Juliette Binoche faz 60 anos

Juliette Binoche faz 60 anos

Por respeito, procurei uma foto atual de Juliette Binoche. Une photo d’aujourd’hui. Não queria uma da jovem atriz. Encontrei esta de 2022 no Festival de Berlim. Ela não para, faz filmes e mais filmes, sempre brilhantemente. Ainda bem.

Ela diz que os diretores gostam de colocá-la em papéis dramáticos e que ficam desconcertados quando a conhecem porque ela passa seus dias fazendo piadas, muitas vezes inconvenientes ou autodepreciativas. Te compreendo, Ju.

Hoje, está completando 60 anos. Gosto demais da poesia de seu rosto, assim como da inteligência que transborda de seu olhar. Parabéns, deusa.

Maestro, um retrato (muito) incompleto de Leonard Bernstein

Maestro, um retrato (muito) incompleto de Leonard Bernstein

Rafael Ortega Basagoiti

O personagem Leonard Bernstein era excessivo. Ele viveu em um conflito quase permanente sobre como administrar a homossexualidade, ou melhor, a bissexualidade, em tempos em que a tolerância (especialmente nos Estados Unidos) não era o que é agora, e além disso foi investigado pelo FBI por sua tendência esquerdista. Apaixonado, extrovertido, suas manifestações de efusividade seriam hoje objeto, no mínimo, de escândalo (sua própria filha declara em um dos documentários que beijava todos que estavam ao seu alcance, um músico da Filarmônica de Viena relata o assunto com ironia: “Disseram-me, não enxugue, afinal é suor de Bernstein”). Na época em que conheceu sua futura esposa, Felicia Montealegre, ele já havia tido seus namoros homossexuais, e Paul R. Laird, em sua excelente biografia (Life and Work of Leonard Bernstein , Turner, 2018), sugere que sua amizade com Aaron Copland provavelmente foi mais do que isso.

Mas o ambiente era o que era, e um de seus mentores, Serge Koussevitzky, então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, pressionou-o a mudar seu sobrenome (sugeriu Leonard Burns) para eliminar o toque judaico e a se casar. Ambas as coisas, a segunda destinada a reprimir os rumores de sua homossexualidade, ajudariam sua carreira. Lenny não mudou o sobrenome, mas se casou com Felicia. O conflito sobre sua sexualidade persistiu e ele acabou se separando da esposa para se juntar ao amante Tom Cothran. Mas quando Felicia foi diagnosticada com o câncer que acabaria com sua vida, ele voltou e ficou com ela até sua morte. Ele a amava, não há dúvida disso, por mais que sua tendência sexual o levasse para outras camas.

É esta relação única entre Lenny e Felicia, e o conflito sexual que lhe está subjacente, que é o foco do filme Maestro, protagonizado e realizado por Bradley Cooper, produzido pela Netflix e agora disponível na plataforma. Não entrarei no aspecto puramente cinematográfico neste artigo, mas vale a pena fazer algumas anotações que surgem depois de ter visto o filme. Não há nada de questionável, em princípio, no fato de o filme focar nessa relação, a ponto de Felicia (aliás, maravilhosamente interpretada por Carey Mulligan), ser praticamente o papel principal. Na verdade, é uma faceta pouco delineada em outros documentários. E, a julgar pela declaração da própria filha Jamie (protagonista de uma das cenas do filme, que motiva Felicia a pressionar Lenny a falar com ela e a negar os rumores sobre sua homossexualidade), é uma questão bem retratada. Acredito, no entanto, que existe um problema, e não de menor importância, em outros domínios.

Compositor, pianista, diretor, divulgador, ensaísta e professor. Talvez você possa encontrar pessoas que desenvolveram todas ou quase todas essas facetas, mas para elas terem feito isso no nível de excelência em que Leonard Bernstein fez, é, não acho que estou exagerando, muito difícil, se não impossível. Lenny foi uma das grandes personalidades musicais do século XX, sem dúvida. Muitos podem não gostar de sua música, ou pensar que ele não deveria ter ido além dos (ótimos) musicais. Para outros, seus modos no pódio podem parecer exagerados, teatrais, pouco ortodoxos e até caóticos (aqueles saltos, aquele balanço de braço, aquele movimento corporal, aquela técnica de batuta, no mínimo singular…). Talvez sua tendência, como maestro, para tempos realmente extremos — exceto o último Celibidache e algumas gravações de Bach de Scherchen, é difícil lembrar de lentidão mais no limite do que aquelas do último movimento da Nona de Mahler nas mãos de Bernstein — seja indigesto para alguns, porque foge ao cânone.

Mas esse caráter excessivo foi e continua sendo fascinante. Ele vivia a música com uma intensidade contagiante. Os seus critérios podem ser discutíveis, o seu gesto e o sus batura quebram toda a ortodoxia. Mas o que aquele homem transmitia… a paixão, a convicção, eram tais que era literalmente impossível não o seguir, não se sentir capturado pela sua mensagem, fosse ela música, interpretação ou divulgação. “Eu amo duas coisas: música e pessoas. Não sei qual dos dois eu prefiro.” Estas são as primeiras palavras de uma declaração um pouco mais longa que Leonard Bernstein, com a voz já muito rouca, em 1990, poucos meses antes de morrer, diz à câmera com comovente ternura. É o início de um estupendo documentário, The Gift of Music, narrado por Lauren Bacall e editado em DVD pela Deutsche Grammophon. Há outro documentário, Larger than life, também magnífico, creio que disponível na medici.tv.

Qualquer um desses documentários, ou qualquer uma das muitas entrevistas com Bernstein –entre elas, a que você pode ver aqui, da série Kennedy Center Honors Legend — deixa um retrato dele muito mais completo e fascinante do que o deste filme de Bradley Cooper.

Porque, na minha humilde opinião, é aí que reside o seu principal (embora não único) defeito: intitulado Maestro, espera-se encontrar um filme em que todas estas facetas estejam mais ou menos bem retratadas. Mas a música, apesar do título, parece uma companheira marginal. Aquela que é considerada sua principal obra, a Missa, aparece saindo na ponta dos pés. O mais conhecido, West Side Story, mal participa. Não há nada da sua relação, muito longa e profunda, com a Filarmónica de Israel, nem com a de Viena, a Baviera ou o Concertgebouw. Pior ainda, presume-se que o espectador conheça muito bem a vida de Bernstein antes de assistir ao filme, porque se não for o caso, a presença fugaz de pessoas tão essenciais na sua vida como Aaron Copland ou Koussevitzky é dificilmente identificável. Outros, igualmente importantes, como Dimitri Mitropoulos, o realizador grego que o impulsionou a ser compositor, ou Fritz Reiner, seu professor no Curtis Institute, em Filadélfia, nem sequer aparecem. Também passa despercebida, ou quase, a sua extraordinária atividade de divulgador que está no YouTube… Ver qualquer um destes vídeos explica de uma forma muito simples porque este homem conseguiu fisgar milhões de pessoas pela música clássica.

Mais difícil de traduzir em filme é seu papel como colunista, mas também é altamente recomendável aprofundar-se na inestimável descrição que faz de seu querido Mahler neste artigo: Mahler – Chegou a sua hora – na Alta Fidelidade, Vol 17 no. 9, setembro de 1967, posteriormente reproduzido em seu primeiro ciclo Mahleriano para CBS-Sony. É difícil explicar, sem meandros técnicos, o que é a música de Mahler, o que ela expressa e significa, com mais precisão e riqueza do que a escrita nesta coluna.

Além disso, interpretar um regente (e ainda mais um como Bernstein) é extremamente difícil, o que deve ser levado em conta ao julgar o trabalho de Cooper. O ator americano, treinado pelo diretor do Metropolitan, Yannick Nézet-Séguin, se sai razoavelmente bem em uma cena com o coro, mas quando tenta reproduzir a lendária gravação da Segunda Sinfonia de Mahler na Catedral de Ely (que faz parte do ciclo de Mahler gravado em DVD pela Deutsche Grammophon) vai longe demais. Lenny era, como já observei, excessivo. Cooper vai mais longe, mas o que em Bernstein parece um excesso natural, em Cooper parece beirar o grotesco. A sua caracterização, incluindo a controversa prótese nasal, é ótima. A dublagem presta um péssimo serviço, no entanto. A voz de Bernstein, especialmente a do Bernstein mais velho, parece demasiado melíflua (compare com o original da entrevista citada acima, mas também com o som original do filme).

Em suma, o mais problemático é que muitos virão esperando ver um retrato de Bernstein com aquelas múltiplas facetas ligadas à música que, além disso, teve uma relação única com a sua esposa, e que viveu um duro conflito com a sua tendência sexual. Mas o que você verá é o retrato de alguém que teve uma relação única com sua esposa, enquadrada em um duro conflito com sua tendência sexual… e que, além disso, também era músico. Mas como isso é pouco, o título é enganoso, porque não responde ao que se vê depois. O retrato esperado permanece incompleto.

O Bernstein de verdade

“Graças aos fundamentalistas sou muito rico”: como “A Vida de Brian” se tornou um fenômeno de massa

“Graças aos fundamentalistas sou muito rico”: como “A Vida de Brian” se tornou um fenômeno de massa

Em 1979, A Vida de Brian foi considerado uma blasfêmia. Hoje é um filme de Natal. Mas ainda é uma das comédias mais engraçadas de todos os tempos.

Por Miquel Echarri

“Sinto-me muito grato aos fundamentalistas religiosos”, disse John Cleese em 1999, 20 anos após o lançamento de A Vida de Brian, “graças a eles sou um homem muito rico.” Cleese assume que, pelo menos neste caso, a melhor campanha de marketing foi a hostilidade brutal e impiedosa dos seus detratores. As ações odiosas a que o filme foi submetido acabaram por contribuir substancialmente para o seu enorme sucesso. Acima de tudo, nos Estados Unidos, país que, até ao verão de 1979, resistiu aos planos de domínio mundial do coletivo de comédia do qual Cleese fazia parte, o Monty Python.

Monty Python, durante uma pausa nas filmagens de ‘The Life of Brian’

Já em 1975 tentaram a sorte com o lançamento quase simultâneo em ambos os lados do Atlântico do seu segundo filme, Monty Python em Busca do Cálice Sagrado. No entanto, aos quase dois milhões de libras arrecadadas nas ilhas juntaram-se apenas algumas centenas de milhares de dólares nos Estados Unidos e no Canadá. Álbuns de esboço como The Monty Python Instant Record Collection ou a série de televisão que deu início a tudo, Monty Python’s Flying Circus, não se saíram muito melhor, eram produtos requintados de importação britânica recebidos com certo desdém pelo público americano.

