O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman

O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman

Infelizmente, a expressão ovo da serpente é hoje muito utilizada. Virou lugar comum. Toda vez que alguém quer dizer que uma tragédia ou problema era previsível, lá vem a ela. A expressão nasceu em 1977, com este filme de Ingmar Bergman. O terrível Dr. Hans Vergerus (clique no link) — sobrenome habitual dos filmes do diretor, significando algo ruim — , diz: “É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito”.

O Ovo da Serpente é um ponto fora da curva na carreira de Bergman. Acusado de evasão fiscal na Suécia, Bergman se viu no centro de um escândalo que ganhou proporções internacionais. Deixou seus bens para o fisco e partiu para um autoexílio na Alemanha, mais precisamente em Munique, onde acabou fazendo um acordo com o produtor Dino de Laurentiis para rodar um filme em inglês ao mesmo tempo em que lidava com advogados e autoridades fiscais.

E fez um filmaço, desta vez sem explorar ao fundo dramas pessoais, relacionamentos, psicologia, religião, sexo ou filosofia, seus temas mais caros. Aqui, Bergman constrói com impecável riqueza de detalhes o mundo sem dinheiro, inflacionado, sangrento, paranoico e instável da Alemanha de 1923, ano em que se passa o filme, no período entre 3 a 11 de novembro, semana do Putsch de Munique. Sim, o Putsch foi a primeira tentativa de um maluco de tomar o poder. Foi um fiasco. A democracia alemã era mais forte. O nome do maluco era Adolf Hitler.

Abel Rosenberg (David Carradine) é um trapezista judeu desemprego, que vê seu irmão, Max, se suicidar. Ele procura Manuela (Liv Ullmann), sua cunhada. Juntos eles sobrevivem com dificuldade à violenta recessão econômica pela qual o país passa. Sem compreender as transformações políticas em andamento e pegando qualquer trabalho ou grana, eles aceitam trabalhar em uma clínica clandestina que realiza certas experiências que realmente ocorreram naquele periodo e depois.

E mais não conto. Grande filme!

Sight & Sound atualiza sua lista dos melhores filmes da história

Sight & Sound atualiza sua lista dos melhores filmes da história

Como faz a cada dez anos, o veículo britânico Sight & Sound publicou, recentemente, uma atualização da lista de melhores filmes de todos os tempos. A revista tem distribuição feita pela BFI (British Film Institute), e o ranking é definido por um grupo internacional de profissionais do cinema. Eles são 1.639 críticos, programadores, curadores, arquivistas e acadêmicos, mais 480 diretores e cineastas.

Na mais recente atualização, o primeiro lugar da lista ficou com “Jeanne Dielman”, filme franco-belga de 1975, dirigido por Chantal Akerman. Essa é a primeira produção de direção feminina a figurar no topo do tradicional ranking.

Entre as entradas mais recentes da lista, estão “Parasita” e “Retrato de Uma Jovem Em Chamas”, de 2019. “Corra!”, de 2017 e “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, de 2016 também são alguns dos títulos mais atuais.

Confira a lista completa abaixo.

Os 100 melhores filmes de todos os tempos, de acordo com a Sight & Sound:

Veja o Top 100 da Sight & Sound, que é publicada pelo instituto britânico de cinema (BFI), abaixo:

1. “Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxel” (Chantal Akerman, 1975)
2. “Um Corpo Que Cai” (Alfred Hitchcock, 1958)
3. “Cidadão Kane” (Orson Welles, 1941)
4. “Era Uma Vez em Tóquio (Ozu Yasujiro, 1953)
5. “Amor à Flor da Pele, Wong Kar-wai, 2001)
6. “2001: Uma Odisseia no Espaço” (Stanley Kubrick, 1968)
7. “Bom Trabalho” (Claire Denis, 1998)
8. “Cidade dos Sonhos.” (David Lynch, 2001)
9. “Man with a Movie Camera” (Dziga Vertov, 1929)
10. “Cantando na Chuva” (Stanley Donen e Gene Kelly, 1951)
11. “Sunrise: A Song of Two Humans” (F.W. Murnau, 1927)
12. “O Poderoso Chefão” (Francis Ford Coppola, 1972)
13. “A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939)
14. “Cléo de 5 às 7” (Agnès Varda, 1962)
15. “Rastros de Ódio” (John Ford, 1956)
16. “Tramas do Entardecer” (Maya Deren e Alexander Hammid, 1943)
17. “Close-Up” (Abbas Kiarostami, 1989)
18. “Quando Duas Mulheres Pecam” (Ingmar Bergman, 1966)
19. “Apocalypse Now” (Francis Ford Coppola, 1979)
20. “Sete Samurai” (Akira Kurosawa, 1954)
21. (EMPATE) “A Paixão de Joana D’Arc” (Carl Theodor Dreyer, 1927)
21. (EMPATE) “Late Spring” (Ozu Yasujiro, 1949)
23. “Playtime” (Jacques Tati, 1967)
24. “Faça a Coisa Certa” (Spike Lee, 1989)
25. (EMPATE) “Au Hasard Balthazar” (Robert Bresson, 1966)
25. (EMPATE) The Night of the Hunter” (Charles Laughton, 1955)
27. “Shoah” (Claude Lanzmann, 1985)
28. “Daisies” (Věra Chytilová, 1966)
29. “Taxi Driver” (Martin Scorsese, 1976)
30. “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (Céline Sciamma, 2019)
31. (EMPATE) “O Espelho” (Andrei Tarkovsky, 1975)
31. (EMPATE) “8½” (Federico Fellini, 1963)
31. (EMPATE) “Psicose” (Alfred Hitchcock, 1960)
34. “L’Atalante” (Jean Vigo, 1934)
35. “Pather Panchali” (Satyajit Ray, 1955)
36. (EMPATE) “City Lights” (Charlie Chaplin, 1931)
36. (EMPATE) “M – O Vampiro de Dusseldord” (Fritz Lang, 1931)
38. (EMPATE) “Acossado” (Jean-Luc Godard, 1960)
38. (EMPATE) “Some Like It Hot” (Billy Wilder, 1959)
38. (EMPATE) “Janela Indiscreta” (Alfred Hitchcock, 1954)
41. (EMPATE) “Ladrões de Bicicleta” (Vittorio De Sica, 1948)
41. (EMPATE) “Rashomon” (Akira Kurosawa, 1950)
43. (EMPATE) “Stalker” (Andrei Tarkovsky, 1979)
43. (EMPATE) “Killer of Sheep” (Charles Burnett, 1977)
45. (EMPATE) “Intriga Internacional” (Alfred Hitchcock, 1959)
45. (EMPATE) “The Battle of Algiers” (Gillo Pontecorvo, 1966)
45. (EMPATE) “Barry Lyndon” (Stanley Kubrick, 1975)
48. (EMPATE) “Wanda” (Barbara Loden, 1970)
48. (EMPATE) “Ordet” (Carl Theodor Dreyer, 1955)
50. (EMPATE) “Os Incompreendidos” (François Truffaut, 1959)
50. (EMPATE) “O Piano” (Jane Campion, 1992)
52. (EMPATE) “News from Home” (Chantal Akerman, 1976)
52. (EMPATE) “Fear Eats the Soul” (Rainer Werner Fassbinder, 1974)
54. (EMPATE) “O Apartamento” (Billy Wilder, 1960)
54. (EMPATE) “Battleship Potemkin” (Sergei Eisenstein, 1925)
54. (EMPATE) “Sherlock Jr.” (Buster Keaton, 1924)
54. (EMPATE) “Le Mépris” (Jean-Luc Godard 1963)
54. (EMPATE) “Blade Runner” (Ridley Scott 1982)
59. “Sans soleil” (Chris Marker 1982)
60. (EMPATE) “Daughters of the Dust” (Julie Dash 1991)
60. (EMPATE) “La dolce vita” (Federico Fellini 1960)
60. (EMPATE) “Moonlight – Sob a Luz do Luar” (Barry Jenkins 2016)
63. (EMPATE) “Casablanca” (Michael Curtiz 1942)
63. (EMPATE) “Os Bons Companheiros” (Martin Scorsese 1990)
63. (EMPATE) “O Terceiro Homem” (Carol Reed 1949)
66. “Touki Bouki (Djibril Diop Mambéty 1973)
67. (EMPATE) “The Gleaners and I” (Agnès Varda 2000)
67. (EMPATE) “Metropolis” (Fritz Lang 1927)
67. (EMPATE) “Andrei Rublev” (Andrei Tarkovsky 1966)
67. (EMPATE) “The Red Shoes” (Michael Powell & Emeric Pressburger 1948)
67. (EMPATE) “La Jetée” (Chris Marker 1962)
72. (EMPATE) “Meu Amigo Totoro” (Miyazaki Hayao 1988)
72. (EMPATE) “Journey to Italy” (Roberto Rossellini 1954)
72. (EMPATE) “L’avventura” (Michelangelo Antonioni 1960)
75. (EMPATE) “Imitation of Life” (Douglas Sirk 1959)
75. (EMPATE) “Sansho the Bailiff” (Mizoguchi Kenji 1954)
75. (EMPATE) “A Viagem de Chihiro” (Miyazaki Hayao 2001)
78. (EMPATE) “A Brighter Summer Day” (Edward Yang 1991)
78. (EMPATE) “Sátántangó” (Béla Tarr 1994)
78. (EMPATE) “Céline and Julie Go Boating” (Jacques Rivette 1974)
78. (EMPATE) “Tempos Modernos “(Charlie Chaplin 1936)
78. (EMPATE) “Crepúsculo dos Deuses” (Billy Wilder 1950)
78. (EMPATE) “A Matter of Life and Death” (Michael Powell & Emeric Pressburger 1946)
84. (EMPATE) “Veludo Azul” (David Lynch 1986)
84. (EMPATE) “Pierrot le fou” (Jean-Luc Godard 1965)
84. (EMPATE) “Histoire(s) du cinéma” (Jean-Luc Godard 1988-1998)
84. (EMPATE) “The Spirit of the Beehive” (Victor Erice, 1973)
88. (EMPATE) “O Iluminado” (Stanley Kubrick, 1980)
88. (EMPATE) “Amores Expressos” (Wong Kar Wai, 1994)
90. (EMPATE) “Madame de…” (Max Ophüls, 1953)
90. (EMPATE) “The Leopard” (Luchino Visconti, 1962)
90. (EMPATE) “Contos da Lua Vaga” (Mizoguchi Kenji, 1953)
90. (EMPATE) “Parasita” (Bong Joon Ho, 2019)
90. (EMPATE) “Yi Yi” (Edward Yang, 1999)
95. (EMPATE) “A Man Escaped” (Robert Bresson, 1956)
95. (EMPATE) “O General” (Buster Keaton, 1926)
95. (EMPATE) “Era Uma Vez no Oeste” (Sergio Leone, 1968)
95. (EMPATE) “Corra!” (Jordan Peele, 2017)
95. (EMPATE) “Black Girl” (Ousmane Sembène, 1965)
95. (EMPATE) “Tropical Malady” (Apichatpong Weerasethakul, 2004)

