dia voltarei à cidade da qual gosto tanto, mas vou tentar.
Agora, quando cheguei em casa após o Concerto da Ospa, soube que a BBC fizera uma pesquisa com scholars e críticos ingleses para votar nos melhores romances ingleses. Eu disse ingleses, então Joyce, Beckett e outros estão de fora. Também só tem romances na lista. Li os critérios e achei que, opa, esta lista será das boas.
Eram 100 romances e eu fiquei moralmente muito feliz com a lista. Disse aqui em casa que os três primeiros seriam x, y e z, e errei só o terceiro lugar, que apareceu em quarto. Disse que a lista estaria cheia de mulheres e está. Elas têm o “trio vencedor”. Me perguntaram: quantas estarão dentre os dez melhores livros? Respondi que cinco: George Eliot, Virginia Woolf, Charlotte e Emily Brontë e mais Jane Austen. Acertei o número, mas errei uma: Austen ficou fora do top 10, mas em seu lugar entrou Mary Shelley.
E, para meu pasmo, eu li TODOS os 25 primeiros colocados. Ou seja, minha anglofilia literária tem melhor foco do que meus óculos, atualmente.
É meio bobo ficar feliz com isso, mas eu fiquei, sabe?
100. The Code of the Woosters (PG Wodehouse, 1938)
99. There but for the (Ali Smith, 2011)
98. Under the Volcano (Malcolm Lowry,1947)
97. The Chronicles of Narnia (CS Lewis, 1949-1954)
96. Memoirs of a Survivor (Doris Lessing, 1974)
95. The Buddha of Suburbia (Hanif Kureishi, 1990)
94. The Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner (James Hogg, 1824)
93. Lord of the Flies (William Golding, 1954)
92. Cold Comfort Farm (Stella Gibbons, 1932)
91. The Forsyte Saga (John Galsworthy, 1922)
90. The Woman in White (Wilkie Collins, 1859)
89. The Horse’s Mouth (Joyce Cary, 1944)
88. The Death of the Heart (Elizabeth Bowen, 1938)
87. The Old Wives’ Tale (Arnold Bennett,1908)
86. A Legacy (Sybille Bedford, 1956)
85. Regeneration Trilogy (Pat Barker, 1991-1995)
84. Scoop (Evelyn Waugh, 1938)
83. Barchester Towers (Anthony Trollope, 1857)
82. The Patrick Melrose Novels (Edward St Aubyn, 1992-2012)
81. The Jewel in the Crown (Paul Scott, 1966)
80. Excellent Women (Barbara Pym, 1952)
79. His Dark Materials (Philip Pullman, 1995-2000)
78. A House for Mr Biswas (VS Naipaul, 1961)
77. Of Human Bondage (W Somerset Maugham, 1915)
76. Small Island (Andrea Levy, 2004)
75. Women in Love (DH Lawrence, 1920)
74. The Mayor of Casterbridge (Thomas Hardy, 1886)
73. The Blue Flower (Penelope Fitzgerald, 1995)
72. The Heart of the Matter (Graham Greene, 1948)
71. Old Filth (Jane Gardam, 2004)
70. Daniel Deronda (George Eliot, 1876)
69. Nostromo (Joseph Conrad, 1904)
68. A Clockwork Orange (Anthony Burgess, 1962)
67. Crash (JG Ballard 1973)
66. Sense and Sensibility (Jane Austen, 1811)
65. Orlando (Virginia Woolf, 1928)
64. The Way We Live Now (Anthony Trollope, 1875)
63. The Prime of Miss Jean Brodie (Muriel Spark, 1961)
62. Animal Farm (George Orwell, 1945)
61. The Sea, The Sea (Iris Murdoch, 1978)
60. Sons and Lovers (DH Lawrence, 1913)
59. The Line of Beauty (Alan Hollinghurst, 2004)
58. Loving (Henry Green, 1945)
57. Parade’s End (Ford Madox Ford, 1924-1928)
56. Oranges Are Not the Only Fruit (Jeanette Winterson, 1985)
55. Gulliver’s Travels (Jonathan Swift, 1726)
54. NW (Zadie Smith, 2012)
53. Wide Sargasso Sea (Jean Rhys, 1966)
52. New Grub Street (George Gissing, 1891)
51. Tess of the d’Urbervilles (Thomas Hardy, 1891)
50. A Passage to India (EM Forster, 1924)
49. Possession (AS Byatt, 1990)
48. Lucky Jim (Kingsley Amis, 1954)
47. The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (Laurence Sterne, 1759)
46. Midnight’s Children (Salman Rushdie, 1981)
45. The Little Stranger (Sarah Waters, 2009)
44. Wolf Hall (Hilary Mantel, 2009)
43. The Swimming Pool Library (Alan Hollinghurst, 1988)
42. Brighton Rock (Graham Greene, 1938)
41. Dombey and Son (Charles Dickens, 1848)
40. Alice’s Adventures in Wonderland (Lewis Carroll, 1865)
39. The Sense of an Ending (Julian Barnes, 2011)
38. The Passion (Jeanette Winterson, 1987)
37. Decline and Fall (Evelyn Waugh, 1928)
36. A Dance to the Music of Time (Anthony Powell, 1951-1975)
35. Remainder (Tom McCarthy, 2005)
34. Never Let Me Go (Kazuo Ishiguro, 2005)
33. The Wind in the Willows (Kenneth Grahame, 1908)
32. A Room with a View (EM Forster, 1908)
31. The End of the Affair (Graham Greene, 1951)
30. Moll Flanders (Daniel Defoe, 1722)
29. Brick Lane (Monica Ali, 2003)
28. Villette (Charlotte Brontë, 1853)
27. Robinson Crusoe (Daniel Defoe, 1719)
26. The Lord of the Rings (JRR Tolkien, 1954)
25. White Teeth (Zadie Smith, 2000)
24. The Golden Notebook (Doris Lessing, 1962)
23. Jude the Obscure (Thomas Hardy, 1895)
22. The History of Tom Jones, a Foundling (Henry Fielding, 1749)
21. Heart of Darkness (Joseph Conrad, 1899)
20. Persuasion (Jane Austen, 1817)
19. Emma (Jane Austen, 1815)
18. Remains of the Day (Kazuo Ishiguro, 1989)
17. Howards End (EM Forster, 1910)
16. The Waves (Virginia Woolf, 1931)
15. Atonement (Ian McEwan, 2001)
14. Clarissa (Samuel Richardson,1748)
13. The Good Soldier (Ford Madox Ford, 1915)
12. Nineteen Eighty-Four (George Orwell, 1949)
11. Pride and Prejudice (Jane Austen, 1813)
10. Vanity Fair (William Makepeace Thackeray, 1848)
9. Frankenstein (Mary Shelley, 1818)
8. David Copperfield (Charles Dickens, 1850)
7. Wuthering Heights (Emily Brontë, 1847)
6. Bleak House (Charles Dickens, 1853)
5. Jane Eyre (Charlotte Brontë, 1847)
4. Great Expectations (Charles Dickens, 1861)
3. Mrs. Dalloway (Virginia Woolf, 1925)
2. To the Lighthouse (Virginia Woolf, 1927)
1. Middlemarch (George Eliot, 1874)
Morreu Vargas Llosa (1936-2025)