“O verdadeiro inimigo é a Frente de Libertação da Judéia”, diz a Frente de Libertação Judaica. Ou é o contrário?

Mas A Vida de Brian atingiu, talvez sem intenção, a chave para as guerras culturais, tão intensas nos Estados Unidos do final da década de 1970 como são agora. Foi lançado em cinco cinemas em agosto de 1979 e estava programado para ser exibido em cerca de 200 antes de chegar ao Reino Unido em novembro, antes da temporada de Natal. Os primeiros protestos não partiram de grupos cristãos, mas sim da Associação de Rabinos Ortodoxos de Nova Iorque, que se incomodou com o xale de oração (talit) que John Cleese usava na primeira cena do filme, no que consideraram um “uso desrespeitoso” de uma vestimenta cerimonial judaica no contexto de “um espetáculo blasfemo”.

Ligas de decência

Eric Idle recorda que “os rabinos logo desapareceram sem deixar rastros, mas foram substituídos por um inimigo muito mais teimoso”, os fundamentalistas cristãos, “que começaram por manifestar-se junto à sede da Warner Bros. Alegaram que A Vida de Brian era obra do diabo.” Como explica Kliph Nesteroff, autor de três livros dedicados à história da comédia cinematográfica, “os processos de blasfêmia contra produtos audiovisuais muito raramente prosperavam naquela época”, visto que os Estados Unidos, após a convulsão contracultural, estavam passando por um período incomum, de promoção da liberdade e da tolerância. Assim, as ligas da decência e grupos de evangélicos, batistas e católicos decidiram apresentar acusações por suposta obscenidade, aproveitando-se “do fato de que os órgãos genitais de Graham Chapman aparecem na tela por uma fração de segundo”. Com esse truque, eles conseguiram retirar o filme dos cinemas de lugares como o estado da Geórgia ou de várias cidades da Louisiana, Alabama e Carolina do Sul.

Aqueles que protestam e aqueles que cobram

O efeito destas proibições inoportunas e a presença de piquetes violentos nos cinemas de todo o país acabaram por transformar A Vida de Brian num símbolo de liberdade de consciência e num fenômeno de massas. As principais redes de televisão enviaram seus repórteres às salas onde ocorriam protestos e tentativas de boicote, entrevistaram apoiadores e detratores do filme e ecoaram campanhas tão ultrajantes quanto a que propunha “Vamos resgatar Brian, vamos crucificar os censores”.

No final de agosto, os 200 cinemas planejados haviam passado de 700. Impulsionado pela polêmica, A Vida de Brian já estava no pódio das produções britânicas de maior bilheteria da década.

Lembre-se: a pena por pronunciar o nome de Deus é o apedrejamento. Jamais diga: “Este bacalhau é digno do próprio Jeová”.

A entrada na arena de figuras públicas com retórica inflamada, como o senador da Carolina do Sul Strom Thurmond ou o padre presbiteriano William Solomon, contribuiu para que o assunto adquirisse uma dimensão política delirante. Numa carta aberta às autoridades federais dos Estados Unidos, Solomon considerou que as convicções que deram sentido à sua vida estavam a ser “ultrajadas” por um “produto cruel, sarcástico e de baixa qualidade que em nenhuma circunstância pode pretender ser arte.”

Thurmond chegou a exigir que o responsável pela distribuição do filme em seu estado o retirasse “como sinal de boa vontade e respeito pela comunidade cristã, que leva muito a sério a sua religião”. Responderam-lhe que a religião dos promotores culturais “é a liberdade de expressão, e também a levamos muito a sério”.

A gênese de uma obra-prima do sacrilégio

Quatro anos antes, ao promover, também nos Estados Unidos, Monty Python em Busca do Cálice Sagrado, uma comédia sobre o Rei Arthur e sua busca infrutífera pelo Santo Graal, Eric Idle tentou oferecer uma resposta espirituosa a uma pergunta rotineira: “Qual será seu próximo projeto?” “Algo sobre a vida de Jesus de Nazaré. Que tal Jesus Cristo: Luxúria e Glória?”.

Parte da imprensa interpretou a ideia literalmente. Nos meses seguintes, os membros do Monty Python (cinco britânicos, Graham Chapman, John Cleese, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin, e um americano radicado no Reino Unido, Terry Gilliam, que faziam uma comédias juntos desde 1969) se viram respondendo perguntas contínuas sobre como estava evoluindo esse projeto de “comédia bíblica”, que, na realidade, eles nunca haviam se proposto a fazer. “A fogueira cresceu. Cada vez mais criávamos novos detalhes absurdos para continuar alimentando o mal-entendido, algo que fizemos por pura maldade. E chegou um momento em que começamos a pensar em Jesus Cristo: Luxúria e Glória como um projeto viável”, explicou Jones.

Quando se reuniram em Londres, no final de 1976, para discutir que novas iniciativas, ficou claro que a EMI Films, a empresa que produziu os seus dois primeiros filmes, estava mais do que disposta a embarcar num terceiro. “Só precisávamos de uma ideia e começar a trabalhar”, explicou Chapman. Jones sugeriu, por falta de uma ideia melhor, que começassem a trabalhar na “coisa de Jesus Cristo”.

Idle e Gilliam tiveram uma primeira piada que acharam irresistível, uma cena de crucificação em que Jesus de Nazaré cai repetidamente da cruz devido à incompetência dos carpinteiros romanos, incapazes de fabricar um instrumento adequado de tortura. O Messias perdeu a paciência e acabou instruindo-os a como fazer uma cruz.

Aquele esboço de cena, nas palavras de Idle, deu origem a outras semelhantes, mas não a um fio narrativo que pudesse servir de base para um filme. Além disso, no longo processo de brainstorming que se seguiu, os comediantes convenceram-se, como recordou Gilliam, de que Jesus era, essencialmente, “um rapaz bom, que fez e disse coisas de inquestionável bom senso e morreu”. A vida dele não parecia um material adequado a uma paródia…

Você deve sempre olhar para o lado feliz da vida.

Acabaram então optando por uma variante: utilizar o cenário da turbulenta e messiânica Palestina do Novo Testamento, mas esquecendo-se de Jesus. O grupo começou a trabalhar em um roteiro centrado no décimo terceiro discípulo do profeta, um tipo, como Jones o concebeu, “que não aparece na Bíblia porque sempre se atrasava em todos os lugares e perdia todos os milagres”.

Esse foi o primeiro rascunho de Brian. Com o tempo, o personagem que Chapman acabaria interpretando tornou-se não o discípulo disfuncional que eles imaginavam, mas um cara comum, nascido em circunstâncias semelhantes às de Jesus Cristo, e que seria eliminado por um grupo de seguidores particularmente teimosos e pouco receptivos. confundindo, apesar de si mesmo, com o redentor de Israel.

De Barbados à Noruega

O roteiro ficou pronto em janeiro de 1978, após duas semanas de férias em Barbados que o Monty Python aproveitou para dar os retoques finais. Algumas semanas depois, quando estavam prestes a voar para a Tunísia para começar a filmar, Lord Bernie Delfont, CEO e acionista majoritário da EMI Films, leu o roteiro pela primeira vez, alertado por um misterioso alto funcionário da igreja anglicana, que lhe disse que o que tinham em mãos seria um dos filmes mais irresponsáveis ​​e nocivos da história. Delfont não deu muitas explicações. Ele disse que achou o roteiro “atroz” e cancelou o projeto. A EMI não financiaria um ataque frontal desse calibre à religião.

Monty Python em Barbados enquanto escrevia o roteiro de ‘Life of Brian’.

Idle recorreu a um amigo próximo, o beatle George Harrison, e simplesmente pediu-lhe o dinheiro que Delfont acabara de tirar deles. Em Monty Python: The Autobiography of Monty Python, é explicado que Idle se preparou para encher Harrison com argumentos emocionais, começando com o formidável obstáculo ao humor colocado pelo ressurgimento dos fundamentalismos religiosos, o quão conservadores ele estavam tornando as indústrias culturais britânicas ou quão difícil foi obter financiamento para produtos que iam além do óbvio, do modesto e do previsível.

Não foi necessário. Harrison estava animado para se tornar produtor de um filme blasfemo. Solicitou um empréstimo garantido por uma de suas mansões no interior britânico, deu a Idle os dois milhões de libras que pediu (na época, o equivalente a cerca de quatro milhões de dólares) e garantiu-lhe que poderia trabalhar com absoluta liberdade. .

O autor de Something sabia onde estava se metendo. Em 1966, os Beatles se envolveram em uma das controvérsias religiosas mais famosas da história recente, depois que seu colega de banda, John Lennon, disse à jornalista Maureen Cleave, do Evening Standard, que os Beatles eram “mais famosos que Jesus Cristo”. Essa provocação brilhante e infantil deu origem a grotescos atos de boicote durante a subsequente viagem do grupo aos Estados Unidos.

Naquela ocasião, Harrison, o mais discreto dos Beatles, tentou resolver a polêmica com frases que colocaram lenha na fogueira: “Por que eles estão nos acusando de blasfemadores? Se o Cristianismo fosse o movimento humanista e integrador que afirma ser, deveria tolerar divergências e aceitar críticas com maturidade.” Aparentemente, essa ainda era a sua posição em 1978, quando já tinha completado a sua viagem de ida e volta ao hinduísmo, inspirado pelo movimento Hare Krishna.

Palestina, ano zero

Os Pythons não aspiravam serem mais famosos que Jesus Cristo. Na realidade, queriam apenas levar às massas a experiência de ser um homem comum num ambiente excepcional, o da Judeia sob ocupação romana em plena era messiânica . O filme foi rodado sem grandes surpresas. Terry Jones atuou como diretor e Graham Chapman foi a estrela do espetáculo, assumindo o papel principal, o de um dos “sábios” do Oriente e o do malfadado Biggus Dickus. O veterano Kenneth Colley fez uma breve aparição no papel de Jesus, a grande presença ausente do filme.

O produto de seu esforço começou a ser exibido em exibições privadas já em janeiro de 1979, e desses primeiros contatos com o público surgiram sucessivas versões, cada vez mais curtas, mais precisas, com menos piadas e menos personagens, até deixar o filme na sua forma atual. 94 minutos de puro músculo, sem um pingo de gordura.

À medida que a data de estreia se aproximava, a Irlanda e a Noruega foram os primeiros países a antecipar o que estava prestes a acontecer, simplesmente retirando a licença de exibição de Life of Brian. Os Pythons aproveitaram a circunstância para promovê-lo na Suécia com uma frase que acabaria sendo exportada para outros mercados: “Um filme tão engraçado que foi proibido na Noruega”.

Não riam de Bigus Dicus.

