Musicalmente, vai muito bem

Nunca se poderá avaliar a extensão do crime que é cometido diariamente contra a OSPA. Ontem, num local inteiramente inadequado para a orquestra — a Igreja da Ressurreição, dentro do Colégio Anchieta — , o que ouvimos foi um concerto de primeira linha. Só para dar uma ideia: tive dificuldades de ouvir os agudos em meio à reverberação que acontecia onde estava sentado, em banco inteiramente desconfortável. Acho que a maior penitência a que deve ser condenado um crente que ali vai expiar seus pecados e prazeres, é o de ficar sentado na igreja por uma hora. Sairá dali livre deles, com a maior dor nas costas.

(Como parte da orquestra estava acomodada nos primeiros bancos da igreja, a plateia não os via, pois ficávamos na sentados no mesmo nível. Era bonito ver os arcos erguidos dos violinos dançando juntos durante os pizzicati. De resto, o local não oferecia diversão nenhuma).

As interpretações do Concerto de Aranjuez, do qual se nota melhor ao vivo a dificuldade, e da Sinfonia Nº 2 de Sibelius, foram consistentes, ótimas. Se o Concerto soou melhor por ser quase música camarística, a Sinfonia recebeu bela interpretação, tão bela que a gente fica pensando se as orquestras não deveriam mesmo dispensar seus regentes titulares para receber visitantes de concepções e repertórios diferentes do feijão com arroz diário. Não soube e nada sei sobre o regente Nicolas Rauss, mas o que vi foi uma direção tranquila e segura, íntima daquilo que propunha. O poema sinfônico Finlândia foi um bom aquecimento no qual mal pude prestar atenção, pois estava procurando entender o que havia de errado. Era a acústica.

Céus, que crimes se praticam contra a OSPA! Há bons músicos ali, os últimos concursos formaram um excelente conjunto. Quando o RS vai fazer por merecer o que já tem? E até quando se manterá bem uma orquestra sem sede e com falta de músicos?

Ah, acabo de descobrir que o próximo concerto em Porto Alegre também será numa igreja. Ai, minha bunda.

~o~

Atualização das 12h37:

Augusto Maurer, primeiro clarinetista da OSPA, escreveu nos comentários:

(…)

Ótima observação sobre os últimos concursos. Quando antes já se ouviu na OSPA um coral de metais como ontem no início de Finlândia ?

(…)

E eu respondo:

Pois é, escrevi rapidamente e esqueci deste detalhe (?) fundamental. Os metais não foram apenas bem em Finlândia, foram MARAVILHOSOS no final da Sinfonia! Assim como as madeiras, meu amigo.

OSPA apresenta hoje bom programa com obras de Sibelius e Rodrigo

Escrito originalmente para o Sul21.

Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Uma coisa é a política que envolve a OSPA, a falta de músicos e de uma sede para a orquestra; outra coisa é a música produzida. E esta pode ser arrastada e sonolenta como a da apresentação da 9ª de Beethoven ou espetacular como a 9ª de Mahler, apenas para citar dois concorridos concertos do segundo semestre do ano passado.

Hoje, a OSPA apresenta na Igreja da Ressurreição (Colégio Anchieta), às 20h30, um bom programa sob a regência de Nicolas Rauss (foto):

Dia 29 – 20h30min
2º Concerto Oficial

Obras:
— Jan Sibelius – Finlândia, Op.26
— Joaquín Rodrigo – Concerto de Aranjuez para violão e orquestra
— Jan Sibelius – Sinfonia Nº 2, op. 43, em ré maior

Solista de violão no Aranjuez: Thiago Colombo
Regente: Nicolas Rauss

Finlândia, Op. 26 é um poema sinfônico de Jan (ou Jean) Sibelius cuja primeira versão foi escrita em 1899, sendo posteriormente revisada em 1900. A obra tem origem na turbulência e desolação gerada no país pela dominação imperial russa. Por quase todo o século XIX, o país foi um estado do império russo, que procurava tornar “mais russa” a população finlandesa. Para tanto, o método de convencimento era o de recrutar sistematicamente finlandeses para seu exército, enquanto mantinha forte censura sobre a imprensa e quaisquer manifestações.

Porém, na última década do século, o nacionalismo findandês reapareceu. A independência só chegou em 1918, após a Revolução Bolchevique de 1917. Em outubro de 1899, no meio ao crescimento do nacionalismo, Sibelius escreveu este poema sinfônico logo adotado como segundo hino pela população. Música poderosa, ao mesmo tempo simples e comovente, repleta de melodias e explosões dramáticas, é talvez a peça mais conhecida de Sibelius.

Ainda dentro do nacionalismo, o programa segue com o famosíssimo Concerto de Aranjuez de Joaquín Rodrigo. Também é a obra mais conhecida de Rodrigo, que a escreveu em 1939, inspirado pelos jardins do Palácio Real da cidade. O Aranjuez estabeleceu Rodrigo como um dos mais importantes compositores espanhóis do século XX. O concerto recebeu diversas interpretações e abusos, sendo uma das mais famosas e respeitáveis a do trompetista Miles Davis.

