VAR, cafezinho e profissionalização dos árbitros (por Alessandro Barcellos, presidente do Inter)

VAR, cafezinho e profissionalização dos árbitros (por Alessandro Barcellos, presidente do Inter)

A cena se tornou corriqueira nos corredores da Confederação Brasileira de Futebol: toda semana, rodada a rodada, presidentes de clubes largam seus afazeres para reclamar, em vão, da performance de árbitros no torneio mais importante do calendário nacional.

Para além do clubismo, o Sport Club Internacional entende que é hora de discutir profunda e seriamente como mudar este quadro que afasta torcedores e patrocinadores do futebol. Que coloca em xeque permanente a credibilidade de nossa maior paixão. Que dá asas a teorias conspiratórias. Que serve como cortina de fumaça para justificar erros técnicos e táticos de atletas e treinadores. E que pune, aleatoriamente, clubes que fazem um trabalho sério – e premia o jogo sujo dos bastidores.

Não, não se trata de choradeira após o dolorido desfecho que deixou a torcida colorada e, nós, dirigentes, com a sensação de que nos tiraram algo que nos pertencia. Trata-se de discutir até quando um esporte que, segundo a EY, movimenta R$ 52,9 bilhões por ano será decidido por árbitros que não têm dedicação exclusiva ao futebol.

Trata-se de levar a sério a paixão dos nossos consumidores. Ou fazemos isso ou o futebol irá por um caminho sem volta de esvaziamento, o que já se nota entre os mais jovens.

É incompreensível que a CBF, as federações e as agremiações não se movimentem fortemente no sentido de cuidar com zelo das equipes de arbitragem e tenhamos um quadro de profissionais que estude, treine e respire futebol 24 horas por dia.

Hoje, temos fuzileiros navais, dentistas, médicos legistas, vendedores, personal trainers e assistentes administrativos trabalhando em suas profissões em horário comercial e decidindo o destino e a alegria de milhões de torcedores como juízes.

Os dados estão à mesa. Não enxerga quem não quer. Nada menos que 16 dos 20 participantes da Série A de 2020 reclamaram formalmente do departamento comandado por Leonardo Gaciba. São incontáveis lances com falta de padronização de critérios, com falhas de interpretação, com intervenção clara e comprovadamente erradas nas decisões de campo.

O VAR, que foi vendido como panaceia para a arbitragem, virou instrumento para colocar ainda mais sombra sobre a credibilidade do nosso futebol.

Aqui não está em discussão apenas o pênalti claro contra o Corinthians, que tirou nosso tetracampeonato nacional, a falha grotesca na marcação de um pênalti fantasma para o Vasco – que nos rendeu a absurda suspensão de Cuesta – ou da intervenção externa que praticamente obrigou o juiz de campo a expulsar Rodinei contra o Flamengo.

Sem a camisa vermelha, meu propósito trabalhar incessantemente ao lado de outros presidentes de clubes e agir para garantir um espetáculo mais limpo.

A era do amadorismo acabou entre os jogadores há quase cem anos. Se a CBF não se mexer espontaneamente para mudar este cenário, os times precisam atuar em bloco no sentido de proteger a integridade do esporte. A mudança, está cada vez mais claro, terá de ser feita de fora para dentro, sem casuísmo.

Chega de cafezinho, coletivas irascíveis, desculpas esfarrapadas e notas oficiais. Chega de só reclamar quando há um erro contra seu time e de falar que faz parte do jogo quando se é beneficiado. É hora de os clubes arregaçarem as mangas, estudarem o que se faz lá fora, padronizarem critérios e trabalharem, juntos, para que o VAR nunca mais seja o craque do Brasileirão.

Alessandro Barcellos

Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Para falar de Bach, talvez devamos conhecer um pouco do homem e do ambiente em que viveu. Lembro que Franz Rueb, em seu livro 48 variações sobre Bach, explica o que era a educação escolar no tempo em que Bach era menino. Era algo em torno de 5 horas por dia. Em média, uma hora de matemática e ciências, outra hora para aprender alemão e as restantes 3 horas eram de religião e de cantar música religiosa. Também diz que os meninos eram perigosos à saída da escola. Formavam grupos para cometer pequenos roubos e às vezes perseguiam alguém com pedras nas mãos.

De qualquer modo, a educação terminava quando a família decidia e o filho via de regra aprendia a profissão do pai ou de um parente que admirasse. Claro, os Bach era uma família de músicos, como falarei adiante. E as universidades eram quase impossíveis para quem vivia nas pequenas cidades e principados.

A Alemanha do tempo de Bach não tinha nada a ver com a atual, ela sequer existia. Dividida em pequenos Estados soberanos, dominada majoritariamente pelo luteranismo, cujo impacto na vida cotidiana era fortíssimo, a Alemanha era formada por cortes soberanas. Cada pequeno príncipe, duque ou margrave era senhor em suas terras. A unidade alemã ainda não tinha começado. Cada principado possuía leis e costumes próprios — e, no mais das vezes, uma religião. Eu disse uma. A religião do príncipe (catolicismo, luteranismo ou calvinismo) era a dos seus súditos.

Cada um dos príncipes germânicos tinha seu Kapellmeister, seus cantores e seus instrumentistas, e algumas daquelas cortes tomaram-se centros de música de certo relevo. O que era um Kapellmeister ou Mestre de Capela? “Mestre de capela” é a pessoa que, entre outras obrigações, deve ser responsável pela música de uma igreja. Bach viveu em duas cortes onde foi Kapellmeister: a de Weimar e a de Koethen. A vida nessas cidades pequenas pautava-se pela seriedade, austeridade e gravidade provindas daquela religiosidade que permeava toda a sociedade e regulava a vida de cada indivíduo.

No entanto, na primeira metade do século XVIII, surgiu um elemento novo, o Iluminismo. Um movimento intelectual, em parte sob influência francesa, esboçou-se no interior da sociedade burguesa das cidades alemãs e reagiu contra a tradição luterana e suas estruturas estabelecidas.

Foram 4 as principais forças sociais atuantes na vida e na obra de Bach: as Cortes dos principados, a burguesia urbana, as paróquias luteranas e o Iluminismo. Ou seja, Bach esteve enraizado na sociedade das pequenas cidades alemãs, teve laços que o prendiam à religião luterana, tinha a tentação da vida na corte — da arte sacra e profana — e a cultura Iluminista.

Porém, antes de Johann Sebastian, há os Bach. Eles foram uma família que, longe de constituírem um obstáculo a sua evolução, serviram-lhe como um trampolim de notável potência.

No final do século XVI, o moleiro Veit Bach tocava cítara enquanto olhava o seu grão sendo moído. Ele foi o primeiro Bach conhecido como músico. Até Johann Sebastian, contam-se 33 homens na família: 27 deles foram músicos — organistas, mestres de capela, músicos municipais, violinistas, compositores. O menino Johann Sebastian só via à sua volta irmãos, tios, primos — e seu pai, naturalmente — ligados simultaneamente à música — como a um ofício sólido — e à igreja luterana.

A família Bach parecia ter laços inquebrantáveis com dois desses polos sociais e culturais — à igreja e à música. Não é difícil concluir o poder exercido por essa base familiar sobre a formação do jovem Johann Sebastian. Ele cedo ficou órfão. A família tomou conta dele e o educou. Arranjaram-lhe um lugar como organista — detalhe: ao largar essa colocação, mais tarde, deixou-a para um de seus primos. Ou seja, um Bach nunca estava só na vida. E foi com uma Bach — uma de suas primas — que Johann Sebastian casou.

Seu caminho estava, de certo modo, traçado desde a infância, e as reviravoltas da existência, que em outras circunstâncias teriam podido deixá-lo atrapalhado e isolado, contaram com essa grande e generosa tribo musical.

Johann Sebastian Bach nasceu em 1685, aquele ano espetacular em que também nasceram Haendel e Scarlatti filho. O pai, Ambrosius Bach, que era violinista e “músico municipal” em Eisenach (1), pequena cidade da Turíngia, ensinou o menino a tocar os instrumentos de corda, ao passo que o tio Johann Christoph, excelente compositor e organista na mesma cidade, iniciava-o no órgão. Ainda bem criança, Johann Sebastian fez parte do coro municipal.