A estreia na Austrália e no Reino Unido foi precedida por um curta-metragem intitulado Away for It All que, com narração de John Cleese. Ele fornecia (des)informações delirantes sobre como o filme havia sido criado e incluía frases como: “É difícil acreditar até que ponto esses meninos felizes dedicaram suas vidas à destruição sistemática da civilização ocidental”. Várias cidades da zona rural da Inglaterra aderiram à tendência americana e proibiram a exibição do filme.

A polêmica, apesar de tudo, foi diluída em tempo recorde. Durante o Natal de 1979, A Vida de Brian continuou a ser exibido nos cinemas de todo o mundo, mas não mais despertando atos de rejeição de qualquer espécie. As suas primeiras aparições televisivas, dois anos depois, não geraram confusão, demonstrando assim a tese de John Cleese: “As controvérsias religiosas modernas tendem a ser de curto alcance. Os crentes sentem a necessidade de fazer algo poderoso para Allah ou para Jesus Cristo, mas assim que o fazem, permanecem calmos e continuam com suas vidas.

Uma das anedotas mais curiosas que surgiram da turbulenta estreia desta obra-prima de paródia (e blasfêmia) é pouco lembrada. Kliph Nesteroff explica: “No meio do turbilhão, Michael Palin e John Cleese foram convidados para um programa noturno da BBC2 para participar de um debate com dois interlocutores que fortemente antagônicos ao filme: um pastor anglicano e Malcolm Muggeridge.”

Anos antes, Muggeridge tinha publicado um artigo poderoso na Esquire sobre a diminuição dos limites do humor e da liberdade de expressão, no qual lamentava que “estamos a caminhar para um mundo mortalmente sério, no qual já não consideramos permitido rir de quase tudo”. Contudo, em 1979, já tinha abraçado o cristianismo fundamentalista e considerava que “o fim da cultura no Ocidente está a ser acelerado por palhaçadas grotescas como esta, um subproduto da pior espécie que transforma a vida de Jesus numa farsa e a sua crucificação em uma cena de opereta”.

Ouvindo Muggeridge e seu aliado eclesiástico, Palin e Cleese perceberam que ambos estavam se referindo ao personagem Brian como se ele fosse uma representação de Jesus Cristo no filme, e não um simples transeunte que o rebanho de ovelhas confundiu com ele. Eles apontaram: “É um detalhe bastante essencial da trama, certo?” Muggeridge e o ministro anglicano responderam dizendo que “é claro” que não tinham visto o filme. Ou, pelo menos, não inteiramente. Cleese lançou-lhes um olhar de infinito desprezo. E disse-lhes: “Não há mais perguntas, meritíssimo”.

O Casamento de Rachel (Rachel Getting Married), de Jonathan Demme (2008)

O Casamento de Rachel (Rachel Getting Married), de Jonathan Demme (2008)

Por Tim Brayton.
Traduzido por Milton Ribeiro

Cada família infeliz é infeliz à sua maneira

A curiosa carreira de Jonathan Demme passou de um thriller espalhafatoso sobre mulheres na prisão a comédias peculiares e pânicas. Também criou o vencedor do Oscar O Silêncio dos Inocentes, documentários de esquerda e remakes de grande orçamento de Hollywood. A única coisa que a gente pode dizer é que há uma probabilidade incomumente alta de Demmer ser, no mínimo, uma pessoa interessante. “Interessante” certamente descreve Rachel Getting Married. É um excelente filme, dadas as suas modestas ambições. Este é um ótimo exemplo de um “pequeno” filme, tanto na história quanto na estética; é também um lembrete de que a pequenez não impede um filme de tocar a grandeza.

A história não se centra realmente em Rachel (Rosemarie DeWitt), mas em sua irmã Kym (Anne Hathaway). Liberada por alguns dias da reabilitação para ir ao casamento de sua irmã, a necessidade muitas vezes transparente de Kym de ser o centro das atenções ameaça explodir a já delicada harmonia familiar entre sua irmã ciumenta e desdenhosa e seu pai irritantemente amoroso, Paul (Bill Irwin), que parece quase teimosamente inconsciente do crescente atrito entre suas duas filhas. Um irmãozinho morto e uma mãe e ex-esposa emocionalmente ausente (Debra Winger) apenas tornam uma situação difícil ainda mais insuportável. Superficialmente, é muito parecido com Margot at the Wedding, de Noah Baumbach, embora, se você tirar o cenário do casamento e os detalhes de que o drama gira em torno de duas irmãs, não há realmente nada que conecte os dois filmes mais do que qualquer par aleatório de filmes sobre a dinâmica familiar. Enquanto Margot combinava uma linguagem visual fria e precisa com uma abordagem francamente clínica para o estudo dos personagens, Rachel é um pouco mais confuso e infinitamente mais caloroso — se Baumbach meio que odeia todos os seus personagens, Demme e a roteirista Jenny Lumet os amam descaradamente, embora praticamente todos os personagens principais tenham pelo menos uma cena em que você realmente deseja chegar à tela e estrangulá-los.

Basicamente, Rachel Getting Married é um daqueles filmes generosos que aparecem apenas uma ou duas vezes por ano, onde os cineastas espalham um monte de personagens profundamente imperfeitos na tela e, em seguida, através de uma série suave de cutucadas aqui e ali, nos guiam para o entendimento que sejam quais forem suas falhas, ninguém realmente quer ser o vilão. Consequentemente, o filme dedica tempo para nos mostrar os personagens em momentos de relativa paz e cortesia, para cercá-los de um grupo ricamente detalhado de figuras que só precisam de uma ou duas aparições diante das câmeras para parecerem boas pessoas. Demme e Lumet não estão tentando fazer um psicodrama — embora a representação do ressentimento familiar latente e da raiva no filme seja muitas vezes bastante brutal, salvando Rachel de qualquer coisa parecida de um sentimentalismo pegajoso –, mas sim uma celebração dos momentos felizes da vida. É um algo fundamental para o filme, resgatando-o do banal “irmãs querem se amar porque são irmãs”. Como sabemos o que elas estão buscando, é ainda mais doloroso que raramente o consigam.

Por passar tanto tempo no mundo fora do conflito principal, o filme se deixa aberto a críticas fáceis e ocasionalmente merecidas de ser um pouco fora de foco; e como a comunidade idealizada de Demme e Lumet é tão encantadoramente idiossincrática, ela também se expõe a acusações de estranheza injustificada. Não tenho muito prazer em admitir que ambas as reclamações, embora às vezes irrelevantes, tenham muita validade. Às vezes, os dois problemas surgem ao mesmo tempo: um dos pontos baixos do filme é uma cena prolongada em que o noivo Sydney (Tunde Adebimpe), tem uma disputa bem-humorada com Paul sobre quem consegue carregar a máquina de lavar louça com mais rapidez e eficiência, com vários espectadores bem-humorados os animando. É totalmente tedioso e, em última análise, nada mais que uma maneira torturada de trazer à tona os sentimentos não resolvidos de Paul em relação ao filho morto.

Essencialmente, tudo que está errado e tudo que está certo sobre Rachel Getting Married tem algo a ver com Demme se libertando para perseguir seus interesses. Seu conhecido amor pela música está na maior parte do filme, na forma com que os músicos vagam nos dias anteriores ao casamento, ensaiando ou apenas proporcionando entretenimento para os convidados (um deles é Brooklyn Demme, filho do diretor). A maneira como ele deixa muitas das cenas se desenrolarem no que parece ser um diálogo improvisado é outra (às vezes isso funciona extremamente bem, às vezes apenas testa a paciência, e uma vez — na longa cena do jantar de ensaio, que consiste principalmente em uma série de brindes — são as duas coisas ao mesmo tempo). Claro, Demme tem uma longa história como diretor de ator, e o espaço que ele dá ao elenco para encontrar seus personagens é sem dúvida uma coisa boa, mesmo que ocasionalmente signifique que o filme caia em momentos de “ator”, nos quais nada acontece. Nem avança a história, nem cresce o teor emocional do filme.

Sobre esses atores: é claro, Hathaway ganhou a maior parte dos elogios ao filme, e fico feliz em dizer que ela é fantástica aqui. Melhor do que eu teria imaginado ser possível. De qualquer forma, fiquei ainda mais impressionado com seus colegas de elenco, que foram obrigados a expressar o que seus personagens estavam escondendo, do que com Hathaway, cuja personagem exterioriza tudo o que sente. DeWitt, em um papel quase grande o suficiente para ser considerada uma co-protagonista, tem um nervosismo forte que é um contrapeso perfeito para a bagunça de Kym, enquanto Irwin faz um trabalho fantástico ao esconder os sentimentos de seu personagem por trás de um véu de bobagem e alegria falsa. Mas o destaque é absolutamente Winger, que faz uma atuação de sutileza indescritível; o suficiente para que seja apenas em seus momentos finais na tela (em um papel que não pode somar dez minutos, no total) que entendemos completamente que tipo de mulher monstruosa era essa. Em um filme que se contenta principalmente em deixar tudo acontecer, Winger é a grande exceção, uma presença misteriosa e não um ser humano, o único ponto em que o filme reconhece que existem verdadeiros pontos escuros que o amor e o companheirismo realmente não conseguem penetrar.

Sobre a estética visual do filme pouco falei; isso ocorre porque não há muito a dizer. É filmado em um estilo violentamente despojado que sugere o movimento Dogma 95: praticamente sem iluminação fora do palco, absolutamente nenhuma música além da banda na tela, e tudo feito com câmeras digitais portáteis. Até agora, essa estética de falso documentário foi infinitamente além do mero clichê, mas estou surpreso que realmente funcione em Rachel Getting Married, o primeiro filme portátil em muitos anos que não me irritou. Acho que é porque o estilo minimalista se encaixa muito bem no cenário doméstico do filme; parece um filme caseiro dos dias imediatamente anteriores ao casamento. É uma coisa banal de se dizer, deixe-me tentar novamente: a linguagem visual do filme é tão básica que diminui as defesas do público, tanto quanto a estrutura narrativa extremamente simples faz. Assim, o filme consegue se contorcer sem ser bombástico, e sua eficácia é o resultado de sua simplicidade. Parece muito modesto para ter qualquer efeito, e só horas depois percebemos o quão profundamente o filme foi capaz de penetrar em nossas mentes.

Inverno de Sangue em Veneza (Don’t Look Now), de Nicolas Roeg (1973)

Inverno de Sangue em Veneza (Don’t Look Now), de Nicolas Roeg (1973)

Por Tim Brayton.
Traduzido por Milton Ribeiro.

