Porque hoje é sábado, Sharon Tate

Porque hoje é sábado, Sharon Tate

Hoje, 9 de agosto de 2014, faz 45 anos do assassinato de Sharon Tate.

Em 1969, eu tinha de onze para doze anos, havia alguns nomes de pessoas que eram tratadas com notável cuidado e que faziam muita gente abrir a boca de susto ou admiração. A primeira delas era indiscutivelmente Che Guevara. Devido ao “Tchê” eu pensava que se tratava de um gaúcho. Por influência de alguém — quem seria? –, nós gritávamos seu nome quando fazíamos gols, mas essa é outra história. Com maior liberdade circulava o nome de João Saldanha, o técnico comunista da seleção brasileira. Mas era inadequado admirá-lo demais. Porém, se eu quisesse que as mulheres pusessem as mãos na boca, dizendo “que barbaridade”, bastaria citar o nome de Sharon Tate.

Claro que eu demorei muito para saber que Sharon era uma bela mulher, na época esposa do diretor Roman Polanski, e que fora assassinada em agosto de 69 grávida de oito meses, num ritual ordenado por Charles Manson. Manson estava simplesmente iniciando uma guerra — denominada de Helter Skelter, como a música dos Beatles. Seria uma guerra entre negros e brancos, onde os brancos seriam exterminados. Ele acreditava que algum negro logo seria acusado dos assassinatos e os confrontos explodiriam com derrota final da raça branca. Ele e sua “família” (ele assim chamava seu grupo de lunáticos) eram brancos e planejavam esconder-se dentro de um poço no deserto para fugir da guerra. Era apenas mais um norte-americano doido varrido.

Ao procurar fotos de Sharon Tate, acabei vendo algumas imagens de seu assassinato. Não terei o mau gosto de mostrá-las aqui, mas posso compreender as caras assustadas de minha mãe e tias. Charles queria que os assassinatos fossem realizados com a maior crueldade e gratuidade possíveis — por isto, a escolha de Tate grávida, com parto previsto para dali a duas semanas –, com suas vítimas sendo espancadas, esfaqueadas e baleadas até a morte. Manson matou seis pessoas e, depois de preso, reafirmou seu ódio profundo pela humanidade.

Polanski salvou-se por estar trabalhando em Londres, mas três amigos de Sharon foram assassinados junto com ela. Ela era linda, com uma cara típica dos anos 60, de que foi símbolo.

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A curta vida de Sharon Tate foi cheia de som, filmes, fotos e fúria.

Bem anos 60, aí está uma das fotos do rumoroso casamento da atriz…

…com o cineasta polonês Roman Polanski. Tudo começou em A Dança dos…

… Vampiros (1967), comédia de humor negro (mesmo!) do futuro maridinho.

Sharon nasceu em 1943 e, seis meses depois, vencia um concurso de beleza.

É, seus pais deviam ser uns chatos. Depois Sharon tornou-se isso aí.

Era linda, famosa e sua imagem tomava conta das revistas da época.

Sua atuação em O Vale das Bonecas ameaçava torná-la uma grande estrela…

…quando foi assassinada cruelmente pelo psicopata hippie Charles Manson,…

… preso até hoje na Califórnia. Para piorar, Sharon estava grávida de oito meses.

sharon tate

Como confirmou o psicanalista e blogueiro Cláudio Costa, o caso Sharon Tate…

… provocava associações de erotismo, nojo e medo em nossas tias.

Um assassinato desses era uma novidade. Nunca se divulgara algo deste gênero…

… em uma mídia recém planetária. Foi uma comoção, um ato repulsivo, inaceitável.

Para falar de Manson e mesmo de Sharon, baixávamos o tom de voz.

Era vergonhoso. As pessoas todas começavam a se verem refletidas na mídia.

Consequentemente, tapava-se pudicamente a boca.

Eram tempos em que crimes ainda nos chocavam.

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Um dia, o Ramiro Conceição comentou aqui no blog:

Quando aconteceu o assassinato, eu era um tenro adolescente; contudo, lembro-me ainda do olhar esquizóide de Manson… Milton, aquele olhar ficou em mim! Muito mais tarde, compreendi que aquele olhar esquizóide, na realidade, era o verdadeiro olhar da América! Explicando ainda muito melhor: foi quando compreendi o bombardeio de Dresden, já com a Alemanha vencida; quando compreendi a tragédia de Hiroxima e Nagasaki; as guerras da Coréia e Vietnã; as intervenções militares na Guatemala, Cuba; o apoio logístico ao assassinado de Allende; o apoio ao golpe de 64, no Brasil; o fomento, em todas as partes do Mundo, de elites sanguinárias; a guerra no Iraque, Afeganistão etc., etc.: sempre, sempre, sempre aquele olhar esquizoide! Em poucas palavras: o olhar de Manson está na estátua da Liberdade; aliás, somente na América a Liberdade é rígida; na minha rua, a Liberdade é música!

Sobre Ulisses, de James Joyce (comentários que são colaborações)

Por Charlles Campos

Uma breve intromissão do dono do blog: afora a demonstração de conhecimento e vivência literária, o que me interessou no comentário do Charlles foram as afirmações que costumam ser evitadas por quem “canta” as qualidades do romance de Joyce: sua falta de sutileza, de coqueteria, sua essência antiburguesa e até antiliterária. Acho que ele resumiu bem uma característica que  tentei expressar sem o menor sucesso — “romance duro, engraçado, divertido, complicado, pornográfico, sexual e erudito”.

Também gostei muito das observações de outro leitor, Raphael Gomes, que escreveu assim:

Realmente o que mais afasta o leitor dos livros do Joyce é a idéia preconcebida de que Joyce é difícil. Mesmo mal de que sofre Beckett. Pobres irlandeses… Se você pega um livro com a convicção de que não irá entendê-lo,  já entra em campo perdendo. Ulisses é a epopéia do homem comum, e mesmo que não tenha sido escrito para esse homem comum, também não é privilégio apenas de quem, para falar da dor nas costas da avó, se expressa no mais erudito/vernacular jargão filosófico/teórico/literário, coisa que aliás, Joyce nunca fez.

E saio de cena deixando a palavra ao Charlles:

Esse é um dos livros em que o enredo é o de menos. Importa a incrível vivacidade e energia verbal de Joyce. É o anti-limite de sua superioridade como escritor acima de todos os outros_ de Mann, de Faulkner, Proust, Kafka_ que iria subir à estratosfera e se perder com o livro seguinte, o ilegível Finnegans Wake. Trata-se de uma brincadeira bem urdida, uma ciranda calculada na espontaneidade de um severo trabalho de anos, não uma tentativa, mas uma culminação do resumo do ser humano e de sua história, e um enorme deboche à febril ciência da psicanálise (se tudo que passa pela cabeça de um homem comum é divinamente banal, é ridículo sistematizar seu comportamento contraditório numa cabala do subconsciente). Ama-se Bloom e sua esposa, ama-se Dedalus e o excessivamente extrovertido Buck Mulligan, com todos os seus pecados, suas desimportâncias, suas carências.

