Shakespeare: o discurso do Dia de São Crispim em Henrique V

Shakespeare: o discurso do Dia de São Crispim em Henrique V

Eu não sei quem é o autor para o português da tradução que copio abaixo. E é claro que o significado deste famoso discurso ultrapassa em muito o filme de Branagh, Henrique V, pois, afinal, o Discurso do Dia de São Crispim faz parte da peça histórica de William Shakespeare, Henrique V, Ato IV, Cena III.

Na véspera da Batalha de Azincourt (parte da Guerra dos 100 Anos), que caiu num dia de São Crispim — para ser mais exato, em 25 de outubro de 1415 –, Henrique V exorta seus homens, que estavam em número muito menor do que os franceses, a imaginar a glória e a imortalidade que teriam se fossem vitoriosos. O discurso foi repetido por Laurence Olivier para elevar o espírito britânico durante a Segunda Guerra Mundial, e por Kenneth Branagh no filme Henry V, de 1989. Nele, está a famosa expressão band of brothers. A peça foi escrita por volta de 1600, e vários escritores posteriores usaram partes dela em seus próprios textos.

Explicando melhor: o exército britânico estava em solo francês. Depois de uma campanha malsucedida, estavam procurando voltar para a Inglaterra, doentes e exaustos. Porém, foram alcançados pelos franceses. Logo antes de começar a batalha, os nobres ingleses discutiam entre si, comentando que o inimigo estava descansado, inteiro e, bem, em esmagadora superioridade numérica. Os ingleses tinham aproximadamente 7 mil homens, os franceses por volta de 20 mil. E o primo do rei suspirou, dizendo que gostaria de ter os homens que ficaram na Inglaterra fazendo nada.

A seguir, o vídeo do filme — Branagh faz alguns cortes –, o que diz Westmoreland e a resposta de Henrique V, em português e o original de Shakespeare:

O conde de Westmoreland, primo do rei, lamenta a falta de mais homens para pelo menos tentar equilibrar um pouco a enorme diferença dos efetivos de combatentes. O rei toma a palavra então:

Quem expressa esse desejo? Meu primo Westmoreland? Não, meu simpático primo; se estamos destinados a morrer, nosso país não tem necessidade de perder mais homens do que nós temos aqui; e , se devemos viver, quanto menor é o nosso número, maior será para cada um de nós a parte da honra. Pela vontade de Deus! Não desejes nenhum um homem a mais, te rogo! Por Júpiter! Não sou avaro de ouro, e pouco me importo se vivem às minhas expensas: sinto pouco que outros usem minhas roupas: essa coisas externas não encontram abrigo entre as minhas preocupações; mas se ambicionar a honra é pecado, sou a alma mais pecadora que existe.

Não, por fé, não desejeis nenhum homem mais da Inglaterra. Paz de Deus! Não quereria, pela melhor das esperanças, expor-me a perder uma honra tão grande, que um homem a mais poderia quiçá compartir comigo. Oh! Não ansieis por nenhum homem a mais! Proclama antes, através do meu exército, Westmoreland, que aquele que não for com coração à luta poderá se retirar: lhe daremos um passaporte e poremos na sua mochila uns escudos para a viagem; não queremos morrer na companhia de um homem que teme morrer como companheiro nosso.

Este dia é o da festa de São Crispim; aquele que sobreviver esse dia voltará são e salvo ao seu lar e se colocará na ponta dos pés quando se mencionará esta data, ele crescerá sobre si mesmo ante o nome de São Crispim. Aquele que sobrevier esse dia e chegar a velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: “Amanhã é São Crispim”. E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: “Recebi estas feridas no dia de São Crispim.”

Os velhos esquecerão; mas, aqueles que não esquecem de tudo, se lembrarão todavia com satisfação das proezas que levaram a cabo naquele dia. E então nossos nomes serão tão familiares nas suas bocas com os nomes dos seus parentes: o rei Harry, Bedford, Exeter, Warwick e Talbot, Salisbury e Gloucester serão ressuscitados pela recordação viva e saudados com o estalar dos copos.

O bom homem ensinará esta história ao seu filho, e desde este dia até o fim do mundo a festa de São Crispim e Crispiano nunca chegará sem que venha associada a nossa recordação, à lembrança do nosso pequeno exército, do nosso bando de irmãos; porque aquele que verter hoje seu sangue comigo, por muito vil que seja, será meu irmão, esta jornada enobrecerá sua condição e os cavaleiros que permanecem agora no leito da Inglaterra irão se considerar como malditos por não estarem aqui, e sentirão sua nobreza diminuída quando escutarem falar daqueles que combateram conosco no dia de São Crispim.