Grandes duplas do cinema – diretores(as) e atores (atrizes)

Grandes duplas do cinema – diretores(as) e atores (atrizes)

Ingmar Bergman e Liv Ullman
Jean-Luc Godard e Anna Karina
Sofia Coppola e Bill Murray
Leos Carax e Denis Lavant
Martin Scorsese e Robert De Niro
Michelangelo Antonioni e Monica Vitti
David Lynch e Kyle MacLachlan
Quentin Tarantino e Uma Thurman
John Cassavetes e Gena Rowlands
Pedro Almodóvar e Penélope Cruz
Bigas Luna e Javier Bardem
Woody Allen e…
Zhang Yimou e Gong Li
Juan José Campanella e Ricardo Darin
Ettore Scola e Nino Manfredi
Bette Davis e William Wyler
Katherine Hepburn e George Cukor
Ingrid Bergman e Alfred Hitchcock
Barbara Stanwick e Frank Capra
Grace Kelly e Alfred Hitchcock
Bette Davis e Michael Curtiz
Maureen O’Hara e John Ford
Olivia de Havilland e Mitchell Leisen
Elizabeth Taylor e George Stevens
Bette Davis e Alfred E. Green
Billy Wilder e Jack Lemmon
François Truffaut e Jean-Pierre Léaud
Fellini e Marcello Mastroianni
Paolo Sorrentino e Toni Servillo
Akira Kurosawa e Toshiro Mifune
Lars Von Trier e Charlotte Gainsbourg
Emir Kusturica e Davor Dujmovic
Monicelli e Mastroianni
Xavier Dolan e Xavier Dolan
Woody Allen e Woody Allen
Werner Herzog e Klaus Kinski
Wong Kar-Wai e Tony Leung
Hal Hartley e Martin Donovan

Sobre certa crítica cinematográfica

Sobre certa crítica cinematográfica

Eu e Elena estávamos conversando sobre o filme Lamb e ela disse que não gosta de ler críticas porque ou eles dão spoilers ou veem sentido a detalhes que podem ser meramente casuais… Como as paredes vermelhas em Gritos e Sussurros, completei.

E eu lhe contei uma história com meu pai. Estávamos vendo Tristana, de Luis Buñuel e, de repente, lá pela metade do filme, todo o elenco, que falava francês, passava a falar espanhol.

Na saída, um conhecido crítico explicava a um grupo de pessoas sobre a mudança de idioma. Falava que a elegância e frieza do francês dava lugar à sensualidade e informalidade do espanhol e que aquilo acompanhava o que era contado no filme.

Meu pai ficou contrariado e, desconfiado e cara de pau como era, foi falar com o operador do cinema. O cara lhe explicou que o segundo rolo viera em espanhol por engano e que algum cinema de Recife estava vendo o filme com a primeira metade em espanhol e a segunda em francês…

Meu Sonho de Cinema — Um velho Bergman que nunca deixei de amar

Do blog do Merten por Luiz Carlos Merten

Em 1966, em Porto Alegre, comecei a escrever sobre cinema – há 56 anos! Muitos de vocês, a maioria?, nem eram nascidos. Em 1974, já estava na Folha da Manhã há bem uns quatro anos. Foi quando estreou Gritos e Sussurros. Havia visto a obra-prima de Ingmar Bergman numa viagem que Doris, minha ex, e eu fizemos a Buenos Aires. O filme causou-me verdadeira comoção. Entrou na mira da censura do regime militar, e quase foi proibido por causa de duas ou três cenas, incluindo aquela em que a personagem de Ingrid Thulin faz um corte na própria vagina com um caco de vidro. Na estreia, veio-me um desejo. Criei um ABC de Bergman para falar, não apenas de Gritos e Sussurros, mas para contextualizar o filme na obra do grande autor sueco. O texto foi publicado em dezembro de 1974 na Folha da Manhã. Integra a seleção de textos que escrevi na imprensa gaúcha e foram reunidos pela Prefeitura de Porto Alegre na Coleção Escritos de Cinema. O volume chama-se Um Sonho de Cinema e, no twitter, vocês vão ver a capa. Rocco e Seus Irmãos! Nos créditos do livro consta meu nome junto ao de Clarice da Silva Alves, na rubrica Seleção e Organização dos Textos. Até onde me lembro, dei carta branca para que ela, e talvez o Marcus Mello, fizessem o que bem entendessem. Fizeram um lindo trabalho. O livro está aqui na minha estante. Vilmar Ledesma me estimulou a republicar textos que são viscerais da minha juventudse. Quem eu era, e quem sou. Começo com esse Bergman. Ao mestre, todo meu carinho. Se interessarem a vocês, pretendo prosseguir com os Escritos, uma vez por semana, que tal?

ARTE-BELEZA-CRIAÇÃO, O ABC DE GRITOS E SUSSURROS

A de ANDERSSON, Harriet. É a atriz que faz Agnes, a personagem cujo sofrimento está no centro do filme. Quando Gritos e Sussurros começa, Agnes está à morte. Suas duas irmãs vieram de longe para assisti-la e se revezam com a empregada, à beira do leito. Era intenção de Bergman evitar todo sensacionalismo na descrição deste leito de morte, o que não o impede de dar uma dimensão patética à figura de Agnes. O rosto crispado de dor, a expressão assustada de quem expõe seu sofrimento ante os olhos dos outros e ao mesmo tempo, certa satisfação de menina rejeitada, que cresceu sozinha e finalmente se descobre no centro de todas as atenções, tudo isso encontramos na personagem de Agnes. Ao criá-la, Harriet Anderson se revela uma extraordinária atriz. Tão perfeita, que corta a respiração do público na cena (dolorosa) da sua “morte”.

B de BERGMAN, Ingmar. Cineasta sueco de 56 anos, nascido em Upsala. Uma carreira polêmica: Bergman foi endeusado pela crítica no Festival de Cannes de 1956, enterrado pela mesma crítica no início dos anos 60. Uma década mais tarde, foi aplaudido de pé pelo público e pelos críticos presentes ao Festival de Cannes de 1973, onde Gritos e Sussurros, exibido fora de concurso, foi considerado a obra-prima do Festival. A abundância de filmes de Bergman (34 em menos de 30 anos de carreira), não é um sinal de facilidade mas, pelo contrário, o resultado de um paciente trabalho de construção intelectual. Cineasta do sexo e também da alma, ele foi muitas vezes acusado de colocar seus temas acima do tempo, de dar-lhes uma dimensão subjetiva e até metafísica. É que Bergman reflexiona os grandes temas da humanidade: a angústia metafísica do homem frente aos mistérios da vida e da morte, do amor e do sexo, da alegria e do sofrimento.

C de CENSURA. Desta vez , para louvar. A mesma censura que mantém afastadas das nossas telas algumas das obras primas mais importantes produzidas pelo cinema mundial nos últimos anos, desta vez houve por bem permitir que Gritos e Sussurros não apenas fosse apresentado, como também fosse apresentado inteiro (que milagre!), à admiração do público. Este respeito (raro!) pela figura de um artista nós gostaríamos de ver aplicado não somente a Bergman, mas também a Stanley (A Laranja Mecânica) Kubrick, Bernardo (Último Tango em Paris) Bertolucci e muitos outros cujas obras estão proibidas no Brasil.

D de DEUS. Desde o seu primeiro trabalho cinematográfico importante, o roteiro de A Tortura do Desejo, de Alf Sjoberg, e depois, através de seus 34 filmes, Bergman, filho de pastor protestante, raramente deixou de perguntar: Deus existe? Esta interrogação apareceu, quase sempre sem resposta, nas entrelinhas de histórias sobre amores juvenis, casais em crise, doença, velhice, solidão e morte. Entre o silêncio de Deus e os tormentos do sexo, Bergman construiu uma obra polêmica, onde só de vez em quando, na fonte que brotava ao final de A Fonte da Donzela, pode-se encontrar uma resposta divina para os anseios espirituais dos seus personagens.

Gritos e Sussurros prossegue com interrogação, mas mostra que Bergman talvez não esteja mais tão angustiado ante a perspectiva de não encontrar uma resposta. A comovida oração que o pastor recita, encomendando a alma de Agnes a Deus é o momento culminante de uma enquete desenvolvida pelo cineasta ao longo de seus 34 filmes. Mas embora sem uma resposta divina, Gritos e Sussurros revela um Bergman mais sereno, menos desesperançado: a esperança, aqui, nasce não de um sinal de Deus mas da solidariedade entre os humanos. Esta esperança nós encontramos no momento em que Karen (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullman) rompem com seu silêncio e se tocam, se falam, ou então na outra cena, sublime, em que Ana (Kari Sylwan) toma sem seus braços a moribunda Agnes para que ela possa descansar em paz.

E de ESTILO, E de EVOLUÇÃO. Ao longo de sua carreira, é sensível a evolução de Bergman, o seu progressivo domínio sobre a linguagem cinematográfica. Na fase mais recente, a construção dos filmes torna-se mais harmoniosa: há um dosado controle do simbolismo e um abandono consciente da iluminação expressionista que caracteriza Noites de Circo, O Sétimo Selo, O Silêncio ou A Hora do Lobo. Para resumir tudo em poucas palavras: a composição da imagem em densidade ou profundidade. É a fase da maestria de Bergman, a fase de A Paixão de Ana, de A Hora do Amor e, sobretudo, deste esplêndido Gritos e Sussurros.

F de FOME. O sexo e a fome, já se sabe, são dois problemas fundamentais do homem. Na Suécia, país onde o povo não se martiriza pela fome, o sexo terminou assumindo uma importância crucial. Sem problemas materiais a infelicitá-los, os suecos acharam no sexo a sua fonte de martírio. O cinema e o teatro da Suécia, as peças de Strindberg, os filmes de Bergman, Alf Sjoberg e Mai Zetterling mostram isso.