É o romance da falta de sutilezas, da falta de coqueteria, o romance essencialmente não-burguês (não ANTI-burguês, pois revela o enorme descaso do autor para contrapor uma reação à uma sociedade medíocre), não-científico, e, por mais que possa ser surpreendente, não-literário. Dedica-se todo à celebração da literatura, mas é anti-empolação e anti-oitocentismo. Tanto que depois de Ulisses, aboliu-se a possibilidade de escrever como Victor Hugo, Sully Prudhomme, Romain Rolland, e outros. Ulisses aboliu a literatura em diversos países, obrigando os novos escritores à adaptação. É a suprema manifestação do humor, do humanismo, da redenção velada. Uma mistura de Nona Sinfonia com a fuga da última parte da Sinfonia Júpiter, com cabrioladas de um jazz que abriu as portas para as correntes de ritmos de Coltrane e dos minimalistas. O maior mérito de Joyce foi ter controlado sua extraterrestridade para dar à obra um caráter perfeitamente legível, pois seria natural que depois de ter rompido todos os limites, seu último passo seria Finnegans Wake, assim como o passo seguinte_ o estilo tardio_ de Beethoven fosse os ùltimos quartetos húngaros e a Missa Solemnis.

Aldous Huxley lamentou que Joyce tivesse optado pela abdução. Poderia ter escrito importantes livros da estatura dos de Stendhal. Mas é compreensível. Deportou-se do mundo dos viventes. Não lhe dizia nada a estranheza e prazer de incompreensão libidinosa que o mundo adotaria ao analisar as cartas singelas que escrevia para Nora Barnacle, seu amor de toda a vida. Onde revelava a leveza de seu espírito, a ralé via apenas a sujeira sexual de um intelectual reprimido. Por isso é desconcertante que achemos de uma beleza sem igual as passagens de Bloom se masturbando, de Molly cedendo-se mais uma vez com seus repetitivos sim, sim,sim, da última página, de Mulligan se atirando seminu ao mar, ao lado dos pescadores. Uma impossível beleza nesses gestos prosaicos, e uma lucidez que desmascara toda a hipocrisia, toda pompa. Uma declaração de amor à humanidade, antes de mais nada, mas uma humanidade ainda de um distante porvir, livre das tralhas da ciência e das hierarquias, e centrada no cultivo das idiossincrasias soltas e intimistas de si mesmo.

Por isso que é tão espantoso a Buck Mulligan quando Stephen Dedalus revela que, no leito de morte de sua mãe, se recusou a se ajoelhar; mas não pelo constrangimento à mãe, mas pelo constrangimento contra si mesmo. A liberdade do homem que tomou as rédeas de si mesmo e manda as convenções e a opinião alheia às favas…

Um dia o Charlles há de me explicar o fato de ter chamado os últimos quartetos de Beethoven de “húngaros”. Não entendi. Uma referência à Bartók?

A ZH de amanhã e a morte de Eliseu Santos

A Zero Hora de amanhã mancheteará que uma gaúcha pode ganhar o Oscar, publicará a lista de 2010 dos candidatos a Gaúchos Honorários e garantirá que é muito gostoso ser gaúcho. Já o caderno de Grandes Capangas Gaúchos, trará as principais hipóteses para o assassinado de Eliseu “O seu médico (but not mine)” Santos:

Por Luís Augusto Farinatti

São aventadas novas teses no caso da morte de Santos:

1- Crime Conjugal: não pode ser descartada a hipótese de que a mulher do secretário tenha contratado pistoleiros, pois seria uma eleitora do PT, inflitrada pelo Komintern (que apenas se finge de morto, mas está aí, firme, insinuando-se entre as pessoas de bem). Dizem que, enquanto o marido era alvejado por atiradores das FARC, treinados pelo MST, essa nova Dalila, dentro do carro, passava calmamente nos lábios um batom de um vermelho ofuscante.

2- Acidente: os ferimentos causados no secretário se deram em virtude do estouro do escapamento do carro, enquanto ele dava a volta no automóvel depois de fehcar a porta do carona onde havia entrado sua esposa.

3- Suicídio: na verdade, o secretário andava sofrendo de uma forte crise de depressão, tendo em vista as injustas denúcias das quais vinha sendo vítima. Assim, disparou três tiros contra si mesmo e ainda usou o último fôlego para imitar vozes de assaltantes, com o fim de enganar Deus e poder entrar no Reino dos Céus.

Da Redação

Comentário sobre o Desfile e a Música das Escolas de Samba

Não por me dar razão em boa parte, mas pela inteligente e esclarecida ampliação do tema apenas sugerido por mim neste post, republico o comentário do leitor Matheus Todeschini Lopes.

Adoro carnaval e sambas-enredo. Sou único da minha faixa de idade, 20 anos, a gostar. Antigamente as baterias tinham um andamento muitíssimo mais lento. Os sambas eram obras sensacionais, com poesia, melodias variadas. “Hoje” (a partir do final dos anos 80, início dos anos 90), o samba mudou, aliás, o carnaval mudou. As Escolas começaram a fazer carnaval para ganhar dinheiro. Não que antes não ganhassem, mas agora estamos falando de milhões. Até 8 milhões de reais. E esse dinheiro é desviado para jogo do bicho, dependendo da Escola vai até para o tráfico. Os sambas eram feitos por grandes sambistas, que amavam suas escolas, seus bairros, sua gente. Gostavam da festa, das pessoas nas ruas a cantar e dançar, a curtir a folia, não por acaso eram foliões. Mocidade com Toco; Império Serrano dando aula de história do Brasil (aprendi o gosto pela história graças ao samba); Vila Isabel com Noel, Brazão, Martinho e Luiz Carlos, cantando sobre o Boulevard, a gente simples da Vila; Mangueira com Jamelão, Helio Turco e Jurandir, iam da Literatura aos morros com seus barracões de zinco; Portela com Paulo da Portela e Paulinho da Viola, pedindo benção dos orixás; Salgueiro com Noel Rosa e seus sambas afro, contando a história do negro do Brasil. Cada escola com um estilo, uma história para contar. Até os artistas começarem a invadir a avenida. Gente que antes não gostava de se misturar com o povão, começou a aparecer na avenida – para aparecer nas revistas, jornais e televisão. Império Serrano avisou em 1982 sobre o que estava acontecendo, com o Bumbumpaticumbumprugurundum:

Super Escolas de Samba S/A
Super-alegorias
Escondendo gente bamba
Que covardia!

É o inconformismo com os famosos, com os turistas, que nem tem ideia do que cantar, tirando pessoas das comunidades dos desfiles, é a revolta contra as Escolas que não escolhiam os melhores sambas, mas os que pagavam mais. Retorno financeiro. Dinheiro, dinheiro. $$$$

“Já diria Sérgio Cabral: “Brancos, devolvam a escola de samba aos negros”. Como este pedido será atendido hoje em dia? Quem sustentaria o carnaval, de maneira a manter o luxo hoje imprescindível que faz atrair milhares de turistas de lugares do mundo inteiro até as arquibancadas da Marquês de Sapucaí? É brabo de admitir, mas os desfiles das escolas de samba de hoje se resultam numa festa capitalista, pouco importando a qualidade do samba e desprezando os mais humildes das comunidades que amam o samba para dar lugar aos endinheirados caras-pálidas que sequer gostam deste ritmo musical tipicamente brasileiro. E, lamentavelmente, o dinheiro e as super-alegorias que escondem ainda mais a gente bamba acabaram definitivamente por diminuir um pouco a apoteose e a magia do carnaval. Por isso que as vendas dos discos de sambas-enredo despencaram consideravelmente, ao ponto de uma pesquisa divulgada no começo de 2004 mostrar que 60% das pessoas não gostam de carnaval, a prova concreta de que a popularidade do samba-enredo descera por ralo abaixo. Tal rejeição melancólica faz com que as músicas mais tocadas do carnaval sejam da estirpe de “Egüinha Pocotó”, “Tapinha não Dói” e genéricos. É duro admitir! Isso é profundamente triste para quem tem amor ao carnaval e ao samba-enredo: ver este gênero musical ser desprezado por muita gente (sobretudo os jovens).

