Tô nervoso, porra

Vocês sabem como é, né? Não, vocês não sabem. O fato é que eu estou aqui aguardando a audiência e deveria estar na concentração para o jogo contra o Corinthians. O professor Tite me olhou no olho e me liberou meio que no bom coração. Mas me mandou voltar logo. Já está na hora, passou das 14h e o juiz não chamou. Tudo por causa daquele maldito processo de reconhecimento de paternidade que o gordo ali quis fazer quando todos sabem que a Nanda é minha filha.

Indagorinha mesmo, um débil mental me reconheceu e veio falar comigo. Queria saber se eu ia jogar, o que estava fazendo no Fórum, etc. Me deu vontade de responder que tinha vindo comprar pão. As pessoas acham que mandam na vida da gente. Todos acham isso. Ele me disse que era advogado, sócio do Inter, e, depois de me perguntar e reperguntar se eu estava bem para o jogo, me contou que o nome Corinthians veio da tradução inglesa do título de uma das epístolas (ou algo parecido) do apóstolo Paulo, que assim chamava os habitantes da cidade de Corinto, na Grécia, onde joga o Rivaldo. Ele terminou falando que Corinthians era como Maicosuel ou Uélinton — essa parte eu não entendi. Eu — bah! — estava interessadíssimo, só pensando se o Ronaldinho sabia que o nome de seu time era meio grego e ridículo… Com a graça de Deus o advogado chato sumiu e pude observar meus adversários.

Caralho, por que a Lúcia era tão puta? O primeiro que apareceu depois de mim era um magrão que eu não conhecia. Tinha cara de bom moço endinheirado. Vinha do shopping saber se tinha uma filha ou não. Calça de brim novíssima, tênis de atleta olímpico de alto rendimento, um blusão branco com o nome da loja estampado enorme e uns óculos caros e ridículos. Não era muito másculo, mas impressionava pelo investimento no visual, muito parecido com o da maioria dos jogadores. Acho que só pegaria a Lúcia se a bolinha viesse picando. Ah, Lúcia, meu amor, tão vadia. Abri o processo para descobrir o nome da figura: Juliano Martins. Esse não queria a Nanda, dizia desde o começo que teve “sexo casual” com minha mulher. Ela confirmou, mas fiquei na dúvida quando uma mulher mais velha, certamente sua mãe, chegou ao lado dele olhou para todos os lados e falou meio alto:

– Ué, a Lúcia não veio?

Melhor deixar para lá. O problema é o gordo, chamado Luís Fernando Antunes. Ele diz que a Nandinha é a cara dele e quer a guarda compartilhada. Na boa, é um cara muito mal-humorado e está puto com a situação. Na ação, disse que pagou a prótese de silicone da Lúcia, uma lipoescultura e alguns acertos no nariz que me fazem pensar em acertar o dele. Parece que tem testemunhas. Eu queria era levantar o beiço dele e bater só na gengiva. Ele é tão parecido com a Nanda quanto o Michael Jackson de qualquer fase. Se financiou as loucuras de Lúcia, se a deixou mais tesuda ainda, que fique sabendo que quem come a mulher e cria a filha sou eu. Nosso advogado me explicou a coisa assim: o gordinho seria uma espécie de “corno duplo”. É um fodido mesmo.

E eu estou aqui, nervoso. Amo a Nanda tanto quanto a Lu, vocês não imaginam. Tudo o que eu faço é para elas. Quando vim para o Inter, só pensava no carro absurdo que ia comprar. A primeira coisa que me preocupou no clube foi aquela lombada que tinha lá na Av. Beira-Rio. Como é que eu ia sair de lá na minha nave a toda a velocidade com aquela porra logo ali na saída? Desisti do carro esporte e comprei uma caminhonete que nem a do Guiñazu e mandei um troco para a família. Não sabia ainda o que me rondava.

