Cravos

Cravos

Hoje, já estou já no quarto CD de obras de Bach para teclado, interpretadas ao cravo.

Eu adoro o som do cravo. Posso passar horas ouvindo, mas o cravo é um instrumento estranhamente polêmico, que divide opiniões.

Para alguns, ele sempre trará à mente o tema da Família Addams, uma associação que alguns podem considerar inteiramente correta.

O maestro Thomas Beecham comparou o som do instrumento ao barulho feito por “dois esqueletos copulando em um telhado de zinco”. O compositor John Cage comparou-o a uma máquina de costura.

Vou lhes contar…

O Menestrel de Deus – Vida e Obra de Anton Bruckner, de Lauro Machado Coelho

O Menestrel de Deus – Vida e Obra de Anton Bruckner, de Lauro Machado Coelho

Lauro Machado Coelho (1944-2018) foi um Jornalista Cultural — assim mesmo, com maiúsculas. Ele escreveu incontáveis artigos e colunas em jornais, vários livros sobre ópera, um livro extraordinário sobre Shostakovich e outros não menos sobre Sibelius, Berlioz, Liszt, Bartók e Akhmátova, além deste sobre Bruckner.

O texto de Lauro é delicioso e nos traz todo o contexto dos compositores sem cair em preconceitos pré-moldados pelas posições políticas ou estéticas do autor e outros. Seu livro sobre Bruckner é uma joia até para quem não se interessa pelo compositor.

Pois ele é uma figuraça! Em O Menestrel de Deus temos o ambiente rural e quase tacanho em que o compositor nasceu, a descrição de sua insegurança, seu alto conhecimento e seus incríveis — de modo positivo — resultados como aluno. Porém, mesmo sendo um genial improvisador ao órgão, professor e compositor, Bruckner era um ingênuo que propunha casamento às moças mais inatingíveis, era hiper religioso, anotava tudo o que fazia, gastava e recebia, e sabia quantas árvores existiam em todos os seus caminhos diários, pois as contava, além de outras esquisitices. Quando transferiu-se de Linz para Viena, quiser saber se seria aceito de volta caso fosse um insucesso em Viena.

Também ficava agradecido a quem regia sua música, a ponto de se submeter a humilhações. Halb Genie, halb Trottel (metade gênio, metade pateta) era o que se dizia dele. Podem imaginar esse homem saído da pequena Linz (Sankt Florian) para a sofisticada Viena? Pois ele adquiriu o respeito de gente como, por exemplo, Gustav Mahler. Sua música foi adotada por Hitler como símbolo da força e da pureza arianas, mas logo os historiadores descobriram que, Bruckner, devoto de Richard Wagner, não era nem um pouco antissemita e o nazismo desgrudou dele assim que a guerra acabou.

O livro de Lauro Machado Coelho passa por tudo isso: por toda a biografia deste homem genial e inseguro, por suas influências e por quem ele acabou influenciando. Temos toda sua formação como músico, seus esforços para fazer aceitar a sua obra – inclusive revisando e deixando revisar tantas vezes as suas sinfonias… Mas também da obra única de um homem que, animado por uma fé sem conflitos em seu “bom Senhor Deus”, deixou uma obra esplêndida.

Ou seja, para quem se interessa por música, este livro é um banquete.

Lauro Machado Coelho

Bruckner e Hitler

Bruckner e Hitler

Anton Bruckner tem um fato post mortem muito curioso. Adotada por Hitler, sua música tornou-se um autêntico símbolo do nazismo. Hitler achava sua música muito poderosa, séria, pura e, portanto, ariana. Só que Bruckner, ao contrário de Wagner e Orff, “destornou-se” muito rapidamente.

Imaginem que o Adágio da Sétima Sinfonia foi o tema escolhido por algumas emissoras de rádio remanescentes para anunciar a morte de Hitler. Imaginem que Hitler entrava nos Congressos sob fanfarras da Terceira Sinfonia…

Ocorre que o velho Bruckner — morto em 1896 — entrou nessa de gaiato, pois nunca foi antissemita, mesmo sendo wagneriano de quatro costados. Pelo contrário, muitas de suas obras foram estreadas por maestros judeus, a convite do compositor, além de ser amigo do jovem Gustav Mahler.

Os historiadores da música trabalharam bem nessa.

A Paixão Segundo João, de Johann Sebastian Bach — 300 anos

Hoje é o dia em que a Paixão Segundo João, de Johann Sebastian Bach, completa 300 anos. Digo Paixão Segundo João traduzindo à perfeição o título da obra. A outra grande Paixão de Bach também chama-se Paixão Segundo Mateus e não “Segundo São Mateus”.

A obra é uma representação dramática do texto contido no Evangelho de João, interpretada por coro, solistas e orquestra dentro de árias, corais e recitativos. O dia de sua primeira apresentação, em 7 de abril de 1724, foi a sexta-feira da Semana Santa daquele ano.

Ambas, Mateus e João, são obras belíssimas, perfeitas e insuperáveis em seu gênero. Porém, se eu tivesse que escolher uma delas para levar para a ilha deserta, levaria a aniversariante de hoje, que é menos monumental e mais moderna.

Bach sempre teve notáveis intérpretes e, dentre os vivos, ninguém supera a gravação abaixo, que será postada hoje no PQP Bach.

Eu e Herbert Caro

Eu e Herbert Caro

Conheci o Dr. Herbert Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já tinha mais de 70 anos. Lembro que tinha 51 a mais do que eu. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a amizade e o carinho. Era um alemão que dava de presente um disco e dizia com meio sorriso: “Para aplacarr tua ignorrância”. E se alguém faltasse àqueles encontros, ele reclamava.

Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável mesmo!) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro). Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: de estão-brrincando-com-algo-que-é-sagrrado-parra-mim. Depois ria conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.

Inesquecível foi o sábado quando chegaram os 3 LPs com últimas Sonatas de Beethoven tocadas por Maurizio Pollini, pianista falecido há 4 dias. Ele brandia os discos e dizia que aquele monumento não serria esquecido tão cedo. Tinha razão.

Creio que todas as vezes que vi o Doktor Carro foi na loja de discos, a exceção das palestras que ele deu no Goethe sobre a pintura dos mestres holandeses. Ele sabia tudo e ficava irritado quando sua esposa projetava uma página ou um detalhe errado. Não a ofendia, mas ficava visivelmente contrariado.

Outra característica dele era o fato de odiar o calor de Porto Alegre. “A canícula” como ele dizia. Em todos os anos de sua velhice, viajava dia 1° de dezembro e retornava ao final de março quando nossa cidade voltava a ficar suportável. (Eu adoraria poder fazer isso…)

É óbvio que me sinto nostálgico e gratíssimo a ele pelas lições. Sei que muitas opiniões que solto no blog PQP Bach e no Notas de Concerto da Ospa são do Doktor Carro e não minhas.

Maurício Pollini | 5.1.1942-23.3.2024

“Não dê ouvidos à sua mãe”, meu pai sussurrava para mim quando ela criticava Pollini pelo que ela descreveu como excessivo perfeccionismo. Para o pai, arquiteto e compositor, a abordagem estrutural de Pollini revelou novas verdades até mesmo sobre os cavalos de guerra mais familiares, tornando qualquer peça musical uma parte essencial do nosso tempo.

Com Pollini as coisas nunca foram simples – Chopin tornou-se o arquiteto musical, Stockhausen o poeta, Beethoven o filósofo. Muitos de nós nos tornamos melhores ouvintes e intérpretes. Que ele descanse em paz.

Vikingur Ólafsson

Mozart, o K. 515 e o som do trompete

Mozart, o K. 515 e o som do trompete

Esta manhã, estava ouvindo o Quinteto K. 515 de Mozart na Rádio da Ufrgs, admirando a proeminência das violas. Contrariamente à maioria dos compositores, ele admirava o instrumento e muitas vezes o assumia ao tocar em quartetos de cordas.

Mozart aparentemente não gostava era do violoncelo, mas o que detestava mesmo era o trompete.

Quando criança, quando ouviu pela primeira vez um trompete de perto, ficou nauseado e vomitou.

Coisas das sensibilidades dos gênios.

Newsletter de 14 de dezembro de 2023

Newsletter de 14 de dezembro de 2023

Olá!

Estamos retomando nossa newsletter lembrando você de que temos a solução para quem foge de shopping lotado e precisa comprar um presentinho de final de ano — nem que seja para si mesmo.

A Bamboletras tem livros para todos os bolsos e mais: neste fim de semana haverá dois recitais sen-sa-cio-nais cujos ingressos são a compra de um livro para cada um deles. Ou seja, você vê um baita espetáculo e ainda fica com um livro! Onde mais tem isso?

Confira abaixo porque tem muita coisa — livros e música!

Este é o primeiro recital:

Homenagem ao Centenário do Compositor Bruno Kiefer

I – Canção de garoa (1957/76)
II – Canção de inverno (1957/76)
III – Canção para uma valsa lenta (1958/76)
para voz aguda e piano – poemas de Mário Quintana

IV – Terra Selvagem (1971), para piano

V – Saudade (1956), para clarinete e piano

VI – Monólogo (1981), para clarinete solo

VII – Notas Soltas (1978), para flauta solo

VIII – Música para Dois (1984/1985), para flauta e clarinete

– Traquinice
– Pequena Fuga
– Espirituoso

IX – Pobre velha música! (1957/76)
X – No ouro sem fim da tarde morta (1958/76)
para voz aguda e piano – poemas de Fernando Pessoa

Soprano: Luciana Kiefer (I, II, III, IX e X)
Flauta: Henrique Amado (VII e VIII)
Clarinete: Diego Grendene de Souza (V, VI e VIII)
Piano: Guilherme Goldberg (I, II, III, IV, V, IX e X)

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E este é o segundo:

Recital em Fá – Pela Saúde da Terra 🌎

BACH, J. S.
Concerto Italiano em fá maior
Allegro / Andante / Presto

MOZART, W. A.
Sonata Nº 12, K. 332 em fá maior
Allegro / Adagio / Allegro assai

BEETHOVEN, L. von
Sonata Op. 57, Appassionatta, em fá menor
Allegro assai / Andante con moto / Allegro ma non troppo

PROKOFIEV, S.
Sonata, Op. 1, em fá menor
Allegro

André Carrara, piano

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E é claro que agora vamos deixar três dicas de livros para você.

A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr — Esse livro foi indicado pelo Chico Buarque, que disse que não sabia como continuaria a escrever após ler esta maravilha. Não bastou? Bem, O livro recebeu o prêmio Goncourt e foi traduzido para mais de trinta idiomas. Em 2018, Diégane Latyr Faye, um jovem escritor senegalês, descobre em Paris um livro mítico publicado em 1938: O labirinto do inumano. Seu autor, o misterioso T.C. Elimane, desapareceu sem deixar vestígios depois que uma escandalosa acusação de plágio mobilizou a comunidade literária francesa dos anos 1940. De Dakar a Paris, passando por Amsterdam e pela Buenos Aires dos salões literários das irmãs Ocampo, que verdade o espera no centro deste labirinto?

Livros de Annie Ernaux — Aqui você pode escolhar entre os vários livros da autora, publicados desde que ela recebeu o Nobel. Todo mundo que lê um, acaba lendo mais um e mais um. Experimente! Os que mais são elogiados? Ora, Os Anos, A Vergonha, O Acontecimento, O Lugar, A Outra Filha, etc. Sua obra descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos — principalmente os femininos — da memória pessoal. A autora é um referencial inquietante de coerência, rompendo não apenas com tudo que podia, no passado, ser escrito por mulheres, como invadindo questões de classe. Imperdível!

Oblómov, de Ivan Gontcharóv – Desconfie de quem diz conhecer os russos e não conhece a obra-prima Oblómov. O livro trata de um indolente latifundiário russo que passa seus dias fazendo planos para enfrentar seus muitos e graves problemas, principalmente os relativos a sua fazenda, que cada vez mais gera menos benefícios e onde é claramente roubado por seu administrador e servos. Só que ele não age. Oblómov é um Ulisses de roupão que opta por ficar imóvel, na contracorrente dos eventos. Quando deita no sofá, sente-se protegido de toda a grosseria e da confusão que rege as ações humanas. Porém, sua atividade mental é grande. Não nasceu para ser um gladiador na arena, mas um pacífico espectador que deixa a inércia guiar sua vida. Só não pense que é um livro monótono. Bah, aí é que você se engana!

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Ah, temos convênio com o estacionamento que fica aqui logo depois, no número 133 da Venâncio.

Karajan: o maestro super ego

Karajan: o maestro super ego

MAIS ACLAMADO REGENTE DO SÉCULO 20, HERBERT VON KARAJAN, QUE ESTARIA FAZENDO CEM ANOS, ESTERILIZOU A IMAGEM DA MÚSICA ERUDITA PARA AS FUTURAS GERAÇÕES, DIZ CRÍTICO INGLÊS

NORMAN LEBRECHT

Quando acordo ao som da música de Herbert von Karajan [1908-89] no rádio, esfrego os olhos para ter certeza de que Mao Tse-tung não continua no poder e a União Soviética deixou mesmo de ser uma potência mundial.

Houve um momento, definido pela forte presença de ditaduras, no qual Karajan parecia ser o fundo musical inevitável. Nos anos 70 e 80, ele era onipresente, uma presença cultural imponente cercada por admiradores nos mais altos postos. Afinal, era tudo que um político decaído aspirava ser: ultra-elegante e onipotente.

O centenário de seu nascimento, no último dia 5, está sendo celebrado por um dilúvio de produtos de uma indústria musical que ele conduziu à prosperidade e depois lançou à quase ruína.

Se o mercado de música clássica convencional se estreitou imensamente nos cinco últimos anos, isso é consequência inevitável dos excessos da era Karajan. Se a própria música clássica é vista por muitos (injustamente) como elitista, antiquada e retrospectiva, deve-se agradecer a Herbert von Karajan por tê-la transformado em uma forma de entretenimento seguro, empresarial, apresentado em festivais cujos preços são proibitivos ao espectador comum.

Trata-se de afirmações que mal requerem prova, mas continuam a existir nostálgicos que defendem a “grandeza” de Karajan em certas seções da imprensa.

O termo não significa nada em termos críticos, e até mesmo alguém um dia ousado como Simon Rattle se sente obrigado, à frente da Filarmônica de Berlim, que por tanto tempo foi dirigida por Karajan, a homenagear o velho tirano no ano de seu centenário. Quem sabe reviveremos também o culto a Brejnev [1906-82, presidente da União Soviética].

Karajan, como diretor musical e negociante escuso, dominou o cenário em Berlim e Salzburgo dos anos 1950 em diante, pagando cachês extravagantes a seus amigos e usando os ensaios de sua orquestra, cujos salários eram pagos pelo Estado, como sessões de gravação de discos comerciais.

Karajan enriqueceu de forma desmedida e levou muitos de seus músicos à prosperidade com ele, deixando uma fortuna avaliada em US$ 500 milhões [R$ 844 milhões], estruturada de maneira a evitar impostos, e uma pilha de 900 discos.

Ele manipulou a indústria fonográfica, dividindo para conquistar, sempre trabalhando com dois dos grandes selos e cortejando um terceiro. Em dado momento, ele respondia por um terço da receita da Deutsche Grammophon (DG), a maior gravadora mundial de música clássica.

Beleza artificial

Quase tudo o que regia soava muito liso, mais ou menos como camisetas de algodão que passaram por um banho de amaciante de roupa.

Não importa que estivesse executando Bach ou Bruckner, “Rigoletto” [de Verdi] ou uma rapsódia, a música acompanhava uma linha inconsútil de beleza artificial que devia menos à inventividade do compositor do que à intenção do regente de manufaturar um produto reconhecível.

Criado em Salzburgo depois da Primeira Guerra Mundial -uma cidadezinha que se tornou a segunda maior do Estado austríaco encolhido pela derrota-, Karajan aprendeu os perigos de viver em posição de fraqueza.

Quando Hitler subiu ao poder, em 1933, ele aderiu ao Partido Nazista não só uma como duas vezes, e foi recompensando com um posto oficial em Aachen -o mais jovem diretor musical do Reich.

Não demorou para que começasse a ser elogiado pelos jornais controlados por Goebbels como “Das Wunder Karajan” (o milagre Karajan), em contraste com Wilhelm Furtwängler, maestro que não merecia a confiança política do regime. Karajan aprendeu com Goebbels como dividir para governar, entre outras artes obscuras da política.

Exibiu seus talentos sombrios na Paris e na Amsterdã ocupadas, servindo para todos os efeitos como o menino de ouro do nazismo.

Industriais ricos

Depois da guerra, foi suspenso de apresentações públicas enquanto suas conexões com o nazismo eram investigadas, mas um executivo da gravadora EMI, Walter Legge, o levou a Londres para conduzir a orquestra Philharmonia, composta por soldados britânicos recentemente desmobilizados.

O relacionamento explosivo entre maestro e orquestra duraria uma década, deixaria Karajan bem treinado nas artimanhas políticas e estimularia sua propensão ao conflito.

Depois da morte de Furtwängler, em 1954, ele se tornou maestro perpétuo em Berlim e usou a destruída capital do Reich como ponto de partida para sua expansão imperial. O festival de sua Salzburgo natal foi transformado em um evento quadrimestral, freqüentado por industriais ricos vestindo smokings, aspirantes a senhores do universo.

Conservadorismo

Nenhum músico da história procurou o poder que Karajan obteve com sua pompa, um poder que se estendeu, por emulação ou submissão, a muitas salas de concertos e festivais do planeta. Reacionário por natureza, ele sempre se manteve fiel ao romantismo convencional, excluindo a música atonal e os estilos de execução posteriores.

Christoph von Dohnányi chegou a acusá-lo de destruir a arte da regência na Alemanha, ao impor à disciplina, de modo tão vigoroso, seu gosto estreito.

Nikolaus Harnoncourt, violoncelista na orquestra de Karajan em Viena, foi excluído de Berlim e Salzburgo depois que começou a reger grupos que utilizavam instrumentos de época, de uma maneira que contrariava a ortodoxia proposta e imposta por Karajan.

A cada vez que gravava um ciclo de Beethoven -e o fez por cinco vezes-, reduzia a chance de interpretações alternativas. Sua hegemonia era autocrática e não admitia oposição.

Quando os músicos de Berlim se recusaram a admitir a clarinetista Sabine Meyer na orquestra, porque não queriam tocar com uma mulher, ele se transferiu para a orquestra rival, a Filarmônica de Viena.

Insatisfeito com a DG, ele estava conspirando para se transferir à Sony na época em que morreu. Karajan só era leal a si mesmo. Seu amor à música estava confinado à maneira como ele a executava.

Imenso charme

O poder dele, ao contrário do que acontecia no caso de Brejnev, no entanto, se baseava em um imenso charme. Muitos regentes que foram vilipendiados por Karajan durante anos, como Daniel Barenboim, se sentiram tentados a esquecer as mágoas em anos posteriores, quando o soberbo maestro os abordou de forma lisonjeira.

Na única ocasião em que me convidou para uma conversa, em 1985, decidi recusar a entrevista, preferindo observá-lo à distância, como a maioria dos músicos fazia. Ele era capaz de gentilezas pessoais tocantes em benefício de seus músicos, mas também de crueldades injustificadas, como a de cortar completamente o contato com um velho amigo sem que houvesse motivo aparente.

O passado nazista de Karajan não é incidental, ainda que ele não estivesse envolvido na promoção de holocaustos. Não há suspeita de que tenha cometido crimes raciais, e sua carreira no Reich encontrou percalços depois de 1942, quando se casou com uma rica herdeira que tinha ancestrais judeus.

O que ele adotou do nazismo foi um conjunto de valores que passou a aplicar à inocente e ineficiente indústria da música de maneira impiedosa e incansável. Se há uma lição que ele aprendeu com os nazistas é a da superioridade da música alemã e o imperativo do domínio mundial. Ele demonstrou que música era, acima de tudo, uma questão de poder.

Muita gente se deixou impressionar, e essa admiração continua. Alguns, como eu, viam sua atitude como desfavorável à música. Para mim sempre foi difícil ouvir Karajan no rádio com isenção.

A “celebração” de seu centenário é uma tentativa final da indústria fonográfica de extrair lucros de um leão morto. Algumas das celebrações são bancadas por subsídios ocultos oferecidos pelo riquíssimo e muito bem organizado espólio do maestro.

Mas é um tanto surpreendente descobrir que a Philharmonia, que nunca o aceitou integralmente, tenha decidido executar um tributo a Karajan.

Um aspecto do debate sobre Karajan, proposto por Dominic Lawson, é se “deveríamos aderir à celebração da vida de um ex-nazista” -e de um homem que jamais renegou suas afiliações passadas. Lawson ampliou a questão para discutir se um mau homem pode fazer boa arte e como devemos nos relacionar com a arte proveniente de fontes maculadas.

Essa questão, relevante quanto a Wagner, importa pouco no caso de Karajan, que jamais criou arte original. Determinar se Herbert von Karajan era um bom ou mau homem é irrelevante. Foi um brilhante organizador, capaz de moldar uma orquestra para executar seu som pessoal, uma capacidade que ele explorou ao extremo.
Karajan infligiu seu ego ao mundo da música clássica de forma que esmagou a independência e a criatividade e prejudicou a imagem da música diante das futuras gerações. Não é o mau homem que deveríamos deplorar, mas o legado reacionário e de exclusão que está sendo “celebrado”.

Para os amantes da música, não há muito a comemorar.

Quando a festa do centenário acabar, a cortina descerá para sempre sobre uma vida reprovável, carente de ideias novas e que não afirmou nenhum valor humano digno. Karajan está morto, e a música passa muito melhor sem ele.

Notas de Concerto — 16 de outubro de 2023

Notas de Concerto — 16 de outubro de 2023

Shostakovich nasceu em 1906, enquanto Stravinsky veio ao mundo em 1882. Ou seja, Stravinsky nasceu 24 anos antes. As obras mais famosas deste – A Sagração da Primavera, Pétrouchka e O Pássaro de Fogo – foram escritas entre 1910 e 1913, quando Shostakovich era uma criança.

Stravinsky foi o russo cosmopolita. Quando ocorreu a Revolução de 1917, estava em Paris, onde estreara suas principais obras com enorme sucesso e escândalo. Lembrem que quando da Revolução, Shostakovich tinha 11 anos.

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A conselho de Rimsky-Korsakov, o compositor russo mais importante de seu tempo, Stravinsky decidiu não entrar no Conservatório de São Petersburgo, em vez disso teve o próprio Korsakov como tutor privado. Diga-se de passagem que Rimsky-Korsakov foi um segundo pai para ele.

Em 1909, o seu Fogos de Artifício foi executado em São Petersburgo, estando presente Serguei Diaghilev, diretor dos Ballets Russes em Paris. Diaghilev ficou impressionado o suficiente para encarregar Stravinsky de algumas orquestrações e para incentivá-lo a compor uma partitura completa de ballet. Isto resultou em O Pássaro de Fogo e em Paris.

Em 1919, aos 13 anos, Shostakovich foi admitido no Conservatório de Petrogrado, então chefiado por Glazunov, que acompanhou seu progresso de perto. Em 1925, aos 19 anos, matriculou-se em aulas de regência.

Em 1925, ainda aos 19 anos, escreveu uma Sinfonia como “peça de formatura”. Shostakovich aspirava apenas tocá-la em particular com a orquestra do conservatório e se preparava para ele mesmo reger. Porém, os professores tiveram suas atenções chamadas pela obra e esta acabou sendo estreada publicamente no final de 1925 pela Orquestra Filarmônica de Leningrado. (1914: Petrogrado, 1924: Leningrado)

É claro que Stravinsky e Shostakovich foram dois grandes talentos precoces, apesar de personalidades inteiramente diferentes. O primeiro era um homem do mundo, um personagem do jet set internacional, o segundo era bem mais retraído e torturado, apesar de saber como ninguém ser sarcástico.

Há uma historinha curiosa entre ambos. Stravinsky tinha enorme habilidade social. Em sua primeira visita à União Soviética, em 1963, após mais de 50 anos de ausência, promoveram um evento social para o qual Shostakovich foi, obviamente, convidado. Os grandes gênios finalmente se encontrariam. Como Shostakovich era silencioso por natureza — e ainda mais quando observado pela KGB –, Igor ficou matutando sobre como trazê-lo para a conversa geral. E, inteligente, procurou em sua mente algo que ambos certamente detestariam. E encontrou Puccini! A princípio, ao ser citado o nome do italiano, Shostakovich fez uma cara contrafeita, mas depois a dupla conversou a noite inteira e não só sobre o italiano. Como veem, o ódio pode ser motor de coisas boas.

Outro fato digno de nota é que na mesa de trabalho de Shostakovich havia fotos de Stravinsky. Ele era fã do cara.

A música de ambos têm poucos pontos de contato. Stravinsky teve seu período russo, depois um longo período neoclássico – onde revisitava, a seu modo, a música de Mozart e Bach e seus contemporâneos, principalmente Pergolesi. Nesta fase, o compositor abandona as grandes orquestras exigidas pelos balés, voltando-se para os instrumentos de sopro, o piano, o coral e obras de câmara. Sua última fase foi a serial, incluindo o dodecafonismo de Schoenberg.

Já a evolução de Shostakovich apenas teve as quebras ordenadas pelo Partido. Algumas vezes, foi obrigado a escrever peças dentro das normas do Realismo Socialista, mas estas não alteraram a espinha dorsal de sua obra. Aliás, ele costumava ficar subitamente pouco inspirado quando compunha tais obras e nenhuma delas tem parte importante de seu repertório.

Mas lembrem que Shostakovich era um patriota e criou espontaneamente obras notáveis inspiradas pelo momentos como a Sinfonia Nº 7, Leningrado, um hino à resistência soviética. Mas também condenou as mortes em Babi Yar (em Kiev, Ucrânia) na Sinfonia Nº 13, onde milhares de judeus foram assassinados pelos nazistas com a ajuda soviética, ao que tudo indica.

Mas vamos às obras.

O Concerto Nº 2 para Violoncelo e Orquestra, Op. 126, é de 1966, ou seja, da última década de vida de Shostakovich. Ele tinha novamente caído em boas graças oficiais após viver e suportar várias vezes o ciclo de denúncia seguida de reabilitação. A URSS homenageou-o com múltiplas medalhas de Estado no concerto em que este concerto foi estreado. Era a data de aniversário de 60 anos do compositor. Mesmo que tenha sido inicialmente concebido como uma Sinfonia, o Concerto, dedicado a Rostropovich, é extraordinário, alternando passagens da maior tristeza com trechos bizarros e danças fantásticas. O final é típico do compositor, sendo especialmente sarcástico e inesperado.

Shostakovich dedicou seus dois concertos para violoncelo para Mstislav Rostropovich. O Primeiro, concluído em 1959, é uma obra espinhosa repleta do recorrente motivo DSCH (as iniciais de Shostakovich transferidas para a notação musical) e citações zombeteiras à canção favorita de Stalin.

O Segundo Concerto para Violoncelo foi composto entre a 13ª e a 14ª Sinfonias, ambas muito críticas, cantadas e com textos provocativos.

O primeiro movimento (Largo) começa com a voz lamentosa do violoncelo solitário. Uma melodia melódica triste, abre a porta para uma conversa musical sombria e cada vez mais intensa. O segundo tema chega como uma dança bizarra e sardônica iniciada pelo xilofone e instrumentos de sopro. Então, a música se desintegra em uma cadência de violoncelo solo, pontuada por violentos golpes de bumbo.

O tema principal do segundo movimento (Allegretto) é uma citação grotesca de uma canção de Odessa. Há uma alegria amarga nas melodias de sabor judaico nas últimas obras de Shostakovich. Depois temos um scherzo frenético e demoníaco que nos conduz diretamente para o movimento final. Os compassos finais desaparecem com um “tick-tock” incessante na percussão. Ficamos com o absurdo pousado em nosso colo.

Pétrouchka é um balé burlesco de Igor Stravinsky composto em 1911 e revisado em 1947. Foi montado pela primeira vez pela companhia russa de Serguei Diaguilev no ano de sua primeira versão. Nijinski encarnou Pétrouchka. A história é sobre um fantoche tradicional russo que é feito de palha com um saco de serragem como corpo e que ganha vida e capacidade de amar. A obra sobrevive perfeitamente como peça de concerto e, apesar de complexa para qualquer orquestra, é deliciosa de ouvir, com seus vários e atraentes temas.

O fervilhamento de timbres, de melodias de inspiração folclórica, a riqueza rítmica estão entre os elementos que compõem o cenário onde passa, dançando, um grupo de bêbados, e aparecem, em delicado contraste, um tocador de realejo, uma dançarina que marca o compasso com a ajuda de um triângulo … É nesta cena de rua, caleidoscópica, que surgem as personagens centrais da história. Anunciado pelos tambores, um teatro de marionetes atrai a atenção do público.

No balé, Petrouchka é um dos personagens de um teatro de marionetes, juntamente com uma bailarina e um mouro.

Tudo começa na Feira de Carnaval de São Petersburgo, no início do século XIX, onde vários grupos de artistas se apresentam.

Um mágico encena um pequeno teatro de marionetes. Uma cortina se abre e revela os três bonecos, que ganham vida e dançam em seus eixos quando o mágico toca sua flauta. Então, em um passe de mágica, para espanto dos presentes, os bonecos saem de seu palco e dançam no meio do povo.

Na segunda cena, já no quarto de Petrouchka, vemos que o boneco possui emoções humanas, e que ele encontra consolo para sua condição de marionete no amor que sente pela bailarina. A bailarina entre em cena e o boneco se declara para ela, mas é rejeitado.

Na terceira cena, vemos o Mouro em seu quarto, e o mágico coloca a bailarina para seduzi-lo, depois colocando Petruchka no quarto também. Petruchka tenta enfrentar o mouro, mas acaba sendo perseguido por ele.

Na cena final, de volta à festa, as pessoas notam barulhos estranhos no teatro de marionetes, de onde sai Petruchka perseguido, até ser alcançado pelo Mouro que o golpeia com a espada.

A multidão entra em pânico, a polícia pede esclarecimentos, e o mágico justifica que nada errado foi feito, que Petruchka era apenas um boneco de palha. A polícia fica satisfeita com a explicação e, junto da multidão, esvaziam o palco, deixando apenas o mágico segurando o boneco.

O mágico vai voltando para dentro do teatro quando nota, em cima do mesmo, o fantasma de Petrouchka, se sacudindo e chamando sua atenção, sacudindo seu punho.

Este que vos escreve, falando.

Brian May sobre John Lennon

O Queen sempre reverenciou os Beatles, pois os tinham como uma grande inspiração no mundo da música. Quando John foi assassinado em 8 de dezembro de 1980, a banda tocou uma versão de “Imagine” como homenagem, na noite seguinte, em seu show em Londres, e mais 3 vezes naquele mês. Neste texto enviado para a Classic Rock, Brian fala um pouco da importância do ídolo em sua vida.

POR QUE EU AMO JOHN LENNON, POR BRIAN MAY

“Eu não tinha permissão para ir ver os Beatles quando eu era criança. Meus pais pensavam que os shows de música pop eram frequentados pelo tipo errado de gente. Então, eu nunca pude ver o maior fenômeno do século 20 ao vivo. Mas a partir do momento em que ouvi ‘Love Me Do’ no rádio, eu sabia que esse grupo de garotos era mágico…que eles expressavam toda a minha alegria e anseios escondidos quando adolescente, lutando para achar seu caminho no mundo dos anos 60.

É impossível duvidar que a combinação dos quatro rapazes fosse única, uma peça mágica em um milhão – o grupo de rock perfeito para inspirar todos os outros grupos de rock, e reescrever a estrutura não apenas da música popular, mas de toda a cultura dos jovens. Mas, com o passar do tempo, tornou-se evidente que John Lennon estava no coração desse poder impressionante.

Ao lado do seu amigo e gênio melódico Paul McCartney, o fogo espiritual emergente de George Harrison e, sem dúvidas, o baterista mais original de sua época, Ringo Starr, foi o ácido Lennon que manteve os Beatles firmemente distantes do comum, e nos extremos da criatividade perigosa.

Não há espaço suficiente aqui para eu falar sobre todas as obras-primas de Lennon, mas confira ‘Tomorrow Never Knows’, ‘Lucy In The Sky With Diamonds’ e depois ‘I am The Walrus’ e ‘Strawberry Fields Forever’ e me diga se você não fica espantado…nunca foi criado nada como esses trabalhos em toda a história.

Lennon, de um adolescente francamente nada glamoroso, sempre emburrado, tornou-se o cara mais cool do mundo. Ele foi cool o suficiente para escrever a melhor música pop adolescente de todos os tempos (na minha humilde opinião, etc..) ‘I Want To Hold Your Hand’; abraçar a psicodelia e torná-la musicalmente válida; deixar os Beatles quando sentiu que tudo se tornara um jogo superficial do qual ele não queria mais participar; e depois colocar todo o seu ser na promoção da paz em seu trabalho solo, produzindo quase certamente os maiores, mais ousados e reveladores álbuns solo já feitos, incluindo músicas como ‘Jealous Guy’, a dura ‘God’, e o hino imortal para a humanidade, ‘Imagine’.

Lennon, para todos nós da pós-revolução (seja lá qual tenha sido…) músicos, ele foi, é, e sempre será …ISSO. Não digo mais nada.”

Fonte: loudersound.com

Notas de Concerto — 23 de setembro de 2023

Notas de Concerto — 23 de setembro de 2023

O concerto de hoje reúne três notáveis exemplos do período romântico do século XIX. As três obras foram escritas num período que compreende menos de 30 anos.

Giuseppe Verdi | Abertura “A Força do Destino”

Como primeira peça, temos a Abertura da ópera A Força do Destino (1862), de Verdi. A ópera – que é excelente — é bem típica da época e atualmente poderia ser um drama televisivo daqueles bem SBT. Aliás, esse título não costuma dar muito certo. Só deu certo na grande obra de Verdi.

A Força do Destino já foi novela mexicana…

Já foi novela turca…

Já foi filme norte-americano…

Mas o título original deste último era An Officer and a Gentleman.

E é uma grande obra de arte de Verdi.

Leonora, ou Dona Leonora, ama e é correspondida por Dom Álvaro, um jovem de origem nobre mas de sangue mestiço. Provavelmente trata-se de um peruano… Então, tal amor puro é desfeito pela família da moça, pois o pai e o irmão dela não admitem o casamento. Em determinada cena do primeiro ato, durante uma discussão onde as partes sacam suas armas, uma arma dispara quando o apaixonado atira seu revólver longe em sinal de rendição, acertando o pai de Leonora, que a amaldiçoa e morre. A moça vai para um convento. Pensa que Don Alvaro morreu ou voltou para a América. Donna Leonora pede asilo num convento que, segundo a regra, não podia acolher uma mulher. Há um lindo coral de frades aceitando Leonora no mosteiro. Por ordem do Padre guardião, os frades terão de protegê-la porque a sua vida está em perigo, já que seu irmão Don Carlo está determinado a matá-la para lavar a honra. A mulher ficará hospedada no convento e isso deve ser mantido em segredo.

Tudo é extremo: além do irmão que deseja vingar o pai, há personagens mudando de nome, homens disfarçados, há o irmão de Leonora encontrando-se com um Dom Alvaro disfarçado no exército, e os dois se tornando amigos sem saber quem é quem. Um se fere numa batalha e outro o salva, há mulheres escondidas sob trajes masculinos e final trágico, acabando tudo em sangue.

Acham que eu ridicularizei Verdi?

Não!

Quando recebeu o convite para escrever uma ópera para São Petersburgo, Verdi começou por propor como tema “Ruy Blas” de Victor Hugo, o que não agradou à censura do czar Alexandre II que o considerou pouco respeitoso para com a monarquia. O compositor então foi fazer o de sempre, foi buscar um melodrama de 1835 de Angelo Perez de Saavedra que obtivera algum sucesso quando da estreia em Teatro. A qualidade do enredo era medíocre, mas estava recheado de situações dramáticas, o que agradou ao compositor. Aliás, em 1861, Verdi já era um homem com grande experiência do ofício, e sabia que nem sempre as melhores peças de teatro davam uma boa ópera, já que, em princípio, as grandes obras teatrais se bastam a si próprias, e que o elemento “música” se revela frequentemente como um elemento redutor. Saavedra iria funcionar. Entre junho e novembro, Verdi escreveu a música. A estreia teve lugar um ano mais tarde, no dia 10 de novembro, no Teatro Imperial de São Petersburgo.

Hitchcock também criava seus filmes da literatura popular, nunca de grandes livros. Não esqueçam disso. Ele fazia questão que os livros fossem bem ruins. Sério!

Bem, a Ospa tocará hoje a Abertura de A Força do Destino. Como é habitualmente uma Abertura de ópera romântica?

Ora, a Abertura de A Força do Destino, por exemplo, está perfeitamente identificada com o clima psicológico daquilo que preludia. É uma abertura fortemente dramática, formando o famoso pot-pourri, ou seja, é uma peça musical onde se condensam os principais temas da ópera, como o do Destino, o de amor de Leonor, etc. É uma espécie de síntese prévia da obra que virá. Desse gênero são as aberturas de Wagner, de Carlos Gomes e, é claro, de Verdi.

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Franz Liszt | Concerto para Piano nº 1, S. 124
I – Allegro maestoso
II – Quasi adagio
III – Allegretto vivace
IV – Allegro marziale animato

Já o Concerto para Piano Nº 1, de Liszt, foi apresentado pela primeira vez em 1855. Franz Liszt compôs seu Concerto ao longo de um período de 26 anos. O concerto é estruturado em quatro movimentos e tem uma duração de aproximadamente 20 minutos. Estreou em Weimar no dia 17 de fevereiro de 1855, com Liszt ao piano e Hector Berlioz regendo.

Liszt foi o primeiro artista a ser recebido aos gritos de admiradora(e)s à beira de desmaiarem. Era um ídolo e os fãs colecionavam lembranças suas a qualquer custo, valendo desde autógrafos até cabelos, lenços, luvas, pontas de charuto, etc. Mas não era apenas carisma, sobrava talento ao compositor, como este concerto demonstrará. Lisztomania ou febre de Liszt foi o intenso frenesi motivado pelo compositor húngaro durante suas apresentações. A primeira vez em que se registrou tal frenesi ocorreu em Berlim em 1841, tendo o termo sido criado mais tarde por Heinrich Heine num folhetim escrito por ele em 25 de abril de 1844, ao discutir a temporada de concertos daquele ano em Paris. A Lisztomania foi caracterizada por níveis elevados de histeria de fãs, comparável ao tratamento dado às celebridades da música na atualidade – mas em um tempo não conhecido por tal agitação musical.

O Concerto para Piano Nº 1 de Liszt, é descendente direto do Concerto Imperador, o Nº 5 de Beethoven, no que diz respeito à maneira como o piano-solista se relaciona com a orquestra, com muita bravura. Aparenta-se com Paganini pelo brilho de super-virtuosismo da parte solo. Mas Liszt propõe, com esta obra, uma maneira totalmente inovadora de Concerto. Ele afasta-se totalmente da forma clássica mozartiana (dos três movimentos) e cria uma espécie de Poema Sinfônico — sua especialidade — ininterrupto tendo o piano como líder a conduzir seus 4 movimentos. Foi moderníssimo para a época, tanto na parte do piano quanto na orquestra. Vocês vão notar a pouca participação da orquestra nesta peça. Ela troveja e abre espaço aos solos do piano, apenas o acompanhando discretamente. Depois, troveja novamente. Se pensamos que, mais tardiamente no século XIX, um Brahms e um Tchaikovsky continuaram adotando o esquema clássico vivo-lento-vivo, chegaremos à conclusão de que Liszt fora de tal forma original que seus dois Concertos permanecem como caso único na literatura pianística do Romantismo.

Como disse, temos 4 movimentos encadeados sem interrupção, como uma grande Fantasia ou Rapsódia — lembrem da Rhapsody in blue — ou um Poema Sinfônico.

Henri Lehmann (1814-1882). “Franz Liszt (1811-1886), compositor e pianista húngaro (1839)”. Paris, musée Carnavalet.

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Felix Mendelssohn | Sinfonia nº 4 em Lá Maior, “Italiana”, Op. 90
I – Allegro vivace
II – Andante con moto
III – Con moto moderato
IV – Saltarello. Presto

O que há em comum entre Goethe, Thomas Mann, Hesse, Mozart, Keats, Byron, Hemingway, Stendhal e, bem, Mendelssohn? Ora, eles foram à Itália e ficaram boquiabertos com tanta arte, luminosidade e alegria.

A estreia da Sinfonia Nº 4, “Italiana”, de Mendelssohn, ocorreu em 1833 e nasceu a partir do encanto de uma viagem do alemão ao sul ensolarado, conhecendo as obras de arte, a beleza natural e a contagiante alegria dos italianos. Aliás, nos séculos XVIII e XIX existia o Grand Tour, um percurso pela Europa – com a Itália como destino prioritário – que constituía uma viagem ao coração da história através do patrimônio cultural e artístico da bota. Tudo nasceu com Goethe em seu livro Viagem à Itália. Segundo ele, essa fora a etapa mais estimulante e feliz da sua vida. Stendhal foi outro que se disse esmagado por tamanha beleza. Isto chegou ao século XX. Hesse falava com inveja do sul ensolarado, assim como Thomas Mann.

Nos primeiros meses do ano de 1831, Mendelssohn faz menção, em várias cartas, à sinfonia que estava compondo e que desejava fosse uma obra alegre. Mas ele sentia que só conseguiria terminá-la após visitar Nápoles, cidade onde seria capaz de absorver, por completo, o espírito italiano. Ao que tudo indica, ele não conseguiu terminá-la na Itália, porque, em uma carta à irmã, de 21 de janeiro de 1832, de Paris, deixa claro haver abandonado a composição da Sinfonia Italiana para terminar a abertura da cantata Die erste Walpurgisnacht, op. 60. Constantemente insatisfeito com a obra, Mendelssohn fez correções até abril de 1833, quando a levou consigo para a estreia, em Londres, no dia 13 de maio, com a Sociedade Filarmônica de Londres, sob sua direção. Embora a Sinfonia tenha sido recebida com grande entusiasmo, Mendelssohn, alguns anos mais tarde, tirou-a de circulação para revisões e nunca se viu satisfeito com o resultado. A obra só foi editada após a sua morte.

O primeiro movimento é extremamente alegre. Sua natureza festiva é apresentada logo no início. O segundo movimento, de acordo com as cartas de Mendelssohn à irmã, foi o último a ser composto. Seu caráter introspectivo contrasta com a atmosfera brilhante do primeiro movimento. O terceiro movimento é uma espécie de minueto. Doce e bucólico, carrega certa nostalgia da época em que essa dança figurava nas sinfonias vienenses. O quarto movimento é um saltarello, dança leve e alegre, típica da Itália, dançada por casais, de mãos dadas, realizando uma série de pequenos saltos (do italiano saltare). O saltarello da Sinfonia Nº 4, extremamente dinâmico, é de uma energia incrível, do início ao fim.

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Apresentação: Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
Direção Artística: Evandro Matté
Regente: Manuel Coves (ESP)
Solista: Valentin Magyar (piano – HUN)

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Fontes:
Resumo da Ópera
Guia dos Clássicos
Querido Clássico
Orquestra Filarmônica de Minas Gerais

 

No caminho para a Bamboletras

Bah, tenho até vergonha de contar, mas hoje eu dei susto num cara que nem lhes conto. Ou conto?

Eu estava caminhando de fones, ouvindo o início de uma das muitas obras que amo: a Cantata BWV 198, Trauerode, de J. S. Bach.

Ela inicia com uma breve introdução instrumental, depois entra o coral e diz: “Laß, Fürstin, laß noch einen Strahl”. Laß é pronunciado como Lass. E eu entrei junto com o coral, sem desafinar, cantando “Lass!”.

Só que o coral entrou quando eu estava chegando na sinaleira para atravessar a Osvaldo Aranha. Eu devo ter quase gritado em meu puro entusiasmo e o cara que estava na minha frente deu um pulo, erguendo os braços. Lass!

Eu? Eu olhei pro outro lado. Será que ele pensou que fosse um assalto? Lass!

‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

A pianista reflete sobre as extraordinárias exigências de memória demandadas dos solistas de concerto e como ela continua a treinar esse músculo

Por Angela Hewitt
Traduzido do The Guardian

Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota’… Angela Hewitt. Fotografia: Keith Saunders

Acontece com todos os pianistas: aquele momento aterrorizante quando você está no palco e não consegue se lembrar do que vem a seguir. Certa vez, meu ex-professor, Jean-Paul Sévilla, estava tocando as Variações Goldberg de Bach quando, ao final da Variação 7, não conseguia se lembrar como começava a Variação 8. No momento em que ele saiu do palco para encontrar sua partitura, ele lembrou, mas sua noite já estava arruinada. Depois aconteceu de Vlado Perlemuter sair de casa para a sala de concertos, quando questionado pela esposa se tinha esquecido de alguma coisa, um amigo lhe disse brincando: “O começo do concerto!” Quando, algumas horas depois, Vlado subiu ao palco em Paris para executar o Quarto Concerto para Piano de Beethoven (que começa com um solo de piano famoso), ele não conseguiu encontrar as notas. Minha própria vez chegou quando eu tinha 50 anos, tocando o Cravo Bem Temperado de Bach (todas as quatro horas e meia dele) de memória em Stuttgart. Foi parte de uma turnê mundial na qual toquei aquela obra gigantesca 56 vezes em 26 países. Naquela noite, no entanto, entrei errado na grande fuga em Lá menor do Livro 1 e não consegui encontrar como sair… Eu tive que levantar para ir buscar a partitura. Você se sente muito envergonhado — mas somos apenas humanos e às vezes isso acontece.

No geral, fui abençoada com uma memória excelente — suponho que alguns diriam até prodigiosa, já que executei as obras solo completas para teclado de Bach (com exceção de A Arte da Fuga), as 32 sonatas de Beethoven e quem sabe quantos milhões de outras notas da memória ao longo dos anos. Sempre pensei que seria uma boa ideia medir meu cérebro antes de memorizar todo aquele Bach e depois novamente para ver como ele havia se desenvolvido e mudado. Tarde demais agora. Aos 64 anos, ele definitivamente está diminuindo, e a memorização tornou-se uma atividade muito consciente, frustrante e demorada. Mas continuo nisso porque a memória é um músculo que precisa ser constantemente usado.

Quando você é um jovem pianista, a memória vem quase sem pensar. Uma grande parte dela é memória reflexa; acrescente a isso a memória auditiva (especialmente se, como eu, você tivesse ouvido absoluto), a memória visual (alguns pianistas, como Yvonne Loriod, que era casada com Olivier Messiaen, tinha uma peça memorizada depois de olhá-la apenas uma vez) e a memória de associação, e você tem um processo relativamente rápido.

Digo que eu “tinha” afinação perfeita porque ela diminuiu com a idade. Quando criança, eu conseguia nomear instantaneamente todas as notas, mesmo nos acordes mais complicados. Agora preciso de tempo para pensar nisso. A tonalidade perfeita está relacionada à memória: se uma fica fraca, o outra também. Todo mundo de uma certa idade que já encontrou esse problema. Isso torna a memorização uma tarefa muito mais complicada.

A memória é um assunto sobre o qual não gostamos de falar – é como o sexo, o amor e as crenças religiosas – muito provavelmente porque temos medo de perdê-la. É preciso coragem para admitir até para si mesmo que sua memória está falhando. Muitas vezes, amigos ou familiares percebem primeiro. Não devemos nos sentir envergonhados, mas sim abraçar esse sinal normal de envelhecimento e fazer tudo o que pudermos para manter nosso cérebro vivo. Fico chateada quando não consigo lembrar onde coloquei meu cartão de embarque, como aconteceu esta manhã em Heathrow (apenas para encontrá-lo no compartimento externo da minha mala, onde devo tê-lo colocado cinco minutos antes), quando não me lembro se tomei minha pastilha diária de TRH (terapia de reposição hormonal) — agora há algo que ajuda mulheres mais velhas com memória! –, e quando cometo o mesmo erro repetidamente ao aprender uma nova peça.

No verão passado, fui presidente do júri da competição de Bach em Leipzig, na qual os competidores podiam escolher se tocariam de memória ou com a partitura. (Com a partitura hoje em dia significa principalmente “com um iPad” acrescentado de um pedal para virar as páginas na tela, embora um concorrente tenha usado o aplicativo que permite fazer uma careta facial para virar a página – algo que achei profundamente desconcertante). Na idade deles, eu nunca teria sonhado em usar a partitura, mesmo para complicadas peças contemporâneas. No entanto, alguns deles o fizeram. Eles não poderiam ter gasto o tempo extra necessário para memorizar a música? Sei que a tendência hoje em dia é dizer que não importa, mas sei que quando consigo realizar algo com segurança de memória, isso me dá uma sensação maravilhosa de liberdade e realização.

Angela Hewitt se apresentando na sala de concertos St George em Bristol. Fotografia: Stephen Shepherd/The Guardian

Uma das falhas mais comuns dos pianistas é que passamos muito tempo tocando as notas e pouco tempo pensando no que estamos fazendo. “Pense 10 vezes e depois toque uma vez” já dizia o sábio Franz Liszt, que balbuciava mais notas por minuto do que qualquer outro (e que, junto com Clara Schumann, foi o primeiro pianista a tocar de memória – ato considerado arrogante pela público da época). Na verdade, o melhor trabalho de memória é feito longe do teclado – apenas olhando a partitura, memorizando seu dedilhado, as harmonias, os lugares onde é fácil errar, os intervalos, quantas notas há em um acorde, a dinâmica, o fraseado; nada é simples ou evidente demais para passar despercebido. Você deve se visualizar tocando a peça sem estar em um teclado. Então depois vá, toque e você ficará surpreso com o progresso que você fez.

Mesmo quando você está muito concentrado, o cérebro é constantemente assaltado por pensamentos estranhos e muitas vezes tolos. Como um pianista tocando de memória, você se treina para lidar com isso. Eu chamo isso de modo de dupla concentração. Tosse da plateia (as pessoas percebem que apenas uma tosse no lugar errado pode facilmente derrubar tudo?); o inevitável celular (sigo como se nada tivesse acontecido, senão piora as coisas); até uma vez tive um besouro subindo lentamente pelo meu braço nu durante uma fuga de Bach. Você tem que ser capaz de contar com sua concentração para passar, não importa o que aconteça.

Você também deve se treinar para pensar no que vem depois na partitura ou na memória — mesmo que apenas por uma fração de segundo. À medida que o cérebro envelhece, isso se torna ainda mais difícil, mas necessário. Acho que é por isso que os pianistas mais velhos em geral (Martha Argerich sendo a exceção) tendem a tocar mais devagar do que os mais jovens, para quem a velocidade costuma parecer o objetivo final. É também por isso que, como público, ficamos mais perturbados com os andamentos rápidos à medida que envelhecemos. É demais para nossos cérebros mais lentos processarem.

Aos 20 anos, morei no estúdio de um artista acima de uma filial do Banque Nationale de Paris por dois anos. O pessoal do banco sabia que eu era a única tocando no andar de cima, praticando, e eles afirmaram não se importar, exceto quando eu “tocava a mesma coisa repetidamente”. Para roubar uma observação do ator Roger Allam, a palavra francesa para ensaio é “répétition”, e é isso que você precisa fazer. Arranje um piano silencioso se isso deixar sua família ou vizinhos loucos; Costumo ter um em quartos de hotel quando estou em turnê.

Tocando com a Aurora Orchestra em Kings Place em Londres. Fotografia: www.kingsplace.co.uk/kplayer

Outra coisa que você pode fazer para treinar o cérebro é pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Você pode praticar isso estando em um restaurante lotado e ouvindo duas ou mais conversas simultaneamente. Você precisará disso se estiver tocando uma fuga de Bach, que pode ter até cinco vozes, cada uma tão importante quanto a outra. Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota; na verdade, quando pratico, estou constantemente cantando, tentando imitar a voz humana em um instrumento cujos sons são produzidos por martelos batendo nas cordas. Ao cantar, envolvo minha concentração e minhas emoções, assim como minha memória. Ao contrário do meu compatriota Glenn Gould, quando estou no palco ou em um estúdio de gravação, faço isso silenciosamente.

Se tudo isso soa muito cansativo então, acredite, é mesmo. Faça pausas quando sentir que seu cérebro está cansado e certifique-se de que ele receba todos os nutrientes de que precisa. Álcool e pílulas para dormir não ajudam – e é por isso que evito o primeiro e me recuso a usar o segundo. Nos bastidores das salas de concerto, tenho os alimentos para o cérebro prontos: sardinhas enlatadas, abacates, manteiga de amendoim, biscoitos de centeio, mirtilos, bananas e muita água.

Muitas vezes ouço as pessoas dizerem que não conseguem mais memorizar nada. Sim, mas você realmente tentou? Se você não é músico, pegue um poema, uma receita ou o telefone dos seus melhores amigos. Acima de tudo, não desista. Conheça o seu cérebro e trabalhe nele.

Sempre digo que não conseguiria decorar as obras completas de Bach e ter quatro filhos. Isso teria sido impossível. Eu não tenho nenhum. Mas tive uma vida maravilhosa na companhia de algumas das maiores mentes que já existiram, e para eles, e para meus pais músicos que me colocaram na frente de um piano de brinquedo aos dois anos de idade, eu sou para sempre grata.

Notas de Concerto para a Ospa. (03/06/2023, Notas às 16h, Concerto às 17h)

Notas de Concerto para a Ospa. (03/06/2023, Notas às 16h, Concerto às 17h)

Este concerto da Ospa apresentará 3 obras, duas de compositores brasileiros e em ordem contrária à cronológica. Começa com a obra mais recente:

Harry Crowl | E a Cidade Desperta (2017)

Apesar do nome, Harry Crowl (1958) é mineiro de Belo Horizonte e é um sábio, sendo, além de compositor, musicólogo e professor.

Quando conheci E a cidade desperta, logo me veio uma associação temática com uma canção que, musicalmente, não tem nada a ver com a obra de Crowl. Falo de Samba e Amor de Chico Buarque e que inicia com os seguintes versos:

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
Escuto a correria da cidade, que arde
E apressa o dia de amanhã

(…)

OK, mas onde há pontos em comum com Crowl é neste verso aqui:

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito mais o que fazer
Escuto a correria da cidade, que alarde
Será que é tão difícil amanhecer?

Será que é tão difícil amanhecer? Pois parece. Antes de compor esta peça, Crowl havia composto outra chamada Enquanto uma grande cidade dorme. Esta é muito quieta e sossegada, o que não acontece na que vamos ouvir no Concerto de hoje da Ospa. E a cidade desperta não é quieta. Assim como também não são sossegadas as motivações do compositor. A motivação nasceu de uma tentativa do prefeito de São Paulo, parece que Kassab, de apagar alguns grafites extraordinários feitos pelo artista brasileiro Eduardo Kobra, na verdade um grande muralista. Harry Crowl ficou indignado por pensar que aqueles grafites davam humanidade ao universo cinzento de concreto armado de São Paulo. E não vou discordar dele, do compositor.

Na obra de Crowl, à medida que amanhece, uma multiplicidade de cores e sons da cidade se revelam nos mais variados matizes através dos graffiti de artistas muitas vezes anônimos. Essas manifestações espontâneas, apesar das constantes tentativas de apagamento, seguem brotando dos muros e paredes como se fossem um grito de um mundo asfixiado. E a cidade desperta… propõe um diálogo com este meio de expressão artístico e é também uma homenagem ao artista brasileiro Kobra que, com suas criações imensas e fortemente coloridas, tem levado um alívio visual para espaços esquecidos ou abandonados das grandes metrópoles pelo mundo afora.

Como disse Chico Buarque em sua canção de 1970, é difícil amanhecer — ainda mais pensando no prefeito — e Crowl o faz de forma muito afirmativa, revelando que não está ao lado dos apagadores e de quem agride a arte. A explosão de vida que a cidade revela nos detalhes daquilo que antes era apenas sombras de construções, é mostrada com forte percussão, ostinati, em um virtuosístico solo de violino e outros solos de clarinete e trompete.

Heitor Villa-Lobos | Fantasia para Saxofone, W490
I. Animé
II. Lent
III. Très animé

Embora o saxofone apareça com destaque ao longo de toda a produção de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), a Fantasia para Saxofone é a única composição de Villa que tem o instrumento como solista. A peça, escrita em 1948,  equivale a um pequeno concerto em três movimentos. Quando pensamos no saxofone na música brasileira, normalmente nos vem à mente o choro e Pixinguinha, mas a abordagem de Villa é inteiramente diversa. Na verdade, esta Fantasia poderia ser uma pequena bachiana.

Villa-Lobos conheceu o saxofonista Marcel Mule em Paris na década de 1920, quando Mule tocou saxofone em uma das obras orquestrais de Villa-Lobos. Embora tenha sido escrita e dedicada a Mule, e originalmente especificasse o saxofone soprano , o instrumento ao qual Mule foi associado, a Fantasia não foi uma obra encomendada e não há indicação de que o compositor tenha se correspondido com o saxofonista sobre a peça antes de enviar-lhe a partitura completa em dezembro de 1948. Mule, no entanto, nunca executou o trabalho. Mule disse: “A  peça não me empolgou naquela época principalmente porque era muito complicado de tocá-la no sax soprano.” Diante da relutância de Mule em tocar a obra, Villa-Lobos recorreu ao saxofonista brasileiro Waldemar Szpilman. Szpilman, no entanto, não possuía um saxofone soprano, que era o instrumento especificado por Villa-Lobos, e, como Mule, achava as notas mais altas muito arriscadas. Consequentemente, o compositor decidiu transpor a peça para um tom mais baixo e permitir o saxofone tenor como alternativa ao soprano. E é esta versão que vocês ouvirão hoje, Eu assisti a um dos ensaios e afirmo que o saxofonista Samuel Alves é esplêndido, com aquele paradoxo de ter um som forte e delicado ao mesmo tempo.  

Joseph Haydn | Sinfonia nº 104 em Ré Maior, “London”
I. Adagio – Allegro
II. Andante
III. Minuet. Allegro – Trio
IV. Finale. Spiritoso

A Sinfonia Nº 104 em ré maior, de Franz Joseph Haydn (1732-1809), foi composta nos últimos anos de vida do compositor. Em 1790, após décadas trabalhando como músico da corte para a rica família Esterházy, a família reduziu seu salário e autorizou-o a viajar. Então, o compositor aceitou uma oferta lucrativa de Johann Peter Salomon, violinista e empresário alemão, para visitar a Inglaterra e reger novas sinfonias com uma grande orquestra. As chamadas Sinfonias Londres são as de número 93 a 104, sendo que esta última é a obra final de Haydn no gênero.

A invenção do quarteto de cordas é atribuída ao austríaco Joseph Haydn, que também ajudou a formatar as sinfonias. Na verdade, ele seria o pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música

Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
Regência: Marcelo de Jesus (BRA)
Solista: Samuel Alves (saxofone – BRA)

Data: 03/06/2023 17h
Local: Casa da Ospa
Av. Borges de Medeiros, 1501 – Centro Administrativo Fernando Ferrari

Alcançando outro patamar: a Filarmônica de Los Angeles provoca um “orgasmo de corpo inteiro” em pessoa na plateia

Alcançando outro patamar: a Filarmônica de Los Angeles provoca um “orgasmo de corpo inteiro” em pessoa na plateia

Por Christi Carras (traduzido de um jornal sério, o LA Times)

Molly Grant estava curtindo a apresentação da Filarmônica de Los Angeles da Quinta Sinfonia de Tchaikovsky na sexta-feira no Walt Disney Concert Hall quando ouviu o que descreveu como um “grito/gemido” vindo do mezanino.

O exterior da Walt Disney Concert Hall

“Todo mundo meio que se virou para ver o que estava acontecendo”, disse Grant, que estava sentada perto da pessoa que supostamente fez o barulho, ao The Times no domingo em uma entrevista por telefone.

“Eu vi a garota depois que aconteceu, e presumo que ela… Bem, Foi muito bonito.”

Várias pessoas que assistiram ao Concerto da Filarmônica em LA na sexta-feira relataram ter ouvido uma mulher gemendo durante o segundo movimento da sinfonia.

O compositor e produtor musical Magnus Fiennes, descreveu o som no Twitter como o de uma pessoa tendo um “orgasmo alto e de corpo inteiro”.

Uma suposta gravação de áudio do momento — onde alguém pode ser ouvido chorando durante um trecho silencioso da música — estava circulando nas redes sociais. Os participantes que falaram com o The Times disseram que o clipe era semelhante ao que ouviram.

“Amigos que foram à Filarmônica de Los Angeles ontem à noite estão relatando que no meio do concerto uma senhora teve um orgasmo GRITANTE, a ponto de toda a orquestra parar de tocar”, twittou a jornalista Jocelyn Silver. “Algumas pessoas realmente sabem como viver…”.

No entanto, as pessoas presentes disseram que os músicos tocaram não pararam durante a confusão. A pianista clássica Sharon Su twittou que “verificou com alguém que trabalha no LA Phil e eles confirmaram” que a orquestra continuou tocando durante a comoção.

Ainda não está claro o que exatamente ocorreu na audiência. O Times entrou em contato com LA Phil para comentar, mas ninguém conseguiu identificar ou contatar a pessoa que fez o som.

Outros membros da audiência contestaram a teoria do orgasmo, afirmando que a mulher poderia ter feito o barulho ao acordar depois de ter adormecido. Alguns temiam que pudesse estar relacionado a uma condição médica ou emergência.

Um participante que estava sentado na fileira logo atrás da pessoa que fez o barulho disse que parecia que a mulher estava acordando de um ataque de sono quando fez o som.

“Muito rapidamente, ela meio que caiu nos ombros do parceiro e depois no colo dele. E então o corpo dela ficou mole”, lembrou o membro da platéia, que pediu anonimato para falar sobre o incidente. “Talvez uns cinco segundos depois, ela meio que acordou, e foi quando soltou um grito.”

O membro da plateia que estava sentado na fileira atrás da pessoa disse que já havia testemunhado uma pessoa com narcolepsia ter um ataque de sono, e o que ela viu no LA Phil parecia semelhante.

Depois que a mulher fez o barulho, seu parceiro e outra mulher sentada ao lado dela perguntaram se ela estava bem, e ela respondeu que estava, de acordo com a plateia, que relatou ter ouvido a conversa.

“Eu sei que outra pessoa mencionou que ela estava sorrindo, mas tenho certeza que ela estava muito envergonhada porque outras pessoas estavam olhando para ela”, disse o membro da platéia ao The Times.

Outro espectador enviou um e-mail ao The Times para dizer que ouviu o barulho, mas não achou que fosse um som de êxtase.

O programa de sexta-feira, dirigido pelo maestro Elim Chan, incluiu ainda a interpretação do Concerto para Violino “Caminhos Concêntricos” de Thomas Adès.

As notas do programa online de LA Phil incluem esta descrição do segundo movimento da Sinfonia nº 5 de Tchaikovsky :

“O delicioso tema principal foi adaptado para uma popular canção de amor. A orquestração habilidosa de Tchaikovsky, no entanto, eleva o clima do sentimentalismo ao alto romantismo. A melodia principal do movimento é apresentada em um solo memorável da trompa, seguido por outros atraentes solos de sopro.”

O agente musical Lukas Burton, disse que o som do membro da platéia foi “maravilhosamente cronometrado” dentro da “onda romântica” da sinfonia. “Não se pode saber exatamente o que aconteceu, mas parecia muito claro pelo som que era uma expressão de pura alegria física”, disse Burton. “Foi equivalente àquela cena em um filme em que alguém está falando alto em uma festa ou boate, e então a música para de repente e todos ouvem o que está sendo dito”.

Embora a explosão tenha sido claramente um momento incomum e surpreendente para um concerto de música clássica, Burton o descreveu como “bastante maravilhoso e revigorante”.

“Houve uma espécie de suspiro na plateia”, disse Burton. “Mas acho que todos sentiram que era uma expressão adorável de alguém que estava tão transportado pela música que teve algum tipo de efeito sobre eles fisicamente ou, ouso dizer, até sexualmente.”

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Christi Carras é repórter de entretenimento do Los Angeles Times. Ela foi anteriormente estagiária do Times depois de se formar na UCLA e também trabalhou na Variety, no Hollywood Reporter e na CNN.

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Aqui estão mais seis sinfonias que agregam valor de tipo íntimo:

1 Saint-Saens Sinfonia Nº 3 (aguarde o órgão)
2 Inextinguível de Nielsen (oh!, que maravilha!)
3 Strauss Sinfonia Doméstica (aviso aos pais: inclui cópula)
4 Szymanowski 3º: canção da noite (diz tudo)
5 Mahler Sinfonia Nº 7 (com duas músicas noturnas, duas!)
6 Scriabin Poème de l’Extase (diz tudo)
7 Malcolm Arnold: Toy Symphony

Alguma mais?

Berwald e Hummel: o Concerto da Ospa desta quinta-feira (20)

Berwald e Hummel: o Concerto da Ospa desta quinta-feira (20)

Quem não tem muita vivência na área da música de concerto talvez torça o nariz para o programa da Ospa desta quinta-feira (20), às 20h, na Casa da Música da Ospa, mas garanto que ele é de extraordinária qualidade.

O programa é o seguinte:

Johann N. Hummel | Concerto para Trompete em Mi Bemol Maior
I. Allegro con spirito
II. Andante
III. Rondó: Allegro

Franz Berwald | Sinfonia n° 3 em Dó Maior, ‘Singular’
I. Allegro fuocoso
II. Adagio – Scherzo – Adagio
III. Finale: Presto

Regência: Mateus Araujo
Solista: Diogo Gomes, trompete

Primeiramente, vamos pedir a ajuda de Adriano Brandão a fim de tentar descrever o que é Sinfonia Nº 3 de Franz Berwald, a “Sinfonia Singular”. O primeiro parágrafo é meu. Os outros são dele. O Adriano destaca os dois movimentos finais da sinfonia, mas, para mim, a grande surpresa e alegria é o primeiro movimento, apesar de eu achar toda a sinfonia linda.

Um dia, estava dirigindo para o trabalho e a Sinfonia Singular começou a tocar na rádio da UFRGS. Cheguei a meu destino ao final do primeiro movimento e não consegui sair de dentro do carro até o final. Eu simplesmente TINHA que saber o que era aquilo. Era 1989. Então, o locutor anunciou Franz Berwald? Berwald? Who the fuck is Berwald? Logo importei um vinil alemão e pude comprovar meu amor pela Sinfonia. Berwald é uma raridade. Você conhece outro compositor sueco? Dentre os escandinavos, você certamente conhece o norueguês Grieg, o finlandês Sibelius e o dinamarquês Nielsen. Eles são raros, né? E a Suécia não gerou grandes nomes. Franz Adolf Berwald foi praticamente ignorado enquanto era vivo. Por isso, teve que procurar uma outra ocupação. Berwald trabalhou como cirurgião ortopédico, e posteriormente administrou uma serraria e uma fundição de vidro. Hoje, ele é considerado o compositor sueco mais importante de seu século. Em 1976, a nova sala de concertos da Sveriges Radio recebeu o nome de Berwaldhallen. Berwald morreu em Estocolmo em 1868 de pneumonia.

Não são raros os casos de artistas totalmente esquecidos durante suas vidas e que alcançam certo status “cult” décadas ou mesmo séculos depois.

Apresento-lhes o sueco Franz Berwald. Personalidade curiosíssima, sobreviveu tanto a Schubert quanto a Mendelssohn e Schumann, seus contemporâneos, sem nunca ser plenamente bem-sucedido em viver de sua música. Aliás, várias vezes ele teve de empreender em áreas bem distantes, com sucesso bem maior: ortopedia, fisioterapia, vidraçaria…

Compôs quatro sinfonias, todas com subtítulos em francês. Apenas a Primeira, dita “Sérieuse”, foi executada em sua vida. Nunca ouviu as demais. Quando já estava bem velhinho, obteve o primeiro sucesso: sua ópera “Estrella de Soria” foi montada e bem recebida. O governo sueco reconheceu seus esforços, deu-lhe uma medalha, o indicou para o Conservatório de Estocolmo e… Berwald morreu. :-/

A posteridade foi-lhe muito mais receptiva. No século 20, principalmente, suas inusitadas e originais sinfonias foram redescobertas e enfim executadas, gravadas e aplaudidas. Hoje Berwald é reconhecido como o principal compositor sueco.

Pense em um Mendelssohn cheio de arestas: bizarrices, repetições esquisitas, trechos semi-estáticos, melodias estranhas, harmonias pontiagudas… Esse é o estilo de Berwald. Sua sinfonia mais representativa é a Terceira, a “Singulière”. O mais bacana dessa obra, de 1845, é o “encapsulamento” do scherzo DENTRO do movimento lento. Fora o finale de um vigor realmente impressionante, que chega até a lembrar Brahms ou Bruckner.

Vale conhecer. É divertido pacas. Nosso amigo ortopedista, fisioterapeuta e vidraceiro sabia compor sinfonias interessantes 🙂

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O Concerto para Trompete (Concerto a Trombe Principale) de Johann Nepomuk Hummel e ficou famoso lá por 1983, quando Wynton Marsalis lançou seu LP de estreia na música erudita. Lá estava — em extraordinária interpretação — o Concerto, ao lado do de Haydn e de uma peça de Leopold Mozart. Foi ali que o conheci e jamais esqueci dele.

Hummel escreveu o Concerto para o virtuoso vienense e inventor do trompete de teclas Anton Weidinger (assim como Haydn tinha feito antes). Ele foi escrito em dezembro de 1803 e executado no dia de Ano Novo de 1804 para marcar a entrada de Hummel na orquestra da corte de Nikolaus II, Príncipe Esterházy, como sucessor de Haydn. Há lugares, principalmente no segundo movimento, onde se acredita que Weidinger alterou a música para adequá-la melhor ao instrumento. Não se sabe se falou antes com Hummel.

Originalmente esta peça foi escrita em mi maior. A peça é frequentemente executada em mi bemol maior, o que torna o dedilhado menos difícil nos trompetes modernos em mi bemol e si bemol.

O Concerto é muito bonito. Tem um Andante belíssimo, assim como o Rondó final.

Ou seja, não perca!

Ensaio da Ospa em 19/04. Na foto, o maestro Mateus Araujo com o trompetista Diogo Gomes | Foto: Vitória Proença / Ospa.

A economia política da música clássica

A economia política da música clássica

A história da música clássica é inseparável da ascensão do capitalismo. O novo sistema possibilitou uma revolução musical, mas o seu desenvolvimento marcado por crises criou uma barreira entre os músicos e o seu público, deixando para trás uma tradição congelada. Por Simon Behrman.

No último século, a música clássica tem-se distanciado cada vez mais do público de massas ou das formas musicais populares, a ponto de se tornar o culto elitista das pessoas que vivem isoladas em uma torre de marfim. Isto não é culpa dos músicos: a sua arte é inseparável de tendências sociais e políticas mais amplas. O capitalismo, que primeiro criou um espaço onde a música podia florescer, rapidamente o destruiu e nos deixou com uma tradição morta e formalizada.

O que é a música clássica?

Quando queremos discutir o futuro da música clássica, um dos problemas que surgem é identificar o significado do termo clássica: o que a distingue do jazz, rock, hip-hop ou qualquer outro género?

Não é que se trate de música unicamente séria. Uma boa parte da “música clássica” é cómica e até mesmo disparatada. É o caso de Uma Piada Musical (1787), de Wolfgang Amadeus Mozart, e das Aventuras de György Ligeti (1962 – 1963), de György Ligeti. Na mesma medida, há muitas composições extremamente sérias que pertencem a outros géneros. Estou a pensar em muitas canções dos Beatles, que não ficam atrás do trabalho de Franz Schubert na sua intensidade e complexidade emocional e estilística.

Não há uma forma ou estilo único que se possa associar à música clássica mesmo num único período, e muito menos ao longo de vários séculos. Quando se ouve duas obras para piano, mesmo que sejam composições separadas por poucos anos – por exemplo, Klavierstücke I-XI de Karlheinz Stockhausen (1952 – 1956) e Preludes and Fugues de Dmitri Shostakovich (1950 – 1951) – é difícil discernir o que têm em comum estilisticamente. E, ainda assim, partilham a letra “S” na maior parte das lojas de música clássica.

Em vez de falar de “música clássica”, talvez fosse melhor falar de uma tradição musical europeia. Mais precisamente, embora de forma menos elegante, deve-se dizer que é uma tradição burguesa europeia/ocidental. Uma vez definido o conceito nestes termos, é muito mais fácil perceber o que todos os compositores que mencionei têm em comum.

Também é mais fácil entender a ascensão e declínio deste género musical. Em todo o caso, como “música clássica” ainda é uma expressão bem conhecida, vou usá-la de forma intercambiável com a expressão “música europeia”.

O nascimento da música europeia

A ascensão das classes médias e a expansão do tempo de lazer que têm disponível – além, é claro, do das classes altas – condicionou o surgimento da música clássica. Durante boa parte do período medieval, a música era reservada para cerimónias religiosas, festivais ou a visita ocasional de trovadores.

O nascimento da ópera na Veneza do século XVII foi principalmente um empreendimento comercial numa cidade de comércio rico. Embora fosse contratado por igrejas, Johann Sebastian Bach tinha o estatuto de artesão e aceitava frequentemente comissões privadas para compor obras. No final do século XVIII e ao longo do século XIX, muitos teatros e salas de concertos foram construídos, e muitas orquestras se estabeleceram com o apoio de vários empreendimentos comerciais.

Por exemplo, a primeira grande sala de concertos em Londres foi a Hanover Square Rooms, construída pelo empresário italiano Sir John Gallini, e dirigida em conjunto pelos compositores Johann Christian Bach (filho de Johann Sebastian) e Carl Friedrich Abel. De facto, muitas das orquestras que ainda existem, como a Gewandhaus de Leipzig, a Filarmónica de Berlim, a Filarmónica de Viena, a Filarmónica de Nova Iorque e a Sinfónica de Boston, devem a sua fundação à iniciativa de músicos com apoio de capital privado e sustentavam-se através da venda de bilhetes.

Por volta da mesma altura, surgiu o fenómeno do artista celebridade. O violinista Niccolò Pganini, o pianista Franz Liszt e a cantora Jenny Lind alcançaram fama e fortuna fazendo digressões pelo mundo inteiro e dando concertos que foram promovidos por um grande número de campanhas publicitárias.

A forma e o estilo musical também corresponderam às transformações sociais provocadas pelo nascimento do capitalismo. Podemos ouvir o estilo musical “Sturm und Drang”, associado ao período das Revoluções Francesa e Americana, manifestar-se na tensão dramática crescente da música dos filhos de Bach e Joseph Haydn. Foi Ludwig van Beethoven, cuja vida adulta foi marcada pelo turbilhão da Revolução Francesa e suas consequências, que levou o estilo à expressão mais completa.

Quando a revolução deu lugar à reação, os compositores abandonaram o estilo épico e adotaram um estilo muito mais introspetivo e pessoal, chamado de “romantismo” e audível nas obras de Robert Schumann e Frédéric Chopin. As revoluções de 1848 inspiraram os grandiosos dramas musicais de Richard Wagner. Com Tristão e Isolda, ele abriu a porta para o cromatismo e harmonias instáveis que culminariam no atonalismo do século XX.

Além de ser uma obra musicalmente revolucionária, O Anel do Nibelungo de Wagner conta uma história de transformação social, traição e ganância, muito influenciada pelas suas experiências de 1848 como participante ativo na revolução de Dresden e pelo exílio que a que derrota amarga o forçou. Da mesma forma, Giuseppe Verdi expressou a turbulência em torno do Risorgimento italiano.

Toda a música romântica tardia de Richard Strauss, Anton Bruckner e Giacomo Puccini foi montada numa escala enorme, simbolizando a suprema confiança numa Europa globalmente dominante, passando por um rápido processo de industrialização. Os concertos começaram a assumir proporções grandiosas: na estreia da Sinfonia n.º 8 de Gustav Mahler, quase mil músicos tocaram, e havia mais de três mil pessoas na plateia.

Colapso

Social e musicalmente, algo tinha de ceder. O rápido desenvolvimento das potências europeias e a sua competição imperialista levaram às duas guerras mundiais e às crises e revoluções que as separaram. As estruturas musicais cada vez mais longas e complexas também começaram a desmoronar devido às suas contradições internas.

À medida que os centros tonais se tornaram cada vez mais esticados e menos facilmente reconhecíveis, a unidade começou a desintegrar-se. Formas clássicas, como a estrutura tripartida da sonata allegro, que tinha sido a âncora da música por mais de 150 anos, estavam estafadas e muitas vezes mal discerníveis nas composições, se é que os compositores sequer as utilizavam.

Pode-se tentar ignorar isto e concentrar-se ao invés num ritmo de harmonias grandiosas e exuberantes que ainda remedeiam. É a abordagem que caracteriza a música de Edward Elgar e Erich Korngold. Mas embora em muitos casos estas obras fossem bastante boas, não levavam a nada em termos do desenvolvimento da tradição musical ou de resposta a novos sons e mudanças sociais. De facto, a música desses compositores é definida por um anseio das certezas da Europa pré-guerra.

No entanto, houve outros que aceitaram os desafios da época. Já em alguns dos últimos trabalhos de Mahler é possível ouvir a antecipação de um mundo pós-tonal e pós-clássico. Por exemplo, o primeiro movimento da sua última sinfonia, a Nona, tem muito mais elementos em comum com o modernismo do século XX do que com o romantismo do século XIX. A geração mais jovem inspirada por Mahler conduziu a música europeia numa direção que a moldaria para os próximos cem anos.

Em Pierrot lunar (1912), Arnold Schönberg abandonou completamente o tonalismo. Neste trabalho ele também desenvolveu o “Sprechstimme”, uma forma de cantar muito mais próxima do discurso natural e, consequentemente, exibindo um estilo mais simples do que o canto tradicional. Este trabalho, que influenciou toda a música europeia posterior, expressa um certo deslocamento, um estado de grande ansiedade e um sentimento de desorientação, refletindo assim perfeitamente as crises sociais do seu tempo.

A música na era das catástrofes

A ascensão do fascismo e do estalinismo representaram mais golpes na música europeia. Estes regimes suprimiram o novo estilo atonal cujo pioneiro tinha sido Schönberg, e promoveram em seu lugar um retorno kitsch ao grande romantismo. Na minha opinião, foi durante este período que a música europeia enquanto tradição viva foi morta. Não foi uma morte súbita mas um veneno que foi injetado na relação desta música com a sociedade e que foi amplamente responsável pela sua marginalização atual.

Enquanto permaneceu ancorada na sociedade burguesa europeia, foi continuamente renovada e desenvolvida através da sua relação com formas mais mundanas: primeiro a música e danças folclóricas, depois os espirituais afro-americanos, o jazz, a sonoridade da música japonesa, as músicas pop de Tin Pan Alley e a percussão africana e muito mais. Talvez não tenha havido uma década mais excitante na música do que a dos anos 1920, quando todas estas influências podiam ser ouvidas nas obras de compositores como Igor Stravinsky, Béla Bartók, George Gershwin e Maurice Ravel, entre outros.

Mas o nazismo proibiu a “música degenerada” e as trombetas do “realismo socialista” na URSS de Estaline abafaram estes desenvolvimentos, dispersando muitos dos seus protagonistas dos anos 1920 num exílio real ou forçando-os a um exílio simbólico no qual tinham que reprimir os seus instintos artísticos. Tomemos o exemplo do compositor alemão Paul Hindemith, que compôs algumas das obras mais idiossincráticas e extraordinárias dos anos 20, nas quais se pode ouvir a influência do jazz, um certo atonalismo e até mesmo música eletrónica. Embora ele tentasse resistir ao nazismo com obras como sua ópera a Mathis der Maler (1934), as suas composições foram rapidamente censuradas. Foi ao exílio nos Estados Unidos, onde a sua música perdeu o seu dinamismo e retirou-se para um formalismo académico aborrecido.

Quando chega 1945, muitos dos compositores mais importantes do período anterior estavam mortos (Bartók, Gershwin, Alban Berg, Anton Webern), enfrentavam o exílio solitário (Stravinsky, Schönberg) ou a trabalhar sob condições repressivas (Shostakovich, Sergei Prokofiev). Uma geração mais jovem de pessoas com os seus vinte e poucos anos estava a emergir cujas vidas tinham sido duramente marcadas pelo fascismo e pela guerra. Os nazis tinham assassinado a mãe de Stockhausen como parte do seu programa de eutanásia, enquanto o seu pai, um nazi entusiástico, tinha morrido a lutar na Frente Leste. O pai de Hans Werner Henze era também um nazi que morreu em combate, e o próprio Henze tinha sido recrutado para o exército alemão e terminado a guerra num campo de prisioneiros de guerra.

Aqueles que vinham de outros países também passaram por momentos difíceis durante esses anos terríveis. Luciano Berio teve que servir no exército italiano: uma ferida de guerra na sua mão pôs um fim nas suas esperanças de ter uma carreira de pianista. Ligeti, um judeu húngaro, perdeu quase toda a sua família em Auschwitz. Iannis Xenakis perdeu metade do seu rosto após ter sido baleado por um tanque britânico enquanto lutava ao lado de guerrilheiros comunistas gregos depois da libertação de Atenas.

A música composta por tais figuras nos anos 50 e 60 foi fortemente experimental, explorando muitas vezes novas tecnologias como a gravação e edição de cassetes e as possibilidades acrescidas de manipulação de sons eletrónicos. E eles também rejeitaram, às vezes quase fanaticamente, qualquer indício de forma ou tonalidade clássica. Em grande parte isto foi uma reação contra a instrumentalização da música clássica e romântica como arma cultural pelo fascismo.

Stockhausen disse certa vez que tinha um ódio da música no tempo 4/4 porque ela evocava memórias da música de marcha interminável tocada nas rádios durante a guerra. Pierre Boulez escreveu que todas as formas de sentimentalismo tinham que ser banidas da música. Isto ia ao encontro do argumento do filósofo Theodor Adorno de que a grande tradição musical tinha trazido uma espécie de brilhantismo cultural ao fascismo.

Perdendo o contacto

Dadas as suas experiências formativas de vida e os obstáculos enfrentados pela música europeia tal como a encontraram em 1945, não é surpreendente que grande parte do trabalho destes compositores tenha acabado por ser muito adstringente. Era chocante para o ouvido e para a sensibilidade e uma experiência alienante e desagradável para muitos ouvintes.

Alguns compositores, como Henze, recuaram e tentaram recuperar algo do tonalismo e formas clássicas. Outros acreditavam que o objetivo era precisamente chocar e perturbar o público. Eles acreditavam que era uma forma de imunizar tanto a sua arte quanto os ouvintes contra a sedução de qualquer sentimentalismo que pudesse ser apropriado para fins políticos autoritários, ou, no contexto do pós-guerra, pela imparável mercantilização da cultura.

Contudo, esta posição arriscava deslizar facilmente para o elitismo, resumido por Milton Babbit num artigo de 1958 no High Fidelity, “O que importa se alguém ouve?” O título pretendia ser um pouco cómico, mas o ensaio de Babbit avançava um argumento sério: a única maneira de um músico manter sua integridade artística face à cultura populista é retirar-se do mundo comercial e garantir que suas obras tenham “pouco ou nenhum valor de mercado”.

Durante as décadas seguintes, foram o jazz e a música popular a assumir o desafio da experimentação sem abandonar a perspetiva de conquistar um público de massa. Em contraste, a música clássica foi reduzida a uma de duas coisas: ou um museu do passado onde músicos com trajes vitorianos tocam em salões luxuosos, favorecendo a ideologia da alta cultura e do bom gosto dos ouvintes, ou então um modernismo resolutamente sério que desafia o público a viver à altura da sua alta intelectualidade.

Em ambos os casos, a tradição da música europeia estava a abandonar em grande medida qualquer desejo ou esperança de conquistar uma renovada relevância popular para uma audiência de massas. Em vez de uma arte viva, estava a tornar-se um significante cultural e social de refinamento e de elitismo.

E quando houve tentativas de se dirigir a um público mais amplo, assumiram frequentemente as formas mais triviais e comerciais. Exemplos deste fenómeno incluem aqueles tenores inflados pela publicidade que cobram salários excessivos por cantar antigos sucessos de ópera italiana usando microfones em estádios gigantescos ou o assustador marketing de jovens violinistas com imagens sexualizadas nas suas capas de álbum.

Fora do tempo

Também para o público, num mundo de capitalismo tardio com os seus cultos de estilos de vida hiper-comercializados, junto com a diminuição do tempo de lazer, quando muitos de nós trabalhamos mais duramente e mais tempo por menos dinheiro, o tipo de espaço psicológico necessário para desfrutar da música clássica também está a diminuir consideravelmente. Uma das características que muitas vezes distingue a música clássica de outros géneros é a extensão das suas composições. Em comparação com a música medieval, mas também com a música popular moderna, as obras clássicas são significativamente mais longas.

A Sinfonia nº 2 de Aaron Copland (1993), apelidada de “Sinfonia Curta”, dura quinze minutos (ou seja, mais do que quase todas as canções pop e a maioria das composições de jazz). Uma sonata clássica, quarteto ou sinfonia típica dura cerca de trinta minutos, até mais. No limite máximo, uma apresentação da Sinfonia nº 3 (1896) de Mahler dura quase cento e dez minutos, enquanto o Quarteto de Cordas n.º 2 (1983) requer quase seis horas de escuta.

Além do comprimento, esta música requer um alto nível de concentração e compromisso que muitos de nós não podemos permitir. À medida que o ritmo da vida social acelera, o tempo livre reduz-se. É cada vez mais comum as pessoas usarem o pouco tempo livre que lhes resta para descansar, relaxar e recuperar, ao invés de se envolverem num exercício de intensa concentração. A música pop de cinco minutos é muito mais digerível do que uma peça de música abstrata de uma hora.

De facto, como alguém que escuta regularmente música clássica enquanto viaja nos transportes públicos – geralmente o único momento livre que encontro num dia de trabalho – tenho que dizer que muitas vezes fico frustrado por não ter tempo suficiente para ouvir um trabalho completo. Acabo escolhendo obras mais curtas ou partes individuais de um trabalho maior.

Além disso, como não estou estritamente focado na música, mas a fazer outras coisas ao mesmo tempo, tendo a recair em trabalhos com os quais tenho alguma familiaridade. Basicamente, estas limitações forçam-me a replicar a típica abordagem compactada da rádio de música clássica, ou seja, ouvir clássicos já gastos.

Em resumo, podemos traçar a ascensão e queda da música clássica ou europeia enquanto forma de arte de massas ao longo de um arco histórico. Vai de um período de oportunidades revolucionárias abertas pela ascensão do capitalismo no século XVII, passa pelas crises profundas do século XX e termina com a degeneração da burguesia e do espaço disponível para a vida cultural que reina no presente.

Do rio para o delta

Há um aspeto mais positivo da crescente marginalização da música europeia. Formas musicais que o imperialismo europeu ea sua arrogância cultural tinham marginalizado capturam agora a imaginação de pessoas em todo o mundo, mesmo no Norte Global.

O vanguardista John Cage disse numa altura:

Vivemos numa época em que a cultura não responde a uma corrente dominante, mas a muitas correntes, se insistirmos na imagem de um rio do tempo, podemos dizer que alcançámos o delta, ou ainda mais longe, o oceano.

Ele dizia isso como uma reflexão positiva sobre o declínio da dominação das formas clássicas, da tonalidade, ou, no seu caso, até das expectativas tradicionais sobre a pauta e o som musical. Outros, contudo, pensam que isto significa a morte do que eles consideram música “séria”, ou melhor, a perda da música clássica como o núcleo do que invocamos quando pensamos sobre música.

Pela minha parte, estou do lado de Cage, no sentido em que penso que a proliferação de formas e estilos musicais é basicamente um elemento positivo. A hegemonia da tradição clássica na música era também a hegemonia de uma cultura europeia branca que supostamente representava o auge da arte civilizada. O desenvolvimento do jazz e do rock permitiu reconhecer o valor dos ritmos e sons africanos e negros. Desde então, a influência da música latina, ou os sons da cítara e do tambor metálico, continuaram a expandir a paleta auricular que acessamos e desfrutamos.

Boulez lembrava que durante uma viagem de juventude às Caraíbas e à América do Sul ele tinha descoberto a música espiritual do Candomblé, uma religião associada aos descendentes dos escravos negros no Brasil. Os sons destas regiões encontraram caminho em muitas das suas obras, desde Le Marteau sans maître (1955) até Sur Incises (1998).

Em períodos anteriores, a música clássica costumava estar aberta a tais influências. Mas hoje em dia procurou isolar-se delas. Recentemente houve uma espécie de histeria quando foi anunciada a nomeação do Grammy na categoria de música clássica para Jon Batiste e Curtis Stewart, dois negros que usam música popular, jazz e técnicas de blues nas suas composições para além das clássicas. Os gritos de fúria tinham um caráter abertamente elitista e também, mais subtilmente, racista.

Isto não quer dizer que as portas estão completamente fechadas. Os minimalistas americanos como Steve Reich e Philip Glass acolhem a influência da percussão africana e as canções de David Bowie, respetivamente. Julius Eastman, um compositor afro-americano negligenciado durante muito tempo, conseguiu uma fusão estimulante de minimalismo, ritmos pop e atonalismo. Os compositores britânicos Mark-Anthony Turnage e Thomas Adès fazem experiências com ska e outros estilos populares, enquanto o Concerto para Turntables de Gabriel Prokofiev (2006) tenta comunicar tradições musicais de diferentes épocas.

Batiste e Stewart, cujas nomeações despertaram tanta fúria na música clássica snobe, são músicos enraizados na tradição clássica, altamente talentosos, mas ainda assim em contacto com formas populares. Por exemplo, o álbum Of Colours (2016) de Stewart inclui uma reinterpretação jazzística estonteante de Quatro Peças para Violino e Piano de Anton Webern (1919).

De igual forma, os programas de concertos e gravações ainda são dominados pela música composta há cem ou duzentos anos. A maioria dos compositores da tradição clássica ou da tradição europeia trabalha hoje em dia com formas que têm muitas décadas ou séculos. Poucos se relacionam diretamente com formas contemporâneas de música popular no sentido que Haydn fez com seus minuetos, Maher e Bartók com o folclore ou Stravinsky com o jazz.

Recentemente houve algumas tentativas de recuperar as obras de compositores negligenciados pelo seu género ou raça. Assim, trabalhos de grandes compositores como Eastman, Ruth Grips e Florence Price, estão finalmente a ser reconhecidos e a ajudar a refrescar o reportório. Apesar de tudo, continua-se sobretudo a escavar o passado. Resumindo, o termo “clássico” acabou por denotar uma tradição que em termos gerais já deixou de imaginar o que poderia ser mas em vez disso se tenta agarrara ao que era.

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Simon Behrman é autor de “Shostakovich: Socialism, Stalin & Symphonies”.

Traduzido por Gercyane Oliveira para a Jacobin Brasil. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

A Ospa dá seu primeiro (e ótimo) concerto de 2023. E músicos fazem protesto

A Ospa dá seu primeiro (e ótimo) concerto de 2023. E músicos fazem protesto

O primeiro concerto da Ospa deste ano foi extremamente promissor. Casa lotada e a orquestra tocando realmente muito bem. Sem exagero, talvez o concerto de ontem tenha mostrado a melhor Ospa que vi nos últimos anos.

Tudo está puxando a qualidade da orquestra para cima: a presença dos novos concursados, a atuação do maestro Evandro Matté, a necessidade de se mostrar altamente profissional mesmo sem o reajuste do valor da manutenção dos instrumentos desde 2012. Sabem que os instrumentos são de propriedade dos músicos, assim como a obrigação de mantê-los? Sabem que tudo é em dólares e euros?

Antes do concerto, houve a leitura de uma carta muito madura e digna cobrando o estado. Foi aplaudida de pé pelo público presente na Casa da Ospa, mas não apareceu na transmissão pelo YouTube, me contaram.

Voltando ao concerto, digo que aquilo que me entrou pelos ouvidos ontem foi sensacional. O desempenho em “Um Americano em ParisUm Americano em Paris” não foi nada esquecível. As duas obras de Villa-Lobos, idem.

Há coisas diferentes na programação deste ano. A Sinfonia Singular de Berwald é uma delas. Finalmente, teremos Haydn de volta, apesar de que poderíamos ter mais do que apenas a 104. Também virá a raramente executada Sinfonia Nº 1 de Shostakovich, que é linda. Teremos também a 5ª e a 9ª do compositor. Idem para o Concerto para Orquestra de Bartók e o Concerto para Piano Nª 1 de Brahms. Tem também a Sinfonia Nº 1 de Mahler. Mas não tem Bruckner, o que é lamentável. Mas fazer o quê? Fica pra 2024…

Vida longa a esta grande orquestra!

Obs.: a foto foi roubada de Max Uriarte.