Porém, aos nove anos ele já estava órfão de pai e de mãe. Foi seu irmão mais velho, organista em Ohrdruf, que se encarregou de sustentá-lo, ensinando o menino a tocar cravo e composição. Aos quinze anos, por sua própria iniciativa, Johann Sebastian fez-se admitir na escola de São Miguel de Lüneburg (2), onde eram acolhidos jovens pobres com alguma formação musical. Em troca de cantar na igreja, ele recebeu ali uma a educação que provavelmente não receberia em outro lugar, com aulas de retórica, latim, grego, lógica, teologia e, naturalmente, mais música. Lüneburg era uma cidade bem diferente das que Bach havia morado anteriormente: era animada e possuía grande influência da cultura francesa, fosse na música ou na culinária. Talvez seja por isso que Bach decidiu estabelecer-se ali por mais tempo. Trabalhou como cantor em diversos lugares, até que a mudança de voz fez com que buscasse empregos no ramo instrumental. Lá ele aprendeu francês — que era a língua do mundo do espetáculo, da dança, da música de Lully.

Depois, novamente com a ajuda da família Bach, fez sensação em Arnstadt (3), onde havia uma vaga para organista. Foi contratado sem fazer concurso em 1703, com apenas dezoito anos. A adolescência de Johann Sebastian Bach tem qualquer coisa de admirável. Uma espécie de instinto infalível parece movê-lo sem hesitações no sentido de um conhecimento mais amplo. Ele parecia ser dotado de uma maturidade superior à de sua idade, que guiava suas escolhas de maneira precisa. E, lá do fundo da Alemanha, ele descobre a cultura francesa e italiana.

A Itália veio até ele com a música de Frescobaldi. E havia o apelo dos organistas do norte — Georg Bõhm, o velho Reinken e, finalmente, Buxtehude. Para ouvir este último, Bach chegou mesmo a cometer uma estranha fuga: pediu quatro semanas de licença e acabou ausentando-se por quatro meses. Explicando melhor, em outubro de 1705 (20 anos), obteve uma licença de um mês para ir a Lübeck e ouvir o famoso Buxtehude, o mais destacado organista do norte da Alemanha. Bach fez a pé o trajeto de mais de 350 km. Sua visita deve ter sido proveitosa, pois ele não retornou antes de janeiro de 1706 — quatro meses –, e de imediato sua maneira de acompanhar os hinos mudou completamente, o que despertou protestos entre a congregação que, perplexa, estava acostumada a acompanhamentos simples. Este não foi o único dos problemas que Bach enfrentou. Foi censurado pelo consistório pela sua longa ausência e por causa daquelas “escandalosas” liberdades e improvisos ao órgão que confundiam os fiéis. Tendo de acatar as ordens, pouco depois foi censurado por fazer os acompanhamentos demasiado curtos. Além disso, o coro de meninos que ele tinha de reger era tudo, menos competente e dócil, registrando-se vários episódios de confrontos e altercações violentas, incluindo desafios com espada. Logo se tornou claro que ele não mais poderia permanecer em Arnstadt. Aparentemente a derradeira discórdia foi a reprimenda que recebeu por ter acompanhado ao órgão uma donzela cantora — presumivelmente Maria Barbara — numa uma ocasião em que a igreja estava vazia. Importante: naquela época, era proibido às mulheres cantarem nas igrejas. As vozes de sopranos e contraltos eram cantadas por meninos. (Arnstadt)

Então ele rompeu seu contrato tão logo surgiu outra vaga de organista, dessa vez em Mühlhausen, onde também o admitiram depois de uma audição, sem concurso. Casou-se então — tinha 22 anos — com a prima Maria Barbara Bach.

Depois, trocou Mühlhausen (4) pela corte de Weimar (5), com as funções de organista, violinista e compositor. Era, agora, músico “da corte” e não mais um músico municipal ou da igreja — ainda que suas funções fossem, em parte, ligadas à música religiosa. Estava a serviço de um príncipe, não de uma municipalidade ou de uma paróquia. Isso era uma promoção para ele —- mas, de certa forma, uma ruptura com sua tradição familiar.

A proposta que Bach recebeu em Weimar incluía o valor de uma remuneração que era o triplo do que recebia em Mühlhausen, além de que o alojamento de sua família era por conta da corte. Ele recebia ainda adicionais extras e gêneros como, por exemplo, 30 barris anuais da cerveja produzida no castelo e livre de impostos. Ele sempre pedia mais cerveja, por tinha alunos, filhos, família grande e o consumo era pantagruélico. Gente, cerveja é a bebida de Bach.

Esse tempo que Bach passou em Weimar (1708 a 1717, dos 23 aos 32 anos) trouxe-lhe, por outro lado, um enriquecimento musical considerável. Produziu muitas Cantatas e música para órgão. Trouxe tensões, também. O duque que estava no poder era de trato difícil. Bach era mais amigo de seu herdeiro, um melômano apaixonado. Surgiram dificuldades. Ele pediu demissão e acabou preso por um mês — sim, preso por ter pedido demissão, por ter insistido em sair da corte. Passado esse episódio, conseguiu permissão de deixar Weimar por uma outra corte, a do príncipe Leopold de Kõthen (6), onde permaneceu entre os 32 e 38 anos de idade.

E aqui chegamos a, quem sabe, o período mais feliz e importante da vida de Bach. Os cinco anos passados por ele em Köthen tiveram como resultado boa parte da música instrumental de Bach que ouvimos hoje. Até a tristeza pela morte de sua esposa Maria Barbara resultou em música, resultou na Chaconne da Partita Nº 2 para Violino Solo. Há poucos registros de textos escritos por Bach. Porém, quando morou em Köthen, tinha feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

Curiosamente, o cineasta Ingmar Bergman comentou o fato no livro Lanterna Mágica:

Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou foi destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

O príncipe Leopold, de Köthen era inteligente, aberto, agradável e músico (ele era violista). Também reunira em torno de si a melhor orquestra da Alemanha (dezessete músicos, muitos dos quais virtuoses famosos). Lá, Bach gozava não somente de consideração e de bom salário, mas de verdadeira amizade por parte de Leopold e dos que o rodeavam. Essas condições ideais para um artista — ter à sua disposição todos os meios para criar e saber que sua obra é compreendida e apreciada, que artista não sonhou com isso? –, iriam permitir a Bach uma produção abundante. Concertos, sonatas (quase toda a sua música de câmara data dessa época), O cravo bem temperado, as suítes e partitas, as aberturas para orquestra, os Concertos de Brandenburgo…

Muito teria para se falar da música de câmara de Bach, que em sua maior parte data do período de Kõthen: sonatas para violino e cravo, para violino solo e violoncelo solo.

Em Köthen, Bach casou-se pela segunda vez, com Anna Magdalena Wilcken, filha de um trompetista da orquestra e cantora da corte. Manifesta-se, contudo, nesse período, uma insatisfação. E é por onde se pode medir o domínio exercido, consciente ou inconscientemente, pela tradição familiar. O príncipe Leopold era calvinista e, em Kõthen, a música religiosa não tinha qualquer participação no culto. O papel de Bach era, portanto, exclusivamente profano. Ao que parece, Bach teria sentido fortemente a necessidade de voltar a trabalhar para a igreja, como sempre haviam feito seu pai e seus antepassados. Tentou, de início, conseguir um lugar como organista em Hamburgo. Até que apareceu a chance de ir para a Thomasschule [Escola de Santo Tomás] em Leipzig (7).

Então Bach mudou o curso de sua vida e renunciou a todas as vantagens adquiridas. Por um salário menor, escolheu o posto de Leipzig, repleto de inconveniências que não demoraram muito a tornar-se insuportáveis. A Escola de Santo Tomás de Leipzig era uma antiga instituição criada pela Reforma. Meio orfanato, meio conservatório, estava estreitamente inserida na vida da igreja e na da cidade.

A função que Bach exercia já tinha vivido melhores dias. Johann Kuhnau, o predecessor de Bach, era simultaneamente professor de letras, de teologia, professor de música e diretor das atividades musicais da igreja, regente do coro, regente da orquestra e — é claro — compositor. Mas, em 1730, essa função já era anacrônica, tal como a estrutura da escola. E aqui intervém o último dos fatores culturais de que falei mais atrás: o Iluminismo estava provocando uma modificação nas relações e nas estruturas sociais. A Escola de Santo Tomás, com sua organização antiquada, já não correspondia às aspirações intelectuais do século XVIII. O reitor da Escola desejava fazer da Escola de São Tomás algo mais moderno. E a função de Bach era um dos fatores que o atrapalhava. Bach pedia mais recursos para a música religiosa, uma disponibilidade maior dos alunos, enquanto o reitor gostaria de vê-los estudar latim ou grego, de preferência, a gastar horas e horas com ensaios no coro. O impasse era total, e Bach se revelou muito pouco político. Ele apenas brigava e sua música “fora de moda”, não agradava. Ele negligenciava os cursos de latim e os transferia a inspetores. Tudo virou uma grande luta.

