David Graeber é antropólogo e economista. Mas sua cultura é tão vasta que a leitura de Dívida faz-nos pensar se não seria também historiador, filósofo e filólogo. Quase só leio ficção, mas um grupo secreto e bastaste qualificado do Facebook convidou seus membros para discutir o livro entre os dias 20 e 21 de abril deste mês e, bom menino que sou, lá fui eu enfrentar o calhamaço. Tinha curiosidade para saber o que poderia haver de tão importante nele. Não me arrependo de tê-lo lido, ao contrário. O volume possui 702 páginas, mas imaginem que as últimas 199 são apenas de Notas Bibliográficas. Uma das principais teses do livro é de que as economias primitivas jamais apoiaram-se no escambo. Isso parece ser muito importante para o acadêmico que Graeber é. No posfácio, escrito em 2014 — o livro é de 2008 –, ele se declara feliz por ter alterado algo que era um fundamento da economia. Acho que é intuitivo achar que as economias primitivas baseavam-se no escambo e que os sistemas de crédito são mais recentes. A história padrão dizia que a ordem era escambo, depois dinheiro físico e então o crédito. Mas foi o exato oposto, o crédito veio primeiro — muitas vezes acertados e anotados em templos. Já a moeda foi inventada e cunhada dois mil anos depois das primeiras transações de crédito. E o escambo sempre foi uma improvisação para ser utilizada quando as pessoas perdiam o acesso ao dinheiro em lugares onde o usual seria utilizá-lo. O juro (ou interesse) veio por último. Graeber, que não é de modo algum um autor livre de sarcasmos, faz pouco da antropologia e da economia que não encontrava casos reais de escambo, mas que os tinha como pedra fundamental.
A segunda tese é a que tornou Dívida: os primeiros 5.000 anos (Ed. Três Estrelas) um inesperado best-seller. O livro mostra a história econômica como um reflexo da relação entre credores e devedores. Graeber desenvolve este raciocínio em ritmo adagio e a coisa é realmente linda, com todo um instrumental fático e até filológico a apoiá-lo. Em 5000 anos de história, a dívida sempre foi uma questão de poder e os verdadeiramente poderosos apenas pagavam suas dívidas se quisessem. E ele dá diversos exemplos de bom senso: nas sociedades antigas chegava-se a um momento no qual todas as dívidas — eu disse todas — eram simplesmente perdoadas para que a vida pudesse voltar a ser possível. É algo inconcebível nos dias de hoje e Graeber sugere que não é necessário pagar todas as nossas dívidas. Uma das epígrafes do livro é “Se você deve ao banco 100 mil dólares, o banco controla você. Se você deve 100 milhões de dólares ao banco, você controla o banco”.
Outro ponto interessante é a longa discussão moral sobre a seguinte noção: “Devemos pagar nossas dívidas porque é o correto”. O devedor que não paga é alguém que merece castigo, mas ninguém vê o credor com grande simpatia… É que a dívida, antes mais próxima de uma troca de favores tornou-se um instrumento de escravização e dominação. No início, presumia-se que as relações humanas precediam a economia e a estrutura jurídica de contratos, tribunais e governos. E ele escreve: “Nem todos nós temos que pagar nossas dívidas. E apenas alguns pagam. Nada seria mais importante do que passar uma borracha na divida das pessoas, marcar uma ruptura em nossa moral e começar tudo de novo”.
E nos prova que ninguém tem o direito de nos dizer o que realmente devemos.
Não é um livro adequado para conservadores amantes do capitalismo, do neo-liberalismo, etc., e nem para cagões. Pois discute abertamente que o sistema capitalista nunca foi organizado em torno da mão de obra livre. Uma empresa capitalista precisa de base moral e sua única moralidade é… a dívida — moral ou monetária. O livro defende que o trabalho assalariado não é livre — pois alguém que apenas pode vender sua capacidade de trabalho não pode ser considerado livre — e que existe, e sempre existiu, uma curiosa afinidade entre trabalho assalariado e escravidão. E nos enche de argumentos e documentação.
Não, não é uma leitura fácil, mas funciona como um machado que abre nossa cabeça para outras realidades. Sim, a analogia é deselegante, mas não me surgiu outra.
O norte-americano Graeber fala de um capitalismo impotente e vai destruindo uma série de mitos históricos. É claro que se trata de um anarquista, mas de um anarquista altamente brilhante e culto. Ele foi um dos criadores do Movimento Occupy em 2011 e co-autor do bordão “Somos os 99%”. É um acadêmico raríssimo, que vai para o pau na rua e que foi demitido de Yale em um episódio controverso, com os alunos fazendo uma petição contrária a sua saída com 4500 assinaturas que não foi aceita pela direção da Universidade. Ganhou Londres. Hoje ele dá aulas na Goldsmiths, University of London e na London School of Economics.
Ele também é autor de outro calhamaço espetacular: The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy [A utopia das regras: Sobre tecnologia, estupidez e as alegrias secretas da burocracia”].
Eu copiei umas partes para mim e para vocês. Espero que gostem:
Há uma boa razão para acreditar que, daqui uma ou duas gerações, o próprio capitalismo não existirá mais — muito provavelmente, como sempre lembram os ecologistas, porque é impossível manter uma máquina de crescimento perpétuo em um planeta finito, e a forma atual de capitalismo não parece ser capaz de produzir as mobilizações e os avanços tecnológicos revolucionários necessários para que comecemos a colonizar outros planetas. Contudo, diante da perspectiva do fim do capitalismo, a reação mais comum — mesmo por parte de quem se diz “progressista” — é o puro medo. Nós nos agarramos ao que existe porque perdemos a capacidade de imaginar alguma alternativa que não venha a ser ainda pior.
Como chegamos a esse ponto? Suspeito que estamos vendo as últimas consequências da militarização do próprio capitalismo norte-americano. Na verdade, podemos dizer que nos últimos trinta anos assistimos à construção de um vasto aparato burocrático cujo objetivo é criar e manter a desesperança, uma máquina gigantesca feita para, antes de mais nada, destruir qualquer ideia de possíveis futuros alternativos. Na sua origem está uma verdadeira obsessão por parte dos governantes do mundo todo — em resposta às revoltas dos anos 1960 e 70 — por garantir que os movimentos sociais não nasçam, floresçam ou proponham alternativas; de que os que contestam os acordos de poder existentes jamais sejam vistos, sob quaisquer circunstâncias, como vencedores. Para isso, é preciso criar um vasto aparato formado por exércitos, polícia, vários tipos de empresas de segurança privada e de sistemas de inteligência militar, além de instrumentos de propaganda de todos os tipos concebíveis. A maior parte deste aparato não ataca diretamente as alternativas, mas cria um clima de medo universal, de conformidade chauvinista e puro desespero que faz com que qualquer ideia de mudar o mundo pareça uma fantasia inútil. Manter esse aparato parece ser ainda mais importante para os defensores do “livre mercado”, mais ainda do que manter qualquer tipo viável de economia de mercado.
(…)
Nossa imaginação coletiva, como observei, sofreu uma espécie de colapso. É quase como se as pessoas tivessem sido levadas a acreditar que os avanços tecnológicos da nossa época, e a sua tão grande complexidade social, tivessem o efeito de reduzir nossas possibilidades políticas, sociais e econômicas, em vez de expandi-las.
(…)
Para começarmos a nos libertar, o primeiro passo que precisamos dar é nos ver novamente como atores históricos, como pessoas que podem fazer alguma diferença no curso dos acontecimentos mundiais.Isso é exatamente o que a militarização da história está tentando evitar.
(…)
O que tentei fazer neste livro não foi propor uma visão de como será nossa próxima era, mas sim abrir novas perspectivas, ampliar nossa percepção das possibilidades e começar a perguntar o que significaria pensar com profundidade e grandeza apropriadas ao momento.
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Missionário: Veja só você! Está jogando a vida fora ao ficar deitado o dia inteiro desse jeito.
Samoano: Por quê? O que acha que eu deveria estar fazendo?
Missionário: Ora, tem um monte de cocos por aí. Por que você não seca a polpa e vende?
Samoano: E por que eu faria isso?
Missionário: Você pode ganhar muito dinheiro. E, com o dinheiro que ganhar, pode comprar uma máquina para secar a polpa mais rapidamente e ganhar ainda mais dinheiro.
Samoano: Certo, mas para que eu faria isso?
Missionário: Bom, você ficaria rico. Poderia comprar terras, plantar mais árvores, expandir suas atividades. A partir de então, nem precisaria mais fazer o trabalho pesado, poderia contratar pessoas para isso.
Samoano: Certo, mas por que eu faria isso?
Missionário: Bom, ao final, cheio de polpa, propriedades, máquinas, empregados e dinheiro, você poderia se aposentar como um homem rico. Então não teria que fazer mais nada e poderia passar o dia inteiro deitado na praia.
(Livro comprado na Ladeira Livros).
Considero a metáfora do machado que abre cabeças muito elegante para a maioria das pessoas que conheço…
Para você ver como é o capitalismo: a história do samoano e do missionário, no final, virou anúncio de banco (os cocos substituídos por pesca). Talvez Santander, não me lembro. Muda o final: o pescador na ilha dos Mares do Sul oferece ao seu consultor informal um cartão com o telefone de seu personal-gerente de conta.