Morreu Vargas Llosa, um grande autor que alterou seu posicionamento político até o ponto de ser detestado por muitos, inclusive eu. Mas seu “Conversa no Catedral” (*) foi um marco para este humilde leitor. Foi a primeira e arrebatadora demonstração de virtuosismo literário que amei. Gostei muito de outros livros também, como “A Guerra do Fim do Mundo”, “Travessuras da Menina Má” e “A Orgia Perpétua”, sobre Flaubert.
(*) Catedral é um bar.
Virginia
Hoje acordei com a memória insuportavelmente presente, fazer o quê?
Há exatos 84 anos, num 28 de março, Virginia Woolf, com 59 anos, tirou a própria vida ao entrar no Rio Ouse com pedras nos bolsos porque, tendo sofrido de crises recorrentes de doença mental ao longo da vida, a depressão que a atormentava intermitentemente estava retornando e ela não conseguia mais escrever.
É uma figura fundamental da literatura de seu e de nosso tempo. Seu trabalho sobrevive como uma contribuição significativa para nossa compreensão do início do século XX e como uma grande influência sobre escritores, especialmente mulheres, até hoje.
No primeiro comentário, deixo um link de um vídeo sobre sua vida e obra. Ele ajuda a entender a importância de Woolf e dá uma visão simples, mas informativa, do mundo literário de seu tempo.
Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan

Este é um livro curioso. Parece leve, parece que não chegará a lugar nenhum, mas é poderoso, muito poderoso. Pequenas coisas como estas foi finalista do Booker em 2022 e figurou na célebre lista dos 100 melhores livros do século XX publicada pelo New York Times. A autora Claire Keegan é irlandesa e, como tantos de seu país, tem uma escrita cheia de beleza e suavidade.
O romance é centrado no personagem Bill Furlong. O ano é 1985. Furlong é um pequeno empresário que vende carvão e madeira, mas que não gosta de ficar no escritório, prefere trabalhar num caminhão caindo aos pedaços, fazendo as entregas. É pai de 5 filhas e casado com Eileen. Todos vão à igreja aos domingos. Na superfície de tudo isso, Bill parece estar contente com sua vida e destino. No entanto, conforme Keegan vai desenvolvendo a história, aprendemos que as coisas não são bem assim.
Na cidade há uma Lavanderia de Madalena — também chamadas de Asilos de Madalena –, instituições comuns na Irlanda no século XX. O que eram? Eram essencialmente casas de trabalho para mulheres, especialmente para mulheres jovens e adolescentes que engravidavam fora do casamento. As Lavanderias eram administradas pela Igreja Católica e as famílias lá deixavam suas mulheres para que pudessem esconder suas gestações da sociedade. Uma vez que a criança nascia, ela era frequentemente retirada à força da mãe e posta para adoção. (Após investigações realizadas antes da desativação dessas casas, houve a certeza de que muitas das crianças nascidas nessas lavanderias eram simplesmente mortas). Embora as Lavanderias de Magdalena fossem particularmente severas na Irlanda, estabelecimentos semelhantes existiam em todo o mundo. Como revela o nome, essas casas prestavam serviços de lavanderia para os locais onde estavam implantadas.
Certo dia, quando Bill deixa lenha e carvão na igreja local, ao lado da lavanderia, ele encontra uma adolescente trancada no galpão de carvão. Ela está coberta de sujeira, passa frio e está aterrorizada. Ele a leva para dentro e as freiras recebem a garota e abafam tudo, agindo estranhamente. Tudo o que Bill consegue arrancar da garota é que seu nome é Sarah — o mesmo de sua mãe.
A mãe de Bill, Sarah, era adolescente quando engravidou de Bill. A família Wilson a acolheu e a deixou trabalhar como empregada da casa pagando-lhe uma pequena quantia, além de quarto e alimentação. Todos dizem a Bill que ele deveria ser grato pela gentileza da família Wilson — especialmente quando a alternativa poderia ter sido uma Lavanderia Madalena para sua mãe. No entanto, Bill parece meio cansado de ser grato. Sua frustração parece palpável ao longo do romance.
Enquanto ele constrói uma vida respeitável para si com sua esposa e filhos, a mãe adolescente de Bill é algo de que ele não consegue escapar. De muitas maneiras, ela parece seguir Bill por toda a sua vida e todos, incluindo sua esposa, usam a gravidez adolescente de sua mãe como uma resposta para qualquer momento em que Bill diga algo fora da linha da calma e da paz.
Quando ele vê Sarah no galpão de carvão, aquilo torna-se um fato importante para ele. Não havia serenidade naquele homem tão cordato, mas há paz no romance de Keegan até o final. Aliás, o final é uma joia de tão bem realizado.
Claire Keegan é uma mestra. Ela equilibra tristeza, delicadeza e perplexidade de uma forma extremamente bela. Os ressentimentos de Bill saem das páginas e parecem vivos, pulsantes. Porém, embora o assunto tenso e doloroso, ele alguma forma não é pesado.
Uma frase ecoa em nossa cabeça após a leitura. Ela aparece quando Furlong, meio perdido após suas entregas, pergunta a um homem na beira da estrada onde vai dar aquela estrada:
— Esta estrada vai dar onde você quiser, filho.
Um tremendo pequeno romance.
.oOo.
Obs.: há um filme homônimo baseado no livro. Bill Furlong é vivido por Cillian Murphy, porém o filme é bem ruinzinho.