A tragédia — pois trata-se autenticamente de uma — é que essa amarga decepção vinha precisamente daqueles para quem havia escolhido trabalhar e consagrar sua vida. Por essa estrutura paroquial ele renunciara à vida fácil da corte e à segurança de Köthen. Ao buscar o modelo social, cultural e religioso que foi o de todos os Bach antes dele e à sua volta, J.S. Bach escolheu um caminho que era já anacrônico e retrógrado.

Os primeiros anos de Bach em Leipzig dão testemunho da felicidade que, no início, a situação lhe proporcionou, o que se pode medir por sua vitalidade criadora: foram 48 cantatas só durante o ano de 1723 — quase uma por semana —, duas Paixões (São João em 1723 e São Mateus em 1729), motetos, e a Missa em si menor em 1733.

Mas, aos poucos, não somente ele se desinteressou da escola, descarregando suas obrigações sobre os inspetores, como se fez mais vagaroso na criação de suas composições: umas poucas cantatas, apenas, ao longo dos vinte últimos anos de sua vida. É que, para Bach, compor era um ofício e como seu ofício parecia ter-se tornado inútil — então ele praticamente se calou. Em Bach não havia a noção de criar uma obra para a posteridade. E a movimentada vida em sua casa, entre filhos e alunos passou a interessá-lo mais.

Os últimos anos de sua vida foram tristes. A música evoluía. O estilo “galante” foi se impondo pouco a pouco. Um compositor menor, mas bom, como Telemann, adaptou-se à perfeição aos novos tempos. Bach não mudou. Seu estilo estava fora de moda. Só uns poucos especialistas o compreendiam. Não escrevia mais que algumas obras difíceis — como A Arte da Fuga –, destinadas a um pequeno número de melômanos capazes de apreciá-las. Recolheu-se a um isolamento altivo e intransigente.

Ainda houve ocasiões festivas, como a viagem à corte de Potsdam, onde seu filho Carl Philipp Emanuel era cravista e durante a qual Frederico II dispensou-lhe honrarias. Mas a saúde de Bach se enfraqueceu. Ele teve catarata e ficou totalmente cego após um charlatão operá-lo. Este charlatão foi o médico John Taylor. A existência de Taylor foi altamente destrutiva para a música. As cirurgias de Taylor incluíam o uso de sangue e de fezes de pombos recém abatidos, além de açúcar e sal. No final de março de 1750, Taylor operou duas vezes a catarata de Bach em Leipzig e o cegou. Bach adoeceu logo após a segunda operação e faleceu menos de quatro meses depois. Oito anos depois, Taylor operou e cegou também Handel, que morreu logo a seguir.

Muito se tem simplificado a personalidade de Bach. Porque teve vinte filhos, porque sua vida transcorreu aparentemente como um fio ininterrupto sem maiores perturbações, sem paixões tempestuosas, sem aventuras, centrada no estudo e no trabalho, resolveu-se fazer dele um modelo de perfeito cidadão, pai perfeito de 20 filhos, marido perfeito, compositor perfeito. Em parte é verdade: Bach constitui um desmentido ao estereótipo da arte maldita, da arte inadaptada, do gênio marginalizado. Parece ter passado pouco por dramas íntimos, mas teve, sem dúvida, sofrimentos e dores. Sua vida nas cortes e nas igrejas, à exceção de Köthen, era a de brigar por mais recursos sendo muito pouco político. Sim, era um brigão, um resmungão. Houve a morte de uma mulher amada, a de numerosos filhos, dos quais dez não chegaram à adolescência. Ou seja, não se deve aceitar facilmente essa ideia de serenidade perpétua.

O que impressiona na vida de Bach, como em sua obra, é uma força e persistência imensas. Não foi um homem amável ou diplomata. Desde a adolescência, Bach parece ter sido adulto. Solucionava seus problemas familiares — duas esposas, vinte filhos, incontáveis alunos — com uma segurança que poucos artistas parecem ter possuído. Se houve serenidade, foi uma conquista. Talvez sua obra contenha sofrimento e dor, sentidas e superadas.

Johann Sebastian Bach

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O fundamento da gramática musical de Bach é o contraponto. Pode-se dizer que tem no contraponto a sua língua materna, sua maneira natural de falar. Bach é o herdeiro de toda a tradição polifónica europeia — digamos, de cinco séculos de polifonia. Uma melodia, para Bach, nunca vem só: engendra por si mesma uma ou muitas outras, independentes e complementares. O pensamento musical de Bach apresenta-se sempre, e da maneira mais espontânea, como uma polimelodia, uma estrutura combinatória em que mais de uma linha musical conserva toda a sua independência melódica.

O virtuosismo de Bach no domínio do contraponto é espantoso. Ele parece capaz de “combinar” qualquer melodia com uma outra, ou consigo mesma, de todas as formas imagináveis.

Homens como Lully e Haendel, por exemplo, pensam a música de outra forma. Com eles, só a melodia principal move-se no tempo; sua harmonização é pensada em função da eficácia imediata do acorde. Bach, no entanto, pensa “simultaneamente” nos dois sistemas, e nisso está a fonte da extraordinária eficácia de sua linguagem musical. Virtuose do contraponto, ou seja, sempre à espreita da “perspectiva” desenhada pelas melodias ao longo de seu desenrolar no tempo, jamais perde de vista o resultado produzido no imediato pela superposição das notas captadas em sua simultaneidade.

Isso explica, também, que Bach não tenha herdeiro musical. Sua síntese é única, porque não se poderia fazer algo assim senão entre 1700 e 1750. A evolução da estética musical torna-a impossível mais tarde. Já no fim de sua vida, Bach era incompreendido e “superado” aos olhos de seus contemporâneos. Seu filho Friedemann, tão próximo do pai no pensamento musical, viveu dilacerado pela impossibilidade de realizar um ideal estético anacrônico.

Bach é ao mesmo tempo um arquiteto e um miniaturista. Mas a força de seu discurso musical, o poder de sua invenção melódica são tais que essas inflexões e essas intenções expressivas acham-se sempre perfeitamente integradas. Uma obra de Bach tem sempre duas dimensões, assemelhando-se de certo modo àqueles quadros flamengos que podem ser decifrados a duas distâncias. A uma primeira distância, admiram-se as linhas, as massas, as proporções, a luz, as figuras, o desenho. Ouve-se uma cantata ou a Paixão segundo São Mateus como quem olha, a dois metros, o retrato de Arnolfini e de sua esposa por Van Eyck. Mas, se chegarmos mais perto, perceberemos, no espelho que está por trás do casal, todo um mundo em miniatura, como um quadro dentro do quadro e que a dois metros não era possível distinguir.

Bastante adaptado a partir de trechos do capítulo sobre Johann Sebastian Bach, publicado no livro História da Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin.

Atrás do balcão da Bamboletras (XXXVII)

Atrás do balcão da Bamboletras (XXXVII)

A Todavia, sempre parceiríssima, está promovendo 15 livrarias de rua brasileiras em seu perfil do Instagram.

Para tanto, solicitaram a um artista que fizesse uma arte para cada uma das homenageadas.

Hoje foi o nosso dia! Nossa, ficou lindo!

Agradecemos à Todavia e à artista Aline Zouvi que captou com precisão algo de nós.

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O texto do Insta está copiado abaixo:

Até sexta-feira, este perfil será ocupado por livrarias de rua, homenageadas no traço de 15 jovens artistas convidados a representar um pouco do clima desses espaços.

@bamboletras, Porto Alegre (RS)
Ilustração de @alinezouvi

A Bamboletras está localizada no bairro boêmio de Porto Alegre, a Cidade Baixa. É o local das festas, dos bares e da confusão noturna. A livraria tem tudo a ver com o bairro e está bem no centro dele, numa galeria chamada Nova Olaria (…). Durante a pandemia, descobrimos que, mesmo com o cinema fechado e com as limitações dos bares, nosso público vinha nos visitar. Modestamente, achávamos que éramos complementares, mas somos fundamentais.