O tema da fome é essencial em Gritos e Sussurros, mas é uma fome desesperada de amor, de carinho e comunicação. Ela aparece não apenas na impotência de Agnes frente à doença que devora suas entranhas, mas também na dureza das linhas do rosto de Karen, na futilidade de Maria e na própria força física que emana da figura de Ana, levando-a a ninar o corpo de Agnes, numa inesquecível recriação da Pietá.

G de GRITOS. Há no filme os gritos e os sussurros. Uns e outros calam fundo no público. Se o grito é a expressão da cólera contra a própria infelicidade, o sussurro é como um gemido arrancado ao fundo da alma. O grito fere o ar como uma punhalada, uma chicotada e uma agressão, o sussurro dilacera as entranhas. Bergman mostra.

H de HUMILHAÇÃO. Bergman sempre foi sensível ao tema da humilhação. Todo mundo ainda se lembra, por certo, da cena inicial de Noites de Circo, quando o palhaço era humilhado publicamente, ao carregar o corpo da mulher que tentara o suicídio, por entre os soldados com quem ela o enganara. O próprio sistema burocrático, Bergman assinalava recentemente, é feito de humilhações que alguns homens têm de sofrer nas mãos de outros.

A humilhação, como tema bergmaniano, não poderia estar ausente das imagens de Gritos e Sussurros. Aparece na cena em que Karen corta a vagina com um caco de vidro, para ilustrar, mais do que o desprezo e o ódio pelo marido, o desprezo e o ódio por si mesma. Aparece na cena em que o médico recusa o oferecimento de Maria. Aparece, em alguns momentos, na passividade com que Agnes aceita o seu destino cruel, a dor e o sofrimento.

I de INFÂNCIA. Em muitos filmes de Bergman, respiramos a nostalgia da infância. Um dos grandes momentos de Morangos Silvestres e de toda a carreira do cineasta foi, sem dúvida, aquele que mostrava o velho professor Isaak Borg abandonado no jardim de infância, chamando o seu amor de juventude (Sara! Sara!). Em Gritos e Sussurro, Agnes evoca suas tristes memórias de infância, quando a sua mãe (a deusa Liv Ullman, morena) passeava no belo jardim da casa, quase indiferente aos pedidos de atenção da filha. Num outro extremo, Ana sofre a perda da filha. É por isto, porque uma busca a mãe que não teve e outra a filha que perdeu, que Agnes e Ana estabelecem uma corrente de compreensão e solidariedade.

 

L de LIÇÕES. Num artigo publicado na revista francesa L’Express, logo após o Festival de Cannes do ano passado, o crítico e cineastra François (A Noite Americana) Truffaut assinalou as três grandes lições de Bergman em Gritos e Sussurros: liberação dos diálogos, nitidez radical da imagem e primazia absoluta ao rosto humano. As três colocadas a serviço de um notável estudo da mulher frente aos temas do amor, sexo, dor, sofrimento, vida e morte.

Gritos e Sussurros não é uma peça de literatura, mas é um filme que se compõe de palavras sinceras, de coisas ditadas e silenciadas, de confissões e confidências. O próprio Bergman é o autor dos diálogos deste filme, que contém algumas das falas mais bonitas que o público já ouviu no cinema. Gritos e Sussurros coloca o nome de Bergman entre os dos chamados cineastas “construtores” da imagem (Hitchcock, Eisenstein, Fritz Lang): não há nada no filme que ele não tenha querido mostrar.

Finalmente, Gritos e Sussurros devolve ao rosto humano todas as suas modulações expressivas. Nunca, desde os tempos do dinamarquês Carl Theodor Dryer, com sua obra-prima do cinema silencioso, A Paixão de Joana D’Arc, uma câmera se aproximou tanto do rosto humano. Em cena, estão quatro mulheres: seus rostos são os territórios percorridos pela câmera de Bergman, que devolve ao rosto humano sua primazia. Gritos e Sussurros é uma impressionante sucessão de olhos, bocas, orelhas: olhos que falam, bocas que silenciam, ouvidos presos ao inexorável tic-tac dos relógios que anunciam o tempo, e a morte.

M de MORTE. O problema da morte está ligado ao problema do tempo. A luta do homem contra a morte sempre foi uma luta contra o tempo, no sentido de preservar a vida. No filme de Bergman, Agnes morre mil vezes, a cada tic-tac do relógio que aproxima o momento do desenlace. Bergman nos faz sentir a opressão do tempo desde as cenas iniciais: depois dos planos do jardim, banhado pela luz do amanhecer, penetramos na casa, na atmosfera carregada do quarto, onde os relógios anunciam a Agnes que ela superou mais uma noite. Inicia-se um novo dia na corrida da personagem contra a morte.

N de NYKVIST, Sven. É o fotógrafo preferido de Bergman, premiado pela Academia de Hollywood em 1974 pelo seu trabalho neste filme. A ideia de Gritos e Sussurros nasceu, segundo Bergman, de uma imagem: as quatro mulheres num quarto vermelho. A cor era muito importante: vermelho sempre foi para Bergman, a cor da alma. Por quê, nem ele sabe. Mas foi por isto que ele exigiu de Sven Nykvist um tratamento impressionante de cor. Preto, branco, muito vermelho, são as cores que vemos em Gritos e Sussurros.

Outros detalhes também teriam que ser resolvidos através de uma estreita colaboração entre o cineasta e o diretor de fotografia. Bergman não queria determinar exatamente a época da ação, mas queria dar ao público, uma sugestão de sensualidade. Tudo isto ele conseguiu graças ao trabalho de um senhor fotógrafo, Sven Nykvist.

P de PIETÁ. Todo mundo sabe o que é a Pietá. É uma composição de pintura ou escultura que representa a Virgem, sozinha ou acompanhada com o corpo do Cristo morto. Depois das obras medievais (a famosa Pietá de Avignon), o tema tornou-se frequente sobretudo no Renascimento. Na escultura, a obra mais famosa é a Pietá de Miguel Ângelo, na Catedral  de São Pedro.

Bergman quis fazer a sua Pietá e fez Gritos e Sussurros, colocando Agnes num retorno da própria morte, nos braços de Ana, onde ela finalmente encontra a paz. Momento sublime de cinema, momento inesquecível de significação humana: Ana descobre o seio e envolve Agnes em seu calor. É assim que Agnes encontra a tranquilidade da morte. Esta cena tem uma dimensão fantástica: o milagre que leva à paz. P de Pietá, P de paz reencontrada.

S de SYLWAN, Kari. É a atriz que faz Ana, a empregada que mora sozinha na casa com Agnes. Ana é uma camponesa de beleza um pouco rude. Mas é uma das mais impressionantes figuras de mulher criadas por Bergman. Com uma silhueta barroca, lembrando vagamente a figura física de Simone Signoret, é no seu terno regaço que ela acolhe a moribunda Agnes. Curiosa relação, a destas duas mulheres: uma, Agnes, que não teve da mãe a atenção que queria; a outra, Ana, perdeu a filha querida. É isto afinal de contas, que as aproxima.

T de THULIN, Ingrid. A atriz que faz Karen. Mais velha que Agnes, ela casou com um burguês rico e hoje acumula ódio ao marido e desprezo por si mesma. Ingrid Thulin, uma excelente atriz, é conhecida do público não só por suas participações em filmes de Bergman, mas também por seus papeis em filmes de Vincente Minnelli (Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse) e Luchino Visconti (Os Deuses Malditos). Nenhum destes diretores, porém, nem o próprio Visconti, usou tanto a dureza das linhas do seu rosto. Como Karen, ela projeta uma imagem de pedra: a expressão crispada mal dissimula a violência que ela contém e que a destrói internamente. Mas quando esta natureza se liberta e Maria e ela se entregam a um diálogo cheio de ternura, percebemos o que existe de desolador na sua dureza. Quando o filme termina, Karen voltou a ser o que era. É isto, mais que o silêncio de Deus, que atormenta Bergman hoje em dia: a facilidade com que as pessoas se transformam em carrascos de si mesmos.

U de ULLMAN, Liv. Uma atriz que parece funcionar só nos filmes de Bergman (seus papeis em Hollywood foram desastrosos, ou quase isto), Liv interpreta duas personagens em Gritos e Sussurros. Morena, ela é a mãe, sempre vestida de branco, presença majestosa, envolta numa certa melancolia; como Maria, a mais nova das três irmãs, ela aparece com os cabelos ao natural, castanhos.

Maria é outra personagem bem pintada: é a mulher-criança, mimada, que acha que o mundo deve funcionar à medida dos seus caprichos, sexuais inclusive. Numa cena, ela é comparada a uma boneca: nisto não vai exagero nenhum de Bergman. Quando Agnes a chama para acudi-la no momento trágico de sua morte, Maria foge, Karen também foge, só Ana terá a coragem necessária para enfrentar a situação. Liv Ullman recebeu o prêmio da crítica de Nova Iorque por sua interpretação em Gritos e Sussurros. Qualquer uma das quatro mulheres do filme mereceria a distinção: ao premiá-la, os críticos nova-iorquinos certamente estavam destacando sua beleza, ou o duplo papel.

V de VIDA. O que existe de mais belo em Gritos e Sussurros é que, afinal de contas, este filme sobre a morte termina nos falando sobre a vida. A última imagem é retirada de um trecho do diário de Agnes, que Ana lê após a sua morte. É aquele em que Agnes diz de sua satisfação por receber a visita das irmãs e diz mais, que os passeios que elas fizeram pelo jardim da casa, acompanhadas por Ana, foi um dos momentos mais felizes de sua vida. Na tela, vestidas de branco, contra o verde fundo da relva, aparecem as quatro mulheres. A felicidade, comenta Agnes, é feita de momentos assim. Bergman escolheu esta imagem para encerrar a sua obra-prima. É com ela que o cineasta equilibra todos os instantes dolorosos que vimos antes. Uma imagem serena de vida, com força suficiente para purificar a alma do público.

10 coisas que talvez você não saiba sobre Laranja Mecânica

10 coisas que talvez você não saiba sobre Laranja Mecânica

Do Cinèfilos del Mundo

Laranja Mecânica é sem dúvida uma das obras-primas do grande Stanley Kubrick. A história de Alex e seus drugues é baseada no romance homônimo do escritor inglês Anthony Burgess.

O filme é um cult absoluto e uma obra obrigatória do cinema moderno. Cada vez que vemos este filme somos surpreendidos pela sua estética que de certa forma toca em algo do surrealismo, mas o que é mostrado é muito real — é uma história do ser humano e da sua natureza violenta, autodestrutiva e dominante.

Laranja Mecânica também pode ser visto como a definição perfeita do conceito de “Karma” no mundo do cinema, já que Alex vai refazer seus passos e viver como vítima o que fazia quando era um vitimizador.

Aqui deixamos algumas curiosidades sobre este grande filme.

1- O título original A Clockwork Orange é mencionado apenas duas vezes ao longo do romance, mas em nenhum lugar momento do filme. Anthony Burgess, disse que o nome foi derivado de uma antiga expressão cockney (a gíria do sul de Londres), “tão estranho quanto uma laranja mecânica”.Há também quem interprete o título como “O homem mecânico” porque acredita-se que laranja na verdade venha do termo ourang, palavra da Malásia, onde Burgess viveu por vários anos, que significa pessoa.

2 – O leite que os drugues bebiam tinha que ser trocado constantemente porque coagulava devido ao calor dos holofotes, e já sabemos o quão perfeccionista era Kubrick, que gastava enorme tempo para filmar suas cenas exatamente conforme desejava.

3- Kubrick, em sua maneira particular de dirigir atores, ao saber que Malcolm McDowell tinha pavor de répteis, obrigou-o a conviver com uma cobra de estimação para capturar a tensão interna que Alex devia ter ao atuar.

4- O filme custou 2 milhões de dólares e arrecadou 40 milhões, dos quais 40% foram para Kubrick. Ele cuidava os direitos de sua obra com total zelo, por isso impôs condições bastante severas às produtoras.

5- A inspiração do romance é baseada em um evento real muito trágico. Em 1944, durante uma viagem à Malásia, 4 soldados americanos estupraram e espancaram brutalmente a esposa de Anthony Burgess. Sua esposa estava grávida e perdeu o bebê. Baseado neste fato e cheio de fúria, ele escreveu o romance.

6- A lendária cena de Alex cantando a música Singing in the rain foi improvisada por Malcolm McDowell. Kubrick pediu para ele cantar na cena e McDowell disse que cantou a única que sabia… Kubrick gostou tanto que pagou US$ 10.000 pelos direitos da música para preservar a cena.

7- Kubrick era fã do Pink Floyd e queria usar a música do álbum Atom Heart Mother no filme, mas não chegou a um acordo satisfatório para os direitos de uso.

8- O filme fez com que as vendas de discos de Beethoven aumentassem muito na Inglaterra, principalmente entre os jovens.

9- David Prowse, que interpreta o fisiculturista que carrega o homem na cadeira de rodas, também interpretou Darth Vader. Quando filmou Laranja Mecânica, ele garante que acabou incrivelmente exausto por repetir n vezes a cena em que teve que carregar o homem.

10- Alerta de spoiler: no final da novela, Alex volta a ter uma gangue e a agir da mesma forma que antes, mas percebe que esta vida não o satisfaz mais e acaba abandonando-a. Kubrick omitiu esse final porque sua intenção era outra.

Como falar sobre cinema, de Ann Hornaday

Este livro tem como subtítulo Um guia para apreciar a sétima arte, o qual me parece mais adequado. Aliás, melhor mesmo é o original Talking Pictures: how to watch movies.

De forma didática, bem organizada e compartimentada, Ann Hornaday nos conduz pelos aspectos da produção de um filme – do roteiro e elenco à edição de som – e explica como avaliar cada etapa do processo. Como saber se um filme foi bem escrito, para além da qualidade dos diálogos? O que constitui uma ótima atuação? O que torna uma fotografia, edição e edição de som notáveis? E o que realmente faz um diretor? A autora — que é jornalista e importante crítica de cinema no Washington Post — nos oferece essas respostas e nos mostra como a experiência de assistir a um filme pode ser muito mais rica do que imaginamos. Os itens avaliados são roteiro, atuação, design de produção, fotografia, edição, som e música e direção. Para cada item, a autora dá boas dicas para avaliação, além de outras observações interessantes, tanto de sua lavra como das entrevistas realizadas por ela.

O problema do livro é que quase todo o referencial cinéfilo da autora é norte-americano, principalmente de filmes lançados entre 1990 e 2015 e sei que haveria exemplos até melhores fora daquela filmografia. Pois é, eu sei mais a respeito e prefiro o cinema europeu e boiei em boa parte dos “cânones”. Acho que deveriam ser utilizados apenas clássicos ou Hornaday deveria ter ampliado os exemplos.

Mas o livro tem curiosidades interessantes e observações preciosas sobre o que faz um filme ser bom ou funcionar e valeu a leitura.

Hornaday: por demais estadunidense para este que vos escreve | Foto: Divulgação

A Mão de Deus, de Paolo Sorrentino

A Mão de Deus, de Paolo Sorrentino

Eu e Elena vimos ontem o novo Sorrentino, A Mão de Deus. É um filme diferente dos outros do cineasta, é menos feérico, quase sem música e muito mais melancólico. É também autobiográfico, o que talvez explique a falta das belas cenas aleatórias dos outros filmes.

Nas entrevistas, o assunto de Sorrentino foi Maradona e Fellini. O gênio argentino teria salvo sua vida. Explico: o jovem Paolo ficou em casa no fim de semana para poder ver Maradona num Napoli x Empoli, livrando-se de morrer junto com os pais. Quanto á Fellini, pô, os jornalistas querem um novo Amarcord e A Mão de Deus é 100% outra coisa… Não é um filme-delícia!

Claro que recomendo, apesar de preferir Juventude e A Grande Beleza.

Sorrentino é grande!

Belfast, de Kenneth Branagh e A Crônica Francesa, de Wes Anderson

Acabamos de ver o magnífico Belfast (2021), de Kenneth Branagh. Às vezes, quando um grande artista volta-se para a própria infância, dá nisso. E fica claro que a infância de Branagh — passada na Irlanda do Norte das guerras religiosas dos anos 60-70 — estava pedindo atenção. Baita filme! Atenção para a linda fotografia.

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Por outro lado, não consigo gostar de Wes Anderson. Invariavelmente, me dá um tremendo sono. Este A Crônica Francesa… Tudo muito bonitinho e bem escrito, mas não me envolve nem um pouco. Ou envolve tanto que durmo…

Shakespeare: o discurso do Dia de São Crispim em Henrique V

Shakespeare: o discurso do Dia de São Crispim em Henrique V

Eu não sei quem é o autor para o português da tradução que copio abaixo. E é claro que o significado deste famoso discurso ultrapassa em muito o filme de Branagh, Henrique V, pois, afinal, o Discurso do Dia de São Crispim faz parte da peça histórica de William Shakespeare, Henrique V, Ato IV, Cena III.

Na véspera da Batalha de Azincourt (parte da Guerra dos 100 Anos), que caiu num dia de São Crispim — para ser mais exato, em 25 de outubro de 1415 –, Henrique V exorta seus homens, que estavam em número muito menor do que os franceses, a imaginar a glória e a imortalidade que teriam se fossem vitoriosos. O discurso foi repetido por Laurence Olivier para elevar o espírito britânico durante a Segunda Guerra Mundial, e por Kenneth Branagh no filme Henry V, de 1989. Nele, está a famosa expressão band of brothers. A peça foi escrita por volta de 1600, e vários escritores posteriores usaram partes dela em seus próprios textos.

Explicando melhor: o exército britânico estava em solo francês. Depois de uma campanha malsucedida, estavam procurando voltar para a Inglaterra, doentes e exaustos. Porém, foram alcançados pelos franceses. Logo antes de começar a batalha, os nobres ingleses discutiam entre si, comentando que o inimigo estava descansado, inteiro e, bem, em esmagadora superioridade numérica. Os ingleses tinham aproximadamente 7 mil homens, os franceses por volta de 20 mil. E o primo do rei suspirou, dizendo que gostaria de ter os homens que ficaram na Inglaterra fazendo nada.

A seguir, o vídeo do filme — Branagh faz alguns cortes –, o que diz Westmoreland e a resposta de Henrique V, em português e o original de Shakespeare:

O conde de Westmoreland, primo do rei, lamenta a falta de mais homens para pelo menos tentar equilibrar um pouco a enorme diferença dos efetivos de combatentes. O rei toma a palavra então:

Quem expressa esse desejo? Meu primo Westmoreland? Não, meu simpático primo; se estamos destinados a morrer, nosso país não tem necessidade de perder mais homens do que nós temos aqui; e , se devemos viver, quanto menor é o nosso número, maior será para cada um de nós a parte da honra. Pela vontade de Deus! Não desejes nenhum um homem a mais, te rogo! Por Júpiter! Não sou avaro de ouro, e pouco me importo se vivem às minhas expensas: sinto pouco que outros usem minhas roupas: essa coisas externas não encontram abrigo entre as minhas preocupações; mas se ambicionar a honra é pecado, sou a alma mais pecadora que existe.

Não, por fé, não desejeis nenhum homem mais da Inglaterra. Paz de Deus! Não quereria, pela melhor das esperanças, expor-me a perder uma honra tão grande, que um homem a mais poderia quiçá compartir comigo. Oh! Não ansieis por nenhum homem a mais! Proclama antes, através do meu exército, Westmoreland, que aquele que não for com coração à luta poderá se retirar: lhe daremos um passaporte e poremos na sua mochila uns escudos para a viagem; não queremos morrer na companhia de um homem que teme morrer como companheiro nosso.

Este dia é o da festa de São Crispim; aquele que sobreviver esse dia voltará são e salvo ao seu lar e se colocará na ponta dos pés quando se mencionará esta data, ele crescerá sobre si mesmo ante o nome de São Crispim. Aquele que sobrevier esse dia e chegar a velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: “Amanhã é São Crispim”. E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: “Recebi estas feridas no dia de São Crispim.”

Os velhos esquecerão; mas, aqueles que não esquecem de tudo, se lembrarão todavia com satisfação das proezas que levaram a cabo naquele dia. E então nossos nomes serão tão familiares nas suas bocas com os nomes dos seus parentes: o rei Harry, Bedford, Exeter, Warwick e Talbot, Salisbury e Gloucester serão ressuscitados pela recordação viva e saudados com o estalar dos copos.

O bom homem ensinará esta história ao seu filho, e desde este dia até o fim do mundo a festa de São Crispim e Crispiano nunca chegará sem que venha associada a nossa recordação, à lembrança do nosso pequeno exército, do nosso bando de irmãos; porque aquele que verter hoje seu sangue comigo, por muito vil que seja, será meu irmão, esta jornada enobrecerá sua condição e os cavaleiros que permanecem agora no leito da Inglaterra irão se considerar como malditos por não estarem aqui, e sentirão sua nobreza diminuída quando escutarem falar daqueles que combateram conosco no dia de São Crispim.

(A vida do rei Henrique V, ato IV, cena III)

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O original sem cortes:

What’s he that wishes so?
My cousin, Westmorland? No, my fair cousin;
If we are mark’d to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God’s will! I pray thee, wish not one man more.

By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It yearns me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires.
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England.
God’s peace! I would not lose so great an honour
As one man more methinks would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more!
Rather proclaim it, Westmorland, through my host,
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart; his passport shall be made,
And crowns for convoy put into his purse;
We would not die in that man’s company
That fears his fellowship to die with us.

This day is call’d the feast of Crispian.
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when this day is nam’d,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and see old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say “To-morrow is Saint Crispian.”
Then will he strip his sleeve and show his scars,
And say “These wounds I had on Crispin’s day.”

Old men forget; yet all shall be forgot,
But he’ll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words—
Harry the King, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester—
Be in their flowing cups freshly rememb’red.

This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be rememberèd—
We few, we happy few, we band of brothers;
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;
And gentlemen in England now a-bed
Shall think themselves accurs’d they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day.

Batalha de Azincourt em miniatura do século XV | Autoria de Thomas_Walsingham

O melhor filme sobre a Segunda Guerra Mundial

O melhor filme sobre a Segunda Guerra Mundial

Retirado daqui.
Tradução mal feita por mim

Com a invasão nazista da URSS em 22 de junho de 1941, há 80 anos, a Segunda Guerra Mundial atingiu uma dimensão de selvageria até então desconhecida. O objetivo da ofensiva não era apenas a conquista, mas a aniquilação dos povos conquistados. “Os problemas começam com as crianças. Nem todos os povos têm o direito de existir. Nem todas as nações merecem um futuro “, diz um dos nazistas que participam do massacre da população civil que Elem Klimov retrata em Vá e Veja (1985), um clássico do cinema de guerra.

Este filme foi lançado por ocasião do 40º aniversário da vitória sobre o Terceiro Reich, quando a perestroika estava prestes a começar na URSS com a ascensão ao poder de Mikhail Gorbachev. O título que aparece em todas as listas dos melhores filmes de guerra. O escritor de ficção científica J.G. Ballard escreveu que foi “o melhor filme de guerra de todos os tempos”.

Situado em 1943 na Bielorrússia, Vá e Veja conta a história de um menino que se junta às fileiras da resistência em uma jornada infernal durante a qual descobrirá a tática do Exército Alemão para acabar com a guerrilha: o assassinato em massa de civis. A passagem das hordas nazistas é retratada quase como uma epidemia de peste, o custo humano da invasão alemã foi tão devastador quanto a doença medieval, a suástica foi um sinal de morte constante, implacável e cruel. Em muitas cidades, eles trancaram todos em um prédio — uma igreja ou um celeiro — e depois o incendiaram.

O filme inspira-se na memória do escritor bielorrusso Alés Adamóvich (1927-1994), autor do roteiro e do livro em que se baseia, The Story of Khatyn em sua tradução para o inglês (não confundir com Katyn, a local onde a polícia stalinista assassinou milhares de oficiais poloneses após a invasão de 1939). Adamóvich, que por sua honestidade e habilidade narrativa pertence à mesma linhagem da ganhadora do Nobel, a bielorrussa Svetlana Alexievich, serviu quando adolescente em um batalhão de guerrilheiros em 1942 e 1943. Seu livro, disponível em inglês, começa com as seguintes informações: “De acordo com documentos da Segunda Guerra Mundial, mais de 9.200 cidades foram destruídas na Bielorrússia e em mais de 600 delas, todos os seus habitantes foram mortos ou queimados vivos. Apenas alguns sobreviveram.”

Em uma entrevista com Pilar Bonet em 1985, após o lançamento do filme, Klimov explicou que queria fazer um filme “claramente antifascista” no qual suas próprias memórias da guerra também surgissem: “Eu sou um filho da guerra. Nasci em Stalingrado. A guerra começou quando entrei no primeiro ano da escola, vi a cidade queimada e destruída, cadáveres e prisioneiros. As memórias da infância são as mais fortes”.

Com uma estética brutalmente realista, Klimov e Adamóvich conseguem refletir algo quase impossível de contar em um filme: o horror da Segunda Guerra Mundial na URSS. Após a invasão da Polônia em 1939, os nazistas mataram intelectuais e perseguiram judeus. Com a Operação Barbarossa, o conflito ganhou uma nova dimensão e foi também o momento em que começou o Holocausto, primeiro com o assassinato em massa de judeus perpetrados pelos esquadrões da morte móveis, os Einsatzgruppen, e depois com as câmaras de gás. Entre 29 e 30 de setembro, eles foram mortos na ravina Babi Yar. Todos os judeus de Kiev, cerca de 200.000 pessoas, no maior massacre da Segunda Guerra.

O que mudou naquele verão de 1941 e está horrivelmente refletido no filme de Klimov, foi que o alvo dos massacres não eram apenas adultos, mas mulheres e crianças. O extermínio tinha que ser total. O historiador francês especialista em nazismo Christian Ingrao lembra em seu último livro, Le Soleil noir du paroxysme: “O objetivo desta luta deve ser a aniquilação da Rússia de hoje. Cada situação de combate deve ser enfrentada com uma decisão atrelada à aniquilação total e implacável do inimigo. Em particular, dos partidários do atual sistema russo-bolchevique.”

Nas primeiras quatro semanas da guerra na Polônia, os nazistas assassinaram 12.000 pessoas. Na URSS, 50.000 no mesmo período. E, em meados de agosto de 1941, começaram as execuções em massa de mulheres e crianças. Em dezembro de 1941, o Exército Alemão e os Einsatzgruppen haviam assassinado meio milhão de civis, a maioria judeus. Ingrao conta como os oficiais conseguiram convencer os soldados do “atroz dever”, nas palavras de Himmler, que deviam cumprir. Um oficial de 35 anos teve que anunciar a centenas de homens reunidos que agora teriam que matar mulheres e crianças. Então, ele trouxe uma mulher e seu filho recém-nascido e, na frente da tropa reunida, sacou sua pistola e atirou neles ”. Esse é o universo moral que retrata Vá e Veja.

 

Dia das Mães, uma lembrança

Dia das Mães, uma lembrança

Estávamos lá por 2004 e minha mãe estava começando a ficar confusa. Ela era uma viúva de 77 anos e passava muito tempo parada em casa. Aposentou-se aos 73 e foi horrível para ela. Prejudicou-a muito, acho eu, ela ficou solitária. Eu a visitava sempre, mas naquele dia resolvi levá-la ao cinema.

O filme era muito bom, com uma história cheia de complicações. ‘Longe do Paraíso’ parecia algo escrito por Tennessee Williams.

Frank e Cathy (Julianne Moore) eram um casal modelo no final de década de 1950. Ele era um executivo influente, enquanto ela desempenhava à risca o papel de esposa dedicada e atenciosa, que se ocupava em tempo integral com o lar, coisa que minha mãe nunca fez. D. Maria Luiza era dentista — uma das primeiras do RS, formada em 1948 — e cumpria dupla jornada em casa. Isto é, trabalhava muito em casa para nós e muito no consultório, onde era admirada pelos clientes.

Mas voltemos ao filme. Frank, entretanto, sentia-se atraído por outros homens, e mantinha à medo relações esporádicas fora de casa. Uma noite, quando o marido mais uma vez se atrasou, Cathy decidiu visitá-lo no escritório com uma refeição quentinha. Ao chegar, encontrou-o nos braços de um amante. Ele confessou que já vivenciara sentimentos desta natureza no passado, mas acreditava ser capaz de superá-los. Então, o casal decide procurar o auxílio de um psiquiatra.

Em meio a isto, Cathy torna-se alvo de comentários por aproximar-se de seu jardineiro, um negro. Um filme amplo — homossexualidade, armário, racismo, infidelidade e uma versão anos 50 de cura gay.

Durante o filme, observei que a mãe estava bem quieta. Eu revisava a toda hora se ela dormia. No final, perguntei-lhe o que achara, esperando ouvir qualquer coisa vinda das crescentes brumas que lhe atrapalhavam o cérebro. Pois ela me surpreendeu com uma opinião muito lúcida a respeito da relação do casal e dos amantes. Juntos, fizemos o elogio do filme e falamos sobre o sem-solução de tudo aquilo.

Acho que esta foi a última vez que vi-ouvi minha mãe inteira. Ela viveu mais 8 anos.

Foi nisso que pensei hoje, nesta véspera de Dia das Mães. Pois é, em minha mãe e em um filme.

(Deixo aqui uma foto dela de 1949, acompanhada do verso da mesma, anotado por meu pai. Eu nasceria 8 anos depois).

A Autobiografia, de Woody Allen

A Autobiografia, de Woody Allen

Charles Dickens difamou sua esposa porque desejava se separar. J. D. Salinger era esquisito com as meninas adolescentes… George Orwell denunciou stalinistas para o serviço secreto inglês — alguns denunciados eram “amigos” seus e dizem que foi pago por isso. (Não sou stalinista, OK?). Gertrude Stein parecia admirar fascistas. Ernest Hemingway foi espião da KGB. Jack London era racista. Monteiro Lobato também. Roald Dahl era antissemita e todo mundo lê seus livros e vê A Fantástica Fábrica de Chocolates. William Golding tentou estuprar uma garota de 15 anos. Norman Mailer quase assassinou sua esposa — apunhalou-a no estômago e nas costas. Céline era um fascista de 4 costados. Muita gente lê estes autores e, olha, Woody Allen me parece ser bem mais tranquilo, além de ter sido profundamente investigado e inocentado. É estranha a perseguição que ainda sofre.

OK, não é muito normal casar-se com a filha da namorada — ela era filha adotiva de Mia Farrow e André Previn –, admito. Mas não vou me preocupar com isso.

Antes de escrever algo sobre o livro, digo que o editor brasileiro foi desrespeitoso para com seu título original, coisa que não aconteceu em Portugal, como vemos ao lado. O nome do livro em inglês é Apropos of Nothing. Este é o primeiro problema, o segundo é a tradução, que apenas eventualmente traz integralmente a voz e o estilo de Allen e usa certas gírias que ou são antiquadas ou muito Região Sudeste, não sei bem. Conheço mais 3 pessoas de Porto Alegre que leram o livro e todas reclamaram do trabalho do tradutor.

Apesar de tudo isso, curti o livro. A cada página há piadas hilariantes e boas histórias sobre conhecidas personalidades do cinema. Meu interesse só caiu quando a autobiografia foi interrompida pelo Caso Mia. É claro que o caso é incontornável — afinal, o fato interrompeu a vida profissional do cineasta, mas eu já conhecia bem a história e o texto não acrescentou muita coisa ao que eu já sabia, só preencheu algumas lacunas. Porém, fica claro que o livro só existe porque ele queria deixar clara sua visão.

Antes, ele descreve sua infância e nos leva pelo caminho através do qual se estabeleceu como um dos grandes cineastas americanos da década de 70 em diante. É um deleite ler sobre as décadas de 70 e 80, onde produziu filmes inesquecíveis como Annie Hall, Manhattan, Hanna e suas irmãs e outros. Os filmes mais recentes, mesmo os excelentes Match Point e Meia-Noite em Paris, recebem menor destaque. O texto de Allen é muitíssimo engraçado e ele releva-se modesto, sempre falando na sorte que teve. Seu único motivo de orgulho parece ser o fato de ter nascido cômico e de ter uma incrível capacidade de trabalho. Imaginem que ele assinou mais de 50 filmes, atuando em muitos deles. Filho de um livreiro e descendente de judeus de origem alemã, Woody Allen frequentou a Universidade de Nova Iorque, mas não completou os estudos. Muito jovem, começou a vender textos de humor para comediantes. Os primeiros filmes que o tornaram famoso foram as comédias leves, como Bananas (1971), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar (1972) e O Dorminhoco  (1973). Só depois vieram seus clássicos, que permitiram a Allen explorar alguns dos seus temas preferidos: a cidade de Nova Iorque, a religião judaica, a psicanálise e a burguesia intelectual norte-americana. Ele também analisa sua tendência e admiração pelos filmes sérios, mas que se sai melhor provocando risadas, para o que sua figura ainda contribui.

Fica óbvio que, como cineasta, a imagem que Allen tem de si é bastante diferente daquela que percebemos como cinéfilos. E é interessante entender isso.

Penso que o livro seja altamente recomendável para fãs do cineasta. Para os demais, vale a leitura para conhecer de perto este episódio inacreditável criado pela “moral” estadunidense. Tudo faz crer que o cancelamento de Woody seja apenas um protesto contra a sua relação com Soon-Yi, que a maioria da sociedade americana, em sua hipocrisia religiosa, considera um “pecado” mais que um fato pouco comum. Sim, é um fato pouco comum e nada muito além disto. Certas coisas, definitivamente, só acontecem nos Estados Unidos. Seus filmes continuam sendo vistos na Europa e em muitos outros países, mas não nos EUA. Curioso.

Woody Allen, o cineasta interrompido | Foto: Divulgação

A cena do jantar de Fanny e Alexander

A cena do jantar de Fanny e Alexander

Por Thomas Vinterberg, na Criterion

Thomas Vinterberg não se apega mais aos princípios ascéticos do Dogma 95, o movimento cinematográfico que fundou em 1995 com o diretor dinamarquês Lars von Trier. Mas há algo que permaneceu constante ao longo de sua carreira: o foco na construção de personagens e na dinâmica social. Desde que foi aclamado pela primeira vez em 1998 com seu drama sombrio e cômico Festa de Família, o qual ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Cannes, ele mostrou grande variação estilística em filmes como o thriller romântico It’s All About Love, o drama A Caça e a adaptação de Thomas Hardy, Longe deste Insensato Mundo, além dos esplêndidos A Comunidade e Submarino. Seu filme mais recente, Outra Rodada (Druk), é um estudo que acompanha um grupo de professores enquanto eles testam a teoria de que um certo nível de álcool no sangue pode aliviá-los do tédio melancólico da vida cotidiana. É filme que está sendo muito bem recebido por público e crítica e este mês está concorrendo a dois Oscars: melhor diretor e melhor longa internacional.

Antes de falar com Vinterberg pelo Zoom no início deste mês, pedi a ele que falasse sobre uma cena favorita de um filme de nossa coleção. Ele escolheu com entusiasmo o jantar de Natal do épico semiautobiográfico Fanny e Alexander (1982) de Ingmar Bergman, cena que há muito tem sido um guia para ele e que foi diretamente referenciado em Festa de Família. Neste artigo, editado em conjunto a partir de nossa conversa, ele fala sobre como a abordagem artística do grande autor sueco e a sensibilidade escandinava o influenciaram. —Hillary Weston

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Eu comecei a escola de cinema no início dos meus vinte anos, e nosso professor de história do cinema disse que tínhamos que assistir a todos os filmes de Ingmar Bergman. Na época, eu era um jovem inquieto e no começo não os entendia. O professor disse que estava tudo bem se dormíssemos durante a exibição. Apenas tínhamos que ser capazes de dizer que os tínhamos visto. Mas então, lentamente, ao longo das aulas, seu trabalho me afetou — e nunca mais deixei de ver seus filmes.

Quando assisti Fanny e Alexander pela primeira vez, fiquei apaixonado pelo filme. Era uma sensação rara, apenas possível de se ter quando assistimos a certos grandes filmes. Era sobre um garotinho de cabelos escuros, sua bela família e sua experiência dentro da riqueza e da brutalidade da vida na burguesia de Estocolmo. Era também sobre ele enfrentar a perda do pai, que morre na primeira metade do filme e a chegada de um padrasto, que usa sua fé em Deus para oprimir a família. É a primeira metade do filme que mais admiro, especialmente a festa de Natal, que estabeleceu o padrão para o que estou fazendo como cineasta.

Algo que aprendemos na escola foi a ideia de “história natural”. Por exemplo, a história natural de ir ao cinema envolve ir à bilheteria e comprar um ingresso, ir ao banheiro, comprar um doce ou pipoca, mostrar seu ingresso e encontrar seu assento. Essa é uma história inteira por si só. Não parece muito interessante quando você fala sobre isso assim, mas você pode realmente aprender muito sobre as pessoas em meio a essa cadeia de eventos. Elas lavam as mãos? Elas reclamam do preço do doce? Elas esperam por alguém antes de se sentarem? Há muitas coisas que você pode revelar sobre os personagens desta forma, e em Festa de Família eu mantive isso muito estritamente. Cada vez que eu ficava preso na minha escrita, simplesmente voltava à história natural — e é isso que Bergman faz. Você observa a progressão natural de uma festa de Natal, passo a passo.

Tive a sorte de ter uma conversa sobre Fanny e Alexander com Bergman depois de fazer Festa de Família. Foi apenas um telefonema, mas foi longo. Ele chamou meu filme de obra-prima e fiquei muito orgulhoso. Disse a ele que tinha que me desculpar por roubar uma de suas cenas, porque há um momento que é quase uma cópia exata do baile pela casa em Fanny e Alexander. Ele disse: “Oh, isso não importa, eu roubei a cena de O Leopardo, de Visconti!”

A cena da ceia de Natal no filme de Bergman é um estudo perfeito dos personagens. Ele captura o que as pessoas mostram ao mundo, como desejam aparecer quando estão ao redor de uma mesa e como revelam o que está escondido quando estão em seus próprios quartos. Sei disso por minha própria vida, porque cresci em uma comunidade hippie. Todas as noites eu ia a uma enorme mesa de jantar com vinte pessoas, e todos eles estavam se apresentando como queriam ser. Ao mesmo tempo, eu sabia exatamente o que estava acontecendo em suas vidas, nos cômodos ao redor da casa. Foi nessa mesa que vi pessoas que seriam derrubadas se não fossem socialmente fortes, que vi gente ser humilhada, mas também foi onde senti uma sensação de união que proporcionava muita euforia. Portanto, a mesa de jantar sempre foi o que me definiu e Bergman refletiu minha experiência de volta para mim.

A maioria dos cinegrafistas que conheço são obcecados por Sven Nykvist, porque ele tem essa maneira linda e suave de mostrar algo que é tão escandinavo, algo que você simplesmente não consegue descrever. Fanny e Alexander é como uma peça de ouro em meio a todos os filmes que vi. Tem muito calor, mas quando está escuro é muito escuro, semelhante a O Poderoso Chefão. Isso me apresentou a opções de cores realmente densas e corajosas. Isso é típico da Escandinávia, onde você tem essas horas azuis muito longas e depois vem a neve e você se esconde do frio refugiando-se em casas fechadas. A escuridão do filme é amplificada pela luz do início e pela vivacidade dos personagens.

Bergman sempre discordou veementemente de movimentar muito a câmera. Lars von Trier e eu o convidamos para fazer um filme do Dogma, mas ele achou o Dogma a coisa mais boba de que já tinha ouvido falar. Os filmes do Dogma levam a câmera onde os atores estão, Bergman coloca os atores na frente de onde ele gosta que a câmera esteja. Ele foi educado no teatro, então sabia como fazer algo como um corte no palco. Quando os personagens de repente ficam em silêncio ou se sentam, é como um corte; se todos no palco olham para uma pessoa, é como um close-up. Ele também usou esses artifícios em seus enquadramentos de câmera.

Bergman tem sido um modelo exemplar de várias maneiras para mim. Admiro sua coragem, sua severidade e crença em sua própria história. Eu o admiro por permanecer fiel ao que estava fazendo. Ele foi tentado por todos os tipos de oportunidades em todo o mundo, mas ele permaneceu na Suécia e fez seu trabalho em sua pequena ilha. Uma vez, ele descobriu que um filme seu estava fazendo sucesso em Cannes ao ler um jornal enquanto estava no banheiro. Acho que ele é um modelo de como ser cineasta — você tem que se ater ao seu ofício e não se deixar levar por tudo ao seu redor.

Quando me casei, minha esposa ainda não tinha visto Fanny e Alexander, então ela assistiu a primeira parte no começo de uma noite, e nós assistimos ao resto juntos na manhã seguinte. Fazia anos que eu não o via e ela chorou na segunda parte. Naquele momento, recebi um telefonema de alguém do Guardian, que começou a me entrevistar sobre Bergman, e pensei, que interessante, minha esposa está assistindo a um filme dele agora. Conversamos bastante e de repente eu perguntei: “Por que você me ligou para falar sobre Bergman?” E o jornalista respondeu: “Oh, você não sabia? Ele faleceu esta manhã.” Então, parece que estávamos assistindo Fanny e Alexander enquanto Bergman estava morrendo.

Não assisto Fanny com tanta frequência, mas lembro sempre de sua sinceridade. É tão rico e cheio de detalhes, muito irrestrito e ainda assim muito preciso. Essa combinação só pode vir de um mestre.

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Thomas Vinterberg é o diretor de Festa de Família (1998), Submarino (2010), A Caça (2012), Longe deste insensato mundo (2015), A Comunidade (2016) e Outra Rodada (2020), que é indicado a dois Oscars.

Ingmar Bergman sobre o analfabetismo emocional

Ingmar Bergman sobre o analfabetismo emocional

“Eu vou te dizer ALGO BANAL. Somos analfabetos emocionais. E não só você e eu – praticamente todo mundo, essa é a coisa deprimente. Aprendemos tudo sobre o corpo e sobre a agricultura em Madagascar e sobre a raiz quadrada de pi, ou como quer que se chame, mas nenhuma palavra sobre a alma. Somos terrivelmente ignorantes sobre nós mesmos e sobre os outros. Hoje em dia, fala-se muito de que as crianças deveriam ser educadas para saber tudo sobre fraternidade, compreensão, coexistência, igualdade e tudo o mais – isso está na moda agora. Mas não ocorre a ninguém que devemos primeiro aprender algo sobre nós mesmos e nossos próprios sentimentos. Nosso próprio medo, solidão e raiva. Ficamos sem chance, ignorantes e com remorso entre as ruínas de nossas ambições. Tornar uma criança consciente de sua alma é algo quase indecente. Você é considerado um velho sujo. Como você pode entender as outras pessoas se não sabe nada sobre si mesmo?”.

– Ingmar Bergman

Em 1913, era produzido o primeiro filme de Charlie Chaplin: Carlitos Repórter

Em 1913, era produzido o primeiro filme de Charlie Chaplin: Carlitos Repórter
Charles Chaplin em Making a Living ou Carlitos Repórter

Charles Spencer Chaplin ou simplesmente Charlie Chaplin estreou como ator de cinema com Making a living, de Henry Lehrman, filme de quase 9 minutos finalizado em 30 de novembro de 1913 – há exatos 100 anos – e lançado em 2 de fevereiro do ano seguinte. Tinha 24 anos. Como costumava acontecer na época, Making a living – traduzido para Carlitos Repórter no Brasil – se caracteriza por muita correria e desentendimentos.

Nesta primeira produção, Chaplin ainda não tinha o visual que o imortalizou. De casaco claro e com um bigode que contorna a boca, seu personagem parece decadente, mas de modo algum um mendigo. A produção é modesta, assim como todos as outras feitas – e são muitas, muitíssimas – durante o tempo em que Chaplin trabalhou para a Keystone Film Company.

No filme, Chaplin faz um vigarista que aceita um emprego como repórter. Ao presenciar um acidente, ele pega a câmera de outro repórter e corre para o jornal a fim de entregar as  fotos como suas. Carlitos Repórter deve ter servido para que ele chegasse a seu famoso personagem, O Vagabundo (The Tramp), …

… pois sua primeira aparição ocorreu logo no segundo filme, Kid Auto Races in Venice, também lançado apenas 5 dias depois:

A produção dos filmes curtos e mudos da época era realmente industrial. Só em 1914, Chaplin participou de 35 filmes, tendo sido roteirista e diretor de 21 deles. Em vários deles, foi O Vagabundo, em outros, fez diversos personagens, quase sempre cômicos.

The Tramp ficou conhecido como Charlot na Europa e como Carlitos no Brasil e na Argentina, apelido que tem perdido terreno para O Vagabundo. Como quase todos sabem, ele é um sem-teto pobretão que possui as maneiras refinadas e a dignidade de um cavalheiro. Além disso, é muito sensível do ponto de vista humano e à beleza feminina. Usa um fraque preto e gasto, calças largas surradas e sapatos em petição de miséria. Estes são bem maiores que seu número e as pontas dobram-se para cima. Na cabeça, um chapéu-coco e, para completar, uma bengala e um pequeno bigode semelhante ao de Hitler, mas um pouco maior.

Chaplin nasceu em 1889 em Londres. Sempre sentiu-se atraído pelo music hall e atuava atuando como ator numa excursão pelos EUA com a trupe de Fred Karno quando, no final de 1913, foi notado por Mack Sennett, que o contratou para seu estúdio, a citada Keystone. Inicialmente, ele teve dificuldades para se adaptar ao cinema. Quando viu Carlitos Repórter, Sennett pensou que cometera um erro ao contratá-lo. Foi Mabel Normand — atriz e comediante da Keystone — que o convenceu a dar a Chaplin uma segunda chance. Ela, aliás, escreveu e dirigiu vários de seus primeiros filmes. Só que Chaplin detestava ser dirigido por mulheres e os dois discutiam frequentemente. Por outro lado, os filmes faziam tanto sucesso que ele se tornara uma das maiores estrelas do estúdio. O esquema das produções era sempre o mesmo: ou seja, o mais desbragado pastelão.

Porém, em 1915, Chaplin assinou um contrato mais vantajoso com a Essanay Studios. Seus filmes ficaram mais autorais, já com a pitada de sentimentalismo que o caracterizaria. A Essanay era mais ambiciosa, seus filmes duravam duas vezes mais do que os curtas da Keystone. Ali, Chaplin também passou a manter um elenco fixo, no qual estavam a heroína Edna Purviance e os vilões cômicos Leo White e Bud Jamison.

Chaplin em 1915

Como os EUA dos anos 10 eram uma Torre de Babel, com imigrantes chegando de todas as partes do planeta, os filmes mudos de Chaplin atravessavam as barreiras de linguagem, sendo compreendidos por todos. Nesse contexto, ele se tornou uma celebridade, passando a almejar o controle total sobre sua produção. Em 1916, a Mutual Film Corporation pagou a ele 670 mil dólares para produzir uma dúzia de comédias durante o período de dezoito meses. Um exemplo da nova fase é o clássico Easy Street:

Em 1917, Chaplin migrou novamente, assinando um contrato com a First National para produzir oito filmes. Além de manter a autonomia conquistada, a empresa financiaria e distribuiria os filmes, além de lhe dar mais tempo para trabalhar. Concentrando-se na qualidade, ele construiu seu próprio estúdio em Hollywood e expandiu alguns de seus projetos para longa-metragens, como Shoulder Arms (1918), The Pilgrim (1923) e sua primeira comédia dramática, a célebre O Garoto (1921), o qual elevou ao estrelato o menino Jackie Coogan:

Em 1919, o inquieto Charlie Chaplin não queria mais depender do financiamento e da distribuição de empresas externas e fundou a United Artists com Mary Pickford, Douglas Fairbanks e D. W. Griffith. E por lá ficou até o início da década de 1950. Todos os filmes de Chaplin distribuídos pela United Artists foram longas. As obras -primas vinham em série, como O Circo (1928) e Em Busca do Ouro (1925):

Apesar do cinema falado ter se tornado o modelo dominante no final da década de 20, Chaplin ainda resistiu até 1940. Durante o avanço dos filmes sonoros, produziu Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936). Esses filmes eram mudos, talvez falsamente mudos, pois possuíam música sincronizada e efeitos sonoros.

Tempos Modernos contém falas geralmente provenientes de objetos inanimados, como rádios ou monitores de TV. Isto foi feito para agradar o público da década de 1930, que já estava pouco habituado a assistir a filmes mudos. Além disso, Tempos Modernos foi o primeiro filme em que a voz de Chaplin é ouvida (no final do filme, na canção Smile, composta e cantada pelo próprio em dueto com Paulette Goddard). No entanto, a maioria dos espectadores considerou a obra como um filme mudo — e o fim de uma era.

O primeiro filme falado de Chaplin, O Grande Ditador (1940), foi um libelo contra o ditador alemão Adolf Hitler e o nazismo. Seu lançamento ocorreu um ano antes dos Estados Unidos abandonarem sua política de neutralidade para entrar na Segunda Guerra Mundial. Chaplin interpretou o papel de Adenoid Hynkel, ditador da “Tomânia”. O personagem era claramente baseado em Hitler e Chaplin, atuando em um papel duplo, também fazia o papel de um barbeiro judeu perseguido por nazistas. O filme também contou com a participação de Jack Oakie no papel de Benzino Napaloni, ditador de “Bactéria”, uma sátira ao ditador italiano Benito Mussolini e do fascismo; e de Paulette Goddard, no papel de uma mulher judia do gueto.

Dentro do ambiente político da época, o filme foi visto como um ato de coragem, tanto por seu ataque ao nazismo quanto pela clara representação de personagens judeus perseguidos de forma violenta. O Grande Ditador foi indicado ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Ator (Chaplin), Melhor Ator Coadjuvante (Oakie), Melhor Trilha Sonora (Meredith Willson) e Melhor Roteiro Original (Chaplin).

O homem político

Chaplin fez parte do glorioso grupo de humanistas democratas da primeira metade do século XX, gente cujas opiniões eram ouvidas e consideradas como se fossem reservas morais da sociedade. Apesar de ser batizado pela Igreja da Inglaterra, Chaplin sempre se declarou ateu. Durante o período nazista, houve grande controvérsia a respeito de sua suposta ascendência judaica. Propagandas nazistas da década de 40 o retratavam como judeu. Investigações do FBI no final da década de 1940 também se concentraram nas origens étnicas de Chaplin. Mas não há documentos comprobatórios e, durante toda sua vida pública, ele se recusou a falar no assunto.