Homo Faber, de Max Frisch

Homo Faber é um romance do suíço Max Frisch (1911-1991) publicado pela primeira vez na Alemanha em agosto de 1957 — o melhor mês do melhor ano. É narrado em primeiríssima pessoa pelo protagonista Walter Faber, um engenheiro brilhante que viaja a trabalho pela Europa e pelas Américas. Mais ou menos como o Ricardo Branco era e fazia. Sua visão de mundo — lógica, probabilística e científica — é desafiada por uma série de coincidências incríveis, fazendo com que o passado ressurja. (Você, que está na minha TL e portanto é inteligente, já sentiu a jogadinha entre Homo Faber e Homo Sapiens, né? Se não se deu conta, fora daqui!)
O livro foi editado pela Guanabara em 1986 e relido por mim agora em voz alta para a Elena. É ótimo. Minha cara-metade também aprovou e queria que eu lesse mais a cada noite. Gostei muito das duas vezes que o li, apesar de algumas reflexões antiquadas.
É uma obra importante e curiosa, pois se fala de um tema bem comum — o de nossa fragilidade — também fala de outro mais incomum — da ilusão do controle que temos sobre nossas vidas. É um livro de uma introspecção também pouco usual: a de um engenheiro. Faber é um homem de meia-idade, especializado em engenharia mecânica, que acredita piamente na lógica, na ciência e no controle técnico sobre a vida. Ele viaja constantemente a trabalho, vivendo uma existência organizada e aparentemente imune ao caos emocional. No entanto, durante uma viagem de negócios tudo começa a se descontrolar, como não aconteceu com o Ricardo Branco.
A narrativa se desenrola em duas partes: na primeira, Faber viaja para a América Central e se envolve em um acidente de avião. Na segunda parte, numa viagem de navio, Faber encontra Sabeth, embarcando numa relação cujo caráter é melhor deixarmos de lado.
Faber representaria o homem moderno, que confia na tecnologia e na razão. No entanto, o acaso o força a se desequilibrar de sua posição. Pode-se dizer que Sabeth é filha de uma ex-namorada sua e acaba por expor sua fragilidade emocional e incapacidade de lidar com complexidades “das humanas”. Frisch critica a crença de que a ciência e a técnica podem resolver todos os problemas humanos, mostrando que a vida é cheia de ambiguidades e incertezas.
Max Frisch foi um arquiteto e escritor influenciado pelo existencialismo e por Brecht. O final do livro é de grande categoria, Frisch sabia mesmo como deixar a gente pensando.
Tradução de Herbert Caro.

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXX – Bela do Senhor, de Albert Cohen