No período em que estivemos fechados à visitação, as pessoas nos ligavam e verificavam se os livros podiam ser enviados. A comunidade local de leitores e livros é a comunidade de que precisávamos antes, é a comunidade que esteve conosco nos tempos difíceis, e é a comunidade com quem queremos estar quando tudo isso acabar”, diz Milton Ribeiro, que assumiu a livraria em 2018.

No último ano, eles criaram serviços de telentrega por WhatsApp, redes sociais e até um desvio de chamadas para que os telefones tocassem na casa dos funcionários. “Funcionou. Essa resistência veio da necessidade de seguir vivo e do respeito que temos pelos clientes e trabalhadores da casa. Sou um cara teimoso e que gosta não somente dos livros, mas também das pessoas. Então, conseguimos ultrapassar a crise trabalhando muito e sem demitir ninguém. Isso me orgulha muito. Somos seis pessoas aqui.

A Bamboletras sustenta seis famílias. Uma delas é a do livreiro mais antigo, Gustavo Ventura Gomes, o Gus. Milton o descreve como aquele com “memória espantosa”, que trabalha há 30 anos com livros. “Ele gosta principalmente de ficção, psicologia e política, mas poderia ter também um divã aqui na loja, pois é daqueles para quem as pessoas contam suas histórias. No dia em que Bolsonaro foi eleito, havia gente literalmente chorando na Bamboletras, perguntando pro Gus: ‘O que será de nós agora?’. Os clientes amam o Gustavo.”

#vivaasualivraria
#livrariasresistem
#tudocomeçanalivraria
#defendaolivro
#todavialivros
#livrarias

Efeito Casablanca — Prejudiquem os trouxas de sempre, por Juremir Machado da Silva

Efeito Casablanca — Prejudiquem os trouxas de sempre, por Juremir Machado da Silva

No Correio do Povo

Cada vez mais vejo o futebol com uma boa metáfora da vida. Há relações de causa e efeito. Há situações que se repetem. Há dominantes e dominados. Há desconfianças. De repente, no meio da pandemia, fico até constrangido de falar de futebol. Se o faço é por ver no futebol atualmente uma fresta de respiro ao meio ao caos para que pessoas se distraiam do horror que nos cerca.

No clássico filme “Casablanca” há uma frase que ficou famosa pelo seu delicioso cinismo: “Prendam os suspeitos de sempre”. No Brasil, em confrontos com cariocas e paulistas, vale o efeito Casablanca: prejudiquem os trouxas de sempre. O Internacional foi “operado” em 2005 em favor do Corinthians. Em 2021, 0 VAR, tecnologia criada para eliminar todas as polêmicas e já consagrada por só produzir confusão, entrou em campo e ajudou o Flamengo. Dá vontade de disputar o campeonato uruguaio. O bairrismo de cariocas e paulistas não tem limites. É preciso que ganhem sempre. São o centro do mundo (do nosso).

Nos últimos quatro jogos, o Inter, que vinha de nove vitórias seguidas, foi atropelado pelo VAR. Em Curitiba, contra o Athlético-PR, não foi dado um pênalti ao final do jogo. Contra o Sport, em Porto Alegre, o VAR não opinou sobre uma bola que saiu e resultou no segundo gol dos visitantes. Contra o Vasco, no Rio, o árbitro deu um pênalti claramente inexistente para os cariocas. Em consequência, tirou, com um amarelo, Cuesta do jogo contra o Flamengo. O cobrador, talvez envergonhado, errou o chute. Contra o Flamengo, numa decisão, em lance sem intenção, Rodinei pisou o pé de Filipe Luis. O árbitro nada deu. O próprio jogador do Flamengo reconheceu em campo que foi acidente. O VAR chamou o árbitro e o lateral do Inter foi expulso. Caminho aberto para a vitória do Flamengo e para a mitologia global: hegemonia. O mesmo árbitro, em lances iguais, em outras partidas não havia dado um só cartão vermelho.

O encadeamento de fatos, se a palavra não soar pomposa ou trágica, revolta. Internacional e Vasco era jogo decisivo. Não veio em televisão aberta para o Rio Grande do Sul. Falaram que era negócio. Vender jogo fechado. Passaram Corinthians e Flamengo. Curiosamente, neste domingo, paulistas não viram a “final” entre Flamengo e Inter, mas Corinthians e Vasco. Critério: paulista quer ver paulistas. Gaúcho tem de ver paulista e carioca dentro da ideia vira-lata de espanholizar o Brasil fazendo de Flamengo e Corinthians especiais. Talvez por isso os títulos tenham de ser reservados a eles. Isso revela uma visão de mundo. E assim vai: 2005, 2009, 2021. Neotáticos – deslumbrados por esquemas táticos e tecnologia –, Globo, CBE, cariocas e paulistas estão felizes. Uma vitória de Abel, considerado velho e ultrapassado, estraga o roteiro.

O efeito Casablanca acontece em muitas outras áreas. Quase todas. No futebol, o VAR se omite quando convém, interfere quando necessário e dá o óbvio para se mostrar neutro e técnico. Não falta nunca aos seus senhores. Claro que tudo isso pode ser enquadrado na categoria paranoia ou em teorias da conspiração. As coincidências são tantas que o inverossímil se torna factível. O campeonato ainda tem uma rodada. O Inter enfrenta o Corinthians em casa. O Flamengo pega o São Paulo fora. Pode acontecer um milagre. Parar Corinthians e Flamengo num mesmo dia, em que o primeiro pode ajudar o segundo e ambos fortaleceram o bairrismo Ri de Janeiro – São Paulo, seria uma façanha. Derrubaria o efeito Casablanca. O VAR permitiria algo assim?

Metáfora da vida, o futebol nos faz pensar: que lugar ocupamos em nosso lugar?

Atrás do Balcão da Bamboletras (XXXVI)

Atrás do Balcão da Bamboletras (XXXVI)

Acaba de acontecer algo muito inusitado. Ontem à tarde, fomos levar um “De cu pra Lua”, ótimo livro do Nelson Motta, ali no Menino Deus.

A compra tinha sido feita por um homem. O ciclista chegou ao local, abriram-lhe a porta e ele disse para Beltrana que queria fazer uma entrega para Fulano do ap. 103. Beltrana perguntou o que era.

— Um livro que ele comprou.

— Ah, sim. Deixa eu ver. Está pago?

— Não, está escrito aqui que ele vai pagar em dinheiro.

Ela examinou com atenção o volume e perguntou o preço. Pagou e nosso ciclista retornou com o dinheiro.

Agora de manhã, Fulano nos liga indignado. Cadê o livro, pô? Me dá a maior mijada e eu tranquilo, pois o livro tinha sido entregue.

— Entregue pra quem?

Consulto o ciclista e respondo.

— Para uma moça. Não sabemos o nome.

— Mas eu não conheço ninguém no prédio! E todos os porteiros são homens!

— Bem, ela até pagou…

Fulano cai na risada.

— Acho que consegui uma venda pra vocês, mas, por favor, podem me trazer outro “De cu pra Lua”? Venham até a minha porta. Sou um cara alto, 1,90m, grisalho, uso óculos…

Já mandei. Espero que chegue.

O Inter e seu fiapo de esperança

O Inter e seu fiapo de esperança

Foi um jogo de dois times esbodegados e que para mim foi perdendo a graça não apenas porque o Flamengo virou, mas em razão de sua ruindade como jogo de futebol.

Como (quase) todo mundo sabia, provavelmente perdemos o Covidão 2020 naquele jogo contra o Sport.

Ironicamente, o cara de um milhão de reais foi expulso no começo do segundo tempo e foi um dos causadores da derrota. Terá um bom ambiente ao retornar ao Flamengo… Será que não dá para pedir um desconto por motivo de utilização parcial?

Claro que a expulsão foi um exagero e jamais ocorreria sem o VAR. A gente vê em câmara lenta e parece grave. Vê em ritmo normal e dá a falta simples. E o Filipe Luís permaneceu em campo normalmente.

Ficamos com o quê? Um fiapinho de esperança ainda, um monte de bons jogadores jovens e ninguém diria que chegaríamos onde chegamos lá no início do campeonato.

Espero que o Miguel Ángel Ramírez esteja de olho no time.