(A vida do rei Henrique V, ato IV, cena III)

.oOo.

O original sem cortes:

What’s he that wishes so?
My cousin, Westmorland? No, my fair cousin;
If we are mark’d to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God’s will! I pray thee, wish not one man more.

By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It yearns me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires.
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England.
God’s peace! I would not lose so great an honour
As one man more methinks would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more!
Rather proclaim it, Westmorland, through my host,
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart; his passport shall be made,
And crowns for convoy put into his purse;
We would not die in that man’s company
That fears his fellowship to die with us.

This day is call’d the feast of Crispian.
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when this day is nam’d,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and see old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say “To-morrow is Saint Crispian.”
Then will he strip his sleeve and show his scars,
And say “These wounds I had on Crispin’s day.”

Old men forget; yet all shall be forgot,
But he’ll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words—
Harry the King, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester—
Be in their flowing cups freshly rememb’red.

This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be rememberèd—
We few, we happy few, we band of brothers;
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;
And gentlemen in England now a-bed
Shall think themselves accurs’d they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day.

Batalha de Azincourt em miniatura do século XV | Autoria de Thomas_Walsingham

A Gaivota / Tio Vânia / As Três Irmãs / O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov

A Gaivota / Tio Vânia / As Três Irmãs / O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov

Na minha opinião, é difícil encontrar em toda a literatura algo melhor do que isso. É difícil encontrar melhores e mais transcendentes diálogos. Talvez seja impossível encontrar tanta concisão e tantos significados em prosa teatral.

Eu sou apaixonado pelos contos e novelas de Tchékhov, mas essas peças são muito especiais dentro de sua obra, certamente estão dentre os principais trabalhos do mestre.

Comprei estes dois volumes da Veredas na Estante Virtual e, no mesmo dia em que os recebi, li que a Penguin-Companhia iria lançar essas 4 peças em nova tradução de Rubens Figueiredo, o que é garantia de alta qualidade. O livro está em pré-venda e estará disponível em 23 de setembro. Oh, vida! A tradução da Veredas é satisfatória, mas Figueiredo é um notável tradutor — quem leu sua tradução de Anna Kariênina para a Cia. das Letras sabe disso — e a Penguin costuma acrescentar boas e interessantes introduções a seus livros.

Anton Tchékhov, filho de um pequeno comerciante falido, formou-se em medicina, mas, ainda na faculdade, começou a contribuir para revistas literárias. Escreveu muito durantes seus parcos 44 anos de vida. Entre 1896 e 1904, ano de seu falecimento, escreveu as quatro peças que compõem estes volumes da Veredas e o da Penguin – e que se tornaram clássicos do repertório teatral.

A Gaivota mostra os conflitos de um grupo numa propriedade rural da Rússia no fim do século XIX. Numa tarde de verão, um jovem dramaturgo apresenta uma peça protagonizada por Nina, atriz por quem está apaixonado. As opiniões dos convidados sobre a obra divergem e a mãe do autor, uma importante atriz, desencoraja-o a seguir escrevendo. Logo, Nina decide ir a Moscou atrás de fama e de um célebre romancista.

Tio Vânia é o meu preferido dentre estes textos. Numa propriedade rural, moram o professor aposentado Serebriakov; sua jovem e linda esposa, Helena; a filha do primeiro casamento, Sônia; a mãe da falecida esposa, Maria; e o irmão da falecida, Ivan, conhecido na família como tio Vânia. Serebriakov foi sempre considerado um gênio, um grande literato. Sempre conseguiu que todos o admirassem e fizessem tudo por ele. Entretanto, com o passar dos anos, o gênio revelou-se um engodo. Agora, velho, hipocondríaco e rabugento, só faz chatear e perseguir os familiares que, sem outra saída, suportam-no, principalmente sua esposa Helena. O tio Vânia trabalha como um louco para manter a fazenda e sente-se explorado pelo professor. Também questiona o poder do velho sobre a família. Principalmente, Vânia inveja o casamento do velho, pois, há dez anos, é louco por Helena.