O terceiro longa do diretor Nicolas Roeg, Don’t Look Now, é um filme de terror extraordinariamente peculiar, até porque não funciona realmente como um filme de terror por cerca de 100 de seus 110 minutos. Na maior parte, é um mistério atmosférico cozinhado em fogo baixo, tremendamente perturbador, mas nunca realmente assustador. Mas o filme acaba por ter um segredo: não importa o que pareça, é certamente horrível — no entanto, seus terrores são quase exclusivamente adultos e, na verdade, é provavelmente o filme de terror mais adulto que já encontrei, ou que posso imaginar. O truque de Don’t Look Now está em onde ele localiza seu horror: em vez do medo existencial de um assassino corpulento com uma faca, um alienígena assassino escondido nas sombras, uma coisa sangrenta respirando em seu ouvido — em vez de qualquer coisa ter que tem a ver com o terror de que alguém esteja em perigo imediato de morrer — este filme examina os medos mais sutis e não menos petrificantes de se separar do companheiro de toda a vida, de sobreviver à morte de um filho, de perceber tarde na vida que você não tem todas as respostas e você geralmente não sabe as perguntas. Tal como o filme seguinte do realizador, o filme nominal de ficção científica The Man Who Fell to Earth, este é um exemplo de gênero distorcido até onde pode ir ao serviço de uma arte mais profunda.

Resumido aos seus elementos mais simples, Don’t Look Now é a história de John e Laura Baxter (Donald Sutherland e Julie Christie), cuja filha Christine morre na cena de abertura do filme, afogada em um lago atrás de sua casa na Grã-Bretanha enquanto tentava recuperar uma bola. Alguns meses depois, os Baxter estão em Veneza, onde John supervisiona um projeto para restaurar uma igreja decadente. Certo dia, na hora do almoço, eles conhecem duas irmãs inglesas idosas, Wendy (Clelia Matania) e Heather (Hilary Mason). Esta última é cega, mas também possuidora de uma suposta capacidade psíquica, o que a leva a descrever com detalhes alarmantes o fantasma de Christine, ainda com a capa de chuva vermelha com que morreu, sentada entre John e Laura. “Ela está feliz”, afirma Heather.

Isso dá início a uma crise silenciosa na família Baxter: Laura está feliz pela primeira vez em meses, enquanto John está preocupado com o fato de essas assustadoras mulheres britânicas estarem seduzindo sua esposa para algum tipo de culto maluco. Mas isso não explica a aparição que vê por toda Veneza, uma figura mais ou menos da altura de Christine, vestindo uma capa de chuva vermelha, sempre fugindo dele.

É comumente aceito que Don’t Look Now é um filme confuso, o que suponho ser correto. Se não fosse pela maneira como a trama avança, deixando vários fatos, em sua maioria menores, para serem explicados mais tarde ou não. Ainda há um final que desafia absolutamente a lógica, e mais basicamente até do que essas coisas, há a maneira como Roeg e seu editor Graeme Clifford montaram o filme. Durante todo o tempo, as cenas não progridem de maneira linear do início ao fim: tomadas do “tempo presente” de uma cena são misturadas com flashbacks de coisas que vimos, flashbacks de coisas que não vimos e visões de coisas ainda vir. O efeito é que frequentemente não temos certeza de onde o filme realmente está acontecendo. Há razões narrativas perfeitamente boas para essa ambiguidade: é indicado que John Baxter, sem perceber conscientemente, possui as mesmas habilidades psíquicas que Heather, e como ele é nossa visão do filme, um substituto nosso (em todas as cenas, exceto em duas ou três, na verdade), parece certo que estejamos tão confusos com a fluidez do passado, presente e futuro quanto ele.

Lançar o filme assim “fora do tempo” também tem grandes repercussões na mensagem do filme, que é, em última análise, sobre a incapacidade dos Baxter de lidar com a mudança dos tempos. A morte de Christine nos momentos iniciais é realmente o clímax da narrativa, que detalha a inevitável desintegração do casamento do casal em decorrência da tragédia. Talvez a parte mais famosa de Don’t Look Now seja a cena de sexo que acontece cerca de trinta minutos depois do início do filme: Sutherland e Christie rolando e revelando praticamente tudo o que há para revelar, restando tão pouco para a imaginação que os rumores persistiram por muito tempo, de os atores estavam realmente fazendo sexo diante das câmeras. Há muito que se poderia dizer sobre esta cena que, em última análise, não é tão significativa para o fluxo do filme — embora de todas as muitas cenas de sexo gratuitas na longa história do cinema de terror, poucas tenham sido tão honestas com os personagens — mas as partes mais interessantes para mim são o antes e o depois. Isso acontece logo após o primeiro encontro de Laura com Heather, quando ela ainda está mais feliz com a notícia de que Christine está feliz, e está bem claro, embora ninguém diga, que esta é a primeira vez que os Baxters fazem amor desde o acidente. E então, durante o sexo em si, Roeg faz aquele truque de edição que mencionei: ele continua cortando para o curativo pós-coito e se preparando para sair, de modo que estamos antecipando o fim do ato sexual (o único momento verdadeiramente feliz que os Baxters compartilham) quase assim que começa. Paradoxalmente, uma das cenas de sexo não pornográficas mais eróticas da história do cinema diz respeito às forças que separam o casal envolvido.

Poderíamos continuar — indefinidamente — sobre a cronologia do filme e a maneira desconfortável como Roeg transforma as memórias felizes em terror psicológico, mas há outro elemento de Don’t Look Now que é mencionado com frequência, que é a maneira direta como enterra a lógica em favor da atmosfera, algo que é frequentemente mencionado como a principal falha do filme, e às vezes mencionado como uma coisa menor que você apenas precisa superar, especialmente no final. Esses são argumentos tolos, por pelo menos alguns motivos, o mais fácil deles é que o filme é mais “sobre” a atmosfera do que “sobre” o enredo — a maior parte do drama se passa na cabeça de John, então por que o filme não deveria refletir sua perspectiva distorcida?

A outra razão é pura experiência e me dá uma desculpa para falar um pouco sobre dois diretores que gosto muito, muito. No final dos anos 60 e início dos anos 70, na Itália (país onde se passa Don’t Look Now, não se esqueça), os filmes de terror eram dominados por dois homens, Mario Bava e Dario Argento. Eles faziam bons filmes de terror, do tipo que as pessoas consideram arte e não lixo. De qualquer forma, tanto Bava quanto Argento foram notados em vários momentos de suas carreiras por deixarem o estilo dominar todo o resto em seus filmes, que muitas vezes tendem a enredos inescrutáveis ​​com finais incoerentes (embora os filmes posteriores de Argento, começando aproximadamente com Suspiria de 1977, tornem tudo anterior parecer realismo social). Mas a questão é que Bava e Argento fizeram alguns dos filmes de terror mais eficazes da história: o tipo que passa pelo seu cérebro e causa arrepios diretamente na sua espinha. Um após o outro, estes homens, e os seus colegas menos talentosos, criaram os melhores pesadelos de celulóide que o mundo já conheceu; e apesar da falta geral de coesão narrativa, imagino que todos nós já tivemos pesadelos mais perturbadores do que o filme de terror “realista” mais assustador de todos os tempos.

Bem, não posso provar que Nicolas Roeg alguma vez assistiu a um desses filmes de terror italianos, mas posso dizer com alguma certeza que Don’t Look Now é o mais próximo que qualquer cineasta de língua inglesa já chegou de replicar exatamente a sensação de um dos primeiros filmes de Argento (O Iluminado, de Stanley Kubrick, é o melhor equivalente em inglês do Argento intermediário, e não vamos falar do Argento tardio). Don’t Look Now muitas vezes faz muito pouco sentido como história, faz muito sentido como pesadelo, e sendo britânico e, portanto, pelo menos um pouco mais preocupado com a lógica do que um filme italiano, até nos conta de quem é o pesadelo que estamos assistindo: o de John, que se preocupa constantemente em perder a esposa, ao mesmo tempo em que deixa a grandeza decadente de Veneza — uma daquelas grandes cidades que quase sempre nos lembra a morte, graças não apenas a Thomas Mann, mas a seu estado natural de decrepitude bolorenta — afundar em seu subconsciente e cercá-lo de lembranças de perdas (se eu estivesse inclinado a leituras rigidamente simbólicas de filmes, seria forçado a apontar que, depois de perder uma filha para a água, os Baxter escapam para a cidade mais inundada da face da Terra).

E daí se Don’t Look Now não faz sentido literal? Faz sentido emocional. Não há pior desculpa para um crítico do que dizer simplesmente “deixe o filme tomar conta de você”, mas não consigo pensar em uma maneira melhor de experimentar Don’t Look Now, pelo menos não pela primeira vez. É um filme cuja qualidade está mais na forma como te faz sentir do que no que te faz pensar, e acredito que isso até perdoa aquele final pobre e injustamente difamado, que estou prestes a estragar: John persegue aquela pequena figura vestida de vermelho através de uma Veneza cada vez mais nebulosa (que assume uma poderosa beleza abstrata nos momentos finais), apenas para finalmente alcançá-la e descobrir que não é sua pequena Christine. É uma anã feia (Adelina Poerio), com uma navalha, que ela usa para cortar sua garganta. Não, isso não faz o menor sentido, mas vamos lá: durante todo o filme, tivemos a sensação de que não seria bom da parte de John perseguir a figura da capa de chuva, e quando ele começa a persegui-la no final, temos uma ideia muito clara de que não queremos que ele a pegue e, quando o fizer, ela será a Morte. Isso não precisa ser mais claro para mim do que é. Sua obsessão mórbida com o passado já acabou com sua vida, então por que não amarrar as coisas com um pequeno laço metafórico? Não me importa se a anã faz sentido, fico assustado quando vejo o rosto dela pela primeira vez e, francamente, é difícil para mim ver o que alguém poderia exigir de um filme de terror além de ser assustador. O fato de Don’t Look Now cobrir a maior parte de seus calafrios com roupas muito menos viscerais é sensacional. E ainda é um pesadelo.

Retirado daqui.

O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman

O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman

Infelizmente, a expressão ovo da serpente é hoje muito utilizada. Virou lugar comum. Toda vez que alguém quer dizer que uma tragédia ou problema era previsível, lá vem a ela. A expressão nasceu em 1977, com este filme de Ingmar Bergman. O terrível Dr. Hans Vergerus (clique no link) — sobrenome habitual dos filmes do diretor, significando algo ruim — , diz: “É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito”.

O Ovo da Serpente é um ponto fora da curva na carreira de Bergman. Acusado de evasão fiscal na Suécia, Bergman se viu no centro de um escândalo que ganhou proporções internacionais. Deixou seus bens para o fisco e partiu para um autoexílio na Alemanha, mais precisamente em Munique, onde acabou fazendo um acordo com o produtor Dino de Laurentiis para rodar um filme em inglês ao mesmo tempo em que lidava com advogados e autoridades fiscais.

E fez um filmaço, desta vez sem explorar ao fundo dramas pessoais, relacionamentos, psicologia, religião, sexo ou filosofia, seus temas mais caros. Aqui, Bergman constrói com impecável riqueza de detalhes o mundo sem dinheiro, inflacionado, sangrento, paranoico e instável da Alemanha de 1923, ano em que se passa o filme, no período entre 3 a 11 de novembro, semana do Putsch de Munique. Sim, o Putsch foi a primeira tentativa de um maluco de tomar o poder. Foi um fiasco. A democracia alemã era mais forte. O nome do maluco era Adolf Hitler.

Abel Rosenberg (David Carradine) é um trapezista judeu desemprego, que vê seu irmão, Max, se suicidar. Ele procura Manuela (Liv Ullmann), sua cunhada. Juntos eles sobrevivem com dificuldade à violenta recessão econômica pela qual o país passa. Sem compreender as transformações políticas em andamento e pegando qualquer trabalho ou grana, eles aceitam trabalhar em uma clínica clandestina que realiza certas experiências que realmente ocorreram naquele periodo e depois.

E mais não conto. Grande filme!

Sight & Sound atualiza sua lista dos melhores filmes da história

Sight & Sound atualiza sua lista dos melhores filmes da história

Como faz a cada dez anos, o veículo britânico Sight & Sound publicou, recentemente, uma atualização da lista de melhores filmes de todos os tempos. A revista tem distribuição feita pela BFI (British Film Institute), e o ranking é definido por um grupo internacional de profissionais do cinema. Eles são 1.639 críticos, programadores, curadores, arquivistas e acadêmicos, mais 480 diretores e cineastas.

Na mais recente atualização, o primeiro lugar da lista ficou com “Jeanne Dielman”, filme franco-belga de 1975, dirigido por Chantal Akerman. Essa é a primeira produção de direção feminina a figurar no topo do tradicional ranking.

Entre as entradas mais recentes da lista, estão “Parasita” e “Retrato de Uma Jovem Em Chamas”, de 2019. “Corra!”, de 2017 e “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, de 2016 também são alguns dos títulos mais atuais.

Confira a lista completa abaixo.

Os 100 melhores filmes de todos os tempos, de acordo com a Sight & Sound:

Veja o Top 100 da Sight & Sound, que é publicada pelo instituto britânico de cinema (BFI), abaixo:

1. “Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxel” (Chantal Akerman, 1975)
2. “Um Corpo Que Cai” (Alfred Hitchcock, 1958)
3. “Cidadão Kane” (Orson Welles, 1941)
4. “Era Uma Vez em Tóquio (Ozu Yasujiro, 1953)
5. “Amor à Flor da Pele, Wong Kar-wai, 2001)
6. “2001: Uma Odisseia no Espaço” (Stanley Kubrick, 1968)
7. “Bom Trabalho” (Claire Denis, 1998)
8. “Cidade dos Sonhos.” (David Lynch, 2001)
9. “Man with a Movie Camera” (Dziga Vertov, 1929)
10. “Cantando na Chuva” (Stanley Donen e Gene Kelly, 1951)
11. “Sunrise: A Song of Two Humans” (F.W. Murnau, 1927)
12. “O Poderoso Chefão” (Francis Ford Coppola, 1972)
13. “A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939)
14. “Cléo de 5 às 7” (Agnès Varda, 1962)
15. “Rastros de Ódio” (John Ford, 1956)
16. “Tramas do Entardecer” (Maya Deren e Alexander Hammid, 1943)
17. “Close-Up” (Abbas Kiarostami, 1989)
18. “Quando Duas Mulheres Pecam” (Ingmar Bergman, 1966)
19. “Apocalypse Now” (Francis Ford Coppola, 1979)
20. “Sete Samurai” (Akira Kurosawa, 1954)
21. (EMPATE) “A Paixão de Joana D’Arc” (Carl Theodor Dreyer, 1927)
21. (EMPATE) “Late Spring” (Ozu Yasujiro, 1949)
23. “Playtime” (Jacques Tati, 1967)
24. “Faça a Coisa Certa” (Spike Lee, 1989)
25. (EMPATE) “Au Hasard Balthazar” (Robert Bresson, 1966)
25. (EMPATE) The Night of the Hunter” (Charles Laughton, 1955)
27. “Shoah” (Claude Lanzmann, 1985)
28. “Daisies” (Věra Chytilová, 1966)
29. “Taxi Driver” (Martin Scorsese, 1976)
30. “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (Céline Sciamma, 2019)
31. (EMPATE) “O Espelho” (Andrei Tarkovsky, 1975)
31. (EMPATE) “8½” (Federico Fellini, 1963)
31. (EMPATE) “Psicose” (Alfred Hitchcock, 1960)
34. “L’Atalante” (Jean Vigo, 1934)
35. “Pather Panchali” (Satyajit Ray, 1955)
36. (EMPATE) “City Lights” (Charlie Chaplin, 1931)
36. (EMPATE) “M – O Vampiro de Dusseldord” (Fritz Lang, 1931)
38. (EMPATE) “Acossado” (Jean-Luc Godard, 1960)
38. (EMPATE) “Some Like It Hot” (Billy Wilder, 1959)
38. (EMPATE) “Janela Indiscreta” (Alfred Hitchcock, 1954)
41. (EMPATE) “Ladrões de Bicicleta” (Vittorio De Sica, 1948)
41. (EMPATE) “Rashomon” (Akira Kurosawa, 1950)
43. (EMPATE) “Stalker” (Andrei Tarkovsky, 1979)
43. (EMPATE) “Killer of Sheep” (Charles Burnett, 1977)
45. (EMPATE) “Intriga Internacional” (Alfred Hitchcock, 1959)
45. (EMPATE) “The Battle of Algiers” (Gillo Pontecorvo, 1966)
45. (EMPATE) “Barry Lyndon” (Stanley Kubrick, 1975)
48. (EMPATE) “Wanda” (Barbara Loden, 1970)
48. (EMPATE) “Ordet” (Carl Theodor Dreyer, 1955)
50. (EMPATE) “Os Incompreendidos” (François Truffaut, 1959)
50. (EMPATE) “O Piano” (Jane Campion, 1992)
52. (EMPATE) “News from Home” (Chantal Akerman, 1976)
52. (EMPATE) “Fear Eats the Soul” (Rainer Werner Fassbinder, 1974)
54. (EMPATE) “O Apartamento” (Billy Wilder, 1960)
54. (EMPATE) “Battleship Potemkin” (Sergei Eisenstein, 1925)
54. (EMPATE) “Sherlock Jr.” (Buster Keaton, 1924)
54. (EMPATE) “Le Mépris” (Jean-Luc Godard 1963)
54. (EMPATE) “Blade Runner” (Ridley Scott 1982)
59. “Sans soleil” (Chris Marker 1982)
60. (EMPATE) “Daughters of the Dust” (Julie Dash 1991)
60. (EMPATE) “La dolce vita” (Federico Fellini 1960)
60. (EMPATE) “Moonlight – Sob a Luz do Luar” (Barry Jenkins 2016)
63. (EMPATE) “Casablanca” (Michael Curtiz 1942)
63. (EMPATE) “Os Bons Companheiros” (Martin Scorsese 1990)
63. (EMPATE) “O Terceiro Homem” (Carol Reed 1949)
66. “Touki Bouki (Djibril Diop Mambéty 1973)
67. (EMPATE) “The Gleaners and I” (Agnès Varda 2000)
67. (EMPATE) “Metropolis” (Fritz Lang 1927)
67. (EMPATE) “Andrei Rublev” (Andrei Tarkovsky 1966)
67. (EMPATE) “The Red Shoes” (Michael Powell & Emeric Pressburger 1948)
67. (EMPATE) “La Jetée” (Chris Marker 1962)
72. (EMPATE) “Meu Amigo Totoro” (Miyazaki Hayao 1988)
72. (EMPATE) “Journey to Italy” (Roberto Rossellini 1954)
72. (EMPATE) “L’avventura” (Michelangelo Antonioni 1960)
75. (EMPATE) “Imitation of Life” (Douglas Sirk 1959)
75. (EMPATE) “Sansho the Bailiff” (Mizoguchi Kenji 1954)
75. (EMPATE) “A Viagem de Chihiro” (Miyazaki Hayao 2001)
78. (EMPATE) “A Brighter Summer Day” (Edward Yang 1991)
78. (EMPATE) “Sátántangó” (Béla Tarr 1994)
78. (EMPATE) “Céline and Julie Go Boating” (Jacques Rivette 1974)
78. (EMPATE) “Tempos Modernos “(Charlie Chaplin 1936)
78. (EMPATE) “Crepúsculo dos Deuses” (Billy Wilder 1950)
78. (EMPATE) “A Matter of Life and Death” (Michael Powell & Emeric Pressburger 1946)
84. (EMPATE) “Veludo Azul” (David Lynch 1986)
84. (EMPATE) “Pierrot le fou” (Jean-Luc Godard 1965)
84. (EMPATE) “Histoire(s) du cinéma” (Jean-Luc Godard 1988-1998)
84. (EMPATE) “The Spirit of the Beehive” (Victor Erice, 1973)
88. (EMPATE) “O Iluminado” (Stanley Kubrick, 1980)
88. (EMPATE) “Amores Expressos” (Wong Kar Wai, 1994)
90. (EMPATE) “Madame de…” (Max Ophüls, 1953)
90. (EMPATE) “The Leopard” (Luchino Visconti, 1962)
90. (EMPATE) “Contos da Lua Vaga” (Mizoguchi Kenji, 1953)
90. (EMPATE) “Parasita” (Bong Joon Ho, 2019)
90. (EMPATE) “Yi Yi” (Edward Yang, 1999)
95. (EMPATE) “A Man Escaped” (Robert Bresson, 1956)
95. (EMPATE) “O General” (Buster Keaton, 1926)
95. (EMPATE) “Era Uma Vez no Oeste” (Sergio Leone, 1968)
95. (EMPATE) “Corra!” (Jordan Peele, 2017)
95. (EMPATE) “Black Girl” (Ousmane Sembène, 1965)
95. (EMPATE) “Tropical Malady” (Apichatpong Weerasethakul, 2004)

Grandes duplas do cinema – diretores(as) e atores (atrizes)

Grandes duplas do cinema – diretores(as) e atores (atrizes)

Ingmar Bergman e Liv Ullman
Jean-Luc Godard e Anna Karina
Sofia Coppola e Bill Murray
Leos Carax e Denis Lavant
Martin Scorsese e Robert De Niro
Michelangelo Antonioni e Monica Vitti
David Lynch e Kyle MacLachlan
Quentin Tarantino e Uma Thurman
John Cassavetes e Gena Rowlands
Pedro Almodóvar e Penélope Cruz
Bigas Luna e Javier Bardem
Woody Allen e…
Zhang Yimou e Gong Li
Juan José Campanella e Ricardo Darin
Ettore Scola e Nino Manfredi
Bette Davis e William Wyler
Katherine Hepburn e George Cukor
Ingrid Bergman e Alfred Hitchcock
Barbara Stanwick e Frank Capra
Grace Kelly e Alfred Hitchcock
Bette Davis e Michael Curtiz
Maureen O’Hara e John Ford
Olivia de Havilland e Mitchell Leisen
Elizabeth Taylor e George Stevens
Bette Davis e Alfred E. Green
Billy Wilder e Jack Lemmon
François Truffaut e Jean-Pierre Léaud
Fellini e Marcello Mastroianni
Paolo Sorrentino e Toni Servillo
Akira Kurosawa e Toshiro Mifune
Lars Von Trier e Charlotte Gainsbourg
Emir Kusturica e Davor Dujmovic
Monicelli e Mastroianni
Xavier Dolan e Xavier Dolan
Woody Allen e Woody Allen
Werner Herzog e Klaus Kinski
Wong Kar-Wai e Tony Leung
Hal Hartley e Martin Donovan

Sobre certa crítica cinematográfica

Sobre certa crítica cinematográfica

Eu e Elena estávamos conversando sobre o filme Lamb e ela disse que não gosta de ler críticas porque ou eles dão spoilers ou veem sentido a detalhes que podem ser meramente casuais… Como as paredes vermelhas em Gritos e Sussurros, completei.

E eu lhe contei uma história com meu pai. Estávamos vendo Tristana, de Luis Buñuel e, de repente, lá pela metade do filme, todo o elenco, que falava francês, passava a falar espanhol.

Na saída, um conhecido crítico explicava a um grupo de pessoas sobre a mudança de idioma. Falava que a elegância e frieza do francês dava lugar à sensualidade e informalidade do espanhol e que aquilo acompanhava o que era contado no filme.

Meu pai ficou contrariado e, desconfiado e cara de pau como era, foi falar com o operador do cinema. O cara lhe explicou que o segundo rolo viera em espanhol por engano e que algum cinema de Recife estava vendo o filme com a primeira metade em espanhol e a segunda em francês…

Meu Sonho de Cinema — Um velho Bergman que nunca deixei de amar

Do blog do Merten por Luiz Carlos Merten

Em 1966, em Porto Alegre, comecei a escrever sobre cinema – há 56 anos! Muitos de vocês, a maioria?, nem eram nascidos. Em 1974, já estava na Folha da Manhã há bem uns quatro anos. Foi quando estreou Gritos e Sussurros. Havia visto a obra-prima de Ingmar Bergman numa viagem que Doris, minha ex, e eu fizemos a Buenos Aires. O filme causou-me verdadeira comoção. Entrou na mira da censura do regime militar, e quase foi proibido por causa de duas ou três cenas, incluindo aquela em que a personagem de Ingrid Thulin faz um corte na própria vagina com um caco de vidro. Na estreia, veio-me um desejo. Criei um ABC de Bergman para falar, não apenas de Gritos e Sussurros, mas para contextualizar o filme na obra do grande autor sueco. O texto foi publicado em dezembro de 1974 na Folha da Manhã. Integra a seleção de textos que escrevi na imprensa gaúcha e foram reunidos pela Prefeitura de Porto Alegre na Coleção Escritos de Cinema. O volume chama-se Um Sonho de Cinema e, no twitter, vocês vão ver a capa. Rocco e Seus Irmãos! Nos créditos do livro consta meu nome junto ao de Clarice da Silva Alves, na rubrica Seleção e Organização dos Textos. Até onde me lembro, dei carta branca para que ela, e talvez o Marcus Mello, fizessem o que bem entendessem. Fizeram um lindo trabalho. O livro está aqui na minha estante. Vilmar Ledesma me estimulou a republicar textos que são viscerais da minha juventudse. Quem eu era, e quem sou. Começo com esse Bergman. Ao mestre, todo meu carinho. Se interessarem a vocês, pretendo prosseguir com os Escritos, uma vez por semana, que tal?

ARTE-BELEZA-CRIAÇÃO, O ABC DE GRITOS E SUSSURROS

A de ANDERSSON, Harriet. É a atriz que faz Agnes, a personagem cujo sofrimento está no centro do filme. Quando Gritos e Sussurros começa, Agnes está à morte. Suas duas irmãs vieram de longe para assisti-la e se revezam com a empregada, à beira do leito. Era intenção de Bergman evitar todo sensacionalismo na descrição deste leito de morte, o que não o impede de dar uma dimensão patética à figura de Agnes. O rosto crispado de dor, a expressão assustada de quem expõe seu sofrimento ante os olhos dos outros e ao mesmo tempo, certa satisfação de menina rejeitada, que cresceu sozinha e finalmente se descobre no centro de todas as atenções, tudo isso encontramos na personagem de Agnes. Ao criá-la, Harriet Anderson se revela uma extraordinária atriz. Tão perfeita, que corta a respiração do público na cena (dolorosa) da sua “morte”.

B de BERGMAN, Ingmar. Cineasta sueco de 56 anos, nascido em Upsala. Uma carreira polêmica: Bergman foi endeusado pela crítica no Festival de Cannes de 1956, enterrado pela mesma crítica no início dos anos 60. Uma década mais tarde, foi aplaudido de pé pelo público e pelos críticos presentes ao Festival de Cannes de 1973, onde Gritos e Sussurros, exibido fora de concurso, foi considerado a obra-prima do Festival. A abundância de filmes de Bergman (34 em menos de 30 anos de carreira), não é um sinal de facilidade mas, pelo contrário, o resultado de um paciente trabalho de construção intelectual. Cineasta do sexo e também da alma, ele foi muitas vezes acusado de colocar seus temas acima do tempo, de dar-lhes uma dimensão subjetiva e até metafísica. É que Bergman reflexiona os grandes temas da humanidade: a angústia metafísica do homem frente aos mistérios da vida e da morte, do amor e do sexo, da alegria e do sofrimento.

C de CENSURA. Desta vez , para louvar. A mesma censura que mantém afastadas das nossas telas algumas das obras primas mais importantes produzidas pelo cinema mundial nos últimos anos, desta vez houve por bem permitir que Gritos e Sussurros não apenas fosse apresentado, como também fosse apresentado inteiro (que milagre!), à admiração do público. Este respeito (raro!) pela figura de um artista nós gostaríamos de ver aplicado não somente a Bergman, mas também a Stanley (A Laranja Mecânica) Kubrick, Bernardo (Último Tango em Paris) Bertolucci e muitos outros cujas obras estão proibidas no Brasil.

D de DEUS. Desde o seu primeiro trabalho cinematográfico importante, o roteiro de A Tortura do Desejo, de Alf Sjoberg, e depois, através de seus 34 filmes, Bergman, filho de pastor protestante, raramente deixou de perguntar: Deus existe? Esta interrogação apareceu, quase sempre sem resposta, nas entrelinhas de histórias sobre amores juvenis, casais em crise, doença, velhice, solidão e morte. Entre o silêncio de Deus e os tormentos do sexo, Bergman construiu uma obra polêmica, onde só de vez em quando, na fonte que brotava ao final de A Fonte da Donzela, pode-se encontrar uma resposta divina para os anseios espirituais dos seus personagens.

Gritos e Sussurros prossegue com interrogação, mas mostra que Bergman talvez não esteja mais tão angustiado ante a perspectiva de não encontrar uma resposta. A comovida oração que o pastor recita, encomendando a alma de Agnes a Deus é o momento culminante de uma enquete desenvolvida pelo cineasta ao longo de seus 34 filmes. Mas embora sem uma resposta divina, Gritos e Sussurros revela um Bergman mais sereno, menos desesperançado: a esperança, aqui, nasce não de um sinal de Deus mas da solidariedade entre os humanos. Esta esperança nós encontramos no momento em que Karen (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullman) rompem com seu silêncio e se tocam, se falam, ou então na outra cena, sublime, em que Ana (Kari Sylwan) toma sem seus braços a moribunda Agnes para que ela possa descansar em paz.

E de ESTILO, E de EVOLUÇÃO. Ao longo de sua carreira, é sensível a evolução de Bergman, o seu progressivo domínio sobre a linguagem cinematográfica. Na fase mais recente, a construção dos filmes torna-se mais harmoniosa: há um dosado controle do simbolismo e um abandono consciente da iluminação expressionista que caracteriza Noites de Circo, O Sétimo Selo, O Silêncio ou A Hora do Lobo. Para resumir tudo em poucas palavras: a composição da imagem em densidade ou profundidade. É a fase da maestria de Bergman, a fase de A Paixão de Ana, de A Hora do Amor e, sobretudo, deste esplêndido Gritos e Sussurros.

F de FOME. O sexo e a fome, já se sabe, são dois problemas fundamentais do homem. Na Suécia, país onde o povo não se martiriza pela fome, o sexo terminou assumindo uma importância crucial. Sem problemas materiais a infelicitá-los, os suecos acharam no sexo a sua fonte de martírio. O cinema e o teatro da Suécia, as peças de Strindberg, os filmes de Bergman, Alf Sjoberg e Mai Zetterling mostram isso.

O tema da fome é essencial em Gritos e Sussurros, mas é uma fome desesperada de amor, de carinho e comunicação. Ela aparece não apenas na impotência de Agnes frente à doença que devora suas entranhas, mas também na dureza das linhas do rosto de Karen, na futilidade de Maria e na própria força física que emana da figura de Ana, levando-a a ninar o corpo de Agnes, numa inesquecível recriação da Pietá.

G de GRITOS. Há no filme os gritos e os sussurros. Uns e outros calam fundo no público. Se o grito é a expressão da cólera contra a própria infelicidade, o sussurro é como um gemido arrancado ao fundo da alma. O grito fere o ar como uma punhalada, uma chicotada e uma agressão, o sussurro dilacera as entranhas. Bergman mostra.

H de HUMILHAÇÃO. Bergman sempre foi sensível ao tema da humilhação. Todo mundo ainda se lembra, por certo, da cena inicial de Noites de Circo, quando o palhaço era humilhado publicamente, ao carregar o corpo da mulher que tentara o suicídio, por entre os soldados com quem ela o enganara. O próprio sistema burocrático, Bergman assinalava recentemente, é feito de humilhações que alguns homens têm de sofrer nas mãos de outros.