Eu tento, tento, mas não consigo escapar dos calhamaços. Com aproximadamente 1000 páginas no mundo inteiro e 784 na edição de 1985 da Nova Fronteira, este livro me foi indicado por uma excelente e compreensiva leitora-amiga-cliente da Livraria Bamboletras. Ela lera o original em francês. Respondi que eu tinha um exemplar comprado em 1986 que jamais fora aberto por mim… Ela nem sabia que havia a tradução brasileira. Tive que obedecê-la, li o romance com enorme atenção e não me arrependo. Quando iniciei a leitura, ela reapareceu na livraria. Seu nome não é segredo: é Karina Maria. E ela reafirmou: “esse livro merece um monumento”.
Bela do Senhor (originalmente “Belle du Seigneur”), publicado em 1968, é um romance do escritor suíço, nascido na Grécia, Albert Cohen (1895-1981). Mas por que eu tinha o livro? Ora, porque Bela do Senhor fora elogiadíssimo em 1985 pela crítica brasileira (sim, tínhamos crítica literária), além de ter vencido o Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa de 1968 e também o Goncourt. A história gira em torno de dois personagens centrais que, estando juntos, vão pouco a pouco se isolando do restante do mundo.
A primeira é Ariane, a bela esposa do medíocre e arrivista diplomata Adrien Deume. O outro é Solal, um judeu grego brilhante e carismático, que é alto funcionário da Liga das Nações em Genebra. Solal é chefe de Deume na Liga das Nações. Ele fica obcecado por Ariane e, depois da mais estratégica e cínica das seduções, inicia um quentíssimo caso de amor com ela, chegando a uma relação que oscila entre a paixão sublime e o destrutivo.
Talvez seja importante saber que Albert Cohen era um judeu grego que trabalhou na Organização Mundial do Trabalho de 1926 a 1932, em Genebra. Ou seja, ele conhecia profundamente o ambiente onde Deume circulava. E, na primeira parte do livro o foco é dado a Adrien Deume, o marido traído. Ele é o perfeito puxa-saco. Não faz nada em seu trabalho, passando todo o tempo tratando de esquemas para subir de cargo na organização. Ele se vale de tudo, até da beleza da esposa, para obter destaque e galgar cargos. Em casa, a vida do casal Adrien e Ariane é um inferno, com os parentes de Adrien tentando se imiscuir em tudo, criticando a esposa que só dorme e toca piano, enquanto Adrien a protege. A vida de Solal, com um bando de folclóricos tios judeus, também não é muito fácil, mas ele consegue escapar deles com maior facilidade. É uma parte hilariante do romance: o livro satiriza a hipocrisia e o vazio da alta sociedade europeia, especialmente no contexto diplomático da Liga das Nações. O humor e a ironia expõem as falhas morais e éticas desta elite.
Então, começa o caso Solal-Ariane. A história de amor entre eles é avassaladora e, uma vez iniciada, eles realmente são empurrados um em direção ao outro. O ambiente político antissemita tira tudo de Solal, menos seu dinheiro: ele perde posição e reputação. O ambiente moral torna-se opressivo para Ariane e só lhe resta agarrar-se a Solal. E aí nós temos o amor, o grude total. o ciúme, as brigas e o enfado. Há momentos brilhantes em que Solal e Ariane não se suportam mais e mantém a relação apenas devido à situação lá fora. Temos uma análise franca e implacável das ilusões e desilusões que as relações podem trazer. Nunca havia lido um romance que descrevesse com tanto detalhe o tédio a dois, as necessidades de variações — sejam elas quais forem — e o silêncio histérico, por assim dizer.
O livro é uma mistura de paixão, tragédia, ironia e profunda reflexão sobre as identidades. Cohen cria um universo grandioso e íntimo. O relacionamento entre Solal e Ariane é marcado por uma força quase mítica, podendo ser tanto uma fonte de transcendência quanto de autodestruição.
Há um capítulo onde Solal passeia sozinho por Paris observando as paredes dos prédios cheias de pichações antissemitas. Ele até compra um jornal que defende a eliminação dos judeus para poder passear mais despercebido. Deixa-o visível sob o braço. Às vezes, enfia o nariz nele. Sua identidade não é aceita. Sua busca por amor, a necessidade de ser novamente reconhecido — agora que ele não é mais nada — reflete uma luta mais ampla contra a marginalização e o exílio. Por trás dos múltiplos detalhes, há inteligentes reflexões sobre a solidão e a incomunicabilidade. Solal e Ariane, apesar de sua conexão intensa, estão presos em suas próprias angústias e inseguranças. É notável como Ariane tenta mantê-los juntos com diversos estratagemas enquanto Solal apenas observa pensando “coitadinha, inventou essa agora, será que vamos nos divertir ou vamos seguir fingindo?”.
Albert Cohen é um mestre. Sua prosa é cheia de digressões poéticas, diálogos afiados e descrições verossímeis. O estilo varia muito, indo desde o vaudeville para o erótico, passando por fluxos de consciência sem pontuação. É Joyce e, ao mesmo tempo, um Proust meio alucinado. O lírico e o satírico convivem bem, criando um texto comovente e estimulante do ponto de vista intelectual.
Deixo-lhes sem dizer o final, claro.
Lendo outras resenhas, soube que Bela do Senhor é frequentemente comparado a clássicos como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, e O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, devido à sua profundidade psicológica e à sua exploração do erotismo e do amor. No entanto, nenhum dos citados tem o humor ácido, a visão desencantada e profundamente humana da vida. Poderia falar em uma ode ao nosso desespero, medos, amor… Enfim, uma ode à nossa complexidade.
P.S. — Até pelo tamanho e lentidão com que a história se desenvolve, Bela do Senhor é infilmável. Mas foi filmado. Fujam. É um horror. Acho cômico que Ariane, descrita no livro com bunda grande e tudo grande, tenha sido vivida pela modelo russa Natalia Vodianova, uma mulher magérrima e, a despeito da beleza, 100% anti-Ariane, cujas formas são bem descritas. Também a escolha de Jonathan Rhys Meyers para o papel de Solal é uma piada. O mesmo, aliás, ocorreu com Keira Knightley vivendo a arredondada Anna Kariênina. Por que a caracterização de personagens fictícios não é respeitada como as caracterizações de personagens reais? Parece brincadeira com os leitores.
Recomendo!

Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra

Eu lia pouco durante a infância, muito pouco. Queria era jogar futebol. Lia revistinhas da Disney nos dias de chuva e olhe lá. Observava minha irmã parada, totalmente concentrada com um livro aberto, mas não tinha vontade de fazer o mesmo. Quem me acordou para a literatura foi Erico Verissimo com seu O Tempo e o Vento. Só depois dos 15 ou 16 anos, passei a avaliar se era melhor permanecer em casa ou me divertir com os amigos. E normalmente ficava em casa enfiado num livro. Meus pais achavam que eu tinha que sair mais, ver pessoas, só que eu preferia ficar lendo. Por ter começado tarde, meu conhecimento de literatura infanto-juvenil é mínimo. Comecei pelos livros dos adultos, por aqueles que minha irmã e pais valorizavam. Começo esta resenha assim porque não sei como classificar este Kafka e a boneca viajante. A estrutura do livro é de uma fábula. O tema é a infância, mas também é a elaboração de uma perda. Por outro lado, não podemos esquecer que há Kafka, já muito doente, levando a sério o fato de uma menina ter perdido sua boneca. Vou tentar explicar melhor.
A história entre Franz Kafka e a menina Elsi é um episódio tocante e pouco conhecido da vida do tcheco. Esse evento ocorreu nos últimos anos de vida de Kafka, quando ele já estava gravemente doente (sofria de tuberculose) e vivia em Berlim, em 1923-1924. Kafka, durante seus passeios por um parque em Berlim, viu uma menina chorando, muito triste pela perda de sua boneca preferida. Seu nome era Elsi e estava inconsolável. Kafka decidiu fazer alguma coisa. Inventou uma história, disse que a boneca não tinha desaparecido, mas viajado. Ele explicou que a boneca lhe enviara uma carta e que sua profissão a de “carteiro das bonecas”. No dia seguinte, ele traria uma carta da boneca Brígida para Elsi. E durante três semanas, Kafka escreveu cartas diárias para Elsi, supostamente, é claro, enviadas pela boneca. Esforçou-se muito para escrevê-las sem que Elsi desconfiasse de nada. Nessas cartas, ele descrevia as aventuras da boneca em suas viagens pelo mundo, sempre em tom poético. Essas cartas não apenas confortaram a menina, mas também a fizeram acreditar que sua boneca estava vivendo uma vida emocionante e cheia de descobertas.
Esse episódio revela alguma coisa sobre Kafka. Apesar de sua obra literária estar associada ao absurdo, à angústia e ao pessimismo, ele demonstrou empatia e capacidade de se conectar com o mundo de uma criança. E tentou transformar a dor de Elsi em uma experiência feliz. Porém, as cartas que Kafka escreveu para Elsi não foram preservadas, e o episódio só foi conhecido graças ao relato de Dora Diamant, companheira de Kafka na época. Houve muitas tentativas de localizar Elsi e as cartas, mas nada foi encontrado. Houve um historiador que passou décadas atrás dos textos.
Kafka e a Boneca Viajante (no original, Kafka y la muñeca viajera) reconta essa história comovente entre o escritor e a menina Elsi. É uma ficção inspirada pelo episódio real. Claro que o livro é enormemente emocionante e mesmo este calejado leitor teve vontade de se desmanchar lendo o relato. Há uma sensação de estranheza — os excertos das cartas não são nada Kafka! –, porém como ele escreveria para uma criança? Alguém sabe? De forma esperta, Sierra i Fabra tenta capturar a essência do gesto de Kafka, destacando a empatia e a criatividade para transformar a dor de uma criança em uma experiência mágica. E também sobre o problema de um adulto que precisa parar de escrever diariamente para uma criança e voltar a sua obra. O livro é uma homenagem ao poder consolador da literatura. É como uma janela para um momento íntimo.
Creio que é um livro que visa um público mais amplo, incluindo jovens leitores. O autor usa uma linguagem simples e poética — algumas vezes verbosa –, com flechadas certeiras e piegas que me atingiram sem piedade. Claro que me senti injustamente traído ao ver meu sombrio e pessimista autor — também muitas vezes cômico, na minha opinião de leitor — ser tratado como um ser cheio de bondade. AMO Franz Kafka de uma forma que só eu sei. AMO aquele mais obscuro Kafka. Mas não há porque pensar que o Kafka dos livros que conhecemos não fosse capaz de um ato de consolo como o relatado. Sensibilidade não lhe faltava.
Jorvi Sierra i Fabra (1947) é um conhecido escritor infanto-juvenil catalão, mas, sabem?, este livro não me pareceu ser um típico exemplar do gênero.
Recomendo!

Operação Impensável, de Vanessa Barbara

O título faz referência a um plano militar secreto (e maluco) de Winston Churchill concebido ao final da Segunda Guerra Mundial. Churchill era um ser bastante raro: um conservador anticomunista que sabia escrever e se expressar com brilho. Ele queria que os aliados ocidentais combatessem a ocupação soviética da Europa Oriental. O objetivo era impor a vontade dos Estados Unidos e do Império Britânico à União Soviética. Foi o início da Guerra Fria. Essa malfadada ideia sugere o tom do livro: uma história onde o impensável e o absurdo acabam com qualquer lucidez remanescente, gerando uma superfetação de mentiras. (Superfetação? Vá ao dicionário, ué).
Importante dizer que este é o livro que conta, nos mínimos detalhes, mas como se fosse ficção, o rumoroso caso Vanessa Barbara versus André Conti e seu Conselho Consultivo de 14 machos.
Como Vanessa Barbara costuma fazer, há uma mistura entre a “ficção” que é contada — a ascensão e debacle de um caso amoroso — com casos políticos da Segunda Guerra e críticas resumidíssimas dos filmes vistos pelo casal. Tudo isso caminha de forma paralela, regido pelo ritmo intenso de Vanessa. O texto é ultra fragmentado, com seções curtas e constantes mudanças temáticas. Difícil de saber que virá depois, se fatos políticos, o dia a dia, e-mails, citações, notas esparsas, sinopses de filmes, etc. A própria diagramação do livro contribui para esta impressão de fragmentação. Há mudanças de fontes e vazios. Para o meu gosto, o trecho da felicidade do casal é longo demais, mas talvez minha sede de sangue estivesse em alta devido às redes sociais. Nesta parte, que poderia chamar de ascensão, há a mais bela crítica que li de Se meu apartamento falasse (The Apartment), de Billy Wilder. Eu quase chorei lendo. Adoro este filme tanto quanto Vanessa.
Mas voltando, a parte do amor é meio longa mesmo. São várias declarações de parte a parte. É como estar ouvindo a Primavera de Vivaldi e ver um pássaro pousar na sua janela. Não dá, é muito açúcar, melhor enxotar logo o bichinho. Claro que isto serve como contraste para o que virá, mas achei exagerado.
Porém, o livro cresce espetacularmente quando a paranoia toma conta de “Lia”. O pior da paranoia é quando ela — que seria impensável para as pessoas equilibradas — se comprova e se amplifica até o inconcebível. Pois o pior é o paranoico ter razão e dar-se conta de que até minimizou as coisas. É para enlouquecer de vez e Vanessa descreve brilhante e acumulativamente o processo de descoberta. A comprovação revela-se pouco a pouco, alterando-se como um caleidoscópio a cada mentira e chegando efetivamente a uma traição inacreditável, definitiva, bem mais grave do que ir a um motel repetidamente com uma conhecida ou um monte delas. Lemos a descrição de uma traição completa, cabal, radical, profissional, dessas que obriga o traído a se esconder no meio da selva e lá desaparecer. Dessas que deveria obrigar o algoz trocar de lugar com a vítima.
Vanessa expõe os fatos, mas não cria um dramalhão mexicano. Em uma das epígrafes da última parte, ela usa Boris Vian: “O humor é a delicadeza do desespero”. Sim, ela o mantém. E ainda conta curiosidades como o fato de a lei de Hong-Kong permitir que uma mulher traída mate seu marido adúltero, desde que o faça com as próprias mãos, ao passo de que o homem pode usar qualquer coisa, até um lança-foguetes. E conhecemos a expressão “névoa do infiel”, cuja definição você conhecerá logo que comprar o livro na Livraria Bamboletras (WhatsApp 51 99255 6885).
A forma pública que o caso tomou nos últimos tempos surpreende, o que não surpreende que ele permaneça ainda na cabeça de “Lia”, apesar do prazo máximo para traumas de 13 anos e meio estabelecido pela sumidade Pedro Dória.
Tá, vai ler o livro e não me enche. Tem na Bamboletras, já disse.