Vi a Lúcia numa praça de alimentação. Ela estava com uma amiga. Estava linda num vestido rosa decotado. Achei que tinha direito àquilo. A sacana me sorriu de longe e eu, olha, eu nem sorri, acho que gargalhei, tal era o monumento que me dava bola. Para chegar foi fácil, a amiga dela sumiu e ela ficou me esperando. Enrolei uns dois minutos e levantei. Ela logo foi me dando lugar. A primeira coisa que me deixou maluco era que a beldade loira sabia tudo de futebol e era colorada. Tudo a ver comigo. É simplesmente inacreditável que ela tenha dado trela praquele gordo. O magrão, tudo bem, anda na moda, é bonitinho, coisa e tal, mas aquele balofo não tem nada a ver. Deixa eu ver aqui no processo: É “empresário”, o magrão é “estudante”. Vão se foder!

Aí começaram as viagens e eu acho que virei titular só pensando no que estaria fazendo a Lúcia. Nunca paro de ter ciúmes dela. Depois que a conheci, passei a treinar como o Guiña, só de ódio, pensando no que a Lu não aprontaria enquanto eu estivesse quarando na concentração. Ela gosta muito da coisa; se um dia ela enfiasse a língua numa tomada lá de casa, estouraria a rede elétrica do condomínio inteiro; se põe os olhos em alguém, é pau duro na hora. Tem que ter preparo para ela. E me aparece aquela figura roliça para me encher o saco… Como é que ela não desmontou ele? Pois montar é com ela mesmo, e aí a gente fica olhando aquela coisa perfeita em cima da gente e é uma desgraça. E, nos outros momentos, tem a Nanda, a minha queridinha. Ela é quem faz questão de ir aos jogos me ver. Ela é que se apavora quando eu caio. Ela foi a homenageada quando fiz meu primeiro gol depois de mais de trinta partidas como titular. Minha função não é a de fazer gols, mas me pifaram, fiz um e apontei para ela nas cadeiras. Sei onde elas sentam.

Até o mês passado, tudo era maravilhoso. Ganhávamos de todo mundo, aí o professor inventou de “poupar” jogadores. Eu não quero nem saber, gosto e preciso de dinheiro e por mim jogava todas. Mas o negócio de treinar mais e jogar menos acabou desentrosando o time, que hoje perde para todo mundo. Ganhamos domingo, mas eu não estava jogando. Olha, nem sei se a Lu e a Nanda devem ir amanhã. O jogo tem tudo para ser arrastado, com os corintianos fazendo o tempo passar e com a merda do Ronaldinho só esperando uma chance. Tô nervoso com o jogo, claro, e tô nervoso com o processo. Aliás, já pensou se amanhã a Nanda fosse ao jogo com o roliço? Ah, eu dava um soco naquele Elias. E se o cara for gremista e ficasse se empanturrando com ela na frente da TV, dando risada da nossa cara? E a Nanda? Não vai ser ouvida só porque tem 3 anos, caralho? Ela me adora e eu adoro ela!

Putz, eu tenho que voltar para a concentração. O professor vai me matar. Ainda bem que ele viu que isso é importante e sabe como eu sou com a Nandinha. O que a Lu viu naquele saco de gordura? A conta bancária? E a Nanda, o que acharia dele? Criança é volúvel e ela é filha da Lúcia, que parece gostar de todo mundo. Naquele dia do shopping, ela deixou o carro dela no estacionamento e fomos na minha caminhonete para o motel. Ela é louca mesmo. Vi que tinha ficado impressionada com minha BMW preta. Foi uma tarde e tanto. Vi estrelas naquela cama e mais ainda na banheira de hidromassagem. Numa hora, Lúcia ficou em pé para sair e vi seu corpo perfeito e molhado, com todas as curvas aumentadas e refletidas pela luz do quarto. Uma corpo daqueles escraviza o homem. Será que não vão considerar que amo a Nanda e sou tão ciumento dela quanto da mãe? Daria tudo para que ela fosse filha do magrão babaca, o filhinho da mamãe.

Era o destino, já no primeiro dia enquanto a via sair da banheira de hidromassagem, notei uma pequena barriguinha. A Nandinha já estava ali, com os choros e risadas que conheci depois. Conheci as duas juntas no mesmo dia, entende? Ela simplesmente não tem nada a ver com aquele babaca gordo tipo Ronaldinho.

Mas estão nos chamando para dar o resultado do exame.

Vidas de Santos: São Pedro Claver de Cartagena das Índias

Para A.B.C. e adega de H.O.