Charlie Chaplin em 1965

O posicionamento político de Chaplin sempre foi de esquerda, ao menos na noção norte-americana do termo. Durante a era macarthista, foi acusado de “atividades anti-americanas” e de ser comunista. J. Edgar Hoover instruíra o FBI a mantê-lo sob observação. A pressão do FBI para que Chaplin saísse dos EUA alcançou nível crítico no final da década de 1940, após o lançamento de Monsieur Verdoux (1947), considerado uma crítica ao capitalismo. O filme foi mal recebido e boicotado em várias cidades dos EUA, obtendo maior êxito na Europa, especialmente na França. Naquela época, o Congresso ameaçou chamá-lo para um interrogatório público. Isso nunca foi feito, provavelmente devido à possibilidade de Chaplin satirizar os investigadores.

O fim

Em seus últimos anos, juntamente com James Eric, Chaplin compôs músicas originais para seus filmes mudos e depois os relançou. Compôs a música de seus outros curta-metragens da First National: The Idle Class em 1971, Pay Day em 1972, A Day’s Pleasure em 1973, Sunnyside em 1974, e dos longa-metragens The Circus em 1969 e The Kid em 1971. O último trabalho de Chaplin foi a trilha sonora para o filme A Woman of Paris (1923), concluída em 1976, época em que Chaplin estava extremamente frágil, encontrando até mesmo dificuldades de comunicação.

tempos-modernos
Fontes: Site Oficial, AdoroCinema, Youtube, Chaplin: A Life e a Wikipedia.

E o vento levou: a notável coleção de conflitos de um grande sucesso (que acaba de ser cancelado)

E o vento levou: a notável coleção de conflitos de um grande sucesso (que acaba de ser cancelado)
Clark Gable e Vivien Leigh: uma relação nada fácil

A produção de E o vento levou foi absolutamente conturbada. Os direitos de filmagem do livro de Margaret Mitchell foram comprados por 50 mil dólares pelo produtor David O. Selznick um mês após seu lançamento. O romance, lançado em 10 de junho de 1936, tornou-se rapidamente um grande sucesso. Três meses depois, já vendera um milhão de exemplares e, no ano seguinte, Gone with de Wind, um livro cheio de personagens odiosos ou meramente interesseiros, foi premiado com o Pulitzer. Foi o único romance da autora. Os direitos autorais recebidos pela obra e pela adaptação cinematográfica tornaram-na uma mulher rica, e ela, envolvida em atividades de filantropia, decidiu encerrar sua carreira literária. Morreu atropelada por um táxi poucos anos depois. O roteiro do filme não contou com a participação de Mitchell, que é de autoria de Sidney Howard. Porém, dentre os colaboradores havia os nomes grandiosos de F. Scott Fitzgerald e William Faulkner.

Fleming: 100% da direção nos créditos, de fato, 45%

As confusões e desentendimentos durante a produção foram incríveis. Talvez baste dizer que, apesar de nos créditos figurar apenas o nome do diretor Victor Fleming, este só tenha dirigido 45% do filme. Mas vamos a um resumo.

As filmagens começaram em 26 de janeiro de 1939. George Cukor estava escalado para dirigi-las. A primeira a desembarcar do projeto foi Bette Davis. Ela soube que Errol Flynn estava cotado para um dos papéis e pediu para sair de forma preventiva. Afinal, eles já tinha discutido violentamente no passado e não se suportavam. Mas sua decisão foi precipitada, pois Flynn nunca chegou a fazer parte do elenco.

Selznick escolheu — entre 1400 candidatas — Vivien Leigh para viver a heroína sulista Scarlett O’Hara. Ela era casada com Laurence Olivier, o que certamente influenciou na escolha. Cukor ficou indignado com o resultado do certame e abandonou a produção com apenas 4% do trabalho concluído. Aproveitando o, digamos, vácuo de poder, Selznick tomou conta de tudo, chamando Clark Gable para o papel de Rhett Butler e Fleming para a direção.

Boa atriz, só que inglesa… Que mau hálito…

Mas o conflito de egos entre os atores só poderiam ser medidos por sismógrafos. Vivien Leigh trabalhou nos sets de filmagem por 125 dias, recebendo a quantia de 25 mil dólares; já Clark Gable trabalhou por 71 dias e ganhou 120 mil dólares. Mesmo ganhando muito mais, Gable opinava ser um absurdo oferecer um papel essencialmente norte-americano a uma atriz inglesa. Paradoxalmente, nos corredores, durante as filmagens, todos achavam que Gable conquistaria Leigh também fora de cena, mas ela não o suportava e mais: considerava pouco profissional que ele deixasse o estúdio sempre às seis da tarde, pontualmente, todos os dias. Como vingança, ele comia cebolas e bebia licor poucas horas antes de gravar. Ela, é claro, não suportava seu hálito. Para completar, Gable dizia a todos que, quando a beijava, pensava num bife.

Se o desentendimento entre a dupla romântica não provocava baixas, o mesmo não se pode dizer dos restantes. Em meio às gravações, Fleming brigou com Vivien Leigh e Olivia de Havilland – que eram amigas e desejavam o retorno de George Cukor à direção –, e pediu demissão. Mas Gable adorava Fleming. Estranhamente, o demissionário alegou outro motivo para sair: disse que tivera um colapso nervoso e acusou Selznick. Para tentar finalizar a superprodução de quase quatro horas, foi chamada uma fila de diretores que trabalharam mas que foram sistematicamente demitidos após poucos dias: Sam Wood, William Cameron Menzies, Sidney Franklin… Ao final, Fleming recuperou-se e finalizou o trabalho.

David O.Selznic: o produtor, montador e verdadeiro tocador do projeto

Finalizou? Nem tanto. Foi Selznick e o montador Hal C. Kern que deram acabamento ao filme. Eles ficaram quase um mês cortando e cortando. A lenda diz que eles se fecharam no estúdio com 60 mil metros de película gravada ou, em outras palavras, 28 horas de material.

O filme foi lançado em 15 de dezembro de 1939. O resultado foi estrondoso sucesso. Considerando-se a inflação, é o filme com maior faturamento da história, além de o mais visto de todos os tempos. Foram 400 milhões de pessoas em todo o mundo. Atualmente, seu resultado financeiro seria de mais de 3 bilhões de dólares, ou seja, deixaria qualquer blockbuster na poeira. E custou para a MGM apenas cinco milhões.

O argumento da película de Selznick e Fleming, assim como o romance, estão inteiramente fora de moda, mas o filme é surpreendente por vários motivos. Em primeiro lugar pela proeza técnica em todos os campos. Apesar de nada naturalista, apesar de ser teatral, a narrativa é poderosa, a reconstituição de época é impressionante, a trilha sonora está no contexto e a fotografia é arrebatadora. Difícil acreditar que estivéssemos em 1939. Além disso, o desempenho de Vivien Leigh como Scarlett O`Hara é esplêndido. O filme ganhou 8 Oscar e saudado como obra-prima. Visto hoje, é excessivamente acadêmico e discursivo, além de ser um filme com um número altíssimo de maldades e casamentos por metro quadrado.

E o vento levou é uma grande história, literalmente. Em livro, são quase mil páginas de reviravoltas; em filme, são 241 minutos. Mas Mitchell e Fleming sabiam contá-la com brilhantismo.

O cartaz do filme

O filme, na sua primeira parte, mostra uma visão idealizada da sociedade branca do velho sul dos EUA. Os senhores de escravos são mostrados como protetores benevolentes, e a causa confederada como nobre defesa da terra natal e de um modo de vida. Essa civilização que o vento levou é definida assim na abertura do filme:

Existia uma terra de cavalheiros e campos de algodão chamada “O Velho Sul”. Neste mundo bonito, galanteria era a última palavra. Foi o último lugar que se viu cavalheiros e damas refinadas, senhores e escravos. Procure-a apenas em livros, pois hoje não é mais que um sonho. Uma civilização que o vento levou!

Os responsáveis pelo filme demonstraram certo amor pelos incêndios

Deste modo pouco realista, o filme apresenta uma visão simpática da sociedade sulista. Mas alguém se interessa por isso ou diz como Butler:  Frankly, my dear, I don´t  give a damn? 

Voltemos ao filme. O trio central de personagens é estupendo e atípico.

Frustrada por não conseguir se casar com Ashley Wilkes, Scarlett acaba se envolvendo com o charmoso aventureiro Rhett Butler. Scarlett é a bela mulher com o demônio no corpo. Orgulhosa, egoísta, geniosa, cabeça dura, é capaz de absolutamente tudo para conquistar o que quer. Tudo entremeado de rios de lágrimas, claro. Porém, antes de ordinária, Scarlett impressionava os leitores e espectadores por ser empreendedora, decidida e forte.

Já Rhett Butler é o canalha incorreto, uma estranha mistura de extrema sinceridade, sedução e esperteza. Talvez por isso seja perfeito para Scarlett. Se ela tem interesses, ele é debochado. Ela entorna bastante açúcar em uma relação entre duas personagens nada simpáticas. OK, ele lhe dá uns beijos, mas mantém-se na incorreção. O notável é que a química entre eles – com a Guerra ao fundo – funciona como poucas vezes se viu.

Como o lucro de todos os envolvidos demonstra.

Mas trata-se de um filme que morreu no início do século XXI. Ou foi cancelado. Após protestos contra o racismo da produção, a HBO retirou-a de cartaz. Gravado nos EUA antes de qualquer movimento contra a segregação, E o vento levou é racista como Monteiro Lobato e o hino do Rio Grande do Sul. Imaginem que, pelo filme, a atriz Hattie McDaniel ganhou o primeiro Oscar de artista negra na categoria de atriz coadjuvante. Porém, na festa, Hattie não pôde sentar-se na mesma mesa que seus colegas de elenco. Se era assim nos anos 30, não seria diferente nos anos que o filme retrata.

E, se antes a beleza plástica tirava o foco de questões mais sérias — que a própria autora escolheu como pano de fundo –, tudo finalmente mudou. Sim, Scarlett O’Hara sempre foi uma personagem antipática, confusa e sem escrúpulos. Ela contestava a passividade feminina e tomava as rédeas de sua vida, mas foi amoral do início ao fim. A personagem eternizou a postergação de decisões difíceis com seu frequente I’ll think about that tomorrow. Tomorrow is another day.

Só que, mais de 80 anos depois, Scarlett não terá o dia seguinte para encontrar uma alternativa. E O Vento Levou é sim reprodução de uma estrutura racista e só voltará ao cartaz quando o racismo diminuir muito, deixando de ser uma questão urgente.

Lágrimas: Vivien Leigh verte torrentes delas