Donal Og / Broken Vows (Votos Rompidos)

Donal Og / Broken Vows (Votos Rompidos)

Este é um belíssimo poema gaélico, anônimo, da Irlanda do século VIII, traduzido para o inglês pela irlandesa Lady Gregory (Isabella Augusta Gregory). Ele recebeu o título em Inglês de Broken Vows, mas também é conhecido pelo seu título original Donal Og (Jovem Donal).

Lady Augusta Gregory em 1911

Broken Vows

It is late last night the dog was speaking of you;
the snipe was speaking of you in her deep marsh.
It is you are the lonely bird through the woods;
and that you may be without a mate until you find me.

You promised me, and you said a lie to me,
that you would be before me where the sheep are flocked;
I gave a whistle and three hundred cries to you,
and I found nothing there but a bleating lamb.

You promised me a thing that was hard for you,
a ship of gold under a silver mast;
twelve towns with a market in all of them,
and a fine white court by the side of the sea.

You promised me a thing that is not possible,
that you would give me gloves of the skin of a fish;
that you would give me shoes of the skin of a bird;
and a suit of the dearest silk in Ireland.

(…)

My mother has said to me not to be talking with you today,
or tomorrow, or on the Sunday;
it was a bad time she took for telling me that;
it was shutting the door after the house was robbed.

My heart is as black as the blackness of the sloe,
or as the black coal that is on the smith’s forge;
or as the sole of a shoe left in white halls;
it was you put that darkness over my life.

You have taken the east from me, you have taken the west from me;
you have taken what is before me and what is behind me;
you have taken the moon, you have taken the sun from me;
and my fear is great that you have taken God from me!

Votos Rompidos

Era  tarde a noite passada, o cão falava de você.
O pássaro cantava no pântano, falava de você.
Você é o pássaro solitário das florestas;
Que você fique sem companhia até me encontrar

Você prometeu e me traiu.
Disse que estaria junto a mim quando os carneiros fossem arrebanhados.
Eu assobiei e gritei cem vezes.
E não achei nada lá, a não ser uma ovelha balindo.

Você prometeu uma coisa difícil.
Um navio de ouro sob um mastro prateado.
Doze cidades e um mercado alegre em todas elas.
E uma branca e bela praça à beira-mar.

Você prometeu algo impossível.
Que me daria luvas de pele de peixe.
E sapatos de asas de ave.
E roupa da melhor seda da Irlanda.

(…)

Minha mãe disse para eu não falar com você.
Nem hoje, nem amanhã. Nem domingo.
Foi um mau momento para dizer-me isso.
Como trancar a porta após ter a casa arrombada.

Você tirou o leste de mim, tirou o oeste de mim.
Tirou o que existe à minha frente, tirou o que há atrás.
Tirou a lua, tirou o sol de mim,
E meu medo é grande, você tirou Deus de mim.

O poema foi utilizado no filme Os Vivos e os Mortos, de John Huston. A cena:

458 anos de William Shakespeare (23.04.1564 – 23.04.1616) / “Soneto 66”, transcriado por Augusto de Campos

Soneto 66

Cansado de tudo isso eu clamo pela morte,
Vendo aos pobres faltar a moradia e o pão
E ao ricos amorais caber a boa sorte,
A fé servir aos maus em pífia exploração,

E a mais pura honradez de todo desprezada
A hombridade estuprada e morta pelo vício,
E a perfeição em mau feitio desnaturada,
A força convertida em monstruoso artifício,

E a arte calada com brutal autoridade,
O parvo a comandar o honesto e o diligente,
A verdade curial tida por falsidade
E o cativo servindo ao Capitão demente:

De tão cansado era melhor querer meu fim
Se a morte não roubasse o meu amor de mim.

Eu e meus foras

Eu e meus foras

Como todo mundo está fazendo, agorinha eu e Elena falávamos sobre a Ucrânia quando eu comecei a citar os ucranianos que conhecia. E eu citei Shevtchenko, goleador no Milan e grande jogador de futebol.

Minha mulher me olha com aquele ar de desalento sem fim, pois pensava que eu, um (pseudo)erudito, falava de Tarás Hryhórovych Shevtchénko, o maior poeta do país.

Na opinião dela, isto é como conhecer Beethoven só como o cachorro do filme. E, para mim, taras sempre foi outra coisa.

Tarás Hryhórovych Shevtchénko (Moryntsi, 1814 — São Petersburgo, 1861)

Funeral Blues, de W. H. Auden

Funeral Blues, de W. H. Auden

O poema Funeral Blues foi escrito por Auden em 1936, como a Canção 9 do livro Twelve songs, e costuma ser citado como expressão exemplar de um forte sentimento de perda e de luto. O poema ganhou popularidade internacional devido ao filme Quatro casamentos e um  funeral, numa cena em que o personagem Matthew homenageia seu companheiro morto. Funeral Blues foi musicado por Benjamin Britten. Segue o original e algumas traduções. Ao final, colocamos a famosa cena de Quatro casamentos.

Funeral Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone, 
Prevent the dog from barking with a juicy bone, 
Silence the pianos and with muffled drum 
Bring out the coffin, let the mourners come. 
 
Let aeroplanes circle moaning overhead 
Scribbling on the sky the message ‘He is Dead’. 
Put crepe bows round the white necks of the public doves, 
Let the traffic policemen wear black cotton gloves. 
 
He was my North, my South, my East and West, 
My working week and my Sunday rest, 
My noon, my midnight, my talk, my song; 
I thought that love would last forever: I was wrong. 
 