Caio é apenas uma aposta e acho que podemos colocar Praxedes na mesma categoria, Rodinei e Lomba são muito fracos, Cuesta merece um companheiro melhor até o retorno de Moledo. Moisés é esquisito, mas estamos num país onde não se encontram laterais esquerdos bons. Guerrero e Boschilia têm que voltar anteontem, porque Peglow entra sempre apavorado.

A verdade é que falta futebol ao time do Inter. Jogávamos pouco com Odair, jogamos pouco nas decisões com Coudet, jogamos pouco com Abel. Eu estou cansado desse futebol operário, eu quero que a gente entre para jogar. Que Miguel Ángel chegue logo e melhore nossa postura. Vejam bem, quando o Patrick — que é bom jogador, gosto dele — vira craque, há algo errado.

E vamos lá. Nem estou tão triste porque comecei a cortar a madeira para meu caixão naquela noite contra o Sport. Foi aquilo ali o que decidiu. A noite de horror de Marcelo Lomba.

.oOo.

Eu não sei se há uma conspiração para o pró-Flamengo. Porém, é claro, o passado de Flamengo e Corinthians os condenam. Curiosamente, o corintiano Neto já tinha escrito em seu twitter lá por quarta-feira:

Atrás do Balcão da Bamboletras (XXXV)

Atrás do Balcão da Bamboletras (XXXV)

A Elena, minha mulher, cuja língua materna é o russo e que é uma grande leitora, entra na livraria.

Eu gosto de vê-la entrando porque gosto dela e sei que ela se sente bem em meio aos livros.

Mas então Elena subitamente para e pergunta:

— Que livro de Tolstói é esse?

Olho para o livro. Trata-se de Ressurreição.

Então ela se dá conta. É que, em russo, a palavra Ressurreição é a mesma utilizada para Domingo. Sim, o dia da semana, e ela sempre dava ao livro a outra acepção da palavra.

Então, amanhã é Ressurreição. Do Inter, espero.

Para guardar: os deputados gaúchos que votaram pela libertação do miliciano Daniel Silveira

Para guardar: os deputados gaúchos que votaram pela libertação do miliciano Daniel Silveira

Você, gaúcho, que vota em Bibo Nunes, Danrlei, Jerônimo Goergen, Marcel Van Hattem, Pedro Westphalen, Osmar Terra e outros notórios cretinos e imbecis, é um deles. Leiam bem os nomes dos deputados e dos partidos das duas colunas.

O violino húngaro e o cigano

O violino húngaro e o cigano
A Voz do Dono

O ideal seria que todos os violinos desta cidade e de cada aldeia fossem cortados em dois. Depois, seriam pendurados em salgueiros, e os violinistas que tocam as danças seriam pendurados pelas pernas ao lado deles.

De uma publicação religiosa húngara de 1681

Nos filmes de Kusturica são ciganos. Quando estão pedindo no metrô, são romenos. Quando vivem em casas, são “ex-ciganos.” Quando muito pobres, são ladrões. Quando têm bons carros, também são ladrões. A imagem negativa é a do pobre nômade pedinte e sem lei. A positiva é a ser rebelde orgulhoso, livre e… músico, quase sempre violinista.

A música para violino da Hungria, Romênia, Moldávia e adjacências é conhecida em todo o mundo por sua paixão e virtuosismo e, para os não nativos, tal música é sinônimo de fogueira, estrada e ciganos. A música para violino húngara é música cigana? Sim, pois, no mínimo, ela foi muito influenciada. No entanto, dentro do país você encontrará um ressentimento considerável em relação a esse estereótipo e, embora haja muito apreço pela habilidade dos violinistas ciganos, ela é considerada música húngara, não música cigana. Mas a polêmica ainda é quente.

O húngaro Franz Liszt deu o tiro de abertura ao publicar seu livro Os ciganos e sua música na Hungria em 1859. Ele já era conhecido por apreciar a música cigana e pela publicação, em 1853, de suas Rapsódias Húngaras. O que causou ira entre seus conterrâneos foi sua afirmação de que, embora a música tradicional de aldeia na Hungria seja “modesta e imperfeita” e digna de pouco respeito, a música instrumental das orquestras ciganas húngaras é “capaz de competir com qualquer coisa em sua sublimidade e na ousadia de emoção, além da perfeição de sua forma”. Este não era um assunto a ser tratado levianamente. Dificilmente haverá um país tão intensamente patriótico do que a Hungria, e os meados do século XIX foi um período de grande nacionalismo, pois o país tentava, sem sucesso, libertar-se do Império Habsburgo. A música tornou-se o foco deste florescimento do nacionalismo só que, desde os anos 1760, a música húngara esteve em grande parte nas mãos de orquestras ciganas. O que Liszt afirmava era que sem os ciganos, a música húngara seria insignificante, enquanto seus detratores afirmavam que, embora ninguém duvidasse ou deixasse de valorizar a contribuição dos “novos húngaros” — como eram eufemisticamente conhecidos os ciganos –, o que eles tocavam era fundamentalmente música húngara.

Pondo lenha na fogueira, Kodaly escreveu em 1960: A música folclórica húngara não é de forma alguma uma criação dos ciganos, como ainda é frequentemente afirmado como resultado do erro monumental de Franz Liszt. Os anti-Liszt, por assim dizer, acusavam o compositor de nem ter aprendido húngaro em sua vida, de ter passado a maior parte de sua vida no exterior e de, portanto, não estar bem posicionado para comentar com precisão o que compreendia da música folclórica húngara. Faltaria a ele o tal lugar de fala.

Os ciganos viviam na Hungria desde o século XV. Um rei lhes deu liberdade de movimentos em 1423. O século XVII viu a partida dos turcos e a abertura do país às influências ocidentais e da igreja — o que foi particularmente importante para a introdução do conceito de harmonia. Para os músicos nativos de aldeias húngaras, a Reforma da igreja, como em muitas partes da Europa Ocidental, foi sentida como um endurecimento das atitudes em relação à música, dança e prazer pecaminoso geral.

No século XX, com a sofisticação crescente do repertório urbano, um grande abismo começava a se abrir entre este e o repertório rural mais simples, terreno e rústico. Inevitavelmente, alguns intelectuais começaram a considerar o repertório urbano muito longínquo de sua fonte. Foi assim que Bartók, ainda muito jovem e impressionado ao ouvir uma empregada da vizinhança cantando em linda melodia que a maçã vermelha caiu na lama, começou a desenvolver um fascínio pessoal pela música primitiva do interior da Hungria, e iniciou uma busca para coletar o máximo que pudesse. “Nos chamados círculos urbanos de cultura” observou Bartók, “o tesouro inacreditavelmente rico da música folclórica era inteiramente desconhecido. Ninguém sequer suspeitou que esse tipo de música existisse”. Usando uma máquina de gravação cilíndrica Edison, ele começou em 1906 uma série de expedições, gravando e transcrevendo um total impressionante de 10.000 músicas. Muitas delas foram coletadas nas áreas de língua húngara além das fronteiras atuais, como a Transilvânia da atual Romênia. Bartók, junto com seu colega e compositor Kodály, incorporou muitos dos temas, formas e modalidades em suas composições, criando com sucesso uma música que era ao mesmo tempo muito moderna e repleta do que era visto como o verdadeiro espírito da Hungria antiga. Eles trabalharam em conjunto, dividindo sistematicamente entre si as regiões do país e outras regiões de língua húngara para pesquisa e estudo.

Eles também reabriram a controvérsia Liszt, rejeitando a ideia de que a música cigana e a húngara estivessem inextricavelmente ligadas. Ao colecionar melodias, procuravam sempre selecionar materiais que não tivessem sido “contaminados” pela influência cigana. Para citar Sarosi; “Aos olhos de Bartók e Kodaly, o grave pecado dos músicos ciganos desde o final do século XVIII foi servir à moda e ao entretenimento de quem os pagava, intrometendo um decadente repertório urbano mais recente na autêntica cultura popular. ” Essa visão ainda é controversa, até porque no passado a aristocracia húngara patrocinava ciganos e sua música de verbunkos e csardas. Sugerir que o coração da cultura húngara não estava com eles, mas com os camponeses iletrados, é uma ideia estranha, bem polêmica.