A humilhação, como tema bergmaniano, não poderia estar ausente das imagens de Gritos e Sussurros. Aparece na cena em que Karen corta a vagina com um caco de vidro, para ilustrar, mais do que o desprezo e o ódio pelo marido, o desprezo e o ódio por si mesma. Aparece na cena em que o médico recusa o oferecimento de Maria. Aparece, em alguns momentos, na passividade com que Agnes aceita o seu destino cruel, a dor e o sofrimento.

I de INFÂNCIA. Em muitos filmes de Bergman, respiramos a nostalgia da infância. Um dos grandes momentos de Morangos Silvestres e de toda a carreira do cineasta foi, sem dúvida, aquele que mostrava o velho professor Isaak Borg abandonado no jardim de infância, chamando o seu amor de juventude (Sara! Sara!). Em Gritos e Sussurro, Agnes evoca suas tristes memórias de infância, quando a sua mãe (a deusa Liv Ullman, morena) passeava no belo jardim da casa, quase indiferente aos pedidos de atenção da filha. Num outro extremo, Ana sofre a perda da filha. É por isto, porque uma busca a mãe que não teve e outra a filha que perdeu, que Agnes e Ana estabelecem uma corrente de compreensão e solidariedade.

 

L de LIÇÕES. Num artigo publicado na revista francesa L’Express, logo após o Festival de Cannes do ano passado, o crítico e cineastra François (A Noite Americana) Truffaut assinalou as três grandes lições de Bergman em Gritos e Sussurros: liberação dos diálogos, nitidez radical da imagem e primazia absoluta ao rosto humano. As três colocadas a serviço de um notável estudo da mulher frente aos temas do amor, sexo, dor, sofrimento, vida e morte.

Gritos e Sussurros não é uma peça de literatura, mas é um filme que se compõe de palavras sinceras, de coisas ditadas e silenciadas, de confissões e confidências. O próprio Bergman é o autor dos diálogos deste filme, que contém algumas das falas mais bonitas que o público já ouviu no cinema. Gritos e Sussurros coloca o nome de Bergman entre os dos chamados cineastas “construtores” da imagem (Hitchcock, Eisenstein, Fritz Lang): não há nada no filme que ele não tenha querido mostrar.

Finalmente, Gritos e Sussurros devolve ao rosto humano todas as suas modulações expressivas. Nunca, desde os tempos do dinamarquês Carl Theodor Dryer, com sua obra-prima do cinema silencioso, A Paixão de Joana D’Arc, uma câmera se aproximou tanto do rosto humano. Em cena, estão quatro mulheres: seus rostos são os territórios percorridos pela câmera de Bergman, que devolve ao rosto humano sua primazia. Gritos e Sussurros é uma impressionante sucessão de olhos, bocas, orelhas: olhos que falam, bocas que silenciam, ouvidos presos ao inexorável tic-tac dos relógios que anunciam o tempo, e a morte.

M de MORTE. O problema da morte está ligado ao problema do tempo. A luta do homem contra a morte sempre foi uma luta contra o tempo, no sentido de preservar a vida. No filme de Bergman, Agnes morre mil vezes, a cada tic-tac do relógio que aproxima o momento do desenlace. Bergman nos faz sentir a opressão do tempo desde as cenas iniciais: depois dos planos do jardim, banhado pela luz do amanhecer, penetramos na casa, na atmosfera carregada do quarto, onde os relógios anunciam a Agnes que ela superou mais uma noite. Inicia-se um novo dia na corrida da personagem contra a morte.

N de NYKVIST, Sven. É o fotógrafo preferido de Bergman, premiado pela Academia de Hollywood em 1974 pelo seu trabalho neste filme. A ideia de Gritos e Sussurros nasceu, segundo Bergman, de uma imagem: as quatro mulheres num quarto vermelho. A cor era muito importante: vermelho sempre foi para Bergman, a cor da alma. Por quê, nem ele sabe. Mas foi por isto que ele exigiu de Sven Nykvist um tratamento impressionante de cor. Preto, branco, muito vermelho, são as cores que vemos em Gritos e Sussurros.

Outros detalhes também teriam que ser resolvidos através de uma estreita colaboração entre o cineasta e o diretor de fotografia. Bergman não queria determinar exatamente a época da ação, mas queria dar ao público, uma sugestão de sensualidade. Tudo isto ele conseguiu graças ao trabalho de um senhor fotógrafo, Sven Nykvist.

P de PIETÁ. Todo mundo sabe o que é a Pietá. É uma composição de pintura ou escultura que representa a Virgem, sozinha ou acompanhada com o corpo do Cristo morto. Depois das obras medievais (a famosa Pietá de Avignon), o tema tornou-se frequente sobretudo no Renascimento. Na escultura, a obra mais famosa é a Pietá de Miguel Ângelo, na Catedral  de São Pedro.

Bergman quis fazer a sua Pietá e fez Gritos e Sussurros, colocando Agnes num retorno da própria morte, nos braços de Ana, onde ela finalmente encontra a paz. Momento sublime de cinema, momento inesquecível de significação humana: Ana descobre o seio e envolve Agnes em seu calor. É assim que Agnes encontra a tranquilidade da morte. Esta cena tem uma dimensão fantástica: o milagre que leva à paz. P de Pietá, P de paz reencontrada.

S de SYLWAN, Kari. É a atriz que faz Ana, a empregada que mora sozinha na casa com Agnes. Ana é uma camponesa de beleza um pouco rude. Mas é uma das mais impressionantes figuras de mulher criadas por Bergman. Com uma silhueta barroca, lembrando vagamente a figura física de Simone Signoret, é no seu terno regaço que ela acolhe a moribunda Agnes. Curiosa relação, a destas duas mulheres: uma, Agnes, que não teve da mãe a atenção que queria; a outra, Ana, perdeu a filha querida. É isto afinal de contas, que as aproxima.

T de THULIN, Ingrid. A atriz que faz Karen. Mais velha que Agnes, ela casou com um burguês rico e hoje acumula ódio ao marido e desprezo por si mesma. Ingrid Thulin, uma excelente atriz, é conhecida do público não só por suas participações em filmes de Bergman, mas também por seus papeis em filmes de Vincente Minnelli (Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse) e Luchino Visconti (Os Deuses Malditos). Nenhum destes diretores, porém, nem o próprio Visconti, usou tanto a dureza das linhas do seu rosto. Como Karen, ela projeta uma imagem de pedra: a expressão crispada mal dissimula a violência que ela contém e que a destrói internamente. Mas quando esta natureza se liberta e Maria e ela se entregam a um diálogo cheio de ternura, percebemos o que existe de desolador na sua dureza. Quando o filme termina, Karen voltou a ser o que era. É isto, mais que o silêncio de Deus, que atormenta Bergman hoje em dia: a facilidade com que as pessoas se transformam em carrascos de si mesmos.

U de ULLMAN, Liv. Uma atriz que parece funcionar só nos filmes de Bergman (seus papeis em Hollywood foram desastrosos, ou quase isto), Liv interpreta duas personagens em Gritos e Sussurros. Morena, ela é a mãe, sempre vestida de branco, presença majestosa, envolta numa certa melancolia; como Maria, a mais nova das três irmãs, ela aparece com os cabelos ao natural, castanhos.

Maria é outra personagem bem pintada: é a mulher-criança, mimada, que acha que o mundo deve funcionar à medida dos seus caprichos, sexuais inclusive. Numa cena, ela é comparada a uma boneca: nisto não vai exagero nenhum de Bergman. Quando Agnes a chama para acudi-la no momento trágico de sua morte, Maria foge, Karen também foge, só Ana terá a coragem necessária para enfrentar a situação. Liv Ullman recebeu o prêmio da crítica de Nova Iorque por sua interpretação em Gritos e Sussurros. Qualquer uma das quatro mulheres do filme mereceria a distinção: ao premiá-la, os críticos nova-iorquinos certamente estavam destacando sua beleza, ou o duplo papel.

V de VIDA. O que existe de mais belo em Gritos e Sussurros é que, afinal de contas, este filme sobre a morte termina nos falando sobre a vida. A última imagem é retirada de um trecho do diário de Agnes, que Ana lê após a sua morte. É aquele em que Agnes diz de sua satisfação por receber a visita das irmãs e diz mais, que os passeios que elas fizeram pelo jardim da casa, acompanhadas por Ana, foi um dos momentos mais felizes de sua vida. Na tela, vestidas de branco, contra o verde fundo da relva, aparecem as quatro mulheres. A felicidade, comenta Agnes, é feita de momentos assim. Bergman escolheu esta imagem para encerrar a sua obra-prima. É com ela que o cineasta equilibra todos os instantes dolorosos que vimos antes. Uma imagem serena de vida, com força suficiente para purificar a alma do público.

10 coisas que talvez você não saiba sobre Laranja Mecânica

10 coisas que talvez você não saiba sobre Laranja Mecânica

Do Cinèfilos del Mundo

Laranja Mecânica é sem dúvida uma das obras-primas do grande Stanley Kubrick. A história de Alex e seus drugues é baseada no romance homônimo do escritor inglês Anthony Burgess.

O filme é um cult absoluto e uma obra obrigatória do cinema moderno. Cada vez que vemos este filme somos surpreendidos pela sua estética que de certa forma toca em algo do surrealismo, mas o que é mostrado é muito real — é uma história do ser humano e da sua natureza violenta, autodestrutiva e dominante.

Laranja Mecânica também pode ser visto como a definição perfeita do conceito de “Karma” no mundo do cinema, já que Alex vai refazer seus passos e viver como vítima o que fazia quando era um vitimizador.

Aqui deixamos algumas curiosidades sobre este grande filme.

1- O título original A Clockwork Orange é mencionado apenas duas vezes ao longo do romance, mas em nenhum lugar momento do filme. Anthony Burgess, disse que o nome foi derivado de uma antiga expressão cockney (a gíria do sul de Londres), “tão estranho quanto uma laranja mecânica”.Há também quem interprete o título como “O homem mecânico” porque acredita-se que laranja na verdade venha do termo ourang, palavra da Malásia, onde Burgess viveu por vários anos, que significa pessoa.

2 – O leite que os drugues bebiam tinha que ser trocado constantemente porque coagulava devido ao calor dos holofotes, e já sabemos o quão perfeccionista era Kubrick, que gastava enorme tempo para filmar suas cenas exatamente conforme desejava.

3- Kubrick, em sua maneira particular de dirigir atores, ao saber que Malcolm McDowell tinha pavor de répteis, obrigou-o a conviver com uma cobra de estimação para capturar a tensão interna que Alex devia ter ao atuar.