Aranjuez é uma pequena cidade espanhola famosa pela qualidade de seus morangos e pelo Palácio Real de Aranjuez, construído por Filipe II na última metade do século XVI; reconstruído em meados do século XVIII por Fernando VI e que serviu de inspiração para Rodrigo, o qual ficou cego aos 4 anos de idade e que talvez nunca tenha visto os tais jardins do Palácio, pois passou a infância em Sagunto, província de Valência, perto do Mediterrâneo, enquanto que Aranjuez fica próxima à Madrid.

Segundo o compositor, o primeiro movimento está “animado por um vivo espírito rítmico sem que nenhum dos dois temas se sobreponha ao outro ou interrompa seu ritmo incansável”. O segundo movimento — o ultrafamoso tema de Aranjuez — “representa simplesmente um diálogo entre a guitarra e instrumentos solo como o corne inglês, o fagote, o oboé, a trompa, etc.”, e o último movimento, “lembra uma dança cortesã”. Como pouca modéstia, muito olfato e refinada audição, Rodrigo descreveu sua grande música como a captura “da fragrância das magnólias, do canto dos pássaros e do jorro das fontes dos jardins de Aranjuez”. O solista será o excelente violonista gaúcho Thiago Colombo (foto).

Mantendo a coerência do programa, o concerto se encerra com a Sinfonia Nº 2 em ré maior, Op. 43, novamente de Sibelius. Escrita logo após o poema sinfônico Finlândia entre fevereiro e março de 1901, esta sinfonia foi estreada em Helsinque em 1902 com grande sucesso, tanto que foi repetida mais três vezes em oito dias.

Também conhecida como “Sinfonia da Independência”, este trabalho popular de grandioso final conecta-se a um momento de sanções russas na língua e cultura finlandesa. Desda a estreia, a postura de Sibelius foi amplamente debatida: alguns afirmam que ele não tinha intenções patrióticas e que a Sinfonia seria apenas nacionalista. Hoje, para nós, esta discussão tem valor apenas histórico.

O programa poderia ser finalizado pela Valsa Triste, também de Sibelius, mas o mundo não é perfeito.

Hoje, os 70 anos da morte de Virginia Woolf

Meu querido Leonard.

Tenho a certeza de que estou enlouquecendo novamente: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Comecei a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor.

Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia querer. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser.

Não consigo ler.

O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom.

Quero dizer isso — toda a gente sabe. Se alguém pudesse ter-me salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.

V.

Virginia Woolf em 1902

Coisas de deus

De acordo com a Bíblia no principio era a verborreia, e a verborreia estava com Deus, e a verborreia era Deus. Deus criou os céus e a terra. Então Deus disse que haja a luz, bateu as palmas e a luz acendeu. Deus viu que a luz era boa e a separou da escuridão. Deus pôs na posição de água quente o nome de “inverno” e na de agua fria pôs o nome de “verão”. Deus chamou a luz de dia e a escuridão de noite, por algum motivo isso foi um ‘dia’, apesar de ainda nao existir o Sol e a Lua.

Entao Deus criou monstros. E Deus viu que isso era bom. Deus criou árvores. E viu Deus que isso era bom. Deus criou os arbustos, foi atrás deles se aliviar, e viu que isso era bom. Deus então deu uma assoprada em um monte de barro e criou o homem. E em sua eterna sabedoria disse: frutificai e multiplicai-vos. Sorrateiramente arrancou um estribo do ouvido do homem enquanto este dormia, e, embora o homem surdo a este ponto, deu outra soprada e, voialá!, eis a mulher.

Eu me divirto sempre na Desciclopédia.

As escolas brasileiras ligadas a instituições religiosas sempre ensinaram o criacionismo. Seja nas aulas de religião, seja nos cultos, os alunos aprendem que Deus criou o mundo e todos os seres que o habitam. É o fim do mundo.

Hoje acordei assim porque fui convidado a participar de um documentário onde as pessoas contam casos de preconceito contra ateus. Detesto falar em público mas acho que vou ter que.

A audiência

A audiência da ação que Mônica Leal move contra este blogueiro foi rotineira, penso. Houve um pouco de emoção antes do início, quando descobrimos que minha filha não trouxera sua identidade, o que não permitiria que ela depusesse. Ela saiu correndo para buscá-la — moramos próximo ao Fórum — e, quando entrou no elevador, deu de cara com Mônica. Outro elevador, a mesma Mônica. Cenas análogas, para quem lembra do post.

Sem reconhecê-la, a autora da ação perguntou a ela se ali era o segundo andar. Depois a Bárbara me contou que lhe respondeu da forma mais detestável com seu Esgar Nº 1, um no qual uma careta indescritível é acompanhada de um som semelhante àquele que os Estegossauros costumam emitir quando de seu segundo AVC.  Parece que a atuação foi acompanhada de um braço que apontava para o enorme número 2 que estava pintado na parede. O Esgar Nº 1 é uma das coisas que mais me irritam na vida, pois, além do som, a Bárbara consegue estampar em sua cara o quanto somos idiotas, em sua opinião. (Uma adolescente. <— Esta expressão a irrita profundamente. É meu contra-ataque. Fecha parênteses).

Ela voltou a tempo, claro. Ela queria falar. A coisa começou com a identificação dos contendores e a entrevista de Mônica Leal. Fiquei fora da sala, caminhando de um lado para outro com minha filha, que fazia planos do que iria dizer enquanto eu me preocupava com o longuíssimo, épico, alentado e volumoso depoimento da nossa ex-Secretária de Cultura. Quando, após décadas, fui convidado retornar à sala, não fui ouvido — não imaginava que não seria necessário ouvir minha voz ainda hoje gripada. Foi então chamada uma das pessoas que estavam no elevador, a Dra. Rosanna Nejedlo, que foi perfeitamente veraz e depois minha mulher, que foi idem até demais.

Então a juíza fez uma cara de torturada para meu advogado e perguntou se ele achava necessário a oitiva de minha filha de 16 anos. Ele me passou a pergunta e eu, interpretando o rosto da juíza como um “não é necessário, já entendi tudo”, respondi que não achava necessário. É claro que, na saída, quase apanhei da Bárbara, principalmente depois de confessar que o culpado por sua dispensa era euzinho.

— Pô, eu vim, busquei correndo a carteira e nem pude dizer as coisas que queria dizer? Eu ia te ajudar.

— Babi, tive a impressão de que a juíza não estava muito a fim.

— MAS EU ESTAVA!

OK, OK, tranquilo… Meu excelente advogado, o Dr. Marcelo Bidone, despediu-se de nós e ainda me ligou no outro dia para fazer alguns comentários sobre as possibilidades. Estou revendo minhas opiniões a respeito destes profissionais.

O gozado é que meu estômago, sempre tão impecável e pronto para qualquer mesa e copo, estragou de vez. Mas talvez seja essa maldita gripe. Agradeço a todas as mensagens de apoio aqui e no twitter. Aqui a coisa foi mais séria; em 140 caracteres, recebi as mais engraçadas mensagens. Houve uma que me fez cair os “butiá do bolso”, né?

~o~

Também pelo twitter, a Elenara (@ElenaraLelex) distribuiu uma foto absolutamente revoltante. Um absurdo flagrante da polícia carioca. O que é o jato?

Ônibus errado, carajo

Ia fazer um rescaldo dos fatos de ontem (ver post abajo), mas estou todo atrasado. Sou um apologista da rotina; ela me tranquiliza. Escrevo meus posts à noite e os reviso pela manhã. Ontem, houve a audiência e depois vi Inter x São José e Fluminense x América. Para completar, hoje, cedo pela manhã, eu e meu filho fomos para a parada de ônibus conversando animadamente sobre as possibilidades de Roger Federer, no ano em que completa 30 anos de idade, voltar a ser o número 1 do tênis mundial. Resultado: pegamos o ônibus errado. O motorista entrou pela Vila Cruzeiro — um bairro pobre e de alta criminalidade que poderia ser muito aprazível com sua vista para o Guaíba — e deu todas as voltinhas possíveis. Perguntei para o Bernardo se ele queria sair, “ah, não pai, agora estamos sentados”. OK.  Agora só me resta trabajar!

Imagem de protesto na Cruzeiro. Retirado do blog "Somos andando".

Mônica Leal me processa em razão disso, quando na verdade refere-se àquilo

Hoje, no Fórum da Tristeza, haverá a audiência de instrução do processo que me move a ex-Secretária da Cultura do RS Mônica Leal. Não houve acordo na audiência de conciliação em razão de que, além da retirada do post, ela deseja uma indenização. Pensei em digitar a inicial aqui, porém desisti – era óbvio que seu potencial cômico atrairia todo o tipo de chacotas. Afinal, ela está me processando porque escrevi uma colorida narrativa de um episódio real: o atropelamento do pé de minha filha por um carrinho de bebê dirigido pela ex-secretária num elevador. Mais: nem vi a coisa ocorrer, apenas vi minha filha saltar para trás com cara de indignada. Soube do pé logo que saímos do elevador. Fiquei puto e por isso escrevi a respeito. Quem acompanha o blog deve lembrar de como Mônica entrou no recinto…

Todos me cumprimentam por ter conseguido irritar Mônica Leal, mas não pensam na incomodação. Vou ter que sair de casa no dia de visita de meu filho, tive que constituir advogado, enchi o saco de amigos, perdi tempo explicando coisas fúteis, me preocupo com o que pensará o juiz disso tudo e sei que estou numa posição falsa.

Pois o verdadeiro motivo da ação não é o carrinho de bebê e sim são os diversos posts em que combati a gestão da secretária. O verdadeiro motivo da ação é o de eu ter dado espaço em meu blog para sua – penso – maior inimiga: a ex-presidente do Conselho Estadual de Cultura Mariângela Grando, a qual também foi processada por Mônica (fui informado pela Mariângela no Facebook que Mônica Leal viu frustradas suas intenções de vingança em primeira instância). Deste modo, a ação é intimidatória e alcança seus objetivos. Estou louco para não ir ao Fórum, para esquecer da ex-secretária e até, fato ridículo, pedi para que meu amigo Alex Haubrich não escrevesse sobre o assunto, ele que apenas queria prestar solidariedade. (Alex, pode escrever o que quiser, bobagem minha).

Então, hoje, às 19h, falaremos de elevadores e bebês, mas o real motivo não será objeto da ação. Por isso, sou dos poucos que veem toda a comicidade latente dos fatos. E tenho-os evitado por medo. Por medo do juiz, claro. Mas, se vier a perder a ação e tiver que pagar a indenização, já convoco meus amigos para o Bailão da Mônica, com a finalidade de arrecadar fundos.

Ontem, uma amiga publicou um pequeno vídeo em seu Facebook. Sua intenção era outra, ela nem sabe deste caso. Mas vejam se não é pertinente. O medo do estado todo poderoso (dos juízes que mal leem ou ouvem nossos argumentos) não nos torna estéreis? A voz é do grande filósofo e sociólogo esloveno Slavoj Zizek:

http://www.youtube.com/watch?v=NggzAyHqfkQ&feature=player_embedded

Ou clique aqui.

Ah, peço muita tranquilidade nos comentários. Não quero “engordar” o processo; estou de regime.

Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami

Escrever poucas linhas sobre Cópia Fiel é muito mais complicado do que dedicar-lhe uma tese. Posso começar tergiversando, apesar de dizer uma verdade: é um filme que provoca reações apaixonadas, para o positivo e o negativo. Um sujeito, certamente um menino, crítico de cinema na internet, disse que o filme era chato porque as discussões de relacionamento são chatas. Sim, sei, ele deverá ter futuros. É uma opinião das mais primárias, mas demonstra o cerne de certo ódio ao filme. Porém, dizer que este belíssimo Cópia Fiel, de personagens que mudam de cena para cena, de imagens deslumbranres e atuações impecáveis, de roteiro moderno e até virtuosístico, dizer que o filme é apenas uma DR é uma redução muito emburrecedora.

Com pouquíssimos spoilers, certo? Não pretendo estragar o prazer de ninguém: durante uma visita à Toscana para lançar seu novo livro sobre história da arte e  a importância das cópias nas artes plásticas, o ensaísta inglês James (William Shimmel) é acompanhado por Elle (Juliette Binoche), uma franco-italiana proprietária de galeria de arte. Ela o leva em um passeio de carro para conhecer a região e o dois começam uma discussão — entre o irônico e o azedo — sobre os conceitos do livro. Sem que pareça crível, tudo começa a mudar depois da antológica cena com a dona de um café. Ela, cheia de experiência, admira e elogia a dupla com alguma sabedoria de vida. Então, os dois passam a se comportar como um experiente, velho e cansado casal, transformação que já vinha ocorrendo discretamente e que se completa no café. Aquilo que vimos antes era uma cópia? Ou aqui a temos? A má relação entre Elle e seu filho não é outra cópia fiel desta que nos será apresentada? Quantas cópias, quantos vezes repetimos nossos padrões de relacionamento? E o que tem isto a ver com o filtro interior através do qual analisamos um quadro ou uma realidade? A cena do café, onde até o idioma serve para separar, é central no roteiro de Kiarostami.

Neste filme desalentador, muitas dúvidas universais e humanas nos ocorrem. Como obra cinematográfica, o que me arrebata é o fato de que Kiarostami toca fundo na humanidade dos personagens e dos casais sem a menor afetação. Evitando inteiramente uma fácil abordagem pernóstica e “inteligente”, o iraniano nos leva por um tema universal de forma discreta e firme, mostrando-nos as camadas de realidade que há, umas sob as outras como um quadro repintado ou retocado. Binoche cumpre novamente uma atuação perfeita e os prêmios de Cannes e outros de melhor atriz por este filme são merecidos. A surpresa é a bela atuação de seu partner, William Shimell, que não é bem um ator e sim um conhecido barítono que, nos intervalos das fimagens com Binoche, viajava para contracenar com Anna Netrebko em Cosi fan tutte, de Mozart, já na pele do solteirão Don Alfonso. Ah, se a minha inveja fosse mortal, esse Shimell cairia morto agora.

Serviço: vi Cópia Fiel no fim-de-semana, em pré-estreia no Guion, claro.

~o~

Então, resumindo minha inveja:

Este William Shimell,

contracenava com Juliette Binoche

Juliette Binoche em Cópia Fiel

e, nos intervalos, cantava com Anna Netrebko.

Na boa, vai tomar no cu, Shimell.

Ode ao Biscoito

Eu lamentei muito o fim do Biscoito. É uma baita perda num país em que a imprensa tradicional é uma coisa cujo bom senso manda ignorar. Eu concordo com tudo o que a Fal escreveu abaixo, mas, sabem?, eu não discordava tanto do Idelber quanto ela. Talvez ele me seduzisse de tal forma com a qualidade de seus textos que já vinha louco prara concordar. Das muitas pessoas que conheci através da rede, o Idelber e seus filhos — que passaram 3 ou 4 dias hospedados lá em casa — foram dos mais especiais. Porém, cá pra nós, duvido que ele suma assim, quase totalmente. Ele não iria nos deixar sem seus textos, maravilhosos textos. Pois como escreve o animal! E também, a seu modo, a Fal, que apenas vi uma vez.

Por Fal Azevedo, roubado do Amálgama

Era 14 de março, estava de trabalho até a raiz dos cabelos, tinha não um, mas dois livros do Dani olhando feio pra mim ali da estante e exigindo resenha e tive que parar tudo pra processar essa novidade: o Idelber fechou o blog. Não, dessa vez ele não botou o blog pra nanar. Ele fechou o blog. Baubau.

*

Quer dizer, de novo vem o Idelber me tirar do sério.

*

Master Idelber. Então, que ele fazia esse blog, o Biscoito Fino e a Massa. Uns textos sobre futebol. Pra mim, chatíssimos, né, que acho futebol chatíssimo. Quem ama futebol, venerava os textos do Idelber. E eu lia cada um daqueles textos, do começo ao fim, detestando o futebol, não dando a mínima pra que diabo fez o Guarani, mas amando aquele entusiasmo desvairado. E os textos, claro. Lindos textos, tremendamente bem escritos. Sobre futebol, valha-me, mas lindos. Uns textos cacete sobre política, porque, ahhhww, política partidária neste porto tropical me torra o saco. E sabe o quê? Eu lia aqueles textos sobre política do começo ao fim. Concordando, não concordando, dizendo baixinho que ele era um gênio, gritando pra minha mãe “Ouve o que esse cretino disse agora, mã!”, eu lia. Porque o Idelber tem isso: você lê. Puta da cara ou amando loucamente, você lê aquele texto bem construído, bem ligadinho, bonito, fluido e fica passada. Você não concordou com uma linha dos 400 parágrafos, mas o texto arrebata você. Ou você concorda com tudo e quer mandar tatuar na testa e ainda assim, no meio da crise de paixonite, o texto é tão bem feito, que permite a você distanciamento suficiente para dizer: que puta texto.

*

Mas vai daí que não são uns textos flutuando no espaço, né, os textos eram o Idelber. Era ele ali. E concordando ou não, você tinha que dizer: esse cara tem coragem. A coragem das próprias convicções. Gosto de gente assim, sempre gostei. Gostei de ler o Biscoito desde o começo, por isso, sempre foi assim. Se o Idelber acha que é azul, ele acha que é azul e sai da frente.

*

Ele vai fazer falta, ele, os muitos eles que são o Idelber, fazem falta na minha tela mesmo quando estão lá. Imagine quando não estão. O Idelber cego pelas causas. O Idelber resmungão (meu favorito). O Idelber noveleiro, o Idelber boboca.

*

Mais do que o boleiro ou adorador do PT, tem o Idelber crítico literário. Tremendo, tremendo. O Idelber escritor. Sensacional (Alegorias da Derrota é meu livro-totem há tantos anos). O Idelber queridinho.

*

Quando fui falar num bendito encontro literário em Beagá, Idelber e Ana foram ouro sobre o azul comigo. Eu estava apavorada. Apavorada tipo, tendo crise de choro no banheiro, e eles não foram nada menos que uns amores. Quando meu marido morreu, Ana disse as coisas mais lindas, Idelber disse as coisas mais lindas. Sempre senti falta desse Idelber no blog. Sempre. Não é o estilo dele e meu marido adorava o Biscoito exatamente por isso (‘Bi, isso é blog de macho’, dizia meu doce Alexandre), mas eu sempre senti falta do Idelber-Idelber no Biscoito. Me fazia falta ler sobre o Idelber. Compras no supermercado, se os filhos tinham ligado, que-que ele usa no cabelo. Porque eu sou esse tipo de leitor. Quero saber a marca do chá do cara e se ele tem medo de trovão.

*

O que mais lamento não é a perda do blog. É de saber do Idelber. Ele é o blog. Já mandei e-mail dando dura, mas qual, ninguém me obedece nessa blogosfera.

*

Nunca tive saco pros discursos, pras brigas e pras intrigas palacianas do Biscoito Fino e, caras, aquilo era um vendaval de emoções. O pau tava sempre cantando. Nunca tive saco nenhum pros comentaristas-salvadores-do-mundo que apareciam por lá, aqueles seres superiores que não peidam, e acho a educação do Idelber com a grande maioria, por si só, uma demonstração de educação que vi poucas vezes na vida. Por outro lado fiz grandes, grandes amigos ali na meiuca dos comentaristas do blog dele, pessoas parecidas comigo, pessoas diferentes de mim, pessoas queridas, que Idelber me deu de presente.

*

Nunca li um texto do Idelber sem concordar e discordar, às vezes no mesmo parágrafo, às vezes na mesma frase. Nunca.

*

Já fiz parte duma mesa literária com ele (com muito orgulho), duma mesa de bar (mais orgulho ainda), já abracei o Idelber, ri das piadas dele e sempre admirei a construção do pensar dele, a forma como ele concatena as ideias, a fúria com que ele defende as coisas que defende (já me apavorei também, com essa mesma fúria, e dei um passo para trás, e é assim mesmo, quando a gente ama).

*

Sinto e sentirei falta do amor adulto que o Idelber desperta em mim. Esse tipo tão raro de admiração de parte a parte, que diz: “Nós não concordamos o tempo todo e se na mesma cidade estivéssemos, capaz que eu desse com o cardápio na sua testa depois da batatada que você disse, mas nós nos gostamos e está tudo bem”. Tipo estranho de gostar esse, porque é seu primeiro e mais infantil gostar: seu irmão. É só pro seu irmão que você pode dizer as coisas mais terríveis e ouvir as coisas mais assombrosas e seguir amando e sendo amado. E descobri agora, velhinha, que é também o amor da maturidade.

*

Meses depois de o Alexandre morrer (ou anos depois, vivo num mundo completamente a parte, meu tempo é diferente do tempo do planeta), empacotei uns livros dele pro Idelber. Todos os livros de futebol do Alê. E o livro que ele tinha no criado-mudo, bem ao lado da cabeça dele, no momento em que morreu. Uma edição capenga de Moby Dick, nosso livro preferido. Pareceu tão, tão correto, que os livros do Alê, os livros que ele mais gostava, fossem parar nas mãos do Idelber. Ainda parece.

*

E se vocês querem saber, assisti muita sessão da tarde, li muito livro da Alcott e, por isso, carrego aquela esperança tola no coração, aquela fantasia adolescente, de que o Idelber vai aparecer a qualquer momento aqui no umbral do meu Apart Hotel do Conde Drácula, com uma rosa entre os dentes, usando uma daquelas batas malucas, blogando de novo, prontinho pra me irritar. Se ele lesse esse treco, riria das minhas fantasias burguesas decadentes, claro, mas não ligo. Sou grata a todas as vezes que tive que espanar o pó dos neurônios pra concordar com ele ou que tive que dar todinho pros meus pobres neurônios pra discordar dele. Sou grata a toda a leitura à qual ele me obrigou, dele, dos textos de referência, dos comentaristas, de outros blogs. Amar o Idelber foi, e é, um exercício de inteligência (no meu caso da pouca inteligência que tenho), todos os dias. E a gente ama. Simplesmente.

Sou um ator morto (à guisa de explicação)

Sábado, quando acordei, vi que minha mulher tinha deixado um recadinho para mim no Skype. Ela está na Venezuela e o recado era um link e uma ordem bem humorada: “Veja isso, quase morri de rir”. Fui visitar o endereço e dei de cara com a imagem que você pode ver claramente clicando duas vezes sobre a cópia abaixo. Era um obituário do ator Milton Ribeiro, que já conhecia, mas havia um detalhe. A foto do ator era deste Milton Ribeiro que vos escreve, não daquele que morreu. Sim, era uma fotografia tirada por minha filha numa praça de alimentação de um shopping.


É óbvio que me diverti com o fato e comecei a avisar os amigos por e-mail, Facebook e Twitter. Eu tinha morrido em 1972. mandei e recebi vários recados:

Milton, agora que vc morreu, peça para teu filhos me enviarem sua coleção de clássicos, por favor. Mando rezar missa por Richard Dawkins. Obrigado.

Morri em 1972. O que faço? Tomo banho e vou no super ou largo tudo de vez?

@miltonribeiro Aliás, ateu convicto como és, imagino que estejas condenado ao inferno. Então, se fores ao super, como pretendes, vá ao BIG.

@miltonribeiro Como disse Mark Twain num caso assim, “The report of my death is an exaggeration”.

Interpretações de homem mau é a pérola! RT @miltonribeiro

Meu pai também tá dando risada.. RT @miltonribeiro Gostaria de noticiar a todos os meus amigos que morri. (Explico: o pai de Alexandre Ribeiro, um grande amigo meu, também atende por Milton Ribeiro)

Isso foi em 72? Eu nem era nascida. Garanto que da próxima vez que formos à tua casa, vai aparecer uma velhinha à porta e dizer: Milton Ribeiro? Mas, minha filha, ele morreu há 38 anos…

Infelizmente, durou pouco. Algum dos meus amigos destes redes sociais acabou avisando o site Mensagem Vitual, que corrigiu a foto e me enviou um tuíte bem humorado em português alternativo:

@miltonribeiro Desculpe pelo nosso ezorbitante erro! Já arrumamos a foto! Agora você já pode viver em paz…

Quem acordou tarde e viu meu link não entendeu a piada, pois permaneci morto apenas até às 11h. Depois, a vida voltou ao normal, o ator com cara de mau recebeu o seu devido lugar; ou seja, tudo voltou à bosta de sempre, como vocês podem ver abaixo.