O bem que a leitura faz para o cérebro

Pesquisa realizada em conjunto entre as universidades de Michigan e Stanford garante que a leitura de ficção traz diversos benefícios, entre eles a redução do stress e a empatia. Mas vamos nos ater hoje aps fatos médicos. Ela também proporciona uma melhoria na área da memória, pois coloca teu cérebro para trabalhar a imaginação, fundamental para a memorização de longo prazo. O processo de envelhecimento reduz pouco a pouco nossas habilidades cognitivas, entretanto essa perda pode ser recompensada com atividades intelectuais estimulantes. Uma outra pesquisa feita pela Dra. Natalie Phillips (Montreal Cognitive Assessment) investigou o papel da atenção nas modificações que a leitura faz no cérebro. Ela comparou uma leitura dispersa com uma leitura mais engajada, onde entramos pra valer na história. A conclusão foi que a leitura dispersa não aumenta muito a atividade cerebral. Mas aquela em que você se gruda na história faz você aumentar sua atividade cerebral de maneira significativa. Ou seja, a leitura que desperta mais o seu interesse, que mais envolve, é justamente aquela que vai trazer maiores benefícios. Em outras palavras, LÊ AQUILO QUE TU GOSTA, VIVENTE!
Esta é uma ótima notícia para os clientes da Livraria Bamboletras. Afinal, aqui nós temos uma curadoria que pode auxiliar você a encontrar aquele livro que vai grudar em ti que nem chiclete.
Uma filha de Tolstói

A filha de Tolstói, Tatiana, amava Tchékhov. O pai adorava o escritor. A mãe disse que, se ela casasse com ele, jamais teria um travesseiro confortável, talvez só um pano de algodão vermelho para colocar a cabeça, ou seja, que ela seria pobre. Tchékhov fez fortuna, apesar de doar quase tudo o que recebia. Algumas mães vou te contar… A filha casou com outro. Tchékhov era um homem bonito. Eu acho.
William Blake

Sarinha
Até os 13, 14 anos, eu era um mau aluno, só lia quadrinhos e jogava futebol. Minha mãe ficava louca na certeza de que estava criando um idiota. Não que ela estivesse de todo errada, ainda mais quando me comparava com minha irmã, brihante em tudo até hoje.
Mas então veio a Sarinha, a professora de português e literatura que todo mundo deveria ter. A Sarinha mandou a gente ler O Tempo e o Vento. Minha mãe pegou O Continente da estante e me entregou a coisa com aquele sorrisinho tipo agora eu quero ver.
Não comecei a ler imediatamente, mas alguns colegas sim. A Sarinha reservava os 15 minutos finais de cada aula para sentar com os alunos que estavam lendo o livro a fim de discuti-lo com eles. As discussões eram de igual para igual, ela usava os nossos termos, a nossa expressão. Aquilo foi se tornando tão bom que logo todos estavam lendo para poder participar. A Sarinha tinha 1,50m com carisma de muitos centímetros a mais. Logo me agreguei ao grupo de leitores e não saí dele até agora, mais de 50 anos depois.
Hoje de manhã, lembrei daquela professora do ensino público. (Aliás, fui 100% do tempo do ensino e universidade públicas).
Grande Sarinha!
Três Camadas de Noite, de Vanessa Barbara


É importante começar dizendo que o tema deste livro não tem nada a ver com o atual rolo relacionado ao podcast de Vanessa Barbara na Rádio Novelo (ouçam!). O livro onde este aparece é Operação Impensável, já lido por mim e a ser resenhado quando voltar às livrarias. Sobre o caso, já me manifestei nas redes sociais pouco antes de ele se tornar o atual vaudeville. Sou #TeamVanessa e não abro.
Sou leitor de Vanessa desde 2010, quando li seu famoso texto O Louco de Palestra. Desde então tenho acompanhado sua carreira. Também li o extraordinário e hoje raro O Livro Amarelo do Terminal (CosacNaify). Por escrever muito bem — gosto muito! — e de uma forma quase sempre hilária — gosto mais ainda! –, Vanessa não me era uma desconhecida quando da recente celebridade. Ou seja, não sou um neófito da autora.
Três Camadas de Noite é um romance que trata com inteligência e leveza de depressão em geral e da depressão pós-parto em particular. (Esta frase não foi uma tentativa de piada. Vanessa penetra em becos escuros com medo e graça. É como ler as desventuras de Lucia Berlin, entendem?). Pior, tudo começa em 2020, durante a pandemia. Pior ainda, a personagem principal do romance não dorme porque o bebê é “difícil”. E Vanessa consegue ser muito séria e fazer humor com ambos os temas. O livro é narrado na primeira pessoa e, como poderíamos imaginar, a personagem principal tem um filho — um menino chamado Heitor que passa de um bebê com dificuldades para dormir para uma criança agitada e muito inteligente. Vanessa não costuma contornar situações e o drama é drama, mesmo que crivado de boas piadas. Ela chora segundas, quartas e sextas, às vezes nos outros dias também. Como uma Rosa Montero brasileira, ela intercala a narrativa com seções de não ficção que contêm histórias reais de grandes autores que sofreram com a depressão. São eles Sylvia Plath, Clarice Lispector — belamente inserida na história –, Alice e Henry James, Natalia Ginzburg e Franz Kafka.
As três camadas podem ser (1) a da depressão da narradora, (2) o Diário de Campo, tomado pelas peripécias de Heitor e (3) a dos escritores que sofreram de depressão. A expressão “três camadas de noite” é citada no livro, mas não a reencontrei… (sempre ler com uma caneta ou lápis, Milton!). Talvez seja importante dizer que a narradora não se compara aos autores focalizados, apenas traça paralelos. Também há uma forte presença de efeitos causados pelo covid, capturando a atmosfera de incerteza e isolamento. O trabalho frequentemente transita entre a ficção e a não ficção, sempre com um olhar interessado aos detalhes da vida moderna, muitas vezes desconhecidos do velho de 67 anos que sou.
Como disse, não creio que seja um livro difícil de ler, a não ser para quem é experiente em depressão e tema gatilhos. Vanessa não narra uma viagem da vida normal ao desespero — também não narra uma história do fundo do poço à luz –, mas a personagem principal chega a uma situação aceitável para seguir a vida. Adorei as crônicas dos autores depressivos. Afinal, sou como Ingmar Bergman –, investigo o inferno com curiosidade, mas sem pedir ingresso.
Recomendo!
Literatura russa…