4- O filme custou 2 milhões de dólares e arrecadou 40 milhões, dos quais 40% foram para Kubrick. Ele cuidava os direitos de sua obra com total zelo, por isso impôs condições bastante severas às produtoras.

5- A inspiração do romance é baseada em um evento real muito trágico. Em 1944, durante uma viagem à Malásia, 4 soldados americanos estupraram e espancaram brutalmente a esposa de Anthony Burgess. Sua esposa estava grávida e perdeu o bebê. Baseado neste fato e cheio de fúria, ele escreveu o romance.

6- A lendária cena de Alex cantando a música Singing in the rain foi improvisada por Malcolm McDowell. Kubrick pediu para ele cantar na cena e McDowell disse que cantou a única que sabia… Kubrick gostou tanto que pagou US$ 10.000 pelos direitos da música para preservar a cena.

7- Kubrick era fã do Pink Floyd e queria usar a música do álbum Atom Heart Mother no filme, mas não chegou a um acordo satisfatório para os direitos de uso.

8- O filme fez com que as vendas de discos de Beethoven aumentassem muito na Inglaterra, principalmente entre os jovens.

9- David Prowse, que interpreta o fisiculturista que carrega o homem na cadeira de rodas, também interpretou Darth Vader. Quando filmou Laranja Mecânica, ele garante que acabou incrivelmente exausto por repetir n vezes a cena em que teve que carregar o homem.

10- Alerta de spoiler: no final da novela, Alex volta a ter uma gangue e a agir da mesma forma que antes, mas percebe que esta vida não o satisfaz mais e acaba abandonando-a. Kubrick omitiu esse final porque sua intenção era outra.

Como falar sobre cinema, de Ann Hornaday

Este livro tem como subtítulo Um guia para apreciar a sétima arte, o qual me parece mais adequado. Aliás, melhor mesmo é o original Talking Pictures: how to watch movies.

De forma didática, bem organizada e compartimentada, Ann Hornaday nos conduz pelos aspectos da produção de um filme – do roteiro e elenco à edição de som – e explica como avaliar cada etapa do processo. Como saber se um filme foi bem escrito, para além da qualidade dos diálogos? O que constitui uma ótima atuação? O que torna uma fotografia, edição e edição de som notáveis? E o que realmente faz um diretor? A autora — que é jornalista e importante crítica de cinema no Washington Post — nos oferece essas respostas e nos mostra como a experiência de assistir a um filme pode ser muito mais rica do que imaginamos. Os itens avaliados são roteiro, atuação, design de produção, fotografia, edição, som e música e direção. Para cada item, a autora dá boas dicas para avaliação, além de outras observações interessantes, tanto de sua lavra como das entrevistas realizadas por ela.

O problema do livro é que quase todo o referencial cinéfilo da autora é norte-americano, principalmente de filmes lançados entre 1990 e 2015 e sei que haveria exemplos até melhores fora daquela filmografia. Pois é, eu sei mais a respeito e prefiro o cinema europeu e boiei em boa parte dos “cânones”. Acho que deveriam ser utilizados apenas clássicos ou Hornaday deveria ter ampliado os exemplos.

Mas o livro tem curiosidades interessantes e observações preciosas sobre o que faz um filme ser bom ou funcionar e valeu a leitura.

Hornaday: por demais estadunidense para este que vos escreve | Foto: Divulgação

A Mão de Deus, de Paolo Sorrentino

A Mão de Deus, de Paolo Sorrentino

Eu e Elena vimos ontem o novo Sorrentino, A Mão de Deus. É um filme diferente dos outros do cineasta, é menos feérico, quase sem música e muito mais melancólico. É também autobiográfico, o que talvez explique a falta das belas cenas aleatórias dos outros filmes.

Nas entrevistas, o assunto de Sorrentino foi Maradona e Fellini. O gênio argentino teria salvo sua vida. Explico: o jovem Paolo ficou em casa no fim de semana para poder ver Maradona num Napoli x Empoli, livrando-se de morrer junto com os pais. Quanto á Fellini, pô, os jornalistas querem um novo Amarcord e A Mão de Deus é 100% outra coisa… Não é um filme-delícia!

Claro que recomendo, apesar de preferir Juventude e A Grande Beleza.

Sorrentino é grande!

Belfast, de Kenneth Branagh e A Crônica Francesa, de Wes Anderson

Acabamos de ver o magnífico Belfast (2021), de Kenneth Branagh. Às vezes, quando um grande artista volta-se para a própria infância, dá nisso. E fica claro que a infância de Branagh — passada na Irlanda do Norte das guerras religiosas dos anos 60-70 — estava pedindo atenção. Baita filme! Atenção para a linda fotografia.

.oOo.

Por outro lado, não consigo gostar de Wes Anderson. Invariavelmente, me dá um tremendo sono. Este A Crônica Francesa… Tudo muito bonitinho e bem escrito, mas não me envolve nem um pouco. Ou envolve tanto que durmo…

Shakespeare: o discurso do Dia de São Crispim em Henrique V

Shakespeare: o discurso do Dia de São Crispim em Henrique V

Eu não sei quem é o autor para o português da tradução que copio abaixo. E é claro que o significado deste famoso discurso ultrapassa em muito o filme de Branagh, Henrique V, pois, afinal, o Discurso do Dia de São Crispim faz parte da peça histórica de William Shakespeare, Henrique V, Ato IV, Cena III.

Na véspera da Batalha de Azincourt (parte da Guerra dos 100 Anos), que caiu num dia de São Crispim — para ser mais exato, em 25 de outubro de 1415 –, Henrique V exorta seus homens, que estavam em número muito menor do que os franceses, a imaginar a glória e a imortalidade que teriam se fossem vitoriosos. O discurso foi repetido por Laurence Olivier para elevar o espírito britânico durante a Segunda Guerra Mundial, e por Kenneth Branagh no filme Henry V, de 1989. Nele, está a famosa expressão band of brothers. A peça foi escrita por volta de 1600, e vários escritores posteriores usaram partes dela em seus próprios textos.

Explicando melhor: o exército britânico estava em solo francês. Depois de uma campanha malsucedida, estavam procurando voltar para a Inglaterra, doentes e exaustos. Porém, foram alcançados pelos franceses. Logo antes de começar a batalha, os nobres ingleses discutiam entre si, comentando que o inimigo estava descansado, inteiro e, bem, em esmagadora superioridade numérica. Os ingleses tinham aproximadamente 7 mil homens, os franceses por volta de 20 mil. E o primo do rei suspirou, dizendo que gostaria de ter os homens que ficaram na Inglaterra fazendo nada.

A seguir, o vídeo do filme — Branagh faz alguns cortes –, o que diz Westmoreland e a resposta de Henrique V, em português e o original de Shakespeare:

O conde de Westmoreland, primo do rei, lamenta a falta de mais homens para pelo menos tentar equilibrar um pouco a enorme diferença dos efetivos de combatentes. O rei toma a palavra então:

Quem expressa esse desejo? Meu primo Westmoreland? Não, meu simpático primo; se estamos destinados a morrer, nosso país não tem necessidade de perder mais homens do que nós temos aqui; e , se devemos viver, quanto menor é o nosso número, maior será para cada um de nós a parte da honra. Pela vontade de Deus! Não desejes nenhum um homem a mais, te rogo! Por Júpiter! Não sou avaro de ouro, e pouco me importo se vivem às minhas expensas: sinto pouco que outros usem minhas roupas: essa coisas externas não encontram abrigo entre as minhas preocupações; mas se ambicionar a honra é pecado, sou a alma mais pecadora que existe.

Não, por fé, não desejeis nenhum homem mais da Inglaterra. Paz de Deus! Não quereria, pela melhor das esperanças, expor-me a perder uma honra tão grande, que um homem a mais poderia quiçá compartir comigo. Oh! Não ansieis por nenhum homem a mais! Proclama antes, através do meu exército, Westmoreland, que aquele que não for com coração à luta poderá se retirar: lhe daremos um passaporte e poremos na sua mochila uns escudos para a viagem; não queremos morrer na companhia de um homem que teme morrer como companheiro nosso.

Este dia é o da festa de São Crispim; aquele que sobreviver esse dia voltará são e salvo ao seu lar e se colocará na ponta dos pés quando se mencionará esta data, ele crescerá sobre si mesmo ante o nome de São Crispim. Aquele que sobrevier esse dia e chegar a velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: “Amanhã é São Crispim”. E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: “Recebi estas feridas no dia de São Crispim.”

Os velhos esquecerão; mas, aqueles que não esquecem de tudo, se lembrarão todavia com satisfação das proezas que levaram a cabo naquele dia. E então nossos nomes serão tão familiares nas suas bocas com os nomes dos seus parentes: o rei Harry, Bedford, Exeter, Warwick e Talbot, Salisbury e Gloucester serão ressuscitados pela recordação viva e saudados com o estalar dos copos.

O bom homem ensinará esta história ao seu filho, e desde este dia até o fim do mundo a festa de São Crispim e Crispiano nunca chegará sem que venha associada a nossa recordação, à lembrança do nosso pequeno exército, do nosso bando de irmãos; porque aquele que verter hoje seu sangue comigo, por muito vil que seja, será meu irmão, esta jornada enobrecerá sua condição e os cavaleiros que permanecem agora no leito da Inglaterra irão se considerar como malditos por não estarem aqui, e sentirão sua nobreza diminuída quando escutarem falar daqueles que combateram conosco no dia de São Crispim.

(A vida do rei Henrique V, ato IV, cena III)

.oOo.

O original sem cortes:

What’s he that wishes so?
My cousin, Westmorland? No, my fair cousin;
If we are mark’d to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God’s will! I pray thee, wish not one man more.

By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It yearns me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires.
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England.
God’s peace! I would not lose so great an honour
As one man more methinks would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more!
Rather proclaim it, Westmorland, through my host,
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart; his passport shall be made,
And crowns for convoy put into his purse;
We would not die in that man’s company
That fears his fellowship to die with us.

This day is call’d the feast of Crispian.
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when this day is nam’d,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and see old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say “To-morrow is Saint Crispian.”
Then will he strip his sleeve and show his scars,
And say “These wounds I had on Crispin’s day.”

Old men forget; yet all shall be forgot,
But he’ll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words—
Harry the King, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester—
Be in their flowing cups freshly rememb’red.

This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be rememberèd—
We few, we happy few, we band of brothers;
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;
And gentlemen in England now a-bed
Shall think themselves accurs’d they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day.

Batalha de Azincourt em miniatura do século XV | Autoria de Thomas_Walsingham