Porém, a mensagem mais curiosa veio de Fernando Monteiro, dizendo que o ator com cara de mau na verdade gostava de rapazes altos, de pernas fortes, passadas largas… E não de Juliette Binoche, como eu. Agora falando sério — como diria Chico Buarque — os caras consultam o Google Images, dão de cara com um Milton Ribeiro qualquer e colocam numa biografia sem conferir? Não, é demais. Ah, a mensagem do Fernando:

O danado, Milton, é que com toda aquela cara de mau, o Milton cangaceiro do cinema tinha um apurado olho para rapazes fortes (sabias?), enquanto vosmicê pende mais, quer dizer, pende totalmente para as Juliettes Binoches (sou testemunha), e não somente nos sábados!
Bom domingo, “Capitão”!
Fernando Monteiro

Domingo, com Maria Bethânia

Meu caro Ramiro Conceição.

Li teu comentário — que transcrevo abaixo — e tenho reparos a ele. Poucos, é verdade; e os que há são relativos à isonomia e à lastimável postura da sobrinha Belô Velloso, filha de Mabel Velloso, irmã de Caetano e Bethânia, e cuja única boa referência foi a de ter vindo ao mundo num 19 de agosto. Ela, na minha opinião, prestou severo desserviço para sua tia famosa.

Mas hoje é DOMINGO e, apesar das imagens, a música e a letra são esplêndidas! (Quase ninguém conhece esta música, mas ela faz parte dos dois últimos CDs de Bethânia — Tua e Encantería — , lançados juntos. A boa MPB é ouvida apenas do exterior. Por que o MinC não age também neste ponto, o qual é muito mais importante: o de proteger a música brasileira de qualidade? Não dá para fazer? Ah, dá, sim. Assim como o cinema e a literatura.).


Ou clique aqui.

MERDA, POESIA!
by Ramiro Conceição

Até onde compreendi, a cantora baiana está autorizada somente a batalhar no mercado recursos que, se obtidos, fomentarão concretamente, durante um ano, vídeos diários sobre poesia (não estou a par do conteúdo proposto para tais vídeos), mas acredito que, por toda a obra artística de Bethânia, tal iniciativa não tenha qualquer característica de amadorismo.

Até onde compreendi também, as empresas que endossarem livremente tal projeto terão a sua marca associada ao empreendimento cultural bem como um incentivo fiscal, um desconto, em seu imposto de renda.

Até onde compreendi também, tudo se dará sob a total transparência da lei. Até o momento, não percebi, em tudo que li, qualquer falcatrua porventura escondida na decisão do MinC.

Bem, se não há nada ilegal, então resta analisar se houve, ou há, alguma falta ética no acontecido, ou seja, qual a falta ética de Bethânia ou do MinC no episódio em questão?

Até onde compreendo, haveria uma falta ética se, e somente se, algum outro projeto de caráter semelhante não tivesse sido autorizado antes ou tivesse sido indeferido por favorecimento claro ao aprovado agora pelo MinC. E, por outro lado, se Bethânia tivesse claramente se utilizado de tráfico de influência em detrimento de outro projeto superior ao seu.

Vive-se no Brasil um regime democrático, portanto, que os injustiçados apareçam, se pronunciem competentemente!

Mas, por favor, não me venham com argumentos do tipo: “Ah, Bethânia é rica” ou “Ah, 50.000 por mês, que absurdo!” ou “Ah, eu faria o mesmo ‘di gratis’” ou “Filha da puta da Bethânia” ou “Tal grana poderia ser destinada à educação”.

Não, o buraco é muito, muito, mais em baixo e, minhas senhoras e senhores, não se trata aqui de nenhuma baixeza.

Minhas companheiras e companheiros de história, gostaria de lembrá-los de um fato. Amyr Klink, quando do seu projeto de hibernação na Antártica, a duras penas, conseguiu o patrocínio à construção de seu barco por meio da “AÇOS VILLARES”, à época importantíssima empresa brasileira do setor SIDERÚGICO, isto é, da metalurgia do FERRO!!!!. Detalhe, importantíssimo, seu barco foi construído totalmente em ALUMÍNIO!!!!!!

Por que a AÇOS VILLARES não poderia ter obtido qualquer benefício fiscal – como não obteve!!!! – ao financiar tal empreendimento histórico?! Com terrível angústia, Amyr descreve em seu livro de relatos que, sem a VILLARES, seu projeto não teria existido. Outro detalhe: Amyr fora o único ser humano a atravessar a remo o Atlântico Sul.