São Pedro Claver (1580-1654), nascido na Catalunha, é um grande exemplo para a humanidade. Ele entrou na Companhia de Jesus aos 21 anos a partir da enorme influência que sofreu de Alfonso Rodriguez, porteiro do Colégio de Mallorca. Ordenado sacerdote em 1616, quando já em missão na Colômbia, exerceu até a morte um difícil apostolado entre os escravos negros de Cartagena, importante porto daquele país. Converteu e batizou mais de 300.000 escravos.

Quando os negros chegavam da África nos fétidos porões dos navios negreiros e eram loteados entre os compradores, sempre sobravam alguns que não serviam para nada, na opinião dos clientes. “Muito fraco!”, “Doente!”, “Maus dentes!”, “Gangrenado!”, “Mutilado!”, “Inútil!”, gritavam os senhores adquirentes para os pobres africanos que não os entendiam. Mas São Pedro Claver pensava diferente. Os doentes, os magérrimos e os enlouquecidos pelo sofrimento eram aqueles sobre quem o santo trabalharia para mostrar a grandeza do Deus romano àqueles bárbaros incultos. Eles eram recolhidos pelo dedicado Pedro pelas ruas úmidas de Cartagena. Outros, mesmo lazarentos e magros, eram comprados a baixo custo pelo olho clínico do santo, que lhes antevia um longo porvir.

Primeiramente, Pedro tentava recuperá-los para o trabalho. Muitos, apesar das novidades — alimentação, local seco para dormir e tratamento vip –, morriam e eram lamentados rapidamente em latim antes de irem para a vala comum. Outros, para a felicidade dos missionários e grandeza de Deus, recuperavam-se e podiam voltar a trabalhar. Porém, sobre todos ele, sem exceção, Pedro fazia seu trabalho de evangelização, ensinando-lhes latim e mostrando-lhes os ensinamentos e os caminhos de Cristo. Muitas vezes, ao observar o estranho rebanho de negros agradecidos — muitos seminovos em perfeito estado, alguns mancos e outros com seqüelas piores –, o coração de Pedro Claver confrangia-se.

Havia os que recuperavam inteiramente suas forças. A estes, era imediatamente concedida a graça do retorno ao mercado de trabalho. Ficavam ativos com a finalidade de demonstrar suas qualificações aos compradores potenciais. Orientados pelos padres, trabalhavam na construção de mais Casas do Senhor, pois, na inculta região onde estavam, não havia ainda igrejas belas e ricas através das quais podia-se sentir com maior plenitude a Glória do Deus de Roma. Aquilo funcionava como um grande show-room: os negociantes viam os negros na labuta, examinavam o resultado de seu trabalho conjunto, davam uma rezadinha básica e fechavam ou não a compra. Aquelas transações tinham o claro sentido de aumentar o capital da igreja para a Glória de Deus. Aos outros, mutilados, incapazes ou fracos, eram ministrados maiores latinórios e permaneciam com os missionários. Serviam para muitas tarefas. Alguns, de constituição delicada, serviam a Deus como faxineiros, trabalhavam nos jardins ou tornavam-se assessores pessoais dos padres.

Claro que as maledicências não tardaram. Um português dono de uma pequena frota de navios negreiros, chamado Beonardo Bofe, ficou muito enfurecido com a venda de material recondicionado (que considerava em parte seu) e quis acabar com aquilo denunciando as ações do santo. O único resultado que obteve foi o de ser silenciado pelo fogo santo dos representantes de Roma. Como ganho secundário, viu — aqui, o verbo ver é utilizado de forma severamente metaforica pelo autor destas linhas — o nome de seu opúsculo figurar no Index Librorum Prohibitorum.