Ver aqui.

Hoje, os grandes sambistas estão de fora. Martinho, por milagre, conseguiu colocar um samba na Avenida, em homenagem a Noel Rosa, com a Vila Isabel. Infelizmente o samba foi destruído na avenida, pois o andamento foi por demais acelerado… Traficantes colocaram sambas noutras escolas, enchendo de dinheiro as diretorias…

Os desfiles não servem para mais nada. Não há graça. Já sabemos sempre quem fica na frente, entre os 6 primeiros. O bicho manda. A bala manda.

E eu, burro que sou, já estou esperando os sambas de 2011, só para ver e ouvir a mesma merda, sambas imbecis, sem qualquer qualidade.

Aí tenho que ler “Tudo começa pela música. As melodias são todas muito parecidas, além do ritmo ser sempre o mesmo e das repetições fazerem parte do sistema” e tenho que concordar… Ler “E por que não usar uma batida mais lenta? Seria uma revolução… Se uma tem de ser mais alegre e empolgante que a anterior, não há como a coisa não tender à idiotice. E, decididamente, não é arte. É muito mais uma grande lavanderia de dinheiro para os traficantes” e ter de balançar a cabeça novamente, confirmando.

🙁

* Beija-Flor tem por característica ter sambas mais lentos e tristes.

Comentário de Hélio Paz ao post abaixo

Como já disse, neste blog é comum ocorrer comentários muito superiores ao post. E não pensem que não me orgulho disso. Vai lá, Hélio!

Hélio Sassen Paz
on Feb 8th, 2010 at 10:33 am

Milton,

Por um lado, hei de concordar com o Cláudio Costa, com o autor do texto que tu traduziste neste post e – muito provavelmente – contigo também, pois me parece que essa também é a tua opinião.

Porém, há um outro lado dessa história, que não pode se restringir nem tampouco centralizar discussão sobre a diminuição do tempo, do interesse, do envolvimento e da continuidade da leitura tão-somente no consumismo, na indústria cultural ou na exacerbação dos produtos do veículo televisão: falo do conservadorismo, da falta de investimento, do despreparo e da ignorância da esmagadora maioria dos professores nas escolas de um modo geral (públicas, privadas, ensino fundamental, médio, pobres, ricos, do Moinhos de Vento ou da zona rural de Ji-Paraná/RO).

Ler é algo muito chato quando não se sabe ler direito. Segundo o IBGE, mesmo entre pessoas com nível superior completo (inclusive muitos formados em universidades federais), o analfabetismo funcional chega à assombrosa cifra de 72% da população brasileira.

A leitura também é uma atividade muito chata quando, além de já não saber ler direito, a criatura não é ensinada a contextualizar nenhuma obra (seja ela de ficção ou não) ao momento histórico ou do qual o autor pretende tratar, ou do momento contemporâneo à sua criação e publicação.

A escola é muito chata quando o professor se posta em pé diante de todos e fala sem parar ou fica a escrever na lousa, como diriam nossos amigos d’além-mar.

Se compete pela atenção dos estudantes com a dinâmica imposta pela velocidade da edição dos thrillers de ação, dos videoclipes e de um telejornalismo que não ultrapassa um minuto e meio nas informações mais extensas. Até mesmo seriados e pequenos documentários que, antigamente, eram feitos para preencher uma grade de 1h por 15 min. de intervalo, agora preenchem 30 min. por 8 de intervalo.

A rotina é corrida; a leitura, por sua vez, é parada: o tempo para ler existe. Contudo, a consciência acerca da importância da leitura se esvai quando não existe competência pedagógica para associar a cultura imagética contemporânea a um caminho mais complexo e enriquecedor que somente a leitura pode proporcionar ao indivíduo.

Já assisti a duas palestras do prof. Adriano Duarte Rodrigues da Universidade Nova de Lisboa. Ele defende a tese de que a cultura midiática de um dado momento é resultado da experiência inata. Embora nem a Psicologia e nem a Engenharia Genética tenham ainda podido comprovar essa tese, o fato de lembrarmos da nossa infância; de como nossos pais e avós se referiam às suas respectivas infâncias e de como observamos as de nossos filhos, sobrinhos e, em alguns casos, até mesmo netos, sempre se nota que cada geração tem vindo ao mundo dotada de uma inteligência normalmente bastante superior à de seus antecessores.

Em relação à mídia, Duarte Rodrigues cita alguns exemplos bastante interessantes, que eu adapto ao meu entendimento pra simplificar:

– Minha mãe tem 76 anos. Parou de trabalhar aos 20, para casar-se com meu pai. Ela estudou até a quarta série do então primário. Foi criada por uma tia analfabeta e por um tio que só estudara até o ginásio. A cultura oral da era do rádio era muito mais forte do que a tradição escrita.

Até hoje, mesmo tendo acompanhado a televisão desde o seu início, ela não compreende as “deixas” simbólicas de quando começa, quando termina e quando um programa tem seu intervalo. Meu pai, que era três anos mais velho e era engenheiro de Minas e Metalurgia, também não compreendia essas deixas, por mais tempo que passasse na frente da TV após sua aposentadoria.

Minha irmã de 53, meu irmão de 51, minha irmã de 49 e eu, de 36 anos, todos somos da era da televisão. Todos nascemos com televisão em casa. Rádio, só pra música (basicamente na adolescência) e para futebol (eu) e notícias (meu irmão). Segundo Duarte Rodrigues e segundo minhas lembranças, não foi necessário nenhum manual de instruções para que a nossa geração (embora eu seja de outra) aprendesse a ligar a TV, aumentar e diminuir o volume, mudar de canal ou entender rapidamente quando um programa começa, quando termina, quando entra o intervalo e que seção de um programa começa ou termina quando entra ou sai de cena um determinado comunicador.

Pois hoje temos os nativos digitais. A internet comercial existe desde 1994/1995. Quem nasceu a partir de 1987 pode ser considerado nativo digital: seja rico ou seja pobre; tenha tido seu pai um computador antes de nascer ou passando a conviver com o hipertexto, com o correio eletrônico, com as salas de bate-papo e com veículos mais complexos como blogs, Twitter, etc. somente após começar a frequentar LAN houses, as deixas simbólicas da internet e o ritmo de mudança de um site para outro (ou de uma ferramenta de interação para outra) estão completamente dominadas. Eles não precisam de curso nem de manual de instruções para interagir!

Hoje, a comunicação não é mais matemática. O esquema emissor-receptor-mensagem dos engenheiros da marinha dos EUA Shannon e Weaver está superado. Outro modelo de teoria da Comunicação superado é o da ala marxista da Escola de Frankfurt: ao contrário do que diziam, por mais que tente, a mídia de massa não é o quarto poder, não influencia a todos e não consegue manipular corações e mentes.