Diante disso, brota em mim, infelizmente, a seguinte constatação histórica:

o padecer crônico do Brasil não se constitui essencialmente de seus milhões de miseráveis, mas, ao contrário, de sua maligna, insignificante elite miserável!

Diante disso, só posso clamar à Maria Bethânia:

MERDA, POESIA!

(À merda, hipocrisia)!

Maria Bethânia terá R$ 1,3 milhão para criar blog (ou site)

A cantora Maria Bethânia conseguiu autorização do Ministério da Cultura para captar R$ 1,3 milhão a fim de criar um blog. A proposta é de que O Mundo Precisa de Poesia seja atualizado diariamente por um ano. O blog apresentaria, a cada dia, um vídeo da cantora interpretando grandes obras.

A direção dos 365 vídeos seria de Andrucha Waddington. Há três anos, Bethânia se envolveu numa polêmica ao ter um pedido de captação, de R$ 1,8 milhão para uma turnê, rejeitado pela área técnica do ministério.

Bem, captação de recursos é dinheiro nosso que, em vez de irem para o país na forma de impostos, beneficia a cultura. Maria Bethânia é uma artista bastante rica, como sua sobrinha @belovelloso confirmou no twitter. Ela irá se promover com o site, sem dúvida. Por que ela precisa captar?

Acho que a matéria é MUITO polêmica e duvidosa.

Às vezes penso o mesmo

Vou ler este livro, imagina se não. O tema do pai que aceita tirar o filho da escola para educá-lo vendo filmes é maravilhoso. O post abaixo, com foto, título e tudo, foi retirado daqui. (Acho que a blogosfera portuguesa é melhor que a nossa, a amplitude de assuntos é maior. Fazer o quê?)

Hoje em dia, quando vou ao cinema, estou sempre a prestar atenção a tantas coisas, ao marido que fala com a mulher umas filas mais à frente, a alguém que acaba as pipocas e atira o balde para o corredor. Estou atento à montagem, aos maus diálogos e aos maus actores; às vezes, vejo uma cena com muitos figurantes e dou por mim a pensar: serão actores de verdade, estarão a gostar de ser figurantes ou tristes por não estar na ribalta?

Por exemplo, aparece uma rapariga no centro de comunicações no início de ‘007 – Agente Secreto’. Tem uma ou duas falas, mas nunca mais volta a aparecer no ecrã. Pergunto-me o que terá acontecido a todas aquelas pessoas que aparecem nas cenas de multidões, nas cenas de festas: o que é que acabaram por fazer na vida? Terão desistido de representar e escolhido outra profissão qualquer?

Todas estas coisas perturbam a maneira como vejo um filme; antigamente, podiam disparar uma pistola ao meu lado que não me teriam desconcentrado das imagens que se desenrolavam no ecrã à minha frente. Por isso revejo filmes antigos – não apenas para os ver novamente, mas também na esperança de voltar a sentir o mesmo que da primeira vez.

David Gilmour, no livro “O Clube do Cinema” (Pergaminho, 2011)

A entrevista, de Millôr Fernandes

Millôr Fernandes está naquela estreita e admirada faixa de humoristas cultos que podem falar de cultura com grande conhecimento e vivência. Só por isso uma longa entrevista sua já seria motivo de curiosidade, mas há mais, pois Millôr põe generosas pitadas de provocação onde pisa e neste livrinho é bem provocado. Porém, vamos por partes. A entrevista (L&PM, 2011, 100 páginas) é uma — surpresa! — entrevista com Millôr Fernandes concedida em 1981 aos editores da extinta e saudosa da revista cultural em formato de livro Oitenta, também da L&PM. Os entrevistadores foram Ivan Pinheiro Machado, José Onofre, Paulo Lima, José Antonio Pinheiro Machado e Jorge Polydoro. A revista com o texto foi publicada em julho de 1981. Esta edição separada foi lançada há poucos dias e é outra surpresa.

Sem dúvida, os 30 anos que nos separam fazem diferença, quanto mais não seja pelo fato de que em 81 estávamos na fase final da ditadura militar, só que Millôr não se fixa apenas nos fatos da época, partindo para digressões sobre seus temas prediletos: imprensa, infância, ética, psicanálise, Shakespeare, teatro, sucesso, trabalho, feminismo, ditadura, mulheres e amigos. E, de forma típica, Millôr faz provocações em quase todos os quesitos citados. Suas opiniões sobre psicanálise e feminismo estão vencidas ou já estavam na época, mas acho lindo quando alguém altamente inteligente esgrime argumentos desconcertantes. Suas posições a respeito de religião e independência política, porém, não têm nada de perecíveis. Outra das seduções do livro é o contato com o frasista. Millôr, autor de famosas e citadas frases, deixa várias declarações lapidares em suas respostas. Trata-se de um inventor natural de aforismos, aquilo brota sem esforço de suas palavras, fazendo com que a gente leia as 100 páginas do livrinho numa sentada e que acabe sublinhando um monte de coisas “que seriam boas de lembrar”. Foi o que fiz.