The stars are not wanted now; put out every one, 
Pack up the moon and dismantle the sun, 
Pour away the ocean and sweep up the woods; 
For nothing now can ever come to any good. 
 
April 1936

W. H. Auden (1907-1973)

.oOo.
 
Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.
 
Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.
 
Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.
 
É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.
 
(tradução de Nelson Ascher)

.oOo.
 
Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e com os tambores em surdina
Tragam o féretro, deixem vir o cortejo fúnebre.
 
Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe em volta dos pescoços das pombas da cidade,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão.
 
Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: enganei-me.
 
Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram o bosque;
Pois agora tudo é inútil.
 
(tradução de Maria de Lourdes Guimarães)

.oOo.
 
Parem já os relógios, corte-se o telefone,
dê-se um bom osso ao cão para que ele não rosne,
emudeçam pianos, com rufos abafados
transportem o caixão, venham enlutados.
 
Descrevam aviões em círculos no céu
a garatuja de um lamento: Ele Morreu.
no alvo colo das pombas ponham crepes de viúvas,
polícias-sinaleiros tinjam de preto as luvas.
 
Era-me Norte e Sul, Leste e Oeste, o emprego
dos dias da semana, Domingo de sossego,
meio-dia, meia-noite, era-me voz, canção;
julguei o amor pra sempre: mas não tinha razão.
 
Não quero agora estrelas: vão todos lá para fora;
enevoe-se a lua e vá-se o sol agora;
esvaziem-se os mares e varra-se a floresta.
Nada mais vale a pena agora do que resta.
 
(tradução de Vasco Graça Moura)

.oOo.
 
Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e abafem o tambor
Tragam o caixão, deixem passar a dor. 
 
Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe nos pescoços das pombas da região,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão. 
 
Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meu meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: “não tinha razão”. 
 
Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram a floresta;
Pois agora nada mais de bom nos resta.
 
(tradução anônima)

.oOo.

Parem os relógios, cale o telefone 
Evite o latido do cão com um osso 
Emudeça o piano e que o tambor surdo anuncie 
a vinda do caixão, seguido pelo cortejo. 
 
Que os aviões voem em círculos, gemendo 
e que escrevam no céu o anúncio: ele morreu. 
Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua 
e que guardas de trânsito usem finas luvas de breu. 
 
Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste 
Meus dias úteis, meus finais-de-semana, 
meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto. 
Eu pensava que o amor era eterno; estava errado 
 
As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma 
Guarde a lua, desmonte o sol 
Despeje o mar e livre-se da floresta 
pois nada mais poderá ser bom como antes era. 
 
(tradução anônima)

À morte de um canalha, por Mario Benedetti

À morte de um canalha, por Mario Benedetti

(Em 2006, em “homenagem” à morte de Pinochet, o grandíssimo Mario Benedetti (1920-2009) escreveu o poema que segue em tradução livre encontrada na rede).

À morte de um canalha, por Mario Benedetti

Vamos festejá-lo
venham todos
os inocentes
os lesados
os que gritam à noite
os que sonham de dia
os que sofrem no corpo
os que alojam fantasmas
os que pisam descalços
os que blasfemam e ardem
os pobres congelados
os que amam alguém
os que nunca se esquecem
vamos festejá-lo
venham todos
o crápula morreu
acabou-se a alma negra
o ladrão
o suíno
acabou-se para sempre
hip-hurra´
que venham todos
vamos festejá-lo
e não-dizer
a morte
sempre apaga tudo
a tudo purifica
qualquer dia
a morte
não apaga nada
ficam
sempre as cicatrizes
hip-hurra´
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não-chorar por vício
que chorem seus iguais
e que engulam suas lágrimas
acabou-se o monstro prócer
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
a não-ficarmos tíbios
a não-acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
e não-ficarmos frouxos
e não-esquecer que este
é um morto de merda

.oOo.

A la muerte de un canalla

Vamos a festejarlo!
vengan todos!
los inocentes, los damnificados
los que gritan de noche
los que sueñan de día
los que sufren el cuerpo
los que alojan fantasmas
los que pisan descalzos
los que blasfeman y arden
los pobres congelados
los que quieren a alguien
los que nunca se olvidan
vamos a festejarlo!
¡vengan todos!
el crápula se ha muerto!
se acabó el alma negra!
el ladrón
el cochino
se acabó para siempre
hurra!
que vengan todos
¡vamos a festejarlo!
a no decir: la muerte siempre lo borra todo
todo lo purifica cualquier día
la muerte no borra nada!
quedan siempre las cicatrices
hurra!
murió el cretino
vamos a festejarlo!
a no llorar de vicio!
que lloren sus iguales y se traguen sus lágrimas!
se acabó el monstruo prócer!
se acabó para siempre!
vamos a festejarlo!
a no ponernos tibios!
a no creer que éste es un muerto cualquiera
vamos a festerjarlo!
a no volvernos flojos!
a no olvidar que éste
es un muerto de mierda

Por Mario Benedetti
Montevideo, 11 de diciembre 2006.

Mario Benedetti (1920-2009)

Fotografia do 11 de setembro (de Wislawa Szymborska)

Fotografia do 11 de setembro (de Wislawa Szymborska)

Pularam dos andares em chamas —
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles —
descrever este voo
e não acrescentar o último verso.