Não vamos resolver a questão aqui, é claro. A nobreza europeia, especialmente em países como Rússia, Romênia e Hungria, há muito tem um fascínio pelo romance, pelo mistério e pelo exotismo dos ciganos e têm sido patrocinadores voluntários deles. No século XIX, a Hungria, a maioria da nobreza rural mantinha sua própria orquestra cigana. Não existe um estilo de música cigano único. Pensem na extensão coberta pelo flamenco, pelo jazz cigano de Django Reinhardt, pelo hard jazz / rock romeno de Ivo Popozov, pela música crua de Taraf de Haiduks, por Goran Bregovic, etc.

O que é comum a todos é a grande aptidão dos músicos, adotando sistematicamente a postura de aprender os repertórios locais e, geralmente, aprimorando-os através do virtuosismo, da improvisação e do fato de serem showmen. Como viajantes periódicos, os ciganos têm sido uma força importante na polinização musical, pois além de dominarem o repertório local, podem introduzir técnicas e sabores que parecem misteriosos e exóticos.

Resumido e (muito) adaptado a partir deste texto de Chris Haigh.

O camaleão contra o favorito, de Fabrício Carpinejar

O Inter foi o time mais camaleão do campeonato brasileiro. Além de liderar por dezesseis rodadas, merece ganhar porque se adaptou a uma competição sem torcida, no meio de uma pandemia, com limitações no elenco.

Não ficou reclamando da arbitragem ou das lesões. A cada queda, refez o seu elenco. Encarnou a salamandra mexicana, o axolotle, capaz de reconstituir por completo partes do corpo, como espinha e olhos.

Perdeu o goleador peruano Guerrero no início do campeonato, improvisou com Thiago Galhardo, que se consagrou o artilheiro da competição. Galhardo se machucou durante um mês, abriu vaga para o Yuri, que tomou conta do recado com dez gols.

Um dos destaques da lateral, o argentino Saravia, rompeu o ligamento. Surpreendentemente, Rodinei assumiu a posição com competência.

Quando experimentava alta performance, Boschilia enfrentou a mesma lesão, Praxedes subiu da base com brilho.

O xerife da zaga, Moledo, no seu momento de maior invencibilidade, sofreu comprometimento no joelho e perdeu o resto da temporada. O desacreditado Lucas Ribeiro cumpriu a função.

Nossas grandes contratações ficaram no departamento médico. Esperanças vieram imediatamente preenchendo o vácuo.

Das ausências, surgiu espaço também para os atacantes Caio Vidal e Peglow.

Dourado voltou aos gramados depois de dois anos de inatividade.

Moisés superou a desconfiança e assumiu a titularidade da lateral esquerda.

Patrick e Edenilson voaram sobre as mudanças, com o diferencial do drible e da assistência.

E ainda choramos com a despedida do ídolo D’Alessandro, depois de 11 anos no clube,

Inter tinha motivos de sobra para dar errado neste ano, mas se reconstruiu como nunca. Não é uma zebra, mas uma salamandra avançando em sua milagrosa regeneração, com a fome de um título que busca há 41 anos.

Acabou com a abstinência do Gre-Nal em partida heroica, aplicou a maior goleada da história do São Paulo no Morumbi, Abel Braga tornou-se o técnico com o maior número de partidas dirigindo o colorado (337), enganou as estatísticas e venceu nove partidas consecutivas, o novo recorde dos pontos corridos.

Tudo aconteceu neste Brasileirão, o mais sobrenatural do manto vermelho, o mais supersticioso, o mais inacreditável.

Pelas adversidades somadas, o grupo está fechado, compacto, motivado. Já havia sido descartado por todos os comentaristas como eventual vencedor.

Não há, então, nenhum medo para enfrentar o elenco multimilionário do Flamengo no Maracanã. Não temos nada a perder. O pior já nos aconteceu várias vezes na temporada. Já tombamos, já levantamos. Enfrentamos o desmonte como nenhum de nossos adversários. Qualquer substituto joga pela sua vida.

Não existe como cair, porque jamais saímos do chão, jamais tiramos os pés do chão, da humildade da nossa humanidade. O chão é o céu da salamandra.

O Fim (Minha Luta 6), de Karl Ove Knausgård

O Fim (Minha Luta 6), de Karl Ove Knausgård

Foi mais de um mês de leitura, houve um momento em que me irritei com a insistência do autor em abandonar seus personagens para partir em longas digressões, mas foi por pouco tempo. Depois, lá pela página 700, não aguentava mais ver a capa do livro nem carregar suas mais de mil páginas na mochila para cá e para lá, pois leio muito em cafés e parques, só que cada vez que o abria ficava feliz em lê-lo. Sim, Knausgård me dobrou e não apenas à coluna.

Quatro anos após a publicação de A Descoberta da Escrita, volume 5 de Minha Luta, a sexta e última parte da hexalogia chegou ao Brasil em dezembro. A Companhia estava nos devendo. Por que demorou tanto não está claro, apesar do fato de serem 1049 páginas. De qualquer maneira, valeu a espera. Eu, a cada romance de série, ficava preocupado se o livro me sugaria novamente. O que mais Knausgård poderia dizer sobre si mesmo? Quantos cigarros e cafés ele ainda consumiria? Bem, dizer que são muitos não é dar spoiler.

Vamos a O Fim. Knausgård havia escrito dois volumes de Minha Luta e estava prestes a começar a trabalhar no terceiro quando o primeiro — A Morte do Pai — foi publicado. Como tratava-se de uma autobiografia muito franca e na qual todos os personagens — parentes, amigos e colegas — , eram retratados com seus nomes verdadeiros, ele resolveu enviar o primeiro romance a cada um dos citados no livro. E aqui ele começa a registrar knausgårdianamente a rixa familiar e a crise autoral desencadeada. Seu tio o acusou de inventar coisas no romance. Isso normalmente não seria uma cobrança que incomodaria a um escritor de ficção. Porém, neste caso, o autor tinha se empenhado em escrever a “verdade”, não apenas a versão emocional dela, mas também o factual, a versão real. “O objetivo do romance”, escreve ele, “era retratar a realidade como ela era”. E a insistência do tio de que Knausgård havia inventado material para embelezar sua história (que mais tarde se revelou uma falsa acusação) o fez questionar sua própria memória e motivações, o que causou uma espécie de dúvida paralisante.

O tio Gunnar, irmão de seu pai, respondeu à cópia do livro que Knausgård lhe enviou com um e-mail intitulado “Estupro verbal”. Sua raiva e determinação em bloquear a publicação deixaram seu sobrinho perturbado, até porque sua fé em suas próprias lembranças dos eventos foi abalada. Enquanto Knausgård se preocupa e chama seu editor, ainda deve levar a vida fritando bolos de peixe para o chá de seus três filhos e certificar-se de que eles assistam ao episódio de Bolibompa do dia.

Cada fralda trocada, cada cigarro fumado na sacada, cada xícara de café derramado é a invasão da vida normal que distrai da bagunça interior. Ele sabe disso, nós sabemos disso; e ficamos presos a ele.

A descrição de Knausgård dessa crise — seu nervosismo, a forma implacável com que ele repassa os eventos repetidas vezes, seu esmagador senso de transgressão e vergonha — é fascinante. Ele está disposto a expor não apenas seu medo visceral, mas também sua falta de cálculo e de premeditação. Sua falta de jeito…

Isso e o intenso debate público a que o livro foi submetido na Noruega levaram Knausgård a ser mais contido — e, portanto, menos verdadeiro — nos volumes três, quatro e cinco. Mas em O Fim, ele garante estar determinado a contar as coisas como elas são, independentemente dos custos sociais.

Um aspecto dessa ousadia renovada é um ensaio de 400 páginas sobre a vida, os pensamentos e o apelo de Adolf Hitler. Você pode perguntar onde isso se encaixa nas angústias de um romancista pai de três filhos que mora em Malmoe. É complicado, embora Knausgård tenha tomado o título de sua série das notórias memórias do líder nazista. Mais importante, o norueguês é um romântico declarado, alguém que se sente desconfortável com algumas hipocrisias racionalizadas de uma sociedade moderna que exalta os valores da igualdade enquanto privilegia de forma flagrante as desigualdades de nascimento e da beleza física, por exemplo.

Em algum lugar dentro dele está também o desejo purificador sobre o qual Hitler construiu seu culto ultranacionalista, apoiado por muitos que deveriam saber melhor, incluindo Heidegger. Knausgård explora essa tradição intelectual e busca entender como o desejo por autenticidade resultou no genocídio industrializado e nos maiores horrores do século XX.