Hoje, todos somos INTERAGENTES. O pensamento de um é fruto do pensamento de todos os que ele segue de exemplo e lê ou leu; os caminhos da busca de conhecimento de um jamais são iguais aos de outro, mesmo que tenha a mesma educação, a mesma idade, viva nos mesmos lugares e assim por diante.

Ser interagente significa também dominar rapidamente as técnicas e as ferramentas de produção, edição e publicação de conteúdo. É saber divulgar o seu próprio conteúdo. É ser a mídia de si mesmo para tornar-se mídia dos outros.

A cultura de nicho e a incessante mistura das funções de produtor e de usuário da informação na mesma pessoa e ao mesmo tempo fazem com que seja necessário concentrar esforços na compreensão da ubiquidade, isto é, de que estar em um lugar é estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

A TV, o rádio, o jornal, a revista e o livro não são ubíquos, pois dependem de espaços físicos, de grades de programação, de segmentação de público e de um discurso massivo. Porém, quando circulam em um meio digital, podem ser alterados e consumidos por qualquer um a qualquer momento. Ninguém mais quer obedecer a padrões engessados que limitam o acesso e o consumo da informação. O que importa é ter acesso à informação aonde, como e quando o interagente quiser.

O suporte da informação é mais importante do que a informação em si não por causa do consumismo e da tecnofilia mas, sim, por uma questão de acessibilidade: o livro pós-moderno é um arquivo em PDF que permite anotações com a inclusão de áudio, vídeo e links para web sites com informação complementar, acessados pelo leitor ou pelo estudante na hora em que ele quiser e na ordem em que desejar.

Aqui mesmo, no Brasil, há escolas no meio do sertão onde os professores reforçam o conteúdo e o compromisso dos alunos blogando desafios e informações complementares. O estímulo à blogagem faz com que as crianças finalmente voltem a sentir-se estimuladas a ler e a escrever bem. Como cada um visita o blog do outro, emite comentários, acrescenta, corrige e traz novas informações. Como o professor também participa desse processo, ele não é visto como um conhecedor plenipotenciário. Assim, a empatia junto ao mestre aumenta e a turma se integra ainda mais.

Aulas dadas com o auxílio de Wikis, MSN, comunidades no Orkut, etc. tem aumentado o interesse dos alunos pelas matérias e, consequentemente, melhorado o seu desempenho. Lembretes de tarefas ou de novos posts no blog do professor via torpedos SMS e a permanência de todo o conteúdo de aula na web não apenas estimulam o senso de responsabilidade e atenção do aluno como também oferecem a possibilidade de os pais se engajarem no processo de aprendizagem.

Aqui no Brasil, há o mestrado e o doutorado em Informática na Educação da UFRGS, que pesquisa sobre novos métodos pedagógicos com as TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação). A USP também tem um pós semelhante. Aqui, a coisa anda bem atrasada, pelas informações que tenho sobre o comportamento arredio da maioria de nossos pobres professores conservadores e semianalfabetos. Mas em São Paulo, há projetos como o Educarede financiado pela Telefonica e coordenado por uma pessoa incrível, a profª Sônia Bertocchi. O Instituto Claro também investe muito nisso. Mas lá. E o que mais chama a atenção é a iniciativa isolada de milhares de professores espalhados pelo Nordeste.

Imagina este país com banda (verdadeiramente) larga gratuita e estável para todos!

Pra terminar: o estímulo à leitura para os nativos digitais pode passar pelo mesmo que ocorre comigo…

– Por não ser nenhum devorador de romances ou de poesias, por mais que leia, sempre gostei de reportagens, de depoimentos, de biografias e de livros sobre Ciências Humanas em geral. Sabes como me interessei por ler Drácula (Bram Stocker), O Retrato de Dorian Gray, 20.000 Léguas Submarinas, Alan Quatermain, Tom Sawyer e O Médico e o Monstro?

Após assistir ao filme LIGA EXTRAORDINÁRIA. Entrei no site oficial, catei informações sobre as personagens e baixei os livros (todos antigos, de domínio público) para ler.

Isso é o que os estadunidenses Bolter e Grusin chamam de REMEDIATION (remidiação) e que alguns autores latinoamericanos chamam de MIDIATIZAÇÃO: o discurso, o espaço público, as “bibliotecas” e a criação de tudo passa por uma combinação de mídias. A produção e o consumo de todas as mídias estão conectados. A troca é solidária e contínua. As transformações são bem-vindas e o acesso é total. Não existe o “pai da criança”, pois todos acrescentam informação.

O pensamento hierárquico e autoral não tem mais vez nesta sociedade. Quem age assim, tem menos condições de preparar seus filhos para o futuro e de se inserir devidamente nesta sociedade.

[]’s,
Hélio

Muito bem acompanhado (o Guto)

Já tinha até um post pronto, porém Nikelen Witter, mulher do Farinatti, um de nossos habituais comentaristas, veio ao blog e fez um daqueles comentários que merecem destaque. O assunto é o discurso de Pepe Mujica que publiquei neste post. Penso que seu texto descreva, de forma clara, emocionada e inconformista, este nosso cinismo infértil de cada dia e que assume normalmente a máscara da sofisticação. Como educadora, ela deve lidar com isso diariamente. Mas não pretendo me alongar na apresentação. A seguir o comentário:

Nikelen
on Jan 6th, 2010 at 12:50 pm

Oi Milton

Nunca comento aqui, mas o Guto (Farinatti para ti) sempre divide comigo os posts do teu blog (casamos em comunhão de sementes para pensar, ele me traz algumas, eu levo outras). Não preciso repetir o que teus comentadores disseram sobre o belíssimo discurso do presidente uruguaio. De mais a mais, acho que ele fala por si só. Talvez mais que isso.

As palavras de Mujica voam além das nossas programadas inteligências e falam ao nosso coração. Aquele que, jovem, aventureiro, sonhador, foi embalsamado junto com nossos trastes de saída da casa paterna e ficou naquela caixa, nunca aberta, esquecida num canto do armário das coisas as quais um dia pretendemos voltar, e nunca voltamos. Afinal, nós precisamos trabalhar, não é? E precisamos fazer as “nossas coisas” (tão “importantes”, elas, não?). Precisamos ler o último livro daquele autor que amamos, ver o novo filme de nosso cineasta favorito, precisamos amar os nossos amores e criar os nossos filhos. Nos intervalos, lembramos que sabemos pensar e criticamos. Sabemos colocar o dedo na ferida e dizer o que está errado. Somos capazes de apontar todos os problemas. Ora, no Brasil, todo mundo ou é técnico de futebol ou economista e “é a droga do governo que não faz nada diante desta situação!”.

Quem é da área educacional, como eu, deve ter ouvido à exaustão: precisamos formar o aluno crítico! Então, pegamos as criancinhas e lhes ensinamos como o mundo é ruim, como não se pode acreditar no que lhes é dito, como elas devem olhar tudo a sua volta (sem ter esperança) e criticar! Sim, nós temos o aluno/jovem crítico (nós já o somos tanto), e também: cético, cínico… que, depois de tudo, são outras palavras para dizer: descrente, sem curiosidade, sem sonhos, sem utopias, sem paixão.