Razão de Deus, de Muriel Spark

Traduzido do New York Times
Razão de Deus é a inacreditável tradução para The Only Problem.
Como Effie o fez sofrer
O único problema para Muriel Spark, ao que parece, é que há muitas perguntas para poucas respostas. Este é o tema de seu novo romance, como pode muito bem ter sido de todos os outros. Seus leitores devotados sempre estiveram cientes de que há um componente metafísico em sua ficção, e é um alívio que ele finalmente tenha sido revelado na presente obra, que é tanto um relato extremamente sofisticado dos perigos que cercam nossas vidas desavisadas no mundo de hoje quanto uma disputa sobre o assunto do Livro de Jó, que ela chama de ”o livro fundamental da Bíblia”. Jó e sua situação desconcertante desafiam toda crença otimista que se deseja aceitar, alojando-se como uma dura massa de contenção na consciência do crente esperançoso. O mesmo tipo de angústia existencial é experimentado pelo atual protagonista de Muriel Spark, Harvey Gotham, mas Spark é uma escritora sábia demais para impor essa metáfora aos seus leitores, e sua narrativa é tão perfeita, tão enervante e tão especializada quanto seus leitores esperam dessa excelente contadora de histórias.
Pois há, como sempre, muita história para contar. Ela diz respeito a Harvey Gotham, um expatriado canadense extremamente rico, que escolheu viver no alojamento de um castelo vazio perto de Epinal, no distrito de Vosges, na França. Harvey se mudou para este retiro para trabalhar em sua monografia sobre o Livro de Jó. Ele abandonou sua esposa distraidamente, pensando que tinha o direito de fazê-lo, já que certa vez a pegou roubando duas barras de chocolate de um supermercado italiano. Ela fez isso por razões ideológicas, sendo uma anarquista renascida — pois ela tem uma consciência social muito moderna. Harvey ama sua esposa, que é uma beldade chamada Effie, mas ela é muito animada para ele, e ele detecta nela um traço de selvageria com o qual sua personalidade grave não se sente à vontade. Harvey, na verdade, é um estudioso, um fundamentalista. Ele é um homem que questiona e que está ao mesmo tempo resignado — talvez estoicamente, pelo menos impassivelmente, resignado — a não receber nada em termos de afirmação, por mais séria que seja a investigação.
A monografia progride. Harvey trabalha e trabalha, ocasionalmente se submetendo a visitas de seu cunhado, de sua cunhada e, no devido tempo, da polícia local e de seu advogado, que é obrigado a voar de Londres. Harvey está muito menos interessado nessas pessoas do que na bela imagem de Jó por Georges de La Tour no museu de Epinal. A visão da esposa de Jó em seu vestido vermelho brilhante, sua cabeça com turbante curvada em preocupação e advertência sobre seu marido em transe, desperta os pensamentos de Harvey sobre sua esposa ausente Effie, por quem ele sente um amor crescente e, mais profundo ainda do que o amor, nostalgia. Effie é de fato a razão de todos os visitantes (ou consoladores) que vão até ele: Effie quer o divórcio, Effie arruma um amante, Effie tem um bebê. Tudo isso provoca discussão sobre os direitos e erros do caso. Mas finalmente o personalidade arrojada de Effie irrompe de maneira particularmente favorecida por Spark. De roubar barras de chocolate, Effie evoluiu para plantar bombas terroristas em supermercados e lojas de departamento. Effie se juntou à FLE, a Front de la Liberation de l’Europe. Um policial é morto em Montmartre, e o grupo de Effie é o responsável. Finalmente, a própria Effie está morta em um necrotério de Paris, sua cabeça com turbante deitada inclinada no mesmo ângulo inquisitivo que a da esposa de Jó no filme La Tour em Epinal.
Durante todo o curso das investigações, Harvey trabalha em sua monografia. Ele está tão absorto em sua tarefa que discursa sobre Jó para os repórteres que comparecem à sua coletiva de imprensa, dada ostensivamente para explicar o desaparecimento de sua esposa:
”Estou feliz em finalmente chegar ao assunto desta conferência: qual foi a resposta à pergunta de Jó? A pergunta de Jó era: por que Deus me faz sofrer quando não fiz nada para merecer isso? Agora, Jó não tinha a mínima dúvida de que seus sofrimentos vinham de Deus e de nenhuma outra fonte. A rapidez com que uma calamidade se seguiu à outra, destruindo o mundo de Jó, deixando-o destituído, desolado e doente, tudo em um curto espaço de tempo, deu evidências dramáticas de que a causa não era natural, mas sobrenatural. O sobrenatural, com poder para agir tão forte e desastrosamente, só poderia, na mente de Jó, ser Deus. E sabemos que ele estava certo no contexto do livro, porque no Prólogo, você lê especificamente que foi Deus quem trouxe o assunto de Jó a Satanás. Foi Deus, de fato, quem tentou Satanás a atormentar Jó, não Satanás que tentou Deus.”
Os repórteres acham que ele é louco, é claro. Talvez ele seja. Mas os personagens de Spark, embora frequentemente loucos, nunca são desonestos. De fato, eles entregam muitas verdades impressionantes com um olhar impassível ou um sorriso descuidado. Boas maneiras literárias são observadas na precisão de seu discurso… Spark, cujo ponto de vista é frequentemente inescrutável, compartilha com esses personagens uma certa liberdade da convenção que sanciona suas excursões à anarquia. O Livro de Jó e as terríveis reviravoltas implícitas na narrativa bíblica — terríveis porque é Deus quem faz as perguntas e Jó quem parece ter as respostas — são um assunto adequado para esta escritora destemida e meticulosa e seu protagonista pensativo. E o fracasso desanimador dos consoladores de Jó e dos amigos de Harvey em responder às perguntas agonizantes está de alguma forma ligado à percepção de que eles estão apenas fazendo o que têm que fazer. Está na própria natureza da amizade provar-se inadequada às demandas de uma catástrofe prolongada. A grande conquista deste romance é que Spark não cai na mesma armadilha. Ela não é consoladora de Jó, e duvido que alguém possa lhe fazer um elogio mais verdadeiro do que declarar esse fato enganosamente brando.
Em todos os seus romances, Muriel Spark dá a impressão de que, embora tenha superado o problema do mal, a luta foi grande. O esforço a deixou na plena de certo desespero, uma ironia às vezes dolorosa — dolorosa precisamente porque é eficaz. Às vezes, ansiamos pelo que não está lá, como se a vitória da superação tivesse exigido uma perda muito pesada. Às vezes, parecia que o cerne da questão havia sido extirpado e apenas as transações nefastas registradas. Em ”The Only Problem” esta omissão foi corrigida. Há emoção aqui, desespero e desejo, mantidos em seu lugar por uma escrita precisa e imediata. Talvez a pedra de toque para o estilo extraordinário de Spark seja encontrada em uma frase de um romance anterior, ”Territorial Rights”. Diz-se de um personagem naquele romance: ”Naquela tarde, ela saiu com a coragem de suas convicções selvagens e a insatisfação que não tem nome.” Qualquer um que possa apreciar a alarmante e bela completude dessa frase apreciará ”The Only Problem ”. É o melhor romance de Spark desde ”The Driver’s Seat” e é, mais uma vez, uma experiência perturbadora e estimulante.
ECOS DA BRIGADA VERMELHA
A personagem central está escrevendo uma monografia sobre o Livro de Jó. Quando liguei para ela nas colinas da Toscana perto de Arezzo, onde ela está passando o verão, perguntei sobre o significado disso. ”O Livro de Jó sempre me fascinou”, disse Spark. ”Jó era um homem rico, uma figura do establishment, que suportou todo aquele sofrimento. Apareceram seus amigos que lhe disseram que ele devia ter feito algo errado, mas ele disse não. Acho que meu personagem é bem doce, na verdade.” Havia ecos das Brigadas Vermelhas da Itália na mulher terrorista que aparece no romance? ”Sim — ela era desse tipo. Acho que o terrorismo às vezes começa com uma generosidade de espírito, mas algumas pessoas têm uma violência embutida — quase como se houvesse um cromossomo terrorista. Ninguém consegue simpatizar com os verdadeiros terroristas. Acredito que o movimento falhou. Mas eu não moralizo em meus romances — talvez eu devesse, mas não faço isso.” Spark disse uma vez que a literatura do ridículo selvagem é ”a única arma honrosa que nos resta.” Alguns leitores notaram armas escondidas em seus romances, incluindo ”The Prime of Miss Jean Brodie”, ”Memento Mori” e ”The Abbess of Crewe”, um conto de moralidade sobre o escândalo de Watergate. E era verdade que ela estava escrevendo seu próximo romance em um processador de texto? ”Não”, ela disse. ”Eu ainda escrevo com uma caneta, em cadernos que encomendo de James Thin, o papeleiro, na Chambers Street em Edimburgo, minha cidade natal. Cada caderno tem 72 páginas. Eu escrevo em cada duas linhas, em um lado da página.” – Herbert Mitgang

Minha lista de melhores livros brasileiros do século XXI

Sem tentar ser politicamente correto, aí vai minha lista de melhores romances brasileiros do século XXI, em ordem alfabética. Lá vai:
– Budapeste, de Chico Buarque
– Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino
– Leopold, de Luís Antônio de Assis Brasil
– Minúsculos Assassinatos e Alguns Copos de Leite, de Fal Azevedo
– O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório
– O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli
– O Drible, de Sérgio Rodrigues
– Os Supridores, de José Falero
– Pornopopeia, de Reinaldo Moraes
– Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves
Onde enfiar Torto Arado?
Gógol e Shostakovich

É incrível como a música de Shostakovich combina com Gógol. Shosta escreveu 3 óperas, duas baseadas em Gógol e uma em Leskóv, Lady Macbeth de Mzenski.
Em “O Nariz” os soldados de embebedam, tossem e ao fagote é dada a tarefa de peidar por eles. Ouvi hoje esta ópera e notei que os cantores fazem todo o tipo de sons estranhos, mas não arrotam. É complicado arrotar quando se quer. Se alguém me disser “Arrota aí, meu!” não vai sair nada.
Quando criança, eu sempre invejava os amigos que podiam soltar um arroto a qualquer momento. Nunca consegui. Para largar um, eu tinha que beber uma Coca-Cola e esperar que ele, o arroto, se decidisse. Só sim eu largava um bem sonoro.
Mas me perdi. O que queria dizer é que, assim como Shosta, muitos russos não colocam Dostô na frente de suas preferências. Às vezes nem o citam, preferindo Liêrmontov, Leskóv, Gontcharóv e outros. E Tchékhov, Tchékhov, Tchékhov. Aliás, por que não publicam logo “O Precipício”, de Gontcharóv?
A Elena diz que os escritores que têm o mais belo russo são Nabôkov — que ela lia em russo no hospital para se recuperar com algo realmente inteligente — e Tolstói. E que a maior obra de Pasternak são suas traduções de Shakespeare.
E chega porque hoje estou muito conversador.