As Três Irmãs conta a história de três mulheres que moram numa cidade do interior da Rússia. Elas acham tediosa a vida na província e sonham em voltar para Moscou, onde haviam passado uma infância feliz. Olga é uma professora solteira que vê os anos passarem e também a oportunidade de casar; Macha, esposa de um professor de liceu, aos poucos percebe a mediocridade do marido; e Irina, a mais nova, é a única que ainda acredita no futuro. Todas idealizam Moscou como a sua única salvação e anseiam voltar para lá. Porém, o projeto é sempre adiado.

O Jardim das Cerejeiras… Bem, vou colocá-lo ao lado de Tio Vânia nas minhas preferências. É a última peça escrita por Tchékhov e conta sobre uma família aristocrata em decadência que resiste em vender o seu jardim de cerejeiras, ao qual atribui valor afetivo, apesar de improdutivo nos últimos tempos. Eles retornam de Paris cheios de ideias disparadas e irrealistas sobre a propriedade. Um velho amigo da família, Lopákhin, cujo pai fora servo da fazenda nos velhos tempos, dá-lhes um banho de realidade e propõe uma saída: o jardim podia ser desmatado e a terra dividida em lotes para veranistas. Imagina!

Uma rara foto de Tchékhov sorrindo

“Foi repugnante”: leia a fulminante avaliação de Tchékhov sobre a noite de estreia de sua primeira peça

“Foi repugnante”: leia a fulminante avaliação de Tchékhov sobre a noite de estreia de sua primeira peça

Hoje é o data do 117º aniversário da morte de Anton Tchékhov. Ele é considerado um dos maiores escritores de contos de todos os tempos, e suas peças, hoje clássicas, estabeleceram as bases para o realismo do teatro contemporâneo. Além disso, ele foi médico praticante durante a maior parte de sua carreira de escritor. O que esse cara não poderia fazer? Mas até Tchékhov ficava constrangido.

Em 1887, ele — até então basicamente um satírico e contista — foi contratado por um gerente de teatro para escrever sua peça de estreia, Ivanov. Escreveu Ivanov em apenas duas semanas e a peça foi imediatamente produzida. Tchékhov ficou puto. Em uma carta para seu irmão Alexandr, logo após a primeira apresentação, Tchékhov criticou os atores como “irreconhecíveis”, “bêbados como sapateiros”, transformando seu texto em algo “tedioso e nojento”. No entanto, o público adorou a peça, que foi aplaudida e elogiadíssima. Tchékhov resumiu seus sentimentos conflitantes sucintamente: “No geral, me sinto cansado e irritado. Foi repugnante, embora a peça tivesse sido um sucesso”.

Aqui está a carta completa e incrível:

Bem, a primeira apresentação acabou. Vou lhe contar tudo em detalhes. Para começar, Korsh me prometeu dez ensaios, mas deu apenas quatro, dos quais apenas dois poderiam ser chamados de ensaios, pois os outros dois eram torneios em que messieurs les artistes se exercitavam em brigas e discordâncias. Davydov e Glama eram os únicos dois que conheciam seus papéis, os outros improvisavam.

Ato um. – Estou atrás do palco em uma pequena caixa que parece uma cela de prisão. Minha família está nervosa. Contrariamente às minhas expectativas, estou calmo. Os atores estão nervosos. Se benzem. A cortina sobe… O ator principal esquece suas falas e diz qualquer coisa. Kiselevsky, em quem eu depositava grande esperança, não proferiu uma única frase corretamente — literalmente nenhuma. Ele disse coisas de sua própria larva… Apesar disso e dos erros do diretor de palco, o primeiro ato foi um grande sucesso.

Ato dois. – Muitas gente no palco. Eles não conhecem suas partes, cometem erros, falam bobagens. Cada palavra me corta como uma faca Mas — ó Musa! — esse ato também foi um sucesso. Houve chamadas para todos os atores e fui chamado duas vezes ao palco antes de fechar a cortina. Parabéns e sucesso.

Terceiro ato. – A atuação não é ruim. Sucesso enorme. Tive de me aproximar da cortina três vezes e, ao fazê-lo, Davydov apertou minha mão e Glama, como Manilov, apertou minha outra mão em seu coração. O triunfo do talento e da virtude…

Quarto ato, cena um. – A plateia, desacostumada a deixar seus lugares e ir ao bar entre duas cenas, reclama. A cortina sobe. Tudo bem: avista-se a mesa da ceia (de casamento). A banda toca floreios. Os padrinhos saem: eles estão bêbados, então você vê que eles acham que devem se comportar como palhaços e dar cambalhotas. A brincadeira e a atmosfera me reduzem ao desespero. Sai então Kiselevsky: é uma passagem poética, comovente, mas o meu Kiselevsky não conhece o seu papel, está bêbado e um breve diálogo poético se transforma em algo tedioso e nojento: o público fica perplexo. No final da peça, o herói morre porque não consegue superar o insulto que recebeu. A audiência não entende essa morte. Aplausos para os atores e para mim. Ouço sons de assobios, abafados pelas batidas de palmas.

No geral, sinto-me cansado e aborrecido. Foi repugnante, embora a peça tivesse sido um sucesso considerável…

Os frequentadores do teatro dizem que nunca tinham visto tal efervescência no teatro, tantos aplausos. E nunca o autor fora chamado para ser aplaudido depois do segundo ato.

Portanto, dramaturgos, se vocês já se irritaram com o resultado de seu trabalho…

Uma rara foto de Tchékhov sorrindo

Há 400 anos, o fogo consumia o teatro de Shakespeare em Londres

Há 400 anos, o fogo consumia o teatro de Shakespeare em Londres
Vista aérea do atual Shakespeare`s Globe de Londres. Prédio vazado (clique para ampliar)
Vista aérea do atual Shakespeare`s Globe de Londres. Prédio vazado (clique para ampliar)

Publicado no Sul21 em 29 de junho de 2013

O Globe Theatre de Londres é associado ao maior dramaturgo de todos os tempos: William Shakespeare. A casa foi construída em 1599 por sua companhia de teatro. Shakespeare detinha 12,5 % das ações da mesma. Dois dos seis acionistas – Richard Burbage e seu irmão Cuthbert Burbage – possuíam 25% cada e um quarteto de 12,5% cada era formado por John Heminges, Agostinho Phillips, Thomas Pope e o famoso dramaturgo. Foi o primeiro teatro construído por atores para atores. Porém, após estrear várias peças do grande autor, o Globe foi destruído por um incêndio no dia 29 de junho de 1613, exatamente há 400 anos. O Globe foi inaugurado no outono de 1599, com Júlio César e a maioria das grandes peças de Shakespeare pós-1599 foram escritas para o teatro.

verfve
Uma gravura da época anônima que mostra o famoso teatro de Shakespeare

No século XVII, qualquer incêndio podia transformar-se numa grande tragédia, tanto que em 1666, um terço da cidade foi destruída pelo fogo. As ruas eram estreitas, herança da transformação urbana acelerada a partir do século XIII, quando Londres virou capital do reino. A técnica contra incêndios era muito prosaica: eram usados baldes d`água e, quando não funcionavam, era providenciada a derrubada das construções contíguas para impedir o espraiamento do fogo. Só que a decisão de derrubar casas dependia de uma autorização do prefeito da cidade, que analisava empiricamente os ventos e a umidade do ar e das casas. Risco completo.

A pintura acima é de autor desconhecido. As chamas que consumiram Londres em 1666 podiam ser vistas de Oxford, a 64 km de distância.
A pintura acima é de autor desconhecido. As chamas que consumiram Londres em 1666 podiam ser vistas a 60 km de distância.

A indecisão para se fazerem as derrubadas era compreensível diante de seus custos, tanto de demolição quanto de reconstrução. No grande incêndio de 1666, houve demasiada hesitação e, quando as demolições foram autorizadas, grande parte da cidade já estava em chamas. Então os imóveis passaram a ser simplesmente explodidos, o que criou outros focos de fogo. Também não se sabia o número de vítimas dos sinistros pelo simples fato de que os não nobres não eram registrados. Do ponto de vista do estado, sumia gente que não existia. No grande Incêndio foram destruídas, pelo fogo e pela ação humana, 13.200 casas e uma área de 1,7 km²

Antes do incêndio, nos quase 15 anos em que esteve ativo, o Globe foi um estrondoso sucesso. No século XVI, as companhias de teatro apresentavam-se em locais improvisados, geralmente em bares ou na rua. Em 1576, James Burbage construiu o The Theater, primeira casa do gênero do país. Em 1581, Shakespeare juntou-se a Burbage escrevendo peças e trabalhando como ator. Apesar da casa sempre lotada, sobrevieram problemas financeiros e a casa acabou fechada. A curiosidade é que o Globe foi construído com a madeira do desmonte do The Theater. Do mesmo modo que o Theater, o Globe vivia com a casa cheia e as peças apresentadas eram normalmente de seu famoso sócio.

Foto: Carmen Crochemore
O atual Globe | Foto: Carmen Crochemore

Então, no dia 29 de junho de 1613, o Globe incendiou durante uma performance de Henrique VIII. Um canhão de luz pegou fogo, inflamando as vigas de madeira. De acordo com os poucos documentos existentes, ninguém ficou ferido, exceto um homem que perdeu as calças, tendo sido apagadas com cerveja por seus amigos. Era o que estava à mão. As peças teatrais, naquela época, recebiam um povo ruidoso e festivo, que vibrava com as cenas, vaiava os vilões e assobiava, desejando ou não as seduções . Não havia estatuto que impedisse o uso do álcool.

O Globe foi reconstruído no ano seguinte, porém, como todos os outros teatros de Londres, foi fechado e destruído pelos puritanos em 1642, dando lugar a outro tipo de construção. Atualmente, Londres ostenta o Globe na margem do Tâmisa, na região de Southwark. Não é o ponto exato do ex-teatro de Shakespeare. Ele se localizava há uns 230m de onde está hoje. Não ficava exatamente na margem. A reconstrução é fiel e foi feita com base nos edifícios de 1599 e 1614. O atual Globe apresenta exclusivamente peças de Shakespeare. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é a única companhia brasileira que se apresentou lá. Houve uma temporada de Romeu & Julieta que está documentada em DVD.

fgsfgsf
O teatro durante uma peça

Há em Shakespeare paixão, ambição, amor, inveja, traição, tudo isso temperado por poesia e lirismo absolutamente originais. O Globe era e é um edifício de forma octogonal, com abertura no centro. De dentro do teatro, vê-se o céu. Não existia cortina e, por causa disso, os personagens mortos – muita gente morre nas sanguinárias peças de Shakespeare – tinham que ser retirados por auxiliares. Todos os papéis eram representados pelos homens – mulheres eram proibidas de entrar em cena – , sendo os mais jovens os encarregados de fazerem papéis femininos. No período Globe, é certo que o autor estreou Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth, talvez Romeu e Julieta e Júlio César. Foi o chamado “Período Trágico”.

Falar de Shakespeare é como falar de um ser mitológico, de um produtor de trágedias, comédias, dramas históricos e sonetos geniais. Sua obra, assim como a de pouquíssimos outros artistas, é quase indiscutível. Em Shakespeare, a Invenção do Humano, do crítico literário Harold Bloom, nota-se a dificuldade de falar de um autor tão completo. Para Bloom, Shakespeare não apenas era dono de um cérebro muito privilegiado, como também criou personagens igualmente inteligentíssimos, que seriam capazes de refletirem sobre si próprios, sobre a interação com os outros para, a partir daí, crescerem dentro das histórias, modificando suas maneiras de pensar e agir. Mas a agudeza mental dos personagens são muito bem temperadas, não existem personagens meramente frios ou chatos. Os personagens têm humor, sarcasmo, poder de sedução e são muito diferentes entre si.

Foto: Carmen Crochemore
O teatro vazio | Foto: Carmen Crochemore

Bloom destaca Hamlet e Rosalinda (de As You like it), mas talvez seja Falstaff o maior de todos. Falstaff é o soldado que não quer saber da guerra. Foi o personagem mais popular na época em que Shakespeare estava vivo. Ele aparece no drama histórico Henrique IV e na comédia As Alegres Comadres de Windsor. “Não quero glória. Dêem-me vida”. Hamlet é alguém que não acredita em nada, principalmente em si mesmo, não obstante estar entregue a uma permanente reflexão. Ele tem sete monólogos absolutamente céticos na enorme peça. E Rosalinda é uma mulher apaixonada que corteja homens e é irônica em relação àquilo que mais deseja: o amor.

Mas é impossível estabelecer a grandeza de Shakespeare em uma pequena crônica, que na verdade, era sobre aquela curiosa construção que restou queimada há 400 anos.

William Shakespeare (1564-1616)
William Shakespeare (1564-1616)

Noite paradoxal: Mi Querida e Poemúsica

Isabel Schipani e seu bom chá de Tchékhov

Às 18h, fomos lá para a Casa de Cultura Mario Quintana, mais exatamente para o Teatro Carlos Carvalho. Uma peça simples, um palco com uma mesa de chá e uma cadeira de balanço para um monólogo de 45 minutos da atriz uruguaia Isabel Schipani. Mi Querida é baseado no conto de Tchékhov conhecido entre nós como Queridinha ou O Coração de Olenka. É uma personagem que mimetiza seus amores, adotando suas opiniões e defendendo suas atividades, justificando-os. Dentro de uma espécie de conto circular sobre a perplexidade feminina de quem era chamada sempre de Minha Querida! e que nunca deixa de transitar entre a desolação e a felicidade, a personagem principal trata também a plateia com amor. Enquanto desfiava o belíssimo texto  de Griselda Gambarro / Anton Tchékhov, Olga servia chá e doces para a plateia. Eu, sentado na primeira fila, tomei chá — excelente — e comi uma bolachinha — idem — servidos por Olga. O texto passado ao teatro não deixa o original russo escapar. Toda a notável sofisticação e falsa despretensão de um conto que comenta com lirismo a condição feminina permanece intacta. Pena que pouca gente estava lá, cometendo uma enorme injustiça para com a arte. Ah, a peça ainda estará em cartaz hoje (19) e amanhã (20) às 18h. É mancada das grandes perder.

Poemúsica: exibição constrangedora de anacronismo sessentista

Meio apavorados com a chuva, aguardamos pelo Poemúsica, espetáculo inclassificável que reunia a poesia de Augusto de Campos para ser ouvista, seu filho músico e compositor Cid Campos e Adriana Calcanhotto. A coisa inicia com uma palestra de Augusto sobre poesia concreta nos anos 50 e 60. Nossa estupefação vem do fato de aquilo ter sido o melhor da noite. Logo depois, Cid Campos canta, acompanhando com pertinência o tempo medonho lá fora. Cantor pior é difícil. Calcanhotto entra no palco lá pela metade e comporta-se de forma reverente a Augusto de Campos, cantando pouco, permitindo até que Cid voltasse a soltar sua voz mesmo com ela no palco.

Meus sete leitores sabem o quanto gosto da vanguarda. Estou sempre disposto a rir de quem não ama Joyce, Carroll e Melville, só para citar três gênios utilizados por Campos. Mas o espetáculo de Campos foi 90 minutos de terror. Vendo Augusto de Campos atolado com os dois pés na vanguarda dos anos 60, notamos como esta envelheceu muito mais do que o poeta, ainda firme e em boa forma aos 81 anos. Fazendo referências a autores canônicos como Joyce, Carroll, Melville e Dickinson, mas deixando de lado toda a transcendência dos mesmos, reduzindo-os ao quase nada da descrição que Campos faz, por exemplo, de Moby Dick, a coisa toda é irritante. Sobre retalhos radicalmente desligados das obras originais, Cid compõe melodias prosaicas, de uma simplicidade que seria comovente se estivéssemos num sarau de uma velha viúva aposentada, esquecida mais ainda apaixonada pela grande literatura. Já Adriana deve gostar de poesia concreta e de modo algum a critico por isso. Também gosto. Só que sua presença acessória, cantando e imitando sons de baleia num cello — referência ao cachalote de Melville — fez-me lembrar de Cathy Berberian cantando Ticket to Ride e no valor do violoncelo, que — tão novo e bonito — estaria melhor na mão de um estudante do instrumento. Ora, já que havia tantos vídeos e sons gravados em Poemúsica, por que não foram mostrados sons reais de baleias? Tenho um amigo que tem um CD com mais de uma hora de baleias cantantes, posso repassar!

Abaixo, a Cathy Berberian a qual me refiro. Vejam com atenção a partir de 1min10.

Com disse no título, foi uma noite paradoxal. Na primeira parte, Tchékhov é homenageado de forma compreensiva (no sentido de compreensão). Na segunda, as homenagens são em forma de grife. Os Campos pai e filho pegam algumas grifes para si e Calcanhotto trata de por no seu currículo uma colaboração com o velho. Uma dica? Vão no Tchékhov, como já disse.

Júlia (ou Senhorita Júlia), de Christiane Jatahy

Senhorita Júlia é um texto clássico de August Strindberg de 1888. Em Júlia, a diretora carioca Christiane Jatahy realiza uma brilhante adaptação do texto para o Brasil dos dias de hoje. Quem quiser manter contato facilmente com o texto original, pode ver o bom filme de Alf Sjöberg, de 1951. O texto não perdeu nada de sua atualidade, fato que facilita e aumenta a responsabilidade da adaptação. Trata-se da história do envolvimento de uma jovem (muito jovem, tanto que algumas traduções chamam o texto de Menina Júlia) de familia aristocrática com um ambicioso serviçal. No original, é uma noite de festa de São João, na adaptação é apenas uma festa. Júlia provoca e provoca sexualmente um dos criados, noivo da cozinheira da casa. Este, à princípio, tem medo, depois aceita e passa a sonhar e fazer planos com o novo amor. Levados pelo desejo e pelo vinho, eles relembram vivências inteiramente diversas e falam do abismo social que os separa. Brigam. O que seria somente “sexo casual” para ela e “caso” para ele, transforma-se em uma tensa disputa de classes e de interesses.

Infelizmente, este post chega tarde, pois a peça ficou em cartaz em Porto Alegre de 6 a 8 de setembro. Destaque para a brilhante atuação da Júlia que faz o papel da Senhorita Júlia, a atriz Julia Bernat. Infelizmente, a peça ganhou parte de sua fama pela nudez — nada gratuita — da atriz. A montagem avança fundo num experimentalismo de bons resultados. Projetadas em duas telas que podem juntar-se e alternar-se, há cenas pré-filmadas e cenas filmadas ao vivo que se integram. Olha, pena que saiu de cartaz…

Cena de Júlia, de Christiane Jatahy. A cena ao vivo está na tela da esquerda, a pré-filmada na da direita. O câmara fica no palco e interage com os atores. Tudo se integra à perfeição.

Francisco Marshall sobre "A Flauta Mágica" de Peter Brook (copiado de seu Facebook):

Eu queria ter um blog como o do Milton Ribeiro para postar minha crítica da versão de Peter Brook para A Flauta Mágica de Mozart e Schikaneder. Como não tenho, vou cortar em fatias e publicar aqui mesmo. Thanks, Zulken, thanks, readers.

E eu, Milton, li e conversei sobre isso na sexta-feira [23] e depois esqueci…

— Eu nem deveria criticar, pois ganhei o ingresso do dileto amigo e genial dramaturgo e empreendedor Luciano Alabarse. Liguei no último minuto e ele me cedeu o último ingresso. “Tem sempre um VIP desgarrado!”, disse ele a um desgarrado muito grato, algo chato e pouco vip.

Milton Ribeiro interrompe no Facebook  — Olha, se quiseres postar no blog do Milton Ribeiro, posso falar com ele.

— Não, lá é lugar de sínteses e ironias sacrossantas, não me atrevo. Deixa eu escrever!

Milton Ribeiro desiste temporariamente — OK, OK, adiante!

— A montagem apresenta-se como “versão de Peter Brook”, ou livre adaptação. Na verdade, é uma versão pocket, com a orquestra reduzida ao piano e com o corte de várias partes.

— Misteriosamente, somem partes belíssimas, o que é compreensível em versão pocket, mas aparece uma inclusão arbitrária. Mesmo que bonita, a fantasia em ré menor está sobrando na economia musical. Sobram músicas na própria flauta, não precisa ir à prateleira.

— Aliás, não tem flauta em momento algum, só piano e mimos.

— Figurinos e cenografia seguem o facílimo e baratésimo esquema minimalista. Pés descalços e túnicas, nada de cenários, apenas umas hastes e um carrinho, que são movimentados de modo simples. Iluminotécnica enxuta, monocromática.

— O pianista é excelente, os cantores ótimos, as performances musicais convencem, animam, são muito bonitas e boas, tecnicamente.

— A acústica do Bourbon é uma catástrofe. Quem projetou aquilo desdenhou mediocremente a grande ciência acústica desenvolvida pelos gregos e fez cacaca. Nós fazemos com a democracia e a filosofia gregas, tá na média. Moral, os músicos cantam para as filas 1 a 3. Os outros pensam que ouvem, sonham, imaginam…

— Peter Brook, um cineasta importante, poderia considerar o que Ingmar Bergman fez ao abordar a Flauta Mágica. Não o fez, logo não cabe a comparação.

— A obra original, de Mozart e Schikaneder, transborda humor e imaginação. Foi composta para um teatro popular, onde todo o tipo de efeito cenográfico e dramatúrgico era aproveitado. A Flauta Mágica é sobeja em possibilidades dramatúrgicas, toda elas desdenhadas por Brook, que joga um manto minimalista arbitrário sobre esta obra prima. Este manto minimalista não é nem “contemporâneo” como linguagem, nem tem a ver com a obra. A que vem, então? Vem para economizar?

— Ao final, todos saem com a alma leve, felizes. Este é o milagre de Mozart. Uma música com tal grau de pureza, com tal poder de comunicação, que resiste a tudo, até mesmo a esta violação narcisista e pobre. Valeu, Mozart e Schikaneder, eternamente!

— O público pôs-se a aplaudir de pé imediatamente. O poder do ícone!

— Eu fui na quarta-feira, 21/09/2011.

Milton Ribeiro, o chato, retorna — Cara, eu vou juntar e roubar esse txt. Fui assitir a uma peça lastimável que foi APLAUDIDÍSSIMA. Estou em estado de choque a uma semana. O ícone era Marco Nanini.

— É, eu li tua crítica. Junta mesmo. Resistência ecológica.

Neva, peça uruguaia apresentada no Porto Alegre Em Cena

No dia 9 de janeiro de 1905, um dos mais importantes da história do século XX, Olga Knipper e mais dois atores, Masha e Aleko, estão num teatro de São Petersburgo. Olga, viúva de Anton Tchékhov, morto seis meses antes, é uma pessoa de rigorosa frivolidade, ao contrário do ex-marido. Verdade, ela era mesmo assim. Era domingo, dia em que as tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do Czar. O protesto, realizado após a missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim um papel — ao czar, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. Os trabalhadores não sabiam, mas o czar nem estava no Palácio. A resposta à petição foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos. Os Romanov acharam natural.

Porém, dentro do teatro, bem em frente ao rio Neva, Aleko e Masha ajudam Olga, a diva, a ensaiar O Jardim das Cerejeiras enquanto aguardam o diretor de peça, ou a Revolução, ou alguma outra coisa desconhecida. Olga quer apenas o reconhecimento de seu talento, Aleko é conservador e deseja que o mundo permaneça como está e Masha faz discursos inflamados de que mundo mudará para melhor com a Revolução. Mas não é tão simples. Após ensaiar por diversas vezes a morte de Tchékhov com Olga e Masha, Aleko às vezes parece encarnar o autor, agindo de forma diferente do habitual, caindo fora de seu ideário.

A peça Neva — absolutamente notável — é uma montagem uruguaia sobre texto do chileno Guillermo Calderón. É falada, evidentemente, em espanhol. Amigos, que atores e que texto! Nesta pequena anotação, é importante lembrar que o espetáculo traz, em 1h15, um contexto completo: há uma profunda reflexão sarcática a respeito da arte teatral, há a vida privada com foco nas vaidades dos atores e há o drama popular da revolução nascente.

Lembra alguns dos primeiros filmes de Nikita Mikhálkov, principalmente Olhos Negros e Peça Inacabada para Piano Mecânico, mas com muito mais peso. Aqui temos menos humor e muito mais sarcasmo. A peça também se utiliza de grandes fatias da realidade social e da vida pessoal de Olga e Anton. Conhecendo um pouco da história da Rússia e sendo Tchékhov um de meus autores preferidos, dá para notar claramente que o dramaturgo foi fundo na investigação das biografias e da época. As várias versões apresentadas para a morte de Anton são os momentos onde Olga é mais atacada. Indiretamente. O artifício de se fazer teatro dentro do teatro resultou muito eficaz.

A montagem de Neva é despojadíssima. São três personagens, um banco, uma janela por onde passam revoluções e ironias e iluminação mínima que sai de um spot manipulado pelos próprios atores. Os atores são Bettina Mondino, Paola Venditto e Moré.

Olha, recomendo fortemente. A peça ainda estará em cartaz hoje e amanhã, às 22h, no Teatro de Câmara Túlio Piva. Ontem estava quase lotado, o que significa que há ingressos disponíveis.

~o~

Antes das 22h, assistimos à primeira parte do Concerto da OSPA. A Sinfonia Nº 82 de Haydn e a Abertura Coriolano de Beethoven estiveram maravilhosas. Deu dó de sair no intervalo. Mas valeu a pena.