Quando eu era menina, meu pai falava que um mundo melhor era possível, um mundo diferente, um mundo em que todos sabiam ler e escrever (e liam e escreviam!), onde o conhecimento (não no sentido de dados, mas de pensamento) era o mais importante, onde a inteligência cultivada tinha um valor acima do dinheiro no banco, onde todos comiam três refeições por dia e ninguém passava frio. Lembro que, na mesma época, minha irmã morria de medo de o mundo acabar com uma bomba atômica (ou no ano 2000), eu não… eu sonhava. Sonhava em construir esse mundo melhor, em viver nele, sonhava em criar coisas capazes de ajudar esse mundo a existir. Eu ficava curiosa em descobrir como as coisas funcionavam, pois entendendo, eu achava que seria mais fácil achar um lugar, no meu mundo, onde eu poderia trabalhar para construir o próximo. O mundo do futuro, dos meus sonhos, dos sonhos do meu pai. E, o mais engraçado, nunca achei que meu pai estivesse mentindo para mim ou algo assim, e, jamais duvidei, um único dia, de que o meu sonho seria a realidade do meu futuro.

Então, hoje, cá estou, cheia de diplomas e cercadas de jovens criados para serem críticos, mas não para criar. Criados para serem céticos e não para acreditar que seus sonhos são possíveis. Jovens que olham o mundo e a humanidade com um cinismo e uma antipatia que me assustam. Jovens para quem o dinheiro e o consumo são aquilo a que se resume a vida. Jovens que pensam em salvar o planeta, mas não acreditam na humanidade. Jovens que nem sabem o que palavras como inconformismo significam. Confundem-na o tempo todo com indignação. E, céus, quem não sabe? Indignação virou arroz com feijão, ou pior, virou apenas algo que dá e passa. Ninguém se perde por indignação. Quase ninguém mais sabe que para a indignação nos fazer levantar do sofá, é preciso que não nos conformemos em aceitar viver com ela.

O fato é que, na área educacional quase nunca ouço falar de curiosidade, de criatividade, de utopias. Estas não são palavras que apareçam nos manuais educacionais. E aí, de repente, é tão interessante perceber que o nosso “aluno crítico”, tão cuidadosamente formado, não sabe fazer perguntas. Ele critica, mas não possui a dúvida instigadora. Critica sem observar, sem comparar, sem contraste, sem relativismo. Critica como uma obrigação, sem ver, apenas porque essa é a “competência” e a “habilidade” que se costuma a exigir dele, e mais nada. Não há impulso para a ciência ou para a arte, não de forma massificada. Pelo contrário, quando alguém assim surge é um acaso, uma sorte, é o extra-ordinário. Inteligência não é pensar mais, nem melhor. Não é criar, nem se inconformar, muito menos acalentar sonhos de coisas que provavelmente não vão acontecer. Nas escolas públicas, aluno inteligente é o que consegue ficar na escola por mais tempo e sobreviver. Nas particulares, inteligente é o que consegue aprender mais rapidamente todas as funções do último equipamento de bolso criado pela Nokia ou pela Sony.

Às vezes, vejo a nós, professores, como o Dr. Frankenstein. Queremos dar vida à criatura, mas… Deus nos livre caso ela ande por suas próprias pernas, olhe por seus olhos, ou pense por sua própria cabeça.

E aí esse… esse maravilhoso veterano de um tempo em que o sonho era a maior matéria da realidade, vem com suas palavras cheias de paixão e sonho, e faz, de novo, o mundo de que meu pai falava, existir em algum lugar. Pode ser no Uruguai, num futuro mais distante que a minha existência, numa terra ainda não descoberta ou apenas nesse discurso. Mas só saber que em alguém, em algum lugar, esse desejo de criação, esse exercício de esperança ainda existe, já me faz menina de novo. E, me faz voltar a desejar – com uma força esquecida – um mundo assim para o meu filho viver. Como o meu pai, um dia, desejou para mim.

Valeu pela semente, Milton.
Um abraço.

Estrela Distante, de Roberto Bolãno

Por Charlles Campos

O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?

Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.

Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.

E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.

Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.

Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).

A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.

Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.

Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.

Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.

Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser uma serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.

Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.

Grafite de Roberto Bolaño numa rua de Buenos Aires

Quem acredita em Alma Welt (1972-2007)?

Já aprendi — com Lacan, veja só! — que o significado do que se diz é dado por quem escuta e não por quem fala. Freud, muito antes, já descobrira que a chave da interpretação está com o analisando, não com o analista. Este, quando não atrapalha, oferece a escuta e… aí o analisando diz e exclama: — “Eu sabia!”. Assim vivemos: num mundo imaginário onde até mesmo a imagem de si mesmo é constructo imaginário! Por isso acredito piamente em TUDO que você escreve – o que é a mesma coisa que dizer: “não acredito em NADA disso”.

Comentário do Dr. Cláudio Costa ao post A Autocensura, de meu blog anterior (fora do ar)

Alma Welt foi uma grande escritora gaúcha nascida em Novo Hamburgo (RS) em 8 de janeiro de 1972. Belíssima, prolífica e talentosa, suicidou-se em 20 de janeiro de 2007 na fazenda onde vivia no interior gaúcho — mais exatamente na Estância Sta. Gertrudes, em Rosário do Sul. Ela não se deixava fotografar e dela só há gravuras, todas feitas por Guilherme de Faria.

Até hoje, seus dois biógrafos, a irmã Lúcia Welt e Guilherme, publicam na internet textos inéditos da imensa obra de Alma. Seu único livro publicado foi Contos da Alma (Editora Palavras e Gestos, 2004), o qual foi saudado por José Mindlin como uma obra admirável. O célebre bibliófilo procurou Alma sem sucesso. Eu não fiz uma contagem dos sonetos (fala-se em 700), contos, romances e textos vários de Alma Welt que encontrei na rede, mas posso dizer que não é pouca coisa. Mais: não é pouca coisa e há coisas de muito boa qualidade, como vários dos Sonetos Pampianos e dos Metafísicos. Alma Welt foi uma espécie de estrela do site Recanto das Letras até ser expulsa postumamente, fato tão inédito quanto sua imensa obra. O motivo teriam sido as circunstâncias de sua morte, “demasiado romanesca”. Estranhamente, o site abriga milhares de escritores com os nomes e codinomes mais esquisitos, como Miss Pain, flash e Menina Sol, mas não pode abrigar a obra da cultíssima Alma nem ter seu protetor Guilherme (de) Faria entre seus membros.

Não, não há indícios de plágio ou outro crime de qualquer natureza. O material é todo original, o único senão é a profunda desconfiança de que Alma Welt jamais tenha existido. Só que Alma Welt, ficcional ou não, existiu e existe. Tem obra própria, biografia e seus textos seguem aparecendo aqui e ali.

Minha amiga Vera Medeiros é professora da Unipampa em Bagé (RS). Ela existe, tanto que escorregou ontem em seu banheiro bageense, tendo realizado um spaccata involuntário (ou espacato ou espacate, como queiram), peripécia de que não se orgulha, mas da qual é lembrada sempre que tenta caminhar…. Mas tergiverso… Graduada em Letras pela UFRGS, é mestre e doutora em Literatura Brasileira. Em seu mestrado e doutorado, dedicou-se ao estudo da obra da escritora Clarice Lispector que, supomos, tenha efetivamente existido. Um de seus alunos fez um trabalho sobre Alma Welt. Vera, que escorrega mas não é exatamente uma desequilibrada, ficou desconfiada. Welt, Alma Welt? Welt significa “mundo” em alemão e Alma é um nome de mulher. E é alma. Vera me disse: “Não, ela não existiu; mas a obra dela, provavelmente escrita por Guilherme de Faria, está aí e há coisas interessantes. Vou te mostrar.” E mostrou.

Vida e Obra de Alma Welt

Sonetos Metafísicos de Alma Welt

Sonetos de Mistérios da Alma (de Alma Welt )

Contos da Alma (de Alma Welt)

Romances de Alma Welt

O espaço da irmã da Alma

Guilherme de Faria

O Caso Alma Welt

E eu, com um sorriso irônico, pergunto àqueles que dentre meus sete leitores clicaram nos links acima: você acredita em Alma Welt?

Dois destaques

1

Ao comentário do Luís Augusto Farinatti (mais abaixo no link anterior) feito ao post História de Natal. Copio a seguir o que escreveu o Farinatti.

Milton.

O texto me emocionou. Há compaixão nele.

Sobre o culto mariano, sem querer polemizar, ao que me lembro das leituras sobre história medieval, ele ganha força apenas lá pelo século XI ou XII, junto com uma revalorização da figura humana de Jesus.

Me parece que a associação com as inúmeras divindades femininas pagãs, fossem elas romanas, celtas, germânicas ou eslavas estava presente sim. Acho fascinante perceber que isso tem longuíssima duração. Basta peregrinar pelas regiões de colonização italiana no RS. Os gringos não podem ver uma gruta que metem lá uma Nossa Senhora. Nunca um santo homem. É uma tentação aceitar a postura estruturalista de que a gruta é uma metáfora do útero e que a deidade feminina colocada ali é uma reminiscência incosciente da deusa mãe, mãe terra, gaia ou quantos mais nomes tivessem.

Poucas coisas são tão espantosas quanto a concepção e o sexo. Seria muito difícil para qualquer religião apagar o potencial de mistério, encanto e assombro dos homens diante desses momentos, por mais que o cristianismo tanto tenha insistido em dessacralizar esses atos.

Talvez tudo isso tenha mesmo algum sentido. Há um trabalho muito bom, de Maíra Vendrame, sobre os imigrantes italianos no centro do RS. Ela contraria as obras que descrevem a italianada como “pacíficos seguidores dos padres”. Eles era muito religiosos sim, mas tinham suas próprias concepções de religião, muitas delas reatualizações de crenças pagãs que esses camponeses (pagão, pagus, pago, campo, camponês) usavam para entender o mundo. Os padres ficavam furiosos e escreviam cartas indignadas a seus superiores porque os colonos queriam que eles benzessem porcos e galinhas, queriam que abençoassem os campos antes da plantação. Parecia coisa de idólatras pagãos.

A italianada respondia que, se não era para garantir prosperidade, saúde e boas safras, então para que diabos se precisa de um padre? Só para fornicar escondido com viúvas solitárias?

Aliás, a própria construção da crença em santos me parece uma adaptação de uma religião antiga, onde os deuses eram conhecidos, se sabia sua história, do que gostava e do que não gostava, se conhecia seu rosto e se sabia como negociar com eles para conseguir o que se precisava (um amor, o fim de um temporal, uma boa colheita, a cura de uma doença).

Aquele deus do cristianismo, que não tinha rosto, estava em toda parte e em lugar nenhum e precisava dos padres como intermediários era pouco acessível para os camponeses medievais. Talvez os santos tenham preenchido esse espaço. Mas isso já é chute e estou indo muito além dos meus tamanquinhos.

2

E, do blog A Origem das Espécies, de Francisco José Viegas, este curto post, publicado ontem, que fala sobre a Beleza da Criação. Da criação de Darwin e da outra. Copio aqui também:

A Origem das Espécies, de Charles Darwin, o livro que mudou a nossa forma de pensar o ser vivo e a sua relação com a Natureza, foi publicado há exatamente 250 anos, assinalados hoje em todo o mundo. Poucos leram A Origem das Espécies – é um livro surpreendentemente bem escrito, onde é visível o dom da clareza. Um retrato assim maravilhado só podia comover os criacionistas, que defendem a intervenção superior da Mão Divina (desta forma ou sob a forma do “desenho inteligente”) na criação do mundo e na evolução do ser vivo; pelo contrário, não só relativizam a importância de Darwin como, em alguns casos, o denunciam como o grande inimigo (“adversário” não basta) da religião. Não interessa. Só o facto de permanecerem imunes à beleza deste livro já é assustador.

Acho notável como dialogam os textos do Farinatti e o de Viegas, lidos por mim um logo após o outro.

Necessidade estética do formol, por Charlles Campos

Era notório que tinha duas das qualidades mais requeridas para a boa absorção social quando olhava seu reflexo nos espelhos e percebia-se passando incólume ao abrutalhamento das ocupações da sobrevivência diária. Tinha beleza distribuída em seus 1,75m de estatura perfeita, e sorte. Essa última também uma herança da inerente capacidade cavaleiresca de não se preocupar e a adstringência corporal que permitia a seu pai posicionar-se no limiar da porta do cartório de ofícios Hudberg & Sanders, no horário de expediente, diante a constatação muda de todos de que era uma espécie de tributário da perfeição natural para não exigir-se dele a necessidade da inteligência e da eficiência burocrática. Seu avô, Sólemon Hudberg, repudiara a decisão da filha de se casar com um tipo de homem tão inútil, mas seu amor paterno, mais que a corrente versão de manter as aparências, por final aceitara, trazendo o casal com o bebê para uma das propriedades da família, empregando o marido como escrevente de nível um no cartório. Mas sua condescendência não abarcava o neto, direcionado à Faculdade de Medicina; a pequena réplica excessivamente bela daquele intruso aceito com resignação, mostrando que a intervenção do avô o livrava da inutilidade, destinando-lhe às melhores escolas católicas, enfiando-lhe na cabeça o melhor do pensamento de todos os tempos, à medida que se tornava um rapaz brilhante e circunspecto. Seu avô, em toda ocasião, lhe colocava no colo e dizia sem preocupação para quem ouvisse: “Mas como saiu escarrado ao pai, como minha participação nisso não vingou nem no feitio das orelhas.”E contudo, o marido da filha não passava de um lindo animal doméstico; antes da velhice liberá-lo para admitir isso com o alívio do anúncio da tragédia não cumprida, o Sr. Sólemon Hudberg observava apreensivo como seu genro não possuía a menor fimbra de libido, a menor manifestação de lubricidade, como era imune ao erro e à tentação. Era uma beleza desperdiçada. Sua filha parecia saber disso, mantendo-se à altura daquele merecimento, dispensando-lhe um amor tão íntimo, que avizinhava-se em sua proteção à maternidade. Enquanto estava na faculdade de medicina, observava os corpos infundidos no formol, marmorizados numa inacessível salinidade mortuária; retirava-lhes de pesados baldes de ferro do meio de caldos químicos que transfundiam para fora os líquidos que lhes restavam dos tecidos, e os depositavam nas mesas de dissecação. O mestre ria da violência como o odor batia contra as narinas dos alunos, e dizia que iriam se acostumar rapidamente. A ele nunca lhe afligira. O formol retirava a autenticidade dos corpos, aquela representação adulterada da morte. Nas férias de verão soube que seu pai estava internado no Hospital para tratamento. Vê-lo magro,as faces encovadas, os lustrosos cabelos loiros estranhamente ressecados, deitado no leito, além do choque trouxe uma resposta que buscava desde que na infância descobriu se mover numa velocidade menor que a de todo mundo. Ao longo dos próximos meses foi sendo informado da degradação do pai, a forma do detalhe dos relatórios reportado com distanciamento impregnava um certo determinismo sistemático que o isentava da dor. Quando o prognóstico se cumpriu, o diretor honorário lhe dispensou por uma semana com o rosto da mais heráldica condolência, e pode ver a morte em toda sua frescura legítima na inexpugnável condição de matéria do pai, embrulhado em seda branca no hexágono estendido do caixão, com um terno negro de listas de giz que remetia àquele outro que um dia havia sido quase insuportavelmente belo. Teve que se retirar antes do sepultamento, pois incomodava-o enormemente a assimilação que os olhares lhe faziam da figura do pai. Beijou a mãe e o avô, este sinceramente resguardando uma dor que lhe fazia um amálgama por dentro, e saiu. Nunca mais voltou, tampouco para a faculdade de medicina. Pesava-lhe na cabeça a mão do conhecimento de como as providências diárias artificialmente construídas para mostrar segurança subsumiam sobre o fluxo daquilo que meramente determinava a falta absoluta de controle das coisas, sem punição ou glória, sem merecimento ou perda, sem juízos e valores. Sua função era somente existir.

