O dia em que Siri conheceu Paul

O dia em que Siri conheceu Paul

“23 de fevereiro de 1981”. Saímos com J. do recital de poesia e paramos no saguão da 92nd Street Y para conversar sobre os poemas que acabamos de ouvir. De onde estou, olhei para um homem atraente parado na frente da porta. Ele tem um rosto magro, olhos enormes e uma boca pequena e delicada; cabelos quase finos e pele morena clara. Ele fuma um charuto e se enrola dentro de seu casaco de couro e calça jeans toda vez que o coloca nos lábios. Percebo que ele tem pés bem grandes e gosto desses pés também. Em questão de segundos cobri-o com o olhar e sinto-me tonta com a atração. Não me lembro se J. me viu comê-lo com os olhos e me disse que o conhecia, ou se perguntei se ele tinha alguma ideia de quem ele seria. “É Paul Auster – disse ele –, o poeta.” Ele nos apresenta e nós três vamos de táxi até o centro. No banco de trás, Paul fala sobre George Oppen, o poeta que acabou de visitar na Califórnia. Gosto da voz dele e do calor e da ternura que percebo nela quando fala de “George”. Eu não sabia na época, mas agora me pergunto se o que ouvi parece familiar. Meu pai tinha essa qualidade quando estava vivo… Sua voz mudava quando ele falava sobre alguém que apreciava. No táxi já estou apaixonada, delirante, embelezada, levada, e tento esconder. O homem a meu lado não reflete isso. Vejo isso em seus olhos velados e pensativos.

Não o deixo sozinho nem por um momento. Na festa só falei com ele. Nós conversamos e conversamos. Descemos a rua e conversamos. Sentamos em um bar e conversamos. Seus lindos olhos começam a me focar. Ele está me observando, ele está me ouvindo. Posso ver que ele gosta de mim.

É madrugada e estamos juntos na West Broadway. Estou tão perto dele, olhando-o na cara, mas agora, depois de horas e horas de conversa, não tenho mais nada a dizer. Está tarde. A noite acabou e irei para casa pensar sobre isso. De repente ele me beija, e é o melhor beijo de todos. Um táxi para e embarcamos juntos.

Pouco depois li seus poemas, seus ensaios e finalmente a primeira metade de A invenção da Solidão, “Retrato de um Homem Invisível”. Nessa altura já lido muitos livros, Era uma historiadora que estava se preparando para a literatura, mas estes surpreenderam-me pela originalidade. Conheci o homem antes de ler o que ele havia escrito, mas se eu não estivesse tão entusiasmada com seu trabalho quanto com ele, ou se ele não tivesse depois admirado minha maneira de escrever, talvez as coisas fossem mudar depois. Nosso trabalho constituiu um componente íntimo da nossa relação amorosa e dos nossos 23 anos de casamento, mas o que leio dele vem daquele lugar dentro dele que eu nunca conhecerei.

—Siri Hustvedt
(Trecho de Uma história sobre o eu ferido — 2004).

Paul Auster (1947-2024)

Paul Auster (1947-2024)

Está chovendo novamente… Olho no celular e minha irmã está me avisando que Paul Auster morreu. O dia piora. Complicações de um câncer no pulmão.

Foi um enorme escritor e criador. Tem 30 romances, escreveu poesia, roteiros de filmes e até dirigiu um.

Vi-o no antigo Fronteiras do Pensamento. Foi quase uma entrevista ao vivo. Era um sujeito tranquilo, envolvente, educadíssimo, deu vontade de virar a noite conversando com ele. Ninguém queria que acabasse.

Devo ter lido uns 10 livros dele. Não vou ser original: amo a Trilogia de Nova York. A foto que posto é da minha irmã. Ela diz que têm esses Auster e pede mais para a Livraria de seu irmão. Eu, no caso.

Ah, hoje é o Dia do Trabalhador. Os trabalhadores da Livraria Bamboletras estão em casa, mas eu estou aqui aguardando vocês até às 17h. Ler com chuva é o máximo. Podem vir.

Venâncio, 113. WhatsApp 51 99255 6885.

Misoginia, vem aqui à mãe para levares tau tau

Misoginia, vem aqui à mãe para levares tau tau

Por Isabela Figueiredo, em seu perfil do Facebook

A escritora foi à escola do Douro falar sobre os seus livros, em particular, e sobre a leitura, em geral – com alunos do ensino secundário. Uma sala cheia, como gosta. Foi recebida pela pessoa responsável pela biblioteca. Perguntou-lhe se a escola tinha adquirido os livros sobre os quais ia falar. Não, senhora. A escritora declarou que essa tinha sido uma condição solicitada: aquisição de livros da autora para a biblioteca escolar. Um de cada. Bastava. “É que não é coerente nem profícuo falar com os alunos sobre livros se não estão posteriormente disponíveis para leitura.” A pessoa nada sabia sobre o assunto, mas gentilmente afirmou que podia falar com o senhor diretor, que disse ter a intenção de estar presente na conversa com os alunos. “Muito bem”, respondeu a escritora.

Subiram para o auditório. As turmas entraram com os professores. Primeiro o 12º ano, à frente, depois o 11º, entalado a meio da sala, a seguir duas turmas do 10º, que preencheram os lugares de trás. Alunos com bom ar. Giros. Interessados.

A escritora preparou o seu cenário de trabalho, o caderno, os livros, ajeitou as mesas, tal como precisava delas, e ficou sozinha à frente, à espera. Entrou um homem e colocou-se em pé, do lado esquerdo. Não falou com a escritora nem se apresentou. Pela atenção aos alunos parecia um professor acompanhante ou um auxiliar educativo, pensou a escritora, sem se preocupar. O homem foi trocando palavras com alguns alunos. O tempo passava e nada acontecia. A certa altura a escritora perguntou em voz alta, de forma a ser ouvida por toda a sala, “quem é que faz a introdução desta sessão?” Alguém haveria de saber. O homem respondeu “faço eu”. A escritora disse “ok” e aguardou. Eram 10h40. Às 10h45 perguntou a que horas acabava a sessão, porque precisava de calcular o tempo. O homem respondeu “às 11h30”. A escritora pensou “tenho pouco tempo” e avançou que era melhor começarem. O homem respondeu que estava à espera de uma turma de 10º. A escritora calou-se. O homem continuou a falar. Esperou-se. O homem conversava com alunos do 12º. A escritora olhou para o relógio e verificou que faltavam cinco minutos para as 11, altura em que afirmou: “temos de começar”. O homem conformou-se e anunciou “temos de começar sem os que faltam.” Começou por agradecer aos alunos a disponibilidade para estarem ali. A escritora pensou que a sessão decorria em tempo de aula, com os respetivos professores. O homem declarou que os hábitos de leitura eram importantes, ele próprio lia bastante no contexto da sua profissão. Neste passo do discurso, a escritora olhou-o. Ouviu-o agradecer aos alunos a sua presença ali. A dela, escritora. Voltado para os alunos. Anunciou que a escritora “vinha falar de um livro sobre cães.” A turma que faltava entrou, finalmente, e o homem resumiu para os recém-chegados aquilo que já tinha dito. A escritora pensou “lá se vão mais dois minutos.” Felizmente, o homem concluiu a introdução, percorreu a lateral na direção da porta e saiu. A escritora ficou a vê-lo sair, boquiaberta. Quando a porta se fechou a escritora ouviu-se a exclamar “mas foi-se embora? Mas ficamos sozinhos, só eu, os alunos e professores das turmas?” Os alunos riram-se, os professores das turmas puseram os dedinhos no ar, sim, estavam ali. A escritora não perdeu tempo: “ah, ok, tudo bem, vamos lá então começar, porque tenho muito pouco tempo para falar.” A mulher pega no “Caderno de Memórias Coloniais”, levanta-o bem alto e diz “trouxe este livro para oferecer à vossa biblioteca. A vós. É um livro do qual as bibliotecas não costumam gostar, não costumam adquirir por causa de um certo palavreado que vocês usam com abundância nos corredores, de maneira que resolvi trazê-lo eu para estar disponível sem constrangimentos. Se por acaso a leitura vos for negada, façam-me saber através das redes sociais. Tenho outros livros meus para vos oferecer, o que farei dentro em pouco, mas não quero sair daqui sem deixar este aviso.” E quando levantou o “Caderno” bem alto e disse “se a leitura vos for vedada avisem-me”, a mulher percebeu que estava capaz de limpar sebo. A pessoa responsável pela biblioteca disse lá do fundo “vai estar, vai estar.” A escritora respondeu “ótimo, perfeito, é isso que quero garantir.”

A conversa correu lindamente, embora o tempo fosse escasso. Os alunos mostraram interesse em ler. Um belo encontro, como é raro.

Lanço agora eu um desafio:

– quem seria o homem que apresentou a escritora do livro sobre cães? A escritora não faz ideia de como se chama.
– porque motivo o homem não se apresentou, não falou diretamente com a escritora, não lhe agradeceu a sua presença, não se despediu e nunca estabeleceu contacto visual?
– a escritora pergunta-se se teria tido a sorte de manter um ligeiro contacto formal, porém um contacto, caso fosse o Valter Hugo Mãe, o Afonso Reis Cabral, o José Luís Peixoto, o João Tordo ou, e isso, sim, seria relevante, o José Rodrigues dos Santos ou o “tenham noção”.

E é só isto que a escritora me pediu para relatar no Dia Internacional da Mulher. Por ser o dia que é e por ter prometido à sua alma que nunca mais calaria o que não pode calar-se.

Ilustração recolhida em https://www.annesiems.com/. Vejam o trabalho incrível de Anne Siems, a quem não pedi autorização para reproduzir a ilustração.

Se a autora aqui vier ter, informo que este texto não tem fins comerciais, peço desculpa e agradeço a sua ajuda.

Quatro livros de quatro autores do Fronteiras do Pensamento 2021

Quatro livros de quatro autores do Fronteiras do Pensamento 2021

O Conto da Aia
Margaret Atwood
Rocco
368 páginas

Se O Conto da Aia (1985) já era o livro mais famoso e vendido da canadense Margaret Atwood, a premiada série que tem por base o livro — The Handmaid`s Tale, atualmente na quarta temporada — alçou-o ainda mais. Para completar, a autora lançou em 2019 sua continuação, chamada Os Testamentos. O livro é um clássico moderno e tornou-se referência para quem escreve sobre políticas destinadas a mulheres. Trata-se de uma distopia ferozmente política e sombria, que não pode ser considerada uma ficção científica, pois não é propriamente futurista. A obra explora os temas da subjugação das mulheres e os vários meios pelos quais elas perdem a independência. O Conto da Aia conta a história de Offred e de seu papel como serva. As servas são forçadas a fornecer filhos para as mulheres inférteis de status social mais elevado, as esposas dos Comandantes. A ideia é a de que sejam invisíveis, tornando-se apenas a soma de suas partes biológicas. Desta forma, o corpo de Offred se torna uma causa de desconforto para ela. É um romance cada vez mais importante nos dias atuais, onde mulheres de várias partes do mundo ainda vivem uma realidade ditada pelo determinismo biológico e pela misoginia.

Elisabeth Moss, da série de TV, e Margaret Atwood

.oOo.

Sapiens – Uma Breve História da Humanidade
Yuval Noah Harari
Cia. das Letras
472 páginas

Harari não para. Aos 45 anos, já é autor de livros fundamentais que certamente você conhece: Sapiens, Homo Deus, 21 Lições para o Século 21, Notas sobre a pandemia… Seu livro mais importante é Sapiens, cuja edição espanhola recebeu um belo e esclarecedor título: De animais a deuses. O livro é dividido em 4 partes. A primeira fala do surgimento na Terra do gênero Homo e de sua evolução até o triunfo do Homo Sapiens sobre as demais espécies. A segunda trata da revolução neolítica, aqui denominada “revolução agrícola”, ou seja, aquele momento que transformou a sociedade de caçadores-coletores nômades em uma de agricultores e pastores, há cerca de 10.000 anos. A terceira já nos remete à modernidade, ao período da primeira globalização e ao surgimento dos grandes impérios mundiais, como o romano e o britânico. Impérios que se baseiam na ambição de tomar, evangelizar ou “civilizar” outros povos. A última seção é dedicada à “revolução científica”, a todas as descobertas dos últimos 500 anos no campo da ciência. Aqui, ele trata dos grandes avanços tecnológicos, desde os gerados pela revolução industrial até os mais recentes na engenharia genética, como a recriação de um cérebro humano dentro de um computador.

.oOo.

Drogas para Adultos
Carl Hart
Zahar
408 páginas

Neste livro, o professor de psicologia e psiquiatria da Universidade de Columbia argumenta que o uso de drogas deve ser uma questão de escolha pessoal – e que, na maioria dos casos, a escolha pessoal pode levar a resultados positivos. Suas posições podem parecer radicais para alguns, mas também fazem muito sentido – e são apoiadas por ampla pesquisa. Um dos principais motivos pelos quais as drogas têm uma imagem pública tão negativa seria o racismo. Hart observa que, após a Guerra Civil, alguns trabalhadores chineses que trabalhavam na construção de ferrovias chinesas fumavam ópio e estabeleceram “pontos de ópio” para fazê-lo. Com o tempo, mais e mais americanos brancos visitaram estes pontos. Isso, por sua vez, levou a um medo social mais amplo e preconceituoso entre os brancos e até hoje há a ligação, nos EUA, entre drogas e raça. Depois, os negros acabaram ligados à cocaína. Drogas para Adultos defende que as pessoas têm o direito de usar drogas, se assim o desejarem. Na opinião de Hart, seria melhor que elas fossem legais, com testes de pureza e apoio social para aqueles que delas precisam. O que temos agora, em vez disso, é o encarceramento racista em massa e a vergonha social. O livro é uma aula de liberdade pessoal sem estigma social.

.oOo.

O Novo Iluminismo
Steven Pinker
Cia. das Letras
664 páginas

O Novo Iluminismo é, sobretudo, um livro importante nestes tempos de trevas. É também um livro muito bem escrito, farto em informações, e praticamente impecável em sua coerência. Pinker faz um chamado para a valorização do conhecimento científico como premissa e paradigma a fim de alcançarmos a superação das mazelas e sofrimentos da humanidade em todos os níveis, para a evolução da nossa espécie em direção a uma nova era de prosperidade, paz e solidariedade. Um otimista? Certamente, mas nada ingênuo, pois reconhece as implicações, as barreiras e toda a amplitude político-ideológica que tem de ser superadas. O Novo Iluminismo mapeia as melhorias acontecidas ao longo do último meio século em áreas como o racismo, sexismo, homofobia e bullying, até acidentes de carro, derramamento de óleo, pobreza, lazer, empoderamento feminino e assim por diante. Seus gráficos sugerem que o ateísmo está aumentando e a religiosidade diminuindo nos Estados Unidos. Seus estudos, se forem lidos com atenção, são convincentes, pintando um retrato implacável e insistente de melhoras baseadas no conhecimento. Esta noção faz muita falta em tempos de terraplanismo e de combate às universidades e ao conhecimento.

Um grito | Padura escreve sobre as manifestações em Cuba

Um grito | Padura escreve sobre as manifestações em Cuba

Por Leonardo Padura

Parece bem possível que tudo o que aconteceu em Cuba desde o último domingo, 11 de julho, tenha sido encorajado por um maior ou menor número de pessoas contrárias ao sistema, algumas delas até mesmo pagas, com o objetivo de desestabilizar o país e causar uma situação de caos e insegurança. Também é verdade que em seguida, como costuma acontecer nesses eventos, ocorreram atos oportunistas e lamentáveis de vandalismo. Mas acredito que nenhuma das evidências tira um pingo de razão do grito que escutamos. Um grito que também é fruto do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise econômica e uma crise pontual de saúde, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas.

A esse clamor desesperado, as autoridades cubanas não deveriam responder com os habituais lemas, repetidos há anos, e com as respostas que essas autoridades querem ouvir. Nem mesmo com explicações, por mais convincentes e necessárias que sejam. O que se impõe são as soluções que muitos cidadãos esperam ou exigem, alguns se manifestando na rua, outros dando sua opinião nas redes sociais e expressando sua desilusão ou discordância, muitos contando com os poucos e desvalorizados pesos que têm em seus empobrecidos bolsos e muitos, muitos mais, fazendo filas em um silêncio resignado por várias horas sob sol ou chuva, inclusive com a pandemia, filas nos mercados para comprar comida, filas nas farmácias para comprar medicamentos, filas para conseguir o pão nosso de cada dia e para tudo imaginável e necessário.

Acredito que ninguém com um mínimo de sentimento de pertencimento, com um sentido de soberania, com uma responsabilidade cívica pode querer (ou mesmo acreditar) que a solução para esses problemas venha de qualquer tipo de intervenção estrangeira, muito menos de natureza militar, como chegaram a pedir alguns, e que, também é verdade, representa uma ameaça que não deixa de ser um cenário possível.

Também acredito que qualquer cubano dentro ou fora da ilha sabe que o bloqueio, ou embargo comercial e financeiro dos Estados Unidos, como queiram chamá-lo, é real e se internacionalizou e intensificou nos últimos anos. E é um fardo muito pesado para a economia cubana (como seria para qualquer outra economia). Aqueles que vivem fora da ilha e querem hoje ajudar seus familiares em meio a uma situação crítica, podem comprovar que existe e o quanto existe ao serem praticamente impedidos de enviar uma remessa para seus familiares, só para citar uma situação que afeta muitos. É uma política antiga que, aliás (às vezes alguns esquecem), praticamente todo o mundo tem condenado por muitos anos nas sucessivas assembleias das Nações Unidas.

E não acredito que alguém possa negar que também foi desencadeada uma campanha midiática na qual, até das formas mais grosseiras, foram divulgadas informações falsas que, do princípio ao fim, só servem para diminuir a credibilidade de seus gestores.

Mas acredito, junto a tudo o que foi dito acima, que os cubanos precisam recuperar a esperança e ter uma imagem possível de futuro. Se a esperança se perde, perde-se o sentido de qualquer projeto social humanista. E a esperança não é recuperada pela força. Ela é resgatada e alimentada com soluções, mudanças e diálogos sociais, que por não chegarem têm causado, entre tantos outros efeitos devastadores, os anseios migratórios de tantos cubanos e agora provocam o grito de desespero de pessoas entre as quais certamente havia criminosos oportunistas e pessoas pagas para tanto. Embora eu me recuse a acreditar que no meu país, a esta altura, possa haver tanta gente, tantas pessoas nascidas e educadas entre nós que se vendam ou cometam crimes. Porque se assim fosse, isso seria fruto da sociedade que os fomentou.

A forma espontânea com que um número notável de pessoas também tem se manifestado nas ruas e nas redes, sem se atrelar a nenhuma liderança, sem receber nada em troca ou roubar nada pelo caminho, deveria ser um alerta. E penso que é uma amostra alarmante das distâncias que se abriram entre as esferas políticas dirigentes e as ruas (e isso foi até mesmo reconhecido pelos dirigentes cubanos). Só assim se explica que o que aconteceu, sobretudo em um país onde quase tudo se sabe quando se quer saber, como todos nós também sabemos.

Para convencer e acalmar os desesperados o método não pode ser o das soluções de força e obscuridade, como impor um apagão digital que cortou há dias as comunicações de muitos, mas que não impede as ligações de quem quer dizer alguma coisa, a favor ou contra. Muito menos pode se empregar como argumento de convencimento a resposta violenta, especialmente contra os não violentos. E já se sabe que a violência pode ser não apenas física.

Muitas coisas parecem estar em jogo hoje. Talvez até depois da tempestade venha a calmaria. Talvez os extremistas e fundamentalistas não consigam impor suas soluções extremistas e fundamentalistas, e não se enraíze um perigoso estado de ódio que tem crescido nos últimos anos.

Mas, de qualquer forma, é necessário que cheguem as soluções, respostas que não deveriam ser apenas de natureza material mas também de caráter político. E assim uma Cuba melhor e inclusiva poderia responder às razões desse grito de desespero e perda de esperanças que, em silêncio, mas com força desde antes do 11 de julho, vinham de muitos de nossos compatriotas. Esses lamentos que não foram escutados e cujas chuvas originaram esse lamaçal.

Como cubano que vive em Cuba, trabalha e acredita em Cuba, presumo que tenho o direito de pensar e expressar minha opinião sobre o país em que vivo, trabalho e acredito. Já sei que em momentos como este e ao tentar expressar uma opinião, acontece de ser “sempre reacionário para alguns e radical para outros”, como disse certa vez Claudio Sánchez Albornoz. Também assumo esse risco, como um homem que almeja ser livre, que espera ser cada vez mais livre.

Mantilla (Havana), 15 de julho de 2021

* Tradução de Isabella Meucci

Pois é, eu e Padura | Foto: Roberta Fofonka

“Foi repugnante”: leia a fulminante avaliação de Tchékhov sobre a noite de estreia de sua primeira peça

“Foi repugnante”: leia a fulminante avaliação de Tchékhov sobre a noite de estreia de sua primeira peça

Hoje é o data do 117º aniversário da morte de Anton Tchékhov. Ele é considerado um dos maiores escritores de contos de todos os tempos, e suas peças, hoje clássicas, estabeleceram as bases para o realismo do teatro contemporâneo. Além disso, ele foi médico praticante durante a maior parte de sua carreira de escritor. O que esse cara não poderia fazer? Mas até Tchékhov ficava constrangido.

Em 1887, ele — até então basicamente um satírico e contista — foi contratado por um gerente de teatro para escrever sua peça de estreia, Ivanov. Escreveu Ivanov em apenas duas semanas e a peça foi imediatamente produzida. Tchékhov ficou puto. Em uma carta para seu irmão Alexandr, logo após a primeira apresentação, Tchékhov criticou os atores como “irreconhecíveis”, “bêbados como sapateiros”, transformando seu texto em algo “tedioso e nojento”. No entanto, o público adorou a peça, que foi aplaudida e elogiadíssima. Tchékhov resumiu seus sentimentos conflitantes sucintamente: “No geral, me sinto cansado e irritado. Foi repugnante, embora a peça tivesse sido um sucesso”.

Aqui está a carta completa e incrível:

Bem, a primeira apresentação acabou. Vou lhe contar tudo em detalhes. Para começar, Korsh me prometeu dez ensaios, mas deu apenas quatro, dos quais apenas dois poderiam ser chamados de ensaios, pois os outros dois eram torneios em que messieurs les artistes se exercitavam em brigas e discordâncias. Davydov e Glama eram os únicos dois que conheciam seus papéis, os outros improvisavam.

Ato um. – Estou atrás do palco em uma pequena caixa que parece uma cela de prisão. Minha família está nervosa. Contrariamente às minhas expectativas, estou calmo. Os atores estão nervosos. Se benzem. A cortina sobe… O ator principal esquece suas falas e diz qualquer coisa. Kiselevsky, em quem eu depositava grande esperança, não proferiu uma única frase corretamente — literalmente nenhuma. Ele disse coisas de sua própria larva… Apesar disso e dos erros do diretor de palco, o primeiro ato foi um grande sucesso.

Ato dois. – Muitas gente no palco. Eles não conhecem suas partes, cometem erros, falam bobagens. Cada palavra me corta como uma faca Mas — ó Musa! — esse ato também foi um sucesso. Houve chamadas para todos os atores e fui chamado duas vezes ao palco antes de fechar a cortina. Parabéns e sucesso.

Terceiro ato. – A atuação não é ruim. Sucesso enorme. Tive de me aproximar da cortina três vezes e, ao fazê-lo, Davydov apertou minha mão e Glama, como Manilov, apertou minha outra mão em seu coração. O triunfo do talento e da virtude…

Quarto ato, cena um. – A plateia, desacostumada a deixar seus lugares e ir ao bar entre duas cenas, reclama. A cortina sobe. Tudo bem: avista-se a mesa da ceia (de casamento). A banda toca floreios. Os padrinhos saem: eles estão bêbados, então você vê que eles acham que devem se comportar como palhaços e dar cambalhotas. A brincadeira e a atmosfera me reduzem ao desespero. Sai então Kiselevsky: é uma passagem poética, comovente, mas o meu Kiselevsky não conhece o seu papel, está bêbado e um breve diálogo poético se transforma em algo tedioso e nojento: o público fica perplexo. No final da peça, o herói morre porque não consegue superar o insulto que recebeu. A audiência não entende essa morte. Aplausos para os atores e para mim. Ouço sons de assobios, abafados pelas batidas de palmas.

No geral, sinto-me cansado e aborrecido. Foi repugnante, embora a peça tivesse sido um sucesso considerável…

Os frequentadores do teatro dizem que nunca tinham visto tal efervescência no teatro, tantos aplausos. E nunca o autor fora chamado para ser aplaudido depois do segundo ato.

Portanto, dramaturgos, se vocês já se irritaram com o resultado de seu trabalho…

Uma rara foto de Tchékhov sorrindo

Svetlana Aleksiévitch foi detida em Berlim, suspeita de carregar uma bomba…

Svetlana Aleksiévitch foi detida em Berlim, suspeita de carregar uma bomba…

A Fundação Olga Tokarczuk informou no dia de hoje:

Senhoras e Senhores,

Ontem, Svetlana Aleksiévitch devia ter chegado a Wrocław antes da meia-noite. No final da noite descobrimos que ela estava detida no aeroporto de Berlim, aparentemente porque ela carregava uma bomba… Ela só foi autorizada a sair depois que o avião partiu. A bomba não foi encontrada, claro. Os organizadores do evento Aleksiévitch e Tokarczuk Protest enviaram uma missão de resgate noturno para Berlim por terra e a Prêmio Nobel já está em Wrocław.

No carro, ela deu uma pequena entrevista à colaboradora da Fundação Olga Tokarczuk e à Wrocław House of Literature, a tradutora Janie Karpienko. Leia a entrevista da vencedora do Prêmio Nobel na situação mais surreal que tanto os organizadores do evento de hoje como a própria escritora já encontraram. Antes do exaustivo dia de Svetlana em Wrocław, esperamos que ela consiga ao menos descansar um pouco. Prometemos também que não vamos deixar essa situação ultrajante sem explicação de parte das instituições responsáveis pelo ocorrido.

Svetlana Aleksiévich ao finalmente chegar em Wrocław.

O que aconteceu no aeroporto de Berlim?

— Uma história de Lukashenko. No aeroporto em Berlim, durante a verificação de segurança, coloquei minhas bagagem de mão na esteira. Então, tudo parou para nova verificação. Pensei que isso que acontece às vezes. Talvez eu tivesse esquecido de tirar um perfume ou qualquer outra coisa pequena. Fiquei muito tempo esperando. Finalmente, um homem do aeroporto chegou e disse que ia abrir minha mala. Queria ajudá-lo, mas ele mesmo abriu. Quando ele abriu a mala, ficou descontrolado, muito irritado… Eu fiquei muito curiosa sobre o motivo de ele ter reagido daquela forma. Disseram-me que eu teria que esperar. Eu não sabia o que estava acontecendo. Fiquei esperando e esperando… Reclamei que ia perder o avião, mas eles não reagiram. Depois de muito tempo, uma senhora do serviço do aeroporto se aproximou e ficou ao meu lado. Minha pergunta foi: “O que aconteceu?”. Ela respondeu “Estamos à espera da polícia”. Fiquei surpresa – “Por que a polícia?”. Pensei que ela gostaria de ver as minhas coisas outra vez. Mas ela não deixava ninguém chegar perto delas. Então veio um policial, apontou para minha mala e disse tinha uma bomba nela! Eu respondi que eles deviam ser loucos. Depois, outro homem chegou cheio de aparelhos e verificou novamente. Pediram que eu descarregasse tudo o que havia na mala. Eles ficaram conversando por um tempo… E disseram que tudo estava OK. Verificaram a minha segunda bolsa onde estavam o meu tablet, alguns livros e um caderno que leveva comigo. Olharam tudo, não havia bomba e me liberaram. Nem me pediram desculpas.

Ninguém disse nada?

— Nada. Já era tarde, o aeroporto estava quase vazio. Eu nem sabia para onde ir porque já tinha perdido o voo. Queria obter informações, perguntar se poderia pegar outro voo, mas não achei ninguém. Liguei para meu agente e um amigo veio me buscar. Depois houve outro problema com a bagagem principal. Não a encontrávamos. E bem — tudo estava fechado. Finalmente encontramos um ponto de recolhimento de coisas extraviadas. Uma mulher veio falar conosco — era uma russa de Chelyabinsk que me reconheceu. Ela prometeu escrever uma queixa sobre a situação. De qualquer forma, recuperei a minha bagagem. Só aquela mulher russa se desculpou. Ninguém além dela.

Como você analisa essa situação?

— Essas pessoas sentem uma autoridade sem limites e sabem que não haverá consequências pare elas. No entanto, nunca tinha visto nada assim antes.

Como te sentes agora, depois de uma viagem de carro noturna, já em Wrocław?

— Um pouco cansada, mas está tudo bem. É uma cidade muito bonita e gosto dela.

Charles Dickens temia que sua escrita pudesse assustar seus leitores até a morte

Charles Dickens temia que sua escrita pudesse assustar seus leitores até a morte

Charles Dickens, depois de escrever a perturbadora cena de Oliver Twist onde Bill Sikes assassina Nancy (spoiler!), estava preocupado que ela fosse tão chocante e assustadora que pudesse assustar muito seus leitores, até provocando-lhes um enfarto ou algo assim.

Impulsionado por esse medo, Dickens fez uma leitura particular com amigos antes da leitura planejada para o público a fim de ver se os ouvintes poderiam lidar com a cena do crime adequadamente. Seu raciocínio é descrito em uma carta a seu amigo Thomas Beard:

Meu caro Beard.

Vou fazer uma coisa estranha no sábado. Não consigo decidir se leio o assassinato de Oliver Twist ou não. Portanto, como terei um punhado de amigos pessoais no St James’s Hall, vou tentar ver como isso os afeta e, assim, decidir. Você pode vir? Às 8h30? Não vai demorar mais de uma hora. Sempre afetuosamente, Charles Dickens.

Dickens não apenas realizou esse experimento em seus amigos, mas também fez um médico registrar seus pulsos antes e depois de ler diferentes passagens — a cena do crime e histórias mais inócuas — para ver se eles estavam em perigo. Leia a nota do médico:

Terça-feira, 8 de março de 1870: Pulso antes de ler ‘Boots at the Holly Tree’: 94. Depois de ler: 112. Depois de ler ‘Nancy & Sykes’ (o assassinato): 120.

Felizmente, Dickens e seus amigos não morreram, mas talvez ele estivesse no caminho certo: vários leitores descreveram o efeito da passagem em Dickens como “surpreendente, quase alarmante”.

Ambos os documentos podem ser vistos na nova exposição do Museu Charles Dickens, More! Oliver Twist, Dickens e Stories of the City, no centro de Londres, que estreia hoje. Se você não puder ir, pode simplesmente dar uma olhada na cena do crime — apenas certifique-se se há médicos à disposição.

Escritores que você deveria cancelar (X): Jack London

Escritores que você deveria cancelar (X): Jack London

[Ironic & Provocation Mode ON]

Caninos Brancos é um dos romances americanos mais famosos do século 19 e uma das melhores histórias já escritas. Mas lá há muito mais acontecendo do que uma simples história sobre um cão abrindo caminho no mundo. Pegue uma cópia de Caninos Brancos e vá para a parte onde nosso herói encontra pessoas brancas pela primeira vez, depois de viver com uma tribo de nativos americanos. “Em comparação com os índios que ele conheceu”, diz o livro, “eles eram para ele outra raça de deuses superiores.” O romance então continua dizendo que o mestre nativo americano de Caninos Brancos “era um deus-criança entre aqueles de pele branca”. Sim, parece que Caninos Brancos (White Fang) é um lobinho muito racista … Provavelmente porque London também era.

Se você acha que as coisas de “deuses superiores” são ruins, então dê uma olhada no ensaio de London chamado “O Sal da Terra” (The Salt of the Earth), que argumentava que os brancos são “uma raça de maestria e conquistas”. London também escreveu que o genocídio era apenas uma parte da seleção natural, algo que é perfeitamente aceitável quando “raças inferiores” encontram os anglo-saxões. London escreveu um conto chamado “The Unparalleled Invasion”. A história começa com os chineses dominando o mundo. E como a história termina? Com os EUA e a Europa atacando a China com armas biológicas, eliminando todos os chineses e reivindicando o país para os brancos em todos os lugares. OK.

Amor pelo WASP?

Escritores que você deveria cancelar (IX): Roald Dahl

Escritores que você deveria cancelar (IX): Roald Dahl

[Ironic & Provocation Mode ON]

Provavelmente não será uma surpresa que Roald Dahl — autor de  James e o Pêssego Gigante, Matilda, O BGA e A Fantástica Fábrica de Chocolate — foi um pouco um monstro na vida real, não muito diferente dos personagens macabros que povoam suas histórias. Dahl era uma pessoa horrível que tornava a vida de todos que trabalhavam em sua editora, Alfred A. Knopf. De acordo com um relato , sempre que Dahl ia ao escritório, “as secretárias eram tratadas como criadas” e “chiliques de raiva absoluta ocorriam tanto pessoalmente quanto por cartas”. Quando a empresa finalmente disse a Dahl para se controlar ou sair, todos no escritório subiram em suas mesas e aplaudiram.

A primeira esposa de Dahl apelidou-o de “Roald, o Podre” (Roald, the Rotten). Além de ser geralmente mal-humorado, ele era racista e antissemita. Nas versões originais da Fábrica de Chocolate , os Oompa Loompas não eram anões laranja de aparência estranha, eles eram pigmeus negros. (Para seu crédito, devemos dizer que Charlie Bucket era originalmente negro, até que um editor fez Dahl mudar de ideia). Conforme apontado pela BBC, na primeira versão de James e o Pêssego Gigante, o personagem do Gafanhoto dizia, “Prefiro ser frito vivo e comido por um mexicano.” Mas o pior de tudo é que Dahl deixou registrado em 1983, dizendo: “Há um traço no caráter judaico que provoca animosidade … Até mesmo um fedorento como Hitler não o perseguia sem motivo.” Isso mesmo. Definitivamente esta não é uma história que você quer contar para seus filhos.

Sabem que a família de Roald Dahl pediu desculpas pelas declarações antissemitas dele?

Escritores que você deveria cancelar (VIII): William Golding

Escritores que você deveria cancelar (VIII): William Golding

[Ironic & Provocation Mode ON]

O Senhor das Moscas é um dos melhores e mais assustadores livros já escritos. A trama gira em torno de um grupo de meninos que acaba em uma ilha deserta, dividem-se em facções assassinas e voltam à selvageria da Idade da Pedra. É um dos romances essenciais quando se trata de explorar o lado negro do homem … algo que o autor William Golding conhecia muito bem. Em 2009, foi revelado que ele havia registrado um incidente profundamente perturbador em seus diários privados. De acordo com o próprio Golding, quando ele era um estudante universitário de 18 anos, ele tentou estuprar uma garota de 15 anos chamada Dora.

O ataque aconteceu alguns anos depois que os dois se conheceram, quando Golding voltava do primeiro ano em Oxford. Golding justificou seu desejo dizendo que, aos 14 anos, Dora “já era sexy como um macaco”. E aos 15, enquanto caminhavam à noite na rua, ele decidiu que a jovem adolescente definitivamente desejava um avanço agressivo. Mas acabou que ela não estava interessada em fazer sexo — e lutou bravamente contra Golding. Como disse Golding, ele “tentou estuprá-la desajeitadamente”, e os dois lutaram como inimigos“.

Por fim, Dora livrou-se de Golding, que foi forçado a recuar, enquanto repetia: “Não vou machucar você”. OK, então ela saiu correndo, deixando-o.

Só nos diários, né?

Escritores que você deveria cancelar (VII): Norman Mailer

[Ironic & Provocation Mode ON]

Norman Mailer se destacou em ficção (Os Nus e os Mortos) e não-ficção (A Luta e A Canção do Carrasco), mas… Apesar de todo o seu talento com uma máquina de escrever, Mailer era uma pessoa… Se você precisar de provas, pergunte a sua filha Elizabeth, que disse ao The New York Times que sua mãe, a artista Adele Mailer, se referiu a ele após sua morte como “um monstro”. Por que ela diria algo tão terrível sobre o pai de seus filhos? Talvez porque Mailer quase a esfaqueou até a morte.

Acontece que Mailer era supersensível quando se tratava de escrever, e quando Adele afirmou que ele não era um escritor tão bom quanto Dostoievski, ele agarrou um canivete e partiu para o ataque, apunhalando-a no estômago e nas costas. A ferida foi tão profunda que ele perfurou seu saco pericárdico.

Mas este não foi o único crime envolvendo o autor. Em 1981, Mailer ajudou um assassino condenado chamado Jack Henry Abbott a sair da prisão. Mailer ficou incrivelmente impressionado com as habilidades de escrita de Abbott, mas não parecia se importar por que Abbott estivesse atrás das grades. Infelizmente, apenas algumas semanas depois de obter sua liberdade, Abbott assassinou um garçom durante uma discussão mesquinha. Obviamente, Mailer não foi diretamente responsável pela morte, mas quando ele defendeu a libertação de Abbott, ele não estava pensando sobre os danos que poderia desencadear. E quem iria desafiar Mailer e dizer a ele que isso era uma má ideia? Ninguém. Porque se você estivesse do lado ruim dele, ele poderia te atacar com um canivete.

Querido!

 

Visita ao túmulo de Kafka

Visita ao túmulo de Kafka

Em 2013, fui visitar com minha filha o túmulo de Kafka em Praga. Logo na entrada, há um grande quadro indicativo “Kafka —>”. Entramos à direita e logo encontramos o local. Curiosamente, Franz está enterrado com seu pai. Justo com o pai! Em frente, está o túmulo de Max Brod, o amigo que o tornou famoso contra sua vontade. Tudo muito kafkiano. Só faltou pisar numa barata.

Escritores que você deveria cancelar (VI): Charles Dickens

Escritores que você deveria cancelar (VI): Charles Dickens

[Ironic & Provocation Mode ON]

Se você leu Oliver Twist ou David Copperfield, tem certeza de Charles Dickens foi um cara incrível em todos os aspectos. Ler seus livros é, certamente, uma das alegrias da vida. E mais, por 12 anos , ele dirigiu um lar para prostitutas na esperança de um novo começo. Seus romances também ajudaram a por em discussão a vida das crianças que trabalhavam em fábricas. Mas, embora Dickens tivesse uma queda por crianças órfãs, não estava tão preocupado com seus próprios filhos. Na verdade, seu filho mais velho disse uma vez que os meninos e meninas do livro de Dickens “às vezes eram muito mais reais para ele do que nós”. Porém, sendo um mau pai, parece que era pior ainda como marido.

Dickens teve dez filhos com sua esposa, Catherine, mas cansou dela. A vida de uma mulher vitoriana não era fácil, e depois de ter tantos filhos e de tanto trabalho, Catherine engordara muito e então Dickens, aos 45 anos, começou um caso com uma atriz de 18 anos chamada Ellen Ternan. Dickens tinha uma filha da mesma idade de sua nova amante e mantinha Ternan escondida em várias casas onde a visitava secretamente. É provável que tivessem um filho.

Para piorar, Dickens logo decidiu que não queria mais ficar com sua esposa, mas em vez de apenas se divorciar, lançou uma grande campanha de difamação, atacando-a injustamente na imprensa. Ele publicou uma carta em um jornal criticando suas habilidades maternas, dizendo que ela não amava seus filhos e que eles não a amavam, o que era completamente falso. Pior ainda, Dickens conseguiu a custódia total dos filhos (era o habitual a época vitoriana) e se recusava a deixá-los ver a mãe regularmente. É meio chocante saber que o mesmo cara que escreveu A Christmas Carol podia, o que prova que só porque você escreve livros do bem não significa que você seja um santo.

Difamando publicamente a esposa Catherine.

Escritores que você deveria cancelar (IV): Ernest Hemingway

Escritores que você deveria cancelar (IV): Ernest Hemingway

[Ironic & Provocation Mode ON]

Papa Hemingway escreveu grandes romances como Adeus às armasPor quem os sinos dobram e O velho e o mar. Ele até ganhou um prêmio Nobel. Mas quando ele não estava produzindo clássicos, você podia encontrá-lo ficando bêbado e entrando em aventuras malucas. Ele patrulhou a costa cubana em seu barco de pesca, à caça de submarinos nazistas, sobreviveu a dois acidentes de avião, dirigiu uma ambulância durante a Primeira Guerra Mundial e trabalhou como jornalista durante a Guerra Civil Espanhola.

No entanto, as coisas tomaram um rumo mais sombrio quando Hemingway entrou para a KGB, a notória agência de espionagem soviética. Parte polícia secreta, parte organização de inteligência, a KGB fez seu nome encarcerando oponentes políticos e assassinando inimigos do estado. Quando se trata de caçar seres humanos, a KGB está ao lado da Stasi e da Gestapo. De acordo com livros como Spies: The Rise and Fall of the KGB in America  and Writer, Sailor, Soldier, Spy, Hemingway realmente espionou para os soviéticos. Ele recebeu o codinome “Argo” e teve encontros com outros agentes da KGB em Londres e em Havana. Mas, apesar de sua atitude voluntária, Hemingway foi um péssimo espião. De acordo com os arquivos oficiais da KGB, Argo nunca entregou nenhuma informação e os russos logo desistiram dele.

Ele se saiu muito melhor do que Orwell, certo?

Grande espião soviético…

Escritores que você deveria cancelar (III): J. D. Salinger

Escritores que você deveria cancelar (III): J. D. Salinger

[Ironic & Provocation Mode ON]

Quando se tratava de escrever, J. D. Salinger era esplêndido. O solitário autor foi o homem por trás de O apanhador no campo de centeio, um dos romances mais amados e debatidos do século XX. Mas, embora o trabalho de Salinger tenha atraído legiões de fãs, muitos não ignoram suas estranhas histórias com meninas. Sim, ele tinha extremo interesse por mulheres bonitas recém-saídas da puberdade e costumava atrair essas jovens para relacionamentos românticos escrevendo cartas para elas. Sendo mais claro, seu jogo de sedução era feito somente de palavras e ideias, não com sexo. Mas, para a jovem que lia tais palavras não podia haver fascínio mais poderoso.

Quando tinha 53 anos, ele viu Joyce Maynard no New York Times e logo a atraiu para um relacionamento. Mais tarde, ela escreveria sobre suas interações com o escritor, descrevendo-o como apenas mais um pequeno abusador. Quando a dispensou, ela tinha 19 anos. Ele botou duas notas de 50 dólares no bolso dela e a mandou embora…

Ele também “cortejou” Jean Miller quando ela tinha apenas 14 anos. Quando se conheceram, Salinger tinha 30. Mantiveram um contato muito estreito entre 1949 e 1954.  Eles mantiveram um relacionamento eventual até a garota fazer 20 anos, e então finalmente decidiram transar, mas Salinger largou-a logo depois.

O fato é que, quando se tratava de mulheres da sua idade, mesmo lindas, Salinger era muito menos sedutor. Vamos colocá-lo em que categoria? De borderline pedófilo?

Salinger, pedofilia sem sexo?

Escritores que você deveria cancelar (II): Gertrude Stein

[Ironic & Provocation Mode ON]

Ela foi um dos principais membros da “Geração Perdida”. Ela foi a principal influência de alguns dos artistas mais influentes do século XX. Se, como no filme Meia-noite em Paris,  você pudesse viajar no tempo e visitar seu salão parisiense, você poderia encontrar lá Ernest Hemingway, Pablo Picasso e F. Scott Fitzgerald. Além de promover uma das comunidades mais criativas da história da humanidade, Stein escreveu A Autobiografia de Alice B. Toklas , um livro sobre sua companheira de vida, o que a torna muito simpática. Stein era uma mulher incrivelmente poderosa, mas embora fizesse parte da elite literária, tinha uma estranha queda por fascistas.

Gertrude Stein disse uma vez que Adolf Hitler deveria ganhar o Prêmio Nobel da Paz e fez até uma saudação nazista do lado de fora do bunker do Führer. Certo, há uma pequena chance ironia, mas seu apoio a Philippe Pétain é um pouco mais difícil de explicar. Se esse nome não soa muito íntimo a você, Pétain foi o chefe de estado francês durante a Segunda Guerra Mundial, o chefe do governo de Vichy. E embora a França de Vichy fosse supostamente neutra, era na verdade um governo fantoche do Terceiro Reich, permitindo que os nazistas governassem a maior parte do país e aplicando suas leis antissemitas.

Portanto, é um pouco estranho que Stein fosse tão pró-Pétain , especialmente porque ela era judia. Mas ela apoiava o armistício do homem com Hitler e o amava tanto que escreveu propagandas que apoiavam reinado. Stein chegou a traduzir seus discursos para o inglês, esperando que alguém os publicasse nos Estados Unidos. Claro, o resto da França não se sentia da mesma maneira e, após a guerra, Pétain foi jogado na cadeia.

Stein e Toklas divertindo-se a fu com um amigo que até fechou os olhos quando elas falaram em Pétain

Escritores que você deveria cancelar (I): George Orwell

Escritores que você deveria cancelar (I): George Orwell

[Ironic & Provocation Mode ON]

E quando seu escritor favorito é um ser humano horrível? Um racista? Um canalha? Um cara que tentou matar alguém? Alguns dos melhores romances e contos foram escritos por homens e mulheres de Lados B muito obscuros. No papel, são mestres em seu ofício. Na vida real, eles traíram colegas, agrediram membros da família e deixaram amigos tremendo de medo.

I. George Orwell vendeu muitos escritores

Politicamente falando, George Orwell era um socialista que odiava abertamente odiava a União Soviética. O cara desprezava o totalitarismo do país e, como prova, deixou-nos Fazenda dos Animais e 1984, com claras alusões ao modus operandi da ex-URSS.. Mas embora Orwell odiasse ditadores e burocracias autoritárias, isso não o impediu de vender alguns de seus colegas escritores e artistas a uma poderosa agência governamental.

Na década de 1940, Orwell fez alguns trabalhos para o Foreign Office do Reino Unido, especificamente para um grupo denominado Information Research Department (IRD). Em verdadeiro estilo orwelliano, aquele nome aparentemente inócuo pertencia a um departamento especializado em produzir propaganda. O trabalho do IRD era difamar os soviéticos, e Orwell ajudou-os a não contratar pessoas com simpatias daquele lado de lá.  Visando alguns nomes de destaque, Orwell elaborou uma lista de escritores e pessoas influentes que acreditava estarem do lado vermelho da força. Ele entregou sua lista negra ao IRD.

(Fui aluno do Colégio Estadual Júlio de Castilhos e na minha época não somente o aluno delatado era eventualmente punido. Em caso de punição, o delator recebia a mesma pena para aprender a não ser como Orwell).

Bem, foi algo muito sujo, especialmente para um homem que criou o Big Brother. Para piorar, parece que muitos autores e atores acabaram na lista de Orwell porque eram negros, judeus ou gays. Embora não tivesse o impacto de um Joseph McCarthy, Orwell provou ser um hipócrita que poderia fazer um excelente trabalho trabalhando para a Thought Police.

Vou botar você na minha listinha…

Salman Rushdie mete sua colher na questão do cancelamento da biografia de Philip Roth

Salman Rushdie mete sua colher na questão do cancelamento da biografia de Philip Roth

Por Walker Caplan
Traduzido mal e porcamente por mim

No início desta semana, soubemos que a Skyhorse Publishing está pronta para republicar Philip Roth: The Biography, de Blake Bailey, depois que a editora inicial do livro, a WW Norton, colocou o livro fora de impressão devido a notícias de que Bailey havia assediado e agredido ex-alunos de sua turma da oitava série e estuprou a executiva editorial Valentina Rice .

Antes das notícias sobre a decisão da Skyhorse, críticos, a indústria editorial e leitores estavam divididos sobre a decisão da Norton de retirar o livro. Alguns concordaram, outros condenaram o comportamento de Bailey, mas argumentaram que os livros têm valor além de seus autores (ou argumentaram que as deficiências do livro lhe conferem valor histórico). Alguns temiam que a WW Norton abra um precedente preocupante para retirar os livros da impressão. O último a meter a colher foi Salman Rushdie. Em uma entrevista ao Irish Times, Rushdie compartilhou seus pensamentos sobre a decisão de Norton de tirar a biografia de Roth da impressão:

Eu não li o livro de Bailey, mas, em geral, não gosto da ideia de nenhum livro ser descartado porque o autor possa ser um canalha. Posso entender a repulsa dos editores por tal autor, obviamente. Mas parece censura moral. E eu não gosto das sugestões que foram feitas de que isso, de alguma forma, ‘cancela’ Roth também.

Há um movimento progressista juvenil, muito do qual é extremamente valioso, mas parece haver dentro dele uma aceitação de que certas ideias devem ser suprimidas, e acho que isso é preocupante. Onde quer que tenha havido censura, as primeiras pessoas a sofrer com ela são as minorias desprivilegiadas. Portanto, se em nome das minorias desprivilegiadas você deseja endossar a supressão do pensamento errado, estamos em uma via escorregadia.

Rushdie também teve seu ‘cancelamento’. Passou uma década escondido sob proteção policial depois que o aiatolá Khomeini do Irã emitiu uma fatwa pedindo a morte de Rushdie após a publicação de Os Versos Satânicos. Os Versos Satânicos foram proibidos em vários países; cadeias de livrarias pararam de vender o livro. O tradutor japonês de Rushdie foi esfaqueado e assassinado, seu tradutor italiano foi esfaqueado e gravemente ferido, e seu editor norueguês foi baleado, mas sobreviveu). Rushdie tem sido um defensor da liberdade de expressão, tuitando sua desaprovação aos escritores que se retiraram do evento PEN’s 2015 Gala por causa de sua decisão de homenagear o Charlie Hebdo, assinando a polêmica “Carta sobre Justiça e Debate Aberto” de Harper.

Disse Rushdie ao The Guardian após a controvérsia PEN / Charlie Hebdo: “Se apenas endossássemos a liberdade de expressão para as pessoas de quem gostamos de falar, isso seria uma noção muito limitada de liberdade de expressão”. Para Rushdie, o cancelamento do livro de Blake Bailey é outra ameaça à liberdade de expressão, se sua censura depende de definições prévias.