Abordagem Nº 1 ao fracasso da literatura

Abordagem Nº 1 ao fracasso da literatura

Foi um processo muito secreto e silencioso. Primeiro, o escritor foi levado para uma posição secundária dentro da sociedade. Falo do escritor de antes dos anos 80. Aqueles escritores como Heinrich Böll, Thomas Mann, Graham Greene, Erico Verissimo e tantos outros, que funcionavam como consciência e que eram consultados nos grandes debates éticos, foram deslocados pouco a pouco para a periferia e tornaram-se coisa do passado. Lembro da Veja estampar (Veja, Milton?!), quando era uma revista decente, em 1975 (ah, bom), A Morte de um Brasileiro Consciente, lamentando a morte de um escritor que se colocava calma e elegantemente — uma forma eficiente, sem dúvida –, contra a ditadura militar: o citado Erico Verissimo. A revista punha o povo brasileiro na posição de órfão de alguém que até os militares respeitavam e que funcionava como reserva moral do país.

Inúmeros escritores ocuparam esse “cargo” em diversos países. Eram normalmente muito bons em seu ofício. Acharia estranho que romancistas fossem consultados sobre aspectos econômicos, por exemplo, mas também acho que a recente desimportância do ofício de escrever deixou a sociedade e o pensamento mais pobres e fez com que a profissão passasse a atrair, em sua maioria, pessoas incapazes de criar obras de maior relevância. Passou a atrair um bando de gente que não se manifesta politicamente, sempre pensando no convite para a próxima Feira do Livro, cujo prefeito sabe-se lá de que partido será.

Veja Erico

Belos acervos ou Where the fuck are these books?

Passei pela Saraiva da Rua da Praia e subi a Ladeira. Passei também pela Ladeira Livros, Nova Roma, Beco dos Livros e Estação Cultura. Cinco livrarias. Perguntei sobre cinco livros relativamente novos. As respostas:

1. Uma duas, de Eliane Brum (livro de 2011): não tinha.
2. Um livro por dia, de Jeremy Mercer (2007): não tinha.
3. Hitch-22, de Christopher Hitchens (2011): não tinha.
4. Cartas a um jovem contestador, de Christopher Hitchens (2006): não tinha.
5. Graciliano : Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos (2011): não tinha.
6. Ribamar, de José Castello (2010): não tinha.
7. Anna Kariênina, de Leon Tolstói (2005), edição da Cosac & Naify: não tinha.

Claro que se fosse caminhasse 18 quadras até a Palavraria ou 8 até a Bamboletras, encontraria todos ou quase. Mas como ficam os mortais que não têm livrarias próximas de qualidade média? Conclusão: melhor esquecer e comprar na internet mesmo.

(À tardinha, pretendo passar na Saraiva de um grande shopping para fazer o mesmo teste. É caminho de casa. Informo depois o resultado).

Comércio crítico na Veja

Há algumas semanas — 2 ou 3, porque vi a tal revista na casa da minha irmã, na praia, durante a a virada do ano — , li uma crítica de Alcir Pécora a um livro de Mário Sabino. Normal, não? Nada normal. Analisemos mais a fundo: Alcir Pécora é um desses intelectuais acadêmicos paulistas supermetidos que devem frequentar diariamente a Mercearia São Pedro, saindo de lá sempre com ou três livros a mais em sua bibliografia. É um cara respeitado, ouvido. Nada lido, é certo, mas respeitado, como rotineiramente os acadêmicos são. Ou seja, obter uma crítica elogiosa de Pécora é receber um importante aval em alguns círculos. E o criticado, recebedor dos encômios desta verdadeira grife literária é Mário Sabino, o qual, nas horas vagas, trabalha como editor-chefe de Veja. E a crítica, pasmem, saiu na revista Veja.

Devo ser muito antiquado e tolo. E ético. Nunca, mas nunca mesmo eu colocaria uma crítica a um livro meu numa revista pela qual sou o responsável. Ainda mais que a revista paga a seus articulistas. Em outras palavras, Sabino pagou uma resenha favorável a Pécora. Ou alguém acha que Sabino e Veja publicariam uma opinião não laudatória? Não li o livro de Sabino — aliás, nem lembro o título — mas me chamou a atenção o fato de que resta à Pécora um pingo de honestidade… Notem como ele dá a grife e recebe a grana, mas é pudico, contido.

Seu principal ato falho é o de dizer que, dentro da obra literária do editor-chefe de Veja, há títulos interessantes. Ora, qualificar livros de interessantes é o mesmo que chamar a namorada feia do amigo de simpática, é o mesmo que dizer a um fã apaixonado que o filme não é ruim, é interessante. Mas há outros: Pécora fala na “inteligência da abordagem” e que Sabino “entregou destemidamente à narrativa as rédeas de seu andamento”. Se Pécora é uma autoridade e gostou do livro, saberia destacar coisas mais interessantes do que este punhado de lugares-comuns. Será que Sabino deu-se conta de que o trabalhinho ficou mal feito? Ou a vaidade só entende o que deseja entender?

Uma semana, um texto: Um impasse trágico no mundo editorial, de Chico Lopes

O melhor que li na Internet esta semana foi uma indicação de Fernando Monteiro. Transcrevo abaixo o texto retirado do Cronópios.