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Quem acompanha este blog, sabe: ontem à tarde, nosso comentarista Charlles Campos foi acometido de um severo surto criativo e brindou-nos com a peça literária acima, a qual foi devidamente avaliada por nossa equipe de críticos residentes. Dentro da mais rigorosa sacrofobia, Marcos Nunes sugeriu ao autor experimentar uma prosa com mais alegria erótica, ao menos no padrão Thomas Mann.

Adepto de uma literatura concentrada, que nos leve após tênue resistência (detalhe importantíssimo), ao rico mundo pessoal do autor (parece sexo, né?), Charlles Campos escreveu em resposta duas pecinhas mais relaxadas às quais nomeio com simplicidade:

Zwei Variationen über ein Thema von Charlles Felder

Variatio 1 im Stil von Harold Robbins (dedicada a Victor Hugo Lisboa). A estranha pontuação do autor deve ser resultado da forte influência que Laurence Sterne preserva no interior de Goiás:

1._Filho, venha ligeiro. Teu pai morreu!

2.O aprendiz de médico atravessa em um dia e duas noites as estradas sinuosas entre os alpes suíços, com seu porsche negro, o vento secando as lágrimas de seu belo rosto, tão parecido ao do falecido pai.

3.Diante o cadáver do pai, arrumado com aprumo pelos caros especialistas funerários da Morgue`s Berna Foundation, o jovem médico percebe a grande gratuidade da vida, onde planos de controle de nada valem.

4.Ele pensa com seus botões:

5._Em vez de ser um playboy oportunista, vou me dedicar a apenas viver.

6.Mas, no fundo, nosso herói esperava ao menos encontrar o grande amor de sua vida, sincero e imortal.

7.Diz adeus a seu velho avô, o sábio patriarca da família, beija sua mãe e se manda.”

Final alternativo para o Marcos da alegria erótica:

“_Antes, porém, já que ser abençoado pela abstenção em prol da melhora da humanidade e cagar se reduz à mesma coisa, sendo que a última pelo menos tem a vantagem de poder-se ler a parte cultural da Veja e se deleitar animalescamente com o cheiro da própria bosta, vem cá coroa!

_Mas júnior, isto é um pecado mortal. Teu pai está na sala ao lado, pronto para receber Nosso Senhor. E, além do mais (uh!), eu SOU SUA MÃE!

_ Não seja cínica mulher. Por acaso está acima das máximas deterministas do velho Freud, onde já tá provado que tudo não pas…

_Cala a boca, fedelho, e come essa buceta logo.

A penetração é profunda e selvagem, em que os dois amantes tem que ajustar seus corpos para aproveitarem melhor o gozo proporcionado pelo apoio da pia batismal em que ele a colocara sentada. No momento em que o esperma sai caudaloso, com um grito reprimido para que o padre não fosse ali averiguar, a mãe segura um crucifixo que estava pendurado acima, na parede.

Meu Deuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuus!

O jovem a deixa semi-desmaiada no chão e sai, para se lamentar do grande vazio que é o mundo.

Variatio 2, mit Moral (dedicada a Ramiro Conceição):

O mulato João Tenório, faixa amarela do Clube da Capoeira, bonito que só com sua fileira de dentes geneticamente perfeitos, estava tendo aula de aperfeiçoamento do perigoso passo Salto do Macaco à beira mar de Porto Seguro, ao lado de uma tenda armada pela Rede Globo onde se apresentava o grupo Chiclete com Banana (que na hora cantava o lema incentivador da leitura “lê-lê, lê-lêlê lê lê-ô, lê-lê_lê-lê-ô-ô).

Súbito, Sebastião Remanso, dono da barraquinha de água de côco ali perto, lhe chama a atender o orelhão.

João Tenório cancela o sorriso ao ouvir do outro lado da linha a voz de sua mãe:

_Ô Nego, Ô Tê! Oxum acaba de levar teu pai!

Entre làgrimas, Tê pergunta a causa da desgraça á sua mãe que morava no Rio.

_ Bala perdida, igual a seu irmão ano passado. Vem ligeiro que o IML tá pra liberar teu pai.

João Tenório despede-se de sua mulher e seus treze filhos e embarca no trans-estadual para o Rio.

Diante o cadáver do pai, Tenório não vê sentido continuar na capoeira. Dá um beijo na mãe; beija o avô, aspirando a fumaça de arruda misturada a fumo de corda que sai do cachimbo do velho pai de santo, e se manda.

Anos depois reaparece acompanhado com a nova mulher dançarina, que lhe acolheu à porta na época de fome, famoso como guitarrista principal de uma banda de axé. No último dia dos pais interpretou uma versão de arrepiar no Programa do Gugu, de uma canção do Fábio Júnior.

Moral: tá pra se criar desgraça suficiente pra tornar um brasileiro filósofo.

Noite de autógrafos e mais

Sexta-feira, Marcos Nunes deixou este conto nos comentários deste blog. Eu não estou dizendo que aqui os comentários são habitualmente melhores do que o post?

Noite de autógrafos

Olhava para todos que entravam na livraria, ele ali, sentado numa cadeira estofada velha, posto atrás de uma mesa, tendo à sua direita dezenas de exemplares de seu último livro, cujo lançamento se dava naquela noite, mas parece que não, ou pela divulgação ruim, ou pelo desinteresse dos leitores pelo volume, ou ainda pelo próprio e quase anônimo autor.

Pagara pela edição, pequena, enviara algumas cartas, convencera alguns amigos a comparecer, contava com algumas presenças, mas as poucas que vieram foram rapidamente embora, sob um constrangimento às vezes desalmado, ora piedoso, mas o comentário mais regular era “Será que ele não desistirá nunca?”

Seu segundo romance, depois de um primeiro volume de poemas e outro de contos. Alguns elogios, principalmente aos contos, alguns do volume, não todos. O primeiro romance não teve êxito, ele mesmo reconheceu. Mas apostava tudo nesse segundo, escrito com vagar, revisto dezenas de vezes, corrigido, reduzido ao mínimo, escrita seca, com um mínimo indispensável de adjetivos, trama complexa, densa. Um amigo escreve um prefácio super elogioso, e o investimento desta vez valeria a pena.

Assim pensava antes dessa noite. Depois de algumas vendas, mais ninguém. Pudera, não servia-se nem cafezinho neste lançamento! Pela livraria circulam pouquíssimas pessoas. Entre elas, percebe um sujeito pequeno, pele um pouco morena, cabelos encaracolados vastos, castanhos com fios brancos, óculos redondos sobre sobrancelhas grossas entre um nariz algo grande e caído sobre os lábios murchos. Parecia um estudante daqueles eternos, que freqüentam os bancos escolares à fuga das responsabilidades da vida adulta. Teria vindo para o lançamento e encontrava-se perdido, sem entender que o escritor era ele, tão óbvio, sentado atrás de uma mesa antiquada, repleta de volumes novos, ainda cheirando a tinta?

Um tipo esquisito. Fuçava um livro e outro, lendo, lendo… Sorriu e pronunciou alto o nome “Carver!” quando se deparou com o volume recém-lançado. Malditos norte-americanos! Escrevem qualquer coisinha e vendem aos milhares, milhões! E o que são afinal Fritzgerald, Hemingway, Faulkner? Bah, evocadores da barbárie! Voltou a olhar o cara, mas ele não estava no mesmo lugar. Reencontrou-o, mas sem qualquer livro na mão. Prestou atenção: sob as vestes largas, havia coisa ali. Tomara que seja pego, o salafrário. Ladrãozinho de meia tigela, e ainda por cima com um péssimo gosto.

Cansou de esperar. Pegou um volume dos seus, sobre a mesa, e o pôs entre as páginas do jornal do dia, que carregava consigo por conter um aviso do lançamento. Uma pequena nota. Foi andando devagar, tentando representar o papel de um freqüentador qualquer da livraria. Terá o ordinário notado na sua presença anterior à mesa? Sabe-se lá. Mas chegou perto dele, sorrindo com simpatia mas mantendo um ar de conspirador. O outro também sorriu para ele, mas com um ríctus de dor. Sofrerá alguma doença? Estará de ressaca? Será que ele não comeu hoje? Chama-o com um olhar, e o outro se aproxima com naturalidade, enquanto ele age da forma mais suspeita possível. Quando estão bem juntos, o escritor passa para o outro o jornal e, dentro dele, um exemplar de seu livro.

— Vai, leva. É novo. Lançado hoje. Coisa boa.

Com a maior pachorra do mundo, o outro saca o livro do meio do jornal, folheia, lê o prefácio em poucos segundos, fazendo uma vista d’olhos, devolve o volume para o escritor e guarda consigo o exemplar do diário.

— Me gusta robar libros, fala com extrema simpatia o leitor, certamente lotado de exemplares surrupiados sob suas roupas (deve ter livro até na bunda, pensou o escritor).

– Me encanta se alguien se arriesgar a robar un libro mio, respondeu o escritor.

Mais uma vez o outro sorriu, e se foi. Cara esquisito, nem brasileiro é. Desgraçado. Prefere o idiota do Carver, o idiota do…, o idiota do…, inventivava, ficando possesso, quando notou que não estava mais com o próprio livro na mão. Grandessíssimo filho de uma puta, pensou consigo mesmo, mas se deu conta que não, falara a frase, e bem alto. Continuou então no mesmo tom, sorrindo às escâncaras. Grandessíssimo filho de uma puta, grande cara! Que ao menos o desgraçado leia o que me roubou – foi com essa frase que terminou sua explicação ao dono da livraria sobre a razão daquele sonoro escândalo. Lágrimas nos olhos de tanto rir, não sei.

Aos amigos, tudo.

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No dia anterior, Cassionei Petry publicara aqui trecho de uma entrevista de Roberto Bolaño:

R. Me gusta robar libros. Aunque ya no puedo robar, sería bastante vergonzoso ser atrapado, pero cuando era inédito, robé muchísimos. Pero muchos, muchos… Una vez con un amigo –que también era un buen robador de libros- hicimos una apuesta en la Avenida Corrientes, cuando había muchas librerías (creo que todavía hay bastantes): fuimos a Corrientes y Callao y nos pusimos uno de cada lado de Corrientes, y la idea era llegar hasta Cerrito habiéndonos robado por orden los siete tomos del En busca del tiempo perdido de Marcel Proust en librerías sucesivas.

P. ¿Lo lograron?

R. Sí, yo lo logré. Él no. Él creo que robó cuatro, tres, no llegó. […] De todas maneras, me doy cuenta de que perdí el don. Lo más extraño de cuando robaba libros es que yo sentía, físicamente, una especie de aura que me hacía invisible, y que efectivamente era así, porque he salido de librerías con libros de este porte (indica con sus brazos un tamaño enorme), así, al hombro, y no me veían. Era una cosa que tal vez, la gente me miraba y decía “no, no puede ser que se lo esté llevando de una manera tan evidente”… Pero ahora ya no lo siento más. […] Uno de los momentos más gratificantes fue ver a una persona robándose un libro mío cuando yo estaba en una Feria del Libro y que viniese a que yo se lo firmase. Cuando se lo firmé le dije “te agradezco mucho que te hayas robado este libro”, pero también le dije “está todo bien, genial”. Me encantó. Me encantó que alguien se arriesgara a robar un libro mío.

(entrevista de Bolaño a Rodrigo Fresán)

Arturo Belano, seu alter-ego, no romance “Los detectives salvajes” também rouba livros. Se bem me lembro um outro escritor ensina a Belano esta arte.

Mais Bolaño, citado pelo mesmo Cassionei logo após o dia do aparecimento do conto de Marcos Nunes:

Los libros que más recuerdo son los que robé en México DF, entre los dieciséis y los diecinueve años. […] En México había una librería extraordinaria. Se llamaba Librería de Cristal y estaba en la Alameda. Sus paredes, incluso el techo, eran de vidrio. Vidrio y vigas de hierro. Examinada desde fuera, parecía imposible poder robar un libro allí. Sin embargo, la tentación de hacer la prueba pudo más que la prudencia y al cabo de un tiempo lo intenté. El primer libro que cayó en mis manos fue un pequeño tomo de Pierre Louis… […] Pero fue una novela la que me sacó y me volvió a meter en el infierno. Esta novela es La caída, de Camus […] Después de Camus todo cambió. Recuerdo el ejemplar: era un libro de letras muy grandes, como un primer abecedario, de pocas páginas, de tapas duras, con un dibujo horrendo en la portada, un libro difícil de sustraer y que no supe si ocultar bajo la axila o en la espalda, pues no se amoldaba a mi americana de estudiante cimarrero, y que al final saqué a vista y paciencia de todos los empleados de la Librería de Cristal, que es una de las mejores formas de robar y que había aprendido en un cuento de Edgar Allan Poe.”

P. ¿Ha robado algún libro que luego no le gustó?

R. Nunca. Lo bueno de robar libros (y no cajas fuertes) es que uno puede examinar con detenimiento su contenido antes de perpetrar el delito.