[em “Alguns gostam de poesia” | trad. Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro Editores, março de 2004 ]

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Hino do Carnívoro, soneto de Vinícius de Moraes

Hino do Carnívoro, soneto de Vinícius de Moraes

Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem maior aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

Vinícius foi buscar a carne de barco

poema de silêncio

poema de silêncio

Tive uma amiga que ambicionava escrever
poemas de silêncio

trabalhou muito até que conseguiu
organizar numa mesa de vidro transparente
doze folhas brancas de papel branco
com uma joia em cima de cada uma
para cada amigo receber
o seu poema de silêncio
quando fosse encontrada no robe branco
da morte branca que nos oferecia

cheguei a tempo de salvá-la
fizeram-lhe a lavagem ao estômago
não me perdoou a alma mal lavada
nunca mais nos vimos
viaja agora de país em país
sem joias sem poemas sem amigos
e telefona-me às vezes depois da meia-noite
quando o silêncio raspa o vidro da janela

Helder Macedo

Helder Macedo (1935)

se isto não é amor

Amar o dia, detestar o dia,
chamar a noite e desprezá-la logo,
temer o fogo e acercar-se ao fogo,
ter a um tempo pena e alegria.
Estar juntos valor e covardia,
o desprezo cruel e o brando rogo,
ter valente entendimento cego,
atada a razão, livre ousadia.
Buscar lugar em que aliviar os males
e não querer do mal fazer mudança,
desejar sem saber que se deseja.
Ter o gosto e o desgosto iguais
e todo o bem livrado na esperança,
se isto não é amor, não sei o que seja.

María de Zayas y Sotomayor (Madrid, 12 de setembro de 1590 – depois de 1647)

27 anos sem Mario Quintana

27 anos sem Mario Quintana

Não sou tão velho assim – ou sou? – , mas conheci Mario Quintana. Ou melhor, falei com ele casualmente uma vez. Conversamos numa Feira do Livro a respeito de algo tão prosaico que não lembro bem do assunto. Acho que ele estava procurando um livro numa banca e me perguntou se eu tinha visto. Sim, foi isso. E eu saí procurando sem encontrar. Fim.

Ele foi uma figura conhecida em Porto Alegre. Era o discreto dono da pequena celebridade possível a um autor gaúcho. Sua única extravagância era a de habitar um hotel do centro onde atualmente é a Casa de Cultura Mario Quintana. No seu quarto havia pouco de seu, o que era de Quintana estava espalhado em livros e jornais.

Quintana fazia pouco caso dos críticos que, aliás, costumavam tratá-lo muito bem. Dizia que escrevia suas poesias (e suas crônicas eram também poesia) por sentir necessidade de escrever. Nunca saiu do Rio Grande do Sul, mas era um esplêndido tradutor. Suas traduções de Balzac, Virginia Woolf, Voltaire e Proust são exemplos de perfeição e senso de estilo.

Quintana nasceu em Alegrete (RS) em 30 de junho de 1906 e faleceu em Porto Alegre no dia 5 de maio de 1994, há 20 anos. Abaixo, alguns exemplos de sua poesia.

Dos Milagres

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo…
Nem mudar água pura em vinho tinto…
Milagre é acreditarem nisso tudo!

Da Discrição

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também…

O Mapa

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso…

Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!

(sem título)

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha…
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…
E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!
Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!
Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

Canção do Dia de Sempre

Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…

Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!

O encontro de Drummond com os Beatles

O encontro de Drummond com os Beatles

Em tempos pré-internéticos, não era possível simplesmente jogar o nome de uma música estrangeira no google para ficar sabendo qual era a tradução. Então, só havia duas opções: ou traduzia por conta própria ou então torcia para sua música favorita aparecer traduzida em alguma publicação.

Em março de 1969, os beatlemaníacos brasileiros devem ter feito a festa quando viram a matéria especial sobre o livro-biografia da banda, escrito por Hunter Davies, da antiga revista “Realidade”. Isso porque, seis canções do maior grupo de todos os tempos vieram escritas em português ilustrando o texto jornalístico. Versões criadas por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, um dos poetas brasileiros mais renomados no mundo.
.
O poeta mais ilustre de Itabira traduziu cinco músicas dos Beatles, todas presentes no “White Album”: Ob-la-di, Ob-la-da, Piggies, Why we don’t do it in the road?, I will, Blackbird e Happiness is a warm gun. As versões foram feitas em tradução livre e alguns versos acabaram saindo bem engraçados.


OBLADI, OBLADA
(Paul McCartney – John Lennon. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)

Desmond tem um carrinho na Praça do Mercado.
Molly vocaliza num conjunto.
Desmond diz a Molly: Por teu rosto sou vidrado
Molly diz-lhe: O quê? E pega-lhe na mão.
Obladi, obladá, a vida continua: olá,
olalá, como a vida continua!
Obladi, obladá, a vida continua… Olá,
olalá, como a vida continua!
Desmond toma o ônibus, vai à joalheria
compra anel de ouro de ofuscar
e leva-o a Molly, que espera junto à porta.
De anel no dedo, eis Molly a cantar.

Em um par de anos terão construído
um lar bacana doce que nem cana.
Um par de garotos corre pelo pátio
desse casal unido.

Olha Desmond feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Molly ficou em casa se enfeitando
e à noite ainda canta no conjunto.

Olha Molly feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Desmond ficou em casa se enfeitando
e à noite ela ainda canta no conjunto.
E se querem se divertir, obladi, obladá!

PORCOS
(George Harrison. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)
Viste os porquinhos
rebolando na imundície?
Para todos os porquinhos
a vida está cada vez mais difícil
e brincam sempre na sujeira por aí.
Viste os mais taludos porquinhos
em suas engomadas, alvíssimas camisas?
Olha os mais taludos porquinhos
em algazarra na imundície
com camisas alvíssimas a folgar por aí.

Em seus chiqueiros, plenamente protegidos,
ao que vai por aí nem ligam.
Nos olhos deles falta uma coisinha:
precisam mesmo é de suma porcaria.

Por toda parte há muitos porquinhos
vivendo suas porquinhas vidas.
Podes vê-los para o jantar saindo
com suas porquinhas mulherinhas
de garfo e faquinha para comer presunto.

E POR QUE NÃO AQUI NA ESTRADA?
(Paul McCartney – John Lennon. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)
E por que não aqui na estrada?
Não há ninguém para ver nada
E por que não aqui na estrada?

FAREI TUDO
(Paul McCartney – John Lennon. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)
Desde sempre te amei
e bem sabes que ainda te amo.
Devo esperar toda a vida?
Se quiseres – esperarei.
Se alguma vez te vi
nem sequer teu nome escutei.
Mas isso não faz diferença:
sempre a mesma coisa sentirei.

Eu te amarei por todo o sempre, sempre,
desde a raiz do meu coração
e te amarei quando estivermos juntos
e te amarei na solidão.

Quando finalmente te encontrar
tua canção envolverá o espaço.
Canta bem alto, para eu escutar.
Tudo farei para te dar o braço
pois tudo em ti me prende a mim.
Bem sabes que farei tudo
Tudo farei.

MELRO
(Paul McCartney – John Lennon. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)
Melro que cantas no morrer da noite,
com estas asas rotas aprende teu voo
A vida toda
esperaste a hora e a vez de teu voo.
Melro que cantas no morrer da noite,
com estes olhos fundos aprende a ver
A vida toda
esperaste a hora e a vez de ser livre.

Voa, melro, voa, melro,
para o clarão da escura noite.

Voa, melro, voa, melro,
para o clarão da escura noite.

Melro que cantas no morrer da noite,
com estas asas rotas aprende teu voo
A vida toda
esperaste a hora e a vez de teu voo
esperaste a hora e a vez de teu voo
esperaste a hora e a vez de teu voo.

A FELICIDADE É UM REVÓLVER QUENTE
(John Lennon – Paul McCartney. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)

Até que essa garota não erra muito
oi oi oi oi oi oi oi oi
Acostumou-se ao roçar da mão-de-veludo
como lagartixa na vidraça.

O cara da multidão, com espelhos multicores
sobre seus sapatões ferrados
descansa os olhos enquanto as mãos se ocupam
no trabalho de horas extraordinárias
com a saponácea impressão de sua mulher
que ele papou e doou ao Depósito Público.

Preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo
para baixo, para os pedaços que deixei na cidade-alta,
preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo

Madre Superiora dispara o revólver
Madre Superiora dispara o revólver
Madre Superiora dispara o revólver

A felicidade é um revólver quente
A felicidade é um revólver quente
Quando te pego nos braços
e meus dedos sinto em teu gatilho,
ninguém mais pode com a gente,
pois a felicidade é um revólver quente, lá isso é.

Fonte: Outros 300

~ No importaba nada ~

~ No importaba nada ~

Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel
La sonrisa ancha
La lluvia en el pelo
No importaba nada
Ibas a encontrarte con él
Con él, con él, con él, con él, con él
Son cinco minutos
La vida es eterna en cinco minutos
Suena la sirena
De vuelta al trabajo
Y tu caminando
Lo iluminas todo
Los cinco minutos
Te hacen florecer
Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel
La sonrisa ancha
La lluvia en el pelo
No importaba nada
Ibas a encontrarte con él
Con él, con él, con él, con él, con él
Que partió a la sierra
Que nunca hizo daño
Que partió a la sierra
Y en cinco minutos quedó destrozado
Suena la sirena
De vuelta al trabajo
Muchos no volvieron
Tampoco Manuel
Te recuerdo Amanda
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel

Victor Jara

Fernando Pessoa: os 85 anos da morte de vários poetas

Fernando Pessoa: os 85 anos da morte de vários poetas
“Não sou nada (…) À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”

Fernando Pessoa são muitos poetas. Se o Pessoa original nasceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1888 e faleceu na mesma cidade, aos 47 anos, em 30 de novembro de 1935, seus heterônimos têm diferentes datas de nascimento e de morte, à exceção de Ricardo Reis, que não tem data de morte. A invenção de tais heterônimos atravessa toda a obra de Pessoa. Heterônimos são autores fictícios que possuem personalidade própria, ao contrário dos pseudônimos. Sendo assim, o autor assume outras personalidades. Cada uma delas seria uma pessoa real, com manifestações artísticas próprias e diversas do autor original, que é chamado de “ortônimo”.

No caso de Pessoa, com o amadurecimento de cada uma das outras personalidades, o autor original tornou-se apenas mais um heterônimo. Os três heterônimos mais conhecidos de Pessoa (e também os de maior obra poética) são Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Um quarto heterônimo importante é o de Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego. Bernardo é considerado uma espécie de semi-heterônimo por ter muitas semelhanças com Pessoa e não possuir uma personalidade distinta, contrariamente aos três primeiros, que possuem até mesmo data de nascimento e morte — à exceção do citado Ricardo Reis.

“Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”

Álvaro de Campos era um engenheiro de educação em língua inglesa e origem portuguesa. Aliás, como o próprio Pessoa. Tinha a sensação de ser estrangeiro onde estivesse. Foi um decadentista influenciado pelo simbolismo que aderiu ao futurismo. Álvaro é o poeta da modernidade, da euforia e do desencanto, é o poeta da irreverência a tudo e a todos. Alguns de seus poemas:

Tacabaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

(…)

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

(…)

Lisbon Revisited

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me
[enfileirem conquistas]
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na

(…)

“Tinha fugido do céu / Era nosso demais para fingir”

Outro era Alberto Caiero. Nascido em Lisboa, Caeiro teria vivido quase toda a vida como camponês, sem maiores estudos formais. Teve apenas a instrução primária, mas é considerado o mestre entre os heterônimos. Depois da morte do pai e da mãe, permaneceu em casa com uma tia-avó, vivendo de modestos rendimentos e morreu de tuberculose. Também é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma “não-filosofia”. Acreditava que os seres simplesmente são, e nada mais: irritava-se com a metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida.

Poema XX de ‘O guardador de rebanhos’

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

(…)

Poema do Menino Jesus

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem 

“Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes”

Pessoa também era Ricardo Reis, um médico que se definia como latinista e monárquico. De certa maneira, simboliza a herança clássica na literatura ocidental, expressa na simetria, na harmonia e num certo bucolismo, com elementos epicuristas e estoicos. O fim inexorável de todos os seres vivos é uma constante na sua obra, clássica, que é finamente depurada e disciplinada.

Para ser grande, sê inteiro: nada

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Anjos ou Deuses 

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos,
A visão perturbada de que acima
De nos e compelindo-nos
Agem outras presenças.
Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem,
Os coage e obriga
E eles não nos percebem,
Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem E nós não desejamos.

“O coração, se pudesse pensar, pararia”

Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio Livro do Desassossego, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Conheceu Fernando Pessoa num pequeno restaurante frequentado por ambos. Foi aí que Bernardo deu a ler a Fernando seu livro, que, mesmo escrito em forma de fragmentos, é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX. Bernardo Soares é muitas vezes considerado um semi-heterônimo porque, como o próprio Pessoa explica: “Não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade.”

Do Livro do Desassossego:

“O coração, se pudesse pensar, pararia.”

“Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

“O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”

Também era Fernando Pessoa:

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

(…)

Mar Português

“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu”

Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

(…)

.oOo.

Fernando Pessoa publicou quatro obras em vida, três em língua inglesa. Mensagem foi o único publicado em língua portuguesa. Ele ocupou diversas profissões. Foi editor, astrólogo, publicitário, jornalista, empresário e crítico literário. Ficou órfão de pai aos 5 anos de idade, o que obrigou a mãe a vender parte de seus bens e mudar-se para uma residência mais modesta. Ela se casou pela segunda vez em 1895, por procuração, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban (África do Sul), que havia conhecido um ano antes. Foi na África que o poeta passou a maior parte da juventude e recebeu educação inglesa, primeiro num colégio de freiras e depois no Durban High School.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

Em 1901, escreveu seus primeiros poemas em inglês. No ano seguinte, voltou com a família para Lisboa. Porém, em 1903, Fernando retornou sozinho para a África do Sul, mais exatamente para a Durban High School, onde fez um curso de contabilidade e comércio, após ter sido um aluno brilhante no liceu nas disciplinas de Humanidades. Se a sua educação havia sido essencialmente humanista, o que o levou ao comércio? Provavelmente quis munir-se de conhecimentos práticos para ganhar a vida. Em 1905, de volta à Lisboa, matriculou-se na Faculdade de Letras, onde cursou Filosofia. Dois anos depois, abandonou o curso e, em 1912, estreou como crítico literário.

No campo profissional, do comércio, Fernando Pessoa nunca tentou ir muito longe. Foi um conformado empregado de escritórios, um guarda-livros como o seu heterônimo Bernardo Soares. Durante um período de sua vida, produziu textos sem grande brilho para a “Revista de Comércio e Contabilidade”. Na verdade, Pessoa ganhava a vida mais como tradutor de inglês de cartas comerciais. Desempenhava esta atividade para várias casas comerciais, aproveitando-se da dependência de Portugal em relação a Inglaterra.

Em 1925, passou a trabalhar também na área de publicidade e propaganda. Mas a experiência não foi bem sucedida. Em 1927, o poeta criou um slogan para a Coca-Cola, que estava sendo lançada em Portugal. O slogan dizia: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Foi rejeitado.

“Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”

Considerado hoje um poeta genial, colocado na lista de Harold Bloom como um dos 26 melhores e mais influentes escritores de todos os tempos, não mereceu a atenção de seus contemporâneos. Teve dificuldades para publicar seus versos, o que o levou a encher um baú de escritos, tesouro inestimável da literatura mundial.

Este baú, — de mais de 27 mil folhas — foi comprado pelo Estado português em 1979 e depositado na Biblioteca Nacional. Eles vêm sendo estudados e divulgados por uma equipe coordenada por Teresa Rita Lopes, com o apoio da editora Assírio & Alvim. São ensaios, mais de mil poemas dos três grandes heterônimos, um semi-heterônimo desdobrado em dois (Vicente Guedes e Bernardo Soares), mais de setenta pequenos heterônimos sem obra consistente, cartas, contos, teatro, textos políticos, notas, etc. É a obra do fingidor, do polêmico, do cria­dor de vanguardas, do ocultista, do poeta dra­mático, do poeta das quadras populares e do questio­nador em busca de ser, que foi tanto a sua criação que se perdeu de si mesmo.

“As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser / Ridículas”

A importância de obra de Pessoa é inequívoca e está comprovada pelas inúmeras reedições, citações, trabalhos acadêmicos, biografias e homenagens. A maior deles talvez tenha sido prestada por José Saramago, autor de O ano da morte de Ricardo Reis, baseado livremente na “vida” deste heterônimo. O poeta mexicano Octavio Paz disse que nada na vida de Pessoa é surpreendente, nada, exceto seus poemas. Na comemoração do centenário do nascimento de Pessoa, em 1988, o seu corpo foi trasladado para o Mosteiro dos Jerônimos, dando-lhe o reconhecimento que não teve em vida. Em Pessoa, coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista. Algumas das suas composições dão continuidade ao lirismo português, com marcas de saudosismo. Outras iniciam o processo de ruptura do modernismo, o que se concretiza nos heterônimos, mesmo que a música da poesia de Fernando Pessoa esteja tanto no tradicionalista como no modernista.

Logo após a morte do poeta, seu irmão João fez uma conferência e afirmou que ninguém na família adivinhava que Fernando Pessoa, “uma pessoa muito inteligente e muito divertida”, “resultaria em génio…”. A verdade é que o mundo também levou muito tempo para descobrir.

Dois Poemas para Shostakovich

Dois Poemas para Shostakovich

O primeiro, de Anna Akhmátova:

Música
Para Dmitri Shostakovich

Algo de miraculoso arde nela,
e fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar,
depois que todos os outros ficaram com medo de se aproximar.
Depois que o último amigo tiver desviado o olhar,
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores tivessem começado a falar.

2. O segundo, de Fernando Monteiro:

O dia 24 era um domingo e no dia seguinte, 25 de setembro de 2006, minha filha completaria doze anos. No mesmo dia, o mundo musical comemorava os cem anos de nascimento de Dmitri Shostakovich. Lá pelas tantas, naquele tranquilo domingo, resolvi olhar os e-mails e havia um do escritor pernambucano Fernando Monteiro.

Era um poema, uma litania que Fernando escrevera e dedicara a mim — seu geograficamente longínquo amigo — e a Bárbara. Fiquei honradíssimo com a dedicatória, li o poema para minha filha e aquela Litania nos cem anos de Shostakovich acabou publicada em alguns jornais. Lembro que planejei fazer referências a estas publicações, mas nunca as fiz.

Hoje, ao procurar uns papéis, encontrei a Litania grampeada a outros dois papéis: um da imagem de uma página de 23 de fevereiro de 2007 do caderno “Anexo – Ideias” do jornal A Notícia de Joinville, onde a Litania tinha sido publicada, e outro, um e-mail de Fernando, explicando-me que as alusões “venezianas” do poema – detritos, crianças, gradis, febre, scirocco -, eram uma homenagem a Mahler que, para ele, é o que Shostakovich é para mim.

Fernando, digo-te que meu coração musicalmente promíscuo coloca Mahler ao lado de meu amado Shostakovich…

Antes de escrever este post, examinei demorada e amorosamente a primeira folha, a da litania sozinha, onde há a linda e enorme letra infantil de minha filha. Bem sobre o B.R., ela escreveu Bárbara Ribeiro.

Litania nos cem anos de Shostakovich
Para M.R. e B.R.

O torso de beleza afastando-se
Como se afasta um afogado
Das margens da praia
Também recuada para trás
De onde o Mediterrâneo
Vinha beijar os pés das sílfides,
Debaixo do sol silencioso.

Abandonados pelas crianças,
Os brinquedos da marina
Zunem de calor no metal
Aquecido como as águas.

O planeta está mais quente
E mais enlouquecido
Entre os pios nublados
Do pássaro escondido
Em árvores molhadas
Da chuva ácida que se filtra
De um céu de tempestade.

Aviões caíram nesta manhã,
Levando passageiros
Para o fundo de uma laguna
E o nenhum lugar da selva
Remota que irá retomar
Seu espaço sobre azulejos
Encardidos e embalagens
Não-degradáveis
Num mundo que prefere o desastre.

Tudo o prenuncia, de certa forma,
E nada está perdoado
Nem foi esquecido
Com todas as coisas que já foram
E com aquelas que ainda serão
Ou que apenas dormem na tarde
À espera dos anos sem emoção.

Os humanos repousam
No sono da sombra de toldos
Estalando na Veneza insalubre
Deste lado do Atlântico
De exímios nadadores
que não viram as crianças
Se afogando.

Sim, eu prefiro estar
Por apanhar um resfriado
Antes da peste
No limite da cerca-viva
De mato e detritos do lixo
Avançando até o antigo gradil
De gladíolos brancos.

É minha a opção de não manter
A saúde, fumar e perder esperança
Na vigilância sem objeto,
Exposto ao vento da tarde,
Ao siroco da mente
Igualmente desistindo
Das perguntas a ninguém
Muito depois de Pã
Anunciado como morto
Antes da morte dos mares.

Então, não importa molhar
Os sapatos da espuma de solfejos
Rumorejando as queixas do Adriático
Como outrora o mar dos gregos
Deixava leve gosto de salgado
Entre os artelhos limpos
De náiades banhando-se
Nos oceanos mitológicos
Que hoje são de plástico
Cor de chumbo.

Dmitri Shostakovich (1906-1975)

Meus livros (Mis libros), de Jorge Luis Borges

Meus livros (Mis libros), de Jorge Luis Borges

Mis libros (que no saben que yo existo)
son tan parte de mí como este rostro
de sienes grises y de grises ojos
que vanamente busco en los cristales
y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
pienso que las palabras esenciales
que me expresan están en esas hojas
que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
me dirán para siempre.

.oOo.

Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevi.
Melhor assim. As vozes desses mortos
Me falarão para sempre.

Este poema de Drummond deveria ser estudado nas escolas

Diz muito sobre nosso tempo bolsonarista.

~ Morte do leiteiro

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Carlos Drummond de Andrade, de A Rosa do Povo (1945).

A autoimolação de Valéri Kosolápov ao publicar Babi Yar, de Ievguêni Ievtuchenko

A autoimolação de Valéri Kosolápov ao publicar Babi Yar, de Ievguêni Ievtuchenko

Por Vadim Málev, em 10 de junho de 2020
Texto de Milton Ribeiro a partir de tradução oral de Elena Romanov

Valéri Kosolápov

Hoje é o dia dos 110 anos do nascimento de Valéri Kosolápov. Mas quem é esse Valéri Kosolápov? Por que deveria escrever sobre ele e você deveria ler? Valéri Kosolápov tornou-se um grande homem em uma noite e, se não fosse assim, talvez não conhecêssemos o poema de Yevgeny Yevtushenko (Ievguêni Ievtuchenko) Babi Yar. Kosolápov era então editor do Jornal de Literatura (Literatúrnii Jurnál), o qual publicou corajosamente o poema em 19 de setembro de 1961. Foi um feito civil real.

Afinal, o próprio Yevtushenko admitiu que esses versos eram mais fáceis de escrever do que de publicar naquela época. Tudo se deve ao fato de o jovem poeta ter conhecido o escritor Anatoly Kuznetsov, autor do romance Babi Yar, que contou verbalmente a Yevtushenko sobre a tragédia acontecida naquela assim chamada ravina (ou barranco). Por consequencia, Yevtushenko pediu a Kuznetsov que o levasse até o local e ele ficou chocado com o que viu.

“Eu sabia que não havia monumento lá, mas esperava ver algum tipo de placa in memorian ou ao menos algo que mostrasse que o local era de alguma forma respeitado. E de repente me vi num aterro sanitário comum, que era como imenso sanduíche podre. E era ali que dezenas de milhares de pessoas inocentes — principalmente crianças, idosos e mulheres — estavam enterradas. Diante de nossos olhos, no momento em que estava lá com Kuznetsov, caminhões chegaram e despejaram seu conteúdo fedorento bem no local onde essas vítimas estavam. Jogaram mais e mais pilhas de lixo sobre os corpos”, disse Yevtushenko.

Ele questionou Kuznetsov sobre porque parecia haver uma vil conspiração de silêncio sobre os fatos ocorridos em Babi Yar? Kuznetsov respondeu que 70% das pessoas que participaram dessas atrocidades foram policiais ucranianos que colaboraram com os nazistas. Os alemães lhes ofereceram o pior e mais sujo dos trabalhos, o de matar judeus inocentes.

Yevtushenko ficou estupefato. Ou, como disse, ficou tão “envergonhado” com o que viu que naquela noite compôs seu poema. De manhã, foi visitado por alguns poetas liderados por Korotich e leu alguns novos poemas para eles, incluindo Babi Yar… Claro que um dedo-duro ligou para as autoridades de Kiev e estas tentaram cancelar a leitura pública que Yevtushenko faria à noite. Mas ele não desistiu, ameaçou com escândalo e, no dia seguinte ao que fora escrito, Babi Yar foi ouvido publicamente pela primeira vez.

Yevtushenko lê seus poemas. Nos anos sessenta, os poetas podiam reunir milhares de pessoas…

Passemos a palavra a Yevtushenko: “Depois da leitura, houve um momento de silêncio que me pareceu interminável. Uma velhinha saiu da plateia mancando, apoiando-se em uma bengala, e encaminhou-se lentamente até o palco onde eu me encontrava. Ela disse que estivera em Babi Yar, que fora uma das poucas sobreviventes que conseguiu rastejar entre os cadáveres para se salvar. Ela fez uma reverência para mim e beijou minha mão. Nunca antes alguém beijara minha mão”.

Então Yevtushenko foi ao Jornal de Literatura. Seu editor era Valéri Kosolápov, que substituiu o célebre Aleksandr Tvardovsky no posto. Kosolápov era conhecido como uma pessoa muito decente e liberal, naturalmente dentro de certos limites. Tinha ficha no Partido, claro, caso contrário, nunca acabaria na cadeira de editor-chefe. Kosolápov leu Babi Yar e imediatamente disse que os versos eram muito fortes e necessários.

— O que vamos fazer com eles? — pensou Kosolápov em voz alta.

— Como assim? — Yevtushenko respondeu, fingindo que não tinha entendido — Vamos publicar!

Yevtushenko sabia muito bem que, quando alguém dizia “versos fortes”, logo depois vinha “mas, eu não posso publicar isso”. Mas Kosolápov olhou para Yevtushenko com tristeza e até com alguma ternura. Como se esta não fosse sua decisão.

— Sim.

Depois pensou mais um pouco e disse:

— Bem, você vai ter que  esperar, sente-se no corredor. Eu tenho que chamar minha esposa.

Yevtushenko ficou surpreso e o editor continuou:

— Por que devo chamar minha esposa? Porque esta deve ser uma decisão de família.

— Por que de família?

— Bem, eles vão me demitir do meu cargo quando o poema for publicado e eu tenho que consultá-la. Aguarde, por favor. Enquanto isso, já vamos mandando o poema para a tipografia.

Kosolápov sabia com certeza que seria demitido. E isso não significava simplesmente a perda de um emprego. Isso significava perda de status, perda de privilégios, de tapinhas nas costas de poderosos, de jantares, de viagens a resorts de prestígio …

Yevtushenko ficou preocupado. Sentou no corredor e esperou. A espera foi longa e insuportável. O poema se espalhou instantaneamente pela redação e pela gráfica. Operários da gráfica se aproximaram dele, deram-lhe parabéns, apertaram suas mãos. Um velho tipógrafo veio. “Ele me trouxe um pouco de vodka, um pepino salgado e um pedaço de pão”, contou o poeta. E este velho disse: — “Espere, espere, eles imprimirão, você verá.”

E então chegou a esposa de Kosolápov e se trancou com o marido em seu escritório por quase uma hora. Ela era uma mulher grande. Na Guerra, ela fora uma enfermeira que carregara muitos corpos nos ombros. Essa rocha saiu da reunião, aproximando-se de Yevtushenko: “Eu não diria que ela estava chorando, mas seus olhos estavam úmidos. Ela olhou para mim com atenção e sorriu. E disse: ‘Não se preocupe, Jenia, decidimos ser demitidos’.”

Olha, é simplesmente lindo: “Decidimos ser demitidos”. Foi quase um ato heroico. Somente uma mulher que foi para a front sob balas podia não ter medo.

Na manhã seguinte, chegou um grupo do Comitê Central, aos berros: “Quem deixou passar, quem aprovou isto?”. Mas já era tarde demais — o jornal estava à venda em todos os quiosques. E vendia muito.

“Durante a semana, recebi dez mil cartas, telegramas e radiogramas. O poema se espalhou como um raio. Foi transmitido por telefone a fim de ser publicado em locais mais distantes. Eles ligavam, liam, gravavam. Me ligaram de Kamchatka. Perguntei como tinham lido lá, porque o jornal ainda não tinha chegado. “Não chegou, mas pessoas nos leram pelo telefone, nós anotamos”, contou Yevtushenko.

Claro que as autoridades não gostaram e trataram de se vingar. Artigos aos montes foram escritos contra Yevtushenko. Kosolápov foi demitido.

Aqui está o jovem Yevtushenko, na época em que escreveu “Babi Yar”

O que salvou Yevtushenko foi a reação mundial. Em uma semana, o poema foi traduzido para 72 idiomas e publicado nas primeiras páginas de todos os principais jornais, incluindo os norte-americanos. Em pouco tempo, Yevtushenko recebeu outras 10 mil cartas agora de diferentes partes do mundo. E, é claro, não apenas judeus escreveram cartas de agradecimento, o poema fisgou muita gente. Mas houve muitas ações hostis contra o poeta. A palavra “judeu” foi riscada em seu carro e, pior, ele foi ameaçado e criticado em várias oportunidades.

“Vieram até meu edifício uns universitários enormes, do tamanho de jogadores da basquete. Eles se comprometeram a me proteger voluntariamente, embora não houvesse casos de agressão física. Mas poderia acontecer. Eles passavam a noite nas escadarias do meu prédio. Minha mãe os viu. As pessoas realmente me apoiaram ”, lembrou Yevtushenko.

— E, o milagre mais importante, Dmitri Shostakovich me telefonou. Minha esposa e eu não acreditamos, pensamos que era mais um gênero de intimidação ou que estavam aplicando um trote em nós. Mas Shostakovich apenas me perguntou se eu daria permissão para escrever música sobre meu poema.

Shostakovich e Yevtushenko na primeira apresentação da 13ª Sinfonia de Shostakovich, em cuja primeira parte foi colocada o poema “Babi Yar”

Esta história tem um belo final. Kosolápov aceitou tão dignamente sua demissão que o pessoal do Partido ficou assustado. Eles decidiram que se ele estava tão calmo era porque tinha proteção de alguém muito importante e superior… Depois de algum tempo, ele foi chamado para ser editor-chefe da revista Novy Mir. “E apenas a consciência o protegia”, resumiu Yevtushenko. “Era um Verdadeiro Homem.”

Valéri Kosolápov
A lápide de Valéri Kosolápov

RIP

Você lê este poema e depois manda os racistas pra onde eles merecem ir

Você lê este poema e depois manda os racistas pra onde eles merecem ir

~ Casa dos Mundos Irrepetíveis ~

Se digo mãe, digo Itália; se digo avó, digo ilha,
se digo bisavô, digo Galiza; se digo trisavó, digo França
um tetravô na Grécia outro em Damasco;
um perdido na Índia cigana outra nas ruas da Palestina,
se chegar aos décimos avós sou de todos os lugares,
venho de todas as origens, concebido em todas as religiões;
venho de um pirata e seguramente de uma puta,
de um marajá e de uma cortesã, uma geisha
e um traficante de sedas; uma amazona das estepes
e um boiardo; um vizir e uma poeta,
família de assaltantes nos idos dos avós doze,
marinheiros das austrálias, perdidos nos infernos
de ser gente do mundo e no mundo parental
chego depois de várias incidências
a esta Lisboa remodelada; na Mouraria um primo
outro no Quartier, uma prima no Magrebe
outra em Moscou e mais uma no Congo
e milhares no Brasil, o meu DNA é o mundo,
as minhas células do universo
sou um homem feito de mulheres em verso.
Nas minhas veias há um refugiado profundo
Afinal onde está o meu berço?

Luís Filipe Sarmento