Um impasse trágico no mundo editorial

Por Chico Lopes

Todo escritor experimentado sabe que o refinamento estético é pouco democrático, que implica em não adular esse leitor comum, em avançar no experimento, na dificuldade, na reinvenção da linguagem. Todo escritor que refina seu instrumento sabe que está progressivamente se afastando da esfera popular. Mas, nesta seara, sob o clichê das “estórias bem contadas” que jamais deixou de ser invocado e aceito amplamente, há formas civilizadas de entretenimento literário, como os romances policiais de P.D James e outros. Pode-se, aliás, saltar dela para patamares mais elevados numa evolução natural do gosto por ler. Essa mediania não precisa ser vilanizada por autores mais arriscados que, desesperados por não serem aceitos, ressentidos, tratam de enfiar livros medianos ou apenas bons e lixo massificante num mesmo saco.

O que incomoda, hoje em dia, a quem escreve com a ambição de ir mais fundo à alma humana, não fazendo concessões demasiadas às soluções demagógicas, não é a mediania cultural bem-intencionada. É sentir-se um proscrito, um amaldiçoado, como se a liberdade intelectual, o gosto pela imaginação à solta, pela invenção estética, fossem coisas antipáticas e dignas de linchamento – muita gente fica mortalmente ofendida ao notar que está sendo levada a refletir e a passar por coisas ambíguas e inconcludentes, ao abrir um livro. O mercado é de fato liberal, pois admite que nele entre toda espécie de produto, mas joga para os porões da invisibilidade tudo que não seja tônico, utilitário, humorístico, escapista, fácil de vender.

O leitor comum não quer se sentir ameaçado pela infelicidade de alguns autores que lidam com seus abismos individuais, ainda que engenhosamente imaginativos, de maneira alguma. Mais e mais é adulado, tutelado, e não terá nunca a sua burrice questionada, para não sofrer abalos na auto-estima (e a auto-estima de um obtuso com dinheiro no bolso vale muito mais que a qualidade superior e óbvia de um pobre diabo culto sem recurso algum – George Orwell já havia notado isso com muita precisão em seu “Mantenha o sistema”). O leitor comum é, hoje em dia, contemplado com ofertas sempre mais e mais eufóricas e pode desprezar com tranqüilidade os produtos intelectuais que o obrigarão a pensar ou a, no mínimo, duvidar do que pensa, sente e vê.

Essa euforia, contrabandeada de outras formas de entretenimento (especialmente a televisão) parecia menos insidiosa e tirânica em anos recuados, talvez por a indústria cultural ser ainda menos pesada e tentacular no país naqueles tempos: ninguém que dissesse, repetindo Torquato Neto, que era preciso “desafinar o coro dos contentes”, no dever de incomodar e causar inquietação com que toda arte dita mais séria se investiu no século XX, parecia assim tão deslocado lá pelos anos 70 e parte dos 80. Hoje, os que dizem a mesma coisa, dizem-na para seus pares e sabem que serão ouvidos só entre estes. O público simplesmente não compreende uma recusa obstinada ao sucesso, um desejo de refletir sobre o mundo e não de aceitá-lo pelo que é – uma injustiça atrás da outra – e desfrutar dele o máximo possível.

A seriedade do escritor, que tenta ser aceito escrevendo de uma maneira abertamente impopular, parece imperdoável. Um número maior de gente com escolaridade não significou, de modo algum, um crescimento dos letrados. O que fez sim foi incrementar os consumidores de televisão, cada vez mais vorazes no desejo de uma vida mais e mais superficial, sem interrogações. A maquininha produz euforia ininterrupta, irrealidade constante a um preço mínimo, e para quê se preocupar com as questões sisudas que alguns livros oferecem se elas poderão afetar as ilusões nocivamente, paralisar as esperanças, a cegueira diligente? A sofisticação parece ameaçadora. É ameaçadora, inclusive e talvez principalmente, para os donos das redes, que não vão de maneira alguma se dar ao trabalho de oferecer refinamento, podendo faturar com o lixo que eles sabem ter retorno certo e, intimamente, é de lixo mesmo que seu gosto particular é feito, ao que tudo indica.

O impasse trágico que isso produz, para quem quer escrever a sério, é muito menos analisado do que deveria. Os desdobramentos vão ser mais e mais graves. Mesmo os livros destinados ao medianamente culto ficarão cada vez menos literários. Braço da indústria de entretenimento sem apelo tão maciçamente sedutor, o mercado editorial cederá cada vez mais a um imperativo de irreflexão provindo de gente que lê muito mal e não deseja se emendar de modo algum. Tristeza e sombras, senso trágico da vida ou simplesmente consciência da morte, cairão nas zonas de tabu cultural com mais e mais intensidade. Só se aceitará o que for eufórico ou totalmente digerível.

É debaixo dessa euforia – por vezes engrossada por algum membro da fileira dos escritores refinados que, ressentido demais, bandeou-se para a facilidade – que nos movemos hoje em dia, e que ninguém se iluda com a penetração dos livros mais sentidos e mais sérios: foram lidos apenas pelos poucos já capazes de acolhê-los. Legião que, ao em vez de se ampliar, só tem feito diminuir.