Depois de algumas centenas de páginas de vida familiar e drama, o escritor se afasta de seus assuntos domésticos, levando-nos em outra direção. O ritmo febril diminui à medida que nos familiarizamos com trechos um pouco mais sofisticados, com grande nacos de reflexões filosóficas despejadas no meio do romance. No início desta seção, temos uma longa passagem sobre um curto poema de Paul Celan , cinquenta páginas de análise de parte de um homem que diz, ironicamente, que realmente não entende de poesia. Aqui Knausgård começa a explorar o contraste entre o individual e o coletivo, com foco em um poema ambientado em um deserto escuro, onde pessoas e nomes são escassos.

Mas o autor não está perdido. O elefante na sala é o Holocausto, e é nesse ponto que ele finalmente conecta seus temas. Grande parte desta seção intermediária é dedicada a resumir Mein Kampf, mostrando a ascensão de Hitler da obscuridade austríaca provinciana a líder de uma nação e de um povo, além de maestro de um dos maiores crimes da humanidade. É bastante perturbador ler sobre Hitler como pessoa, muitas vezes em suas próprias palavras. Knausgård tenta cobrir a vida de Hitler objetivamente, recusando-se a ver vestígios do mal onde nenhum é evidente, e critica os historiadores que sentem a necessidade de demonizar cada ação realizada em seus primeiros anos.

É um trecho intenso e exigente para o leitor. Apesar de toda a sua leitura atenta de Hitler e de seus vários historiadores — sua crítica ao trabalho de Ian Kershaw vai muito além de uma nota de rodapé –, ele nunca consegue realmente entender a origem ou o crescimento do antissemitismo demente do ditador, mas tateia bastante sobre isto e a cultura geral europeia, tão afeita a este conceito.

Talvez o tamanho do empreendimento seja grande demais para estar contido dentro de uma narrativa da luta de um escritor. A provocativa ironia do título torna-se, em vez disso, um estudo comparativo de duas pessoas meio alienadas — um que continua a escrever um livro aclamado pela crítica e o outro que é responsável pela morte de dezenas de milhões.

Claro que o desequilíbrio é evidente. A série de livros não matou ninguém nem mobilizou a humanidade. Ainda assim, Knausgård deve ser aplaudido por mostrar que o grande mistério da era moderna — a descida da Alemanha à loucura genocida — não é uma questão de “eles”, mas de “nós”. É claro que somos nós, todos nós, como sociedade, que elegemos ou damos chances aos monstros genocidas.

E nunca esse “eu” é anunciado de forma mais enfática do que na crítica de Knausgård a sua autoficção e, em particular, às consequências dela na vida real de outras pessoas. Isso cria um tipo estranho de feedback, no qual o autor se censura por suas intrusões anteriores na privacidade de outrem enquanto, simultaneamente, invade mais uma vez.

O exemplo mais perturbador é com Linda, sua segunda esposa, sobre quem ele escreveu em termos frequentemente negativos no volume dois, Um Outro Amor. Bipolar, com três filhos pequenos e lutando contra uma falta crônica de confiança como escritora, Linda sofre um colapso nervoso e acaba em um hospital psiquiátrico por vontade própria. No entanto, enquanto se tortura pela insensibilidade de suas descrições anteriores, Knausgård mais uma vez submete sua esposa a um olhar nada lisonjeiro, criando a imagem de uma mulher capaz e amada, mas indolente, tentando constantemente cortar a liberdade do autor para escrever.

A vida de Knausgård é monótona e exigente. É também bastante pobre em beleza. A cada dia, ele tenta preservar seu tempo de escrita enquanto zelosamente prepara o café da manhã para seus filhos, levando-os para o jardim de infância, fazendo compras e preparando-se para a publicação do primeiro volume de Minha Luta. Os arrebatadores primeiros dias de seu relacionamento com Linda deram lugar a uma leve irritação com a divisão dos deveres domésticos, e talvez seu confidente mais próximo seja seu amigo Geir (um dos vários Geirs no livro, isso pede que o leitor preste atenção).

Como Knausgård reconhece, a complexidade da vida permanecerá além do documentador mais escrupuloso. No entanto, a vida e a arte sempre se misturam, criando as gloriosas diferenças entre experiência e representação. Escrever sobre a vida, como observa Knausgård, foi seu meio de escapar à vida. Porém, quanto mais ele escreve sobre sua vida, mais ele é aprisionado pela autoconsciência que a empreitada exige.

No final do livro, podemos sentir seu desespero crescente para terminar a tarefa. Na página final, ele promete que nunca mais “fará algo assim” com Linda e as crianças. Seja qual for a verdade dessas palavras, sua vida agora está destinada a ficar à sombra dessa realização literária verdadeiramente monumental em seis volumes. E talvez não haja maior marca de sucesso artístico do que isso.

Com os seis livros finalmente terminados, vem a pergunta: é realmente bom?, valeu mesmo a pena? Sim, valeu a pena ler. Muito. Certamente foi um percurso muito interessante e não me arrependo dele. Knausgård encara o abismo como Bergman, encara o abismo como talvez só um nórdico tenha disposição de fazê-lo. Ele abre feridas e escreve sobre o que as causou, com honestidade comovente e dor palpável. O que mais vou lembrar são as seguintes cenas: a limpeza da casa no primeiro volume, seu total desamparo em face de seu pai dominador em A Ilha da Infância, seus amores por algumas mulheres e a vergonha da ejaculação precoce, as madrugadas e reuniões de Uma Temporada no Escuro, as perigosas bebedeiras e a tentativa de automutilação — sob álcool — de A Descoberta da Escrita, a relação com o irmão e o colapso assustador de Linda na última parte de O Fim. Ah, e a riqueza do cotidiano, pois há emoção, memórias e lembranças proustianas — até paixão — em cortar uma laranja ou calçar um sapato.

Se eu leria tudo de novo? Algumas partes, sim. Até porque já estou com saudades.

RECOMENDO MUITO.

P.S.: Clique aqui para todas as resenhas da série.

Karl Ove Knausgård

Doutor Fausto, de Thomas Mann

Doutor Fausto, de Thomas Mann

O Doutor Fausto, de Thomas Mann, além de possuir imenso valor literário, é uma espécie de bíblia reverenciada pelos amantes da música. É um daqueles livros sobre o qual alguns leitores referem-se citando o número de cada capítulo. O XXV, por exemplo, é a celebre conversa de Adrian Leverkühn com o demônio. Há o oitavo, onde o professor Kretzschmar explica brilhantemente a Sonata Op. 111, de Beethoven. Percebem? O que desejo dizer é que o Doutor Fausto é um livro citado capítulo por capítulo, tal a impressão que causa a quem se apaixona por ele. É o mesmo que fazemos com a Parábola de Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamázovi. Claro que ele pode e deve ser fruído também por quem sofre de amusia, assim como os Karamázovi pode ser lido por quem não deseja matar o pai, mas amar a música ajuda.

Narrada por um amigo, o professor Serenus Zeitblom, Doutor Fausto é a história do músico Adrian Leverkühn que, como o Fausto da lenda, vende a alma ao Demônio. Como contrapartida, ganha por alguns anos uma absoluta genialidade musical, suficiente para a composição de um conjunto de obras imortais. Publicado em 1947, este livro faz parte do período final de Thomas Mann, sendo tecnicamente seu romance mais ousado, no qual música e política, realidade e símbolo, o bem e o mal, estão entrelaçados de forma  impressionista e irrepetível. Sempre é bom ressaltar que a tradução da Nova Fronteira é do saudoso e competentíssimo Herbert Caro, que proporcionou grandes manhãs de sábado a um grupo de jovens que se encontrava na King`s Discos da Galeria Chaves em Porto Alegre para falar sobre… música e literatura. O que aprendi com este sábio não tem tamanho, mas esta é outra conversa.

Moby Dick, de Herman Melville

Moby Dick, de Herman Melville

Call me Ishmael. Assim inicia o espantoso livro do estadunidense Melville, originalmente publicado em três fascículos por uma editora londrina, no ano de 1851. Mody Dick, em meio a reflexões e narrativas sobre a vida no mar, conta a história do capitão Ahab, o qual deseja incondicionalmente matar o cachalote Moby Dick, o qual destruiu todos os barcos que tentaram caçá-lo e é responsável por arrancar-lhe uma perna.

O interesse da tripulação do Pequod é a obtenção de lucro a partir da pesca de baleias. Mas o capitão Ahab tem o objetivo particular de se confrontar com Moby Dick, o Cque, é claro, é temido pelos baleeiros. A grandiosidade polifônica que esta história de obstinação alcança supera em muito qualquer sinopse que possa se escrever. É um livro profundamente humano, profundamente irracional, a descrição de um embate homérico do homem contra o irracional, do homem contra a natureza, do homem contra suas fragilidades. É um livro que passa lenta e inexoravelmente do âmbito humano para o cósmico.

Ishmael é um jovem que decide trocar uma vida segura em terra pela aventura em alto mar. Após algumas experiências, embarca em um baleeiro de Nantucket, o Pequod. É Ishmael quem narra a viagem e a loucura do capitão tomado pela ideia de vingança. A grande baleia branca que escapa a todos os perseguidores levou-lhe a perna e a paz. Enquanto não matá-la, Ahab não desistirá, mesmo enfrentando uma tripulação que apenas quer fazer seu trabalho e voltar para casa.

A recepção ao livro foi fria. Desigual, arrastado, crossover, um romance ensaístico com problemas estruturais evidentes, dizia-se. Passadas algumas décadas, o livro foi visto como antecipatório — um dos primeiros a utilizar o hibridismo entre gêneros, a considerar a realidade como um caos caleidoscópico, a romper com as amarras do romance clássico do século XIX. A baleia branca de Melville pode ser o que quisermos que ela seja:  a morte, deus, o mal, o destino. A bordo do Pequod estamos todos nós.

Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes

Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes

Oh, mas quem é Pedro Rosa Mendes para estar numa lista de melhores livros? Bem, em primeiro lugar, o autor é um esplêndido escritor e jornalista português; em segundo lugar, minha lista não guarda ordem de precedência. Agora que já tomei esta medida profilática de me defender de meus sete leitores amantes dos grandes clássicos, vou tratar de explicar porque este livro é IMPRESSIONANTE.

Este livro é sobre coisas simples: a tranquilidade do medo e a vitalidade da morte. (…) A razão para tal projeto era a mais nobre de todas, ou seja, nenhuma em especial. As duas frases grifadas fazem parte da nota introdutória do livro. A que projeto refere-se Rosa Mendes? Em junho de 1997 ele chegou a Luanda, em Angola, às margens do Atlântico, com a ideia de atravessar a África até chegar a Quelimane, em Moçambique. No caminho, as sangrentíssimas guerras tribais e entre os países da região, minas por todo lado, além da pobreza absoluta, tanto material quanto moral. E fome. Para temperar um pouco mais a coisa, o autor descobre duas coisas em Luanda, uma boa e uma ruim. A boa: sua mulher lhe avisa que está grávida em Portugal, mas que ele terá o tempo necessário para a reportagem, pois seu rebento nascerá apenas dali a seis ou sete meses; a ruim: o prognóstico que recebe de todos com quem fala de seu plano: você não sobreviverá.

A voz do autor é serena e elegante. Não é uma história contada em ritmo frenético, o andamento é o do humanista que deseja ouvir e compreender todos os envolvidos. Estive na palestra de Rosa Mendes na Flip de 2005. Ele estava com Jon Lee Anderson — o americano falava sobre a Guerra do Iraque e o português sobre a Guerra de Angola — e Anderson fez uma pergunta curiosa ao português: Baía dos Tigres recebeu muitos prêmios destinados a livros de ficção, por quê? A resposta foi típica da pessoa modesta que pareceu ser Rosa Mendes. Ele deu muitas voltas até dizer que era em função da linguagem do livro. E, diante da insistência de Anderson, ele acabou deixando escapar: ora, é que acharam que era bem escrito e não devia misturar-se a textos jornalísticos. Anderson respondeu com a gargalhada de quem já sabia antecipadamente a resposta.

Para dar ideia do que é este livro — que reencontrei na semana passada numa estante da Siciliano –, vou resumir algumas das histórias. Como a do encontro com um técnico francês que estava no país para testar o efeito das minas. Umas explodiam assim, outras assado. Umas eram cedidas a um grupo e, puxa, matavam mesmo; então recebi outras e repassei ao lado contrário. Essas eram melhores, as pessoas ficavam efetivamente mutiladas, deixavam os caras bem feridos, davam um trabalhão às equipes. Querem mais? Que tal a história das famílias de angolanos que operam suas vacas a fim de tirar-lhe alguns bifes, depois as costuram com alguns pontos e tratam de recuperá-la, pois não podem sobreviver sem elas? Por falar em mutilações, que tais as que são feitas na genitália feminina das africanas? Mas o melhor do livro é a narrativa dos interesses envolvidos. Portugal, Estados Unidos, Cuba, Brasil (Petrobrás e Odebrecht), mais os de grupos armados como UNITA, MPLA, FNLA, FRELIMO, RENAMO, etc. Sobre tudo isso, a total falta de observadores internacionais.

É. Onde não há dinheiro, as “forças de paz” não aparecem e os direitos humanos não interessam. Não ocorre nem a venda da  “democracia salvadora” e de eleições livres. Um grande livro.

O Vermelho e o Negro, de Stendhal

O Vermelho e o Negro, de Stendhal

Este é um romance pouco falado atualmente, mas  não há justificativa para ignorar esta obra-prima de Stendhal — que tinha o nome civil de Henri-Marie Beyle. É o livro que traz um dos maiores personagens da literatura de todos os tempos: o mal sucedido alpinista social Julien Sorel. André Gide escreveu que este livro de 1830 é o primeiro romance do século XX, por estar muito à frente de seu tempo. Tem razão Gide. A trama divide-se em duas partes: na primeira parte, no interior da França, Sorel abandona o trabalho da carpinteiro ao lado do pai e dos irmãos para tornar-se acólito do padre (ou cura) Chélan. Este lhe consegue um lugar de tutor dos filhos do prefeito de Verrières, Sr. de Rênal. Sorel parece um clérigo austero e seríssimo, mas na verdade prefere a Sra. de Rênal à Bíblia. O casal é descoberto e o cura o indica para um seminário. Novas maquinações e nosso herói vai para Paris, agora como secretário do Marquês de La Mole.

A segunda parte passa-se em Paris, onde conhece Mathilde de La Mole, filha do novo empregador de Sorel. Ela fica dividida entre o crescente interesse por Sorel — em função de suas admiráveis qualidades pessoais — e sua repugnância em se envolver com um homem de classe inferior. Não contarei desfecho do romance, nem o retorno da Sra. de Rênal à história, mas sou obrigado a falar mais um pouco sobre Sorel. Ele é o símbolo do homem inteligente e talentoso que sucumbe aos privilégios do nascimento e à falta de  traços de nobreza. Havia um mal disfarçado sistema de castas na França. (Bem, e não há ainda hoje algo semelhante no Brasil?) Enquanto sonha estar sob o comando de Napoleão – seu modelo que mofava em Santa Helena – para fazer fortuna e viver grandes paixões, busca o seminário e tudo o que pensa que possa fazê-lo ascender socialmente. Lá, começa a alimentar secretamente seus desejos de grandeza, característica que mantém ao longo do romance sob várias formas. Todo O Vermelho e o Negro é um passo-a-passo do desperdício, do desaproveitamento e da aniquilação de Sorel. A arte suprema de Stendhal — uma autor objetivo e piadista que dizia gostar da prosa cartorial — está em fazer com que a época em que se passa o romance pareça atrasada em relação ao personagem. Pelo romance perpassam a frustração e a falsa alegria de quem pensa que vai vencer, o contraste entre o campo e a cidade, com suas hipocrisias distintas, a guerra, os conflitos religiosos e, é claro, o amor e suas traições. Obrigatório.

P.S. — Stendhal nunca explicou o título de seu romance. Simplesmente, não se sabe a que se refere.

Os cafés de Porto Alegre que não abrem pela manhã…

Não sei como é no resto do Brasil, mas os cafés de Porto Alegre não abrem de manhã cedo. Agora mesmo passei por um na Lima e Silva. Uma placa avisava que abriria às 12h.

Sábado, por volta das 8h30, ao caminhar pela Osvaldo Aranha, olhei para dentro da Lancheria do Parque. Estava lotada de pessoas tomando café. Até parei na calçada para olhar as torradas, o leite e o colorido dos sucos.

Não entendo.