Porém, as ruas quentes de Cartagena eram mais difíceis de controlar e irrefreáveis comentários passaram a dar conta de que São Pedro Claver costumava utilizar os negrinhos mais delicados e coleantes numa espécie de harém sem mulheres montado às margens do Caribe. Também as más línguas de Cartagena acusaram os padres de fazerem entrar no recinto “dominado pelo Diabo” — e certamente imaginário, pois gente inculta, ignorante, má e faladora encontra-se em todos os cantos desse mundo dominado por Deus -– os filhos mais bonitinhos dos escravos. Os comentários maldosos diziam que os negrinhos despiam-se para os padres, mas creio seja absolutamente natural o fato de que religiosos analisem detidamente a perfeição da maior criação divina, o homem, representada por seus mais belos espécimes. Estou aqui com toda a documentação necessária para rebater as acusações que se fizerem ao santo. Há registros fidedignos de aulas e mais aulas de religião e latim que os pequenos efebos recebiam. Tenho comprovações de que eles, quando cresciam e terminavam sua formação religiosa, diziam frases em latim, divertindo-se pelas ruas. Anotações autênticas daquele período demonstram que os meninos recitavam ladainhas como Vox Copuli e Pubis Pro Nobis e acabavam trabalhando em casas de reuniões noturnas freqüentadas por navegadores e negociantes daquele mar. Serviam, na verdade, como intérpretes da babel de línguas que aquelas casas recebiam. A apreciável técnica da tradução por chuchotagem principiou naquela época, em plena Colômbia caribenha. Tudo isto é atestado por farta documentação que não mostro aqui por falta de espaço.

A prova maior era que na Casa dos Negrinhos não entravam prostitutas. É óbvio que aqueles bem formados e torneados jovens africanos não tolerariam a presença do pecado morando ao lado.

É, portanto, notável a contribuição de São Pedro Claver no desenvolvimento da região de Cartagena, conforme podemos conferir a seguir através de suas principais realizações, que esquematizo para que nossas crianças possam abordar com maior facilidade a vida deste grande santo:

1. Recuperou milhares de negros doentes e mutilados.
2. Construiu grandes obras que aumentaram o patrimônio da Igreja Católica.
3. Aqueceu a economia local com negros recondicionados.
4. Salvou negros que morreriam por falta de um responsável.
5. Formou como tradutores-intérpretes os negros jovens mais agradáveis que chegavam machucados à Cartagena. Especialidade: a difícil arte da chuchotagem.
6. Converteu e batizou 300.000 escravos.
7. Inventou a sauna.

Porque hoje é sábado, Marianne Faithfull

Escolha da modelo e das fotos: Bernardo Ribeiro, filho deste que vos escreve.

Se há algo que Mick Jagger sempre deixou claro para o mundo é que, …

… em sua Pasárgada, pode ter a mulher que quiser, na cama que escolher.

E a primeira beldade com a qual teve longo relacionamento foi Marianne Faithfull.

Misto de cantora — uma voz comum no ano em que tirou estas fotos, o de 1964; incomum depois — …

… e atriz, Marianne foi para mim o rosto da swinging London. Achava-a e ainda a acho …

… maravilhosamente sexy. A transformação que ocorreu na voz de Marianne após …

… seu longo período de viciada, é algo que as campanhas antidrogas não deve mostrar às crianças.

Nossa, os dez anos de tratamento para se livrar das drogas melhoraram muito sua voz!

Seu LP Strange Weather (1989) merece status de obra de arte.

Marianne Faithfull envelheceu com vaidade e dignidade. Não fez grandes plásticas, …

… apresentando hoje rugas, barriguinha e orgulhosos peitos erguidos sabe-se lá como.

Gosto das pessoas que envelhecem mantendo o pique iconoclasta e rebelde.

Vejo mil exemplos de gente que, ao chegar aos 50, parece não preservar a inteligência, …

… curvando-se a vagos ressentimentos e ao politicamente correto, nossa nova ditadura.

Tenho um exemplo claríssimo, mas hoje é sábado… Vejam Marianne Faithfull abaixo, trovejando num vídeo relativamente recente. A canção é a multigravada Working Class Hero, de John Lennon.

Michael Jackson é um vírus / Semelhanças

Sim, e meu antivírus já ficou todo eriçado com a possibilidade de ele penetrar em meu notebook, mesmo ele sendo um Dell púbere de mais de três anos.

Michael Jackson era um gênero de ruína moderna que nunca conseguiu me interessar. Mesmo com toda a sedução que a palavra “decadência” possui para todos os leitores, Jackson parecia estar em outro mundo, só compreendido por Liz Taylor e seus fãs. Além do embranquecimento, do nariz de múmia, das bolhas (pois ele dormiu em bolhas de vidro numa época, não?), de balançar bebês em sacadas, de comprar e perder os direitos sobre a obra dos Beatles, das acusações de pedofilia, do casamento com a filha de Elvis Presley, do seu sítio Peter Pan-like, do casamento com sua enfermeira e de um monte de loucuras, pijamas, roupas, fantasias e excentricidades, o que havia nele? Ah, também tinha sua belíssima dança e, lá atrás, bem lá atrás, talvez alguma música.

Delas só consigo lembrar de Thriller e Black or White e mesmo assim só acho legal os videoclipes. Caetano Veloso costumava cantar Billy Jean, porém, francamente, nunca entendi direito a melodia, até porque nunca ouvi o original. Sou um ET que quase só ouve eruditos — agora mesmo estou ouvindo Fasch — e jazz. Além do mais, não compreendo um negro que fica branco, alegadamente em razão do vitiligo. Aliás, toda sua figura transformada por operações, mais a roupa, o rancho e a cobertura insistente da imprensa, sempre me mostraram que Michael era um jeca enlouquecido.

O fim de Michael Jackson e o de Farrah Fawcett, aos 50 e 62 anos, não me causam nenhuma comoção, mas fico encasquetado com uma coisa: são ídolos que explodiram quando eu já tinha idade para rejeitá-los. Ou seja, são pessoas para mim muito jovens e próximas de meus 51 anos.

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Ontem, estávamos vendo As Confissões de Henry Fool e meu filho apontou semelhanças entre:

O ator James Urbaniak (figura comum nos filmes de Hal Hartley) e Dmitri Shostakovich

De novo, como contraprova:

E, em linha menos artística, Mahmoud Ahmadinejad e eu:

Para que recontar os votos, porra?

Bloomsday

Sim, claro, eu sei que o Bloomsday já passou há exatamente uma semana. Eu tinha reservado as duas fotos abaixo para publicar no dia 16 de junho, mas me esqueci… Hoje, já que não consegui preparar um post devido às arrumações no blog, publico as duas fotos de Marilyn Monroe lendo Ulysses. Para minha pouca surpresa, vários blogs ingleses fizeram isto na última terça-feira. Até parece que as fotos de Eve Arnold são recentes…

O estranho é que muitos duvidam que Marilyn tenha lido Ulisses. Mais estranho ainda é que Ulisses permaneça com a aura de livro impenetrável, difícil. Há enigmas no romance? Sim, e como! Dizem que leva-se em média 100 anos para compreendê-lo inteiramente… Mas, como escreveu o Idelber:

Não se deixe levar pela fama de “difícil” do livro: poucas vezes escreveu-se coisa tão engraçada, escandalosa, divertida e sexual como Ulisses. Em cada diálogo, cada cena, cada capítulo, mil sentidos. O treco não acaba nunca.

Além do mais, a foto, de 1955, é do ano anterior em que ela casou com o dramaturgo Arthur Miller. Eles já estavam “dating”. Com ou sem Miller, Marilyn poderia ler Ulisses. Porém, como suponho que o casal falasse também de arte, fantasio que Miller tenha sugerido o livro a Marilyn. E depois sou eu o preconceituoso…

O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov / O irmão de Sergio

E então nós íamos conhecer o tal do monte da cidade mais plana que conheço, Montevidéo. Estávamos no carro de nossos amigos uruguaios Roberto Markarian e de sua mulher, Ana Ferrari. Foi quando eu disse que, na noite anterior, eu tinha assistido à peça que nos fora indicada por eles. Markarian virou-se, perguntando o que tínhamos achado. Estávamos entusiasmados com a montagem uruguaia e eu disse que lembrava de O Jardim das Cerejeiras como uma história de confronto aberto entre o ex-mujique — agora endinheirado — e a velha e decadente aristocracia. Roberto respondeu:

— Não, é tudo muito sutil, Milton. Porém, o conteúdo ideológico da peça é dos mais claros.

Ana concordou. Não havia muito a dizer sobre o grande texto de Tchékhov.

Conheço Roberto Markarian há mais de vinte anos. Ele morou na casa de um casal de amigos meus durante um bom período, nos anos 80, enquanto escrevia sua tese de doutorado na UFRGS. É um sujeito engraçado, inteligentíssimo e que parece conhecer tudo. Matemático conhecido no mundo inteiro (pelos matemáticos), teve sua carreira interrompida pela ditadura militar uruguaia, que preferiu vê-lo preso. Aos 36 anos, em 1983, ele apareceu em Porto Alegre a fim de recomeçar as atividades em sua área, após 10 anos de inatividade. É daquelas pessoas que qualquer um gostaria de ter como amiga. Sempre sorrindo e contando coisas com graça, Markarian é gentil até para discutir. Lembro que uma vez ele defendeu a tese, para mim indiscutível, da superioridade da literatura em língua espanhola sobre a de língua portuguesa. Contra bobos protestos nacionalistas, permaneceu tranqüilo, rebatendo facilmente os contra-ataques. Com a convivência soube também de sua família. Surpreendi-me com a profissão de seu irmão: técnico de futebol.

Sim, meu amigo Roberto (acima) é irmão de Sergio Markarian. Então aquele matemático que se vestia como um alguém muito pobre — sempre usando uma estranha combinação de chinelos de dedos, bermudas e camisas de manga curta, mesmo para sair à noite; aquela figura latinoamericana para quem os outros sempre faziam o movimento de pagar seu ingresso, seu restaurante, seu deslocamento, fato que, na verdade, nunca o vi permitir ocorrer (não por orgulho idiota, mas porque não precisava); aquele armênio hispano hablante que não se interessava de modo nenhum por esportes, era irmão de um técnico de futebol de sucesso? Estranho.

Pois é. Sergio Markarian (ou Sergio Apraham Markarian Abrahamian), assim como o hoje mundialmente famoso matemático Roberto -– não, repito, não é exagero –, sempre obteve sucesso como entrenador. Foi técnico do Olímpia entre 1983 e 1986, do Cerro Porteño entre 1990 e 1991, da Seleção Paraguaia na Copa de 1992 e novamente entre 1999 e 2002, do Panathinaikos que chegou às quartas de final da Liga dos Campeões em 2004 e da Copa da UEFA em 2003, esteve no Libertad eliminado pelo Inter na Libertadores de 2006 e agora está no Universidad do Chile, La U. Sem dúvida, uma tremenda carreira.

Lembro da figura do irmão de Roberto ao lado do campo enquanto sofríamos para vencer o Libertad de Guiñazu. Ele ficava tranqüilo enquanto Abel esbravejava. Eu pensava que, se Sergio fosse como o irmão — que estudava a Teoria do Caos –, poderia repentinamente fazer qualquer coisa para embolar nosso meio de campo como bolas de bilhar movimentando-se sem atrito. Mas quem realizou a mágica foi Alex, num tiro comprido e enganador. Sergio reagiu balançando a cabeça como quem diz tsc, tsc, tsc. É, Roberto é melhor.

Nunca falei com Sergio, mas cito sempre seu nome quando penso em substitutos para os técnicos do Inter. Seria uma questão de simetria receber outro Markarian.

Porém, quando comecei a divagar, estavávamos no carro indo para o monte que deu nome à cidade. Roberto já contava que, na noite anterior, eles tinham ficado até às 4 da manhã numa festa em que a atriz que fazia Duniacha na peça, a criada de quarto, chegara logo depois da montagem que víramos. Soubemos que o casal Markarian dançara bastante ou, como literalmente dissera Roberto, tentara movimentar seus corpos de acordo com o que ouviam.

Porém, antes eu falava de Tchékhov. Lembram que eu, na semana passada, lera e “resenhara” A Gaivota e que o livrinho português continha outra peça, exatamente O Jardim das Cerejeiras? Pois é, eu tive o privilégio de relê-la logo após a peça e digo a vocês que é perfeita e sutil, sutil e sutil. E ideológica, ideológica e ideológica. A cara de espanto dos nobres que se negam a acreditar que sua familiar e tradicional propriedade foi para as mãos de um mujique é a cara de um mundo que absolutamente não deseja compreender e aceitar o futuro. E o trabalho que ele dará.

Ah, Tchékhov. Tudo isso em apenas 44 anos?

P.S.- Ana e Roberto, obrigado pelos encontros, pelos vinhos, pela compra dos ingressos, por tudo. E desculpem nossa demora em telefonar. Somos assim imprevisíveis, como Chaotic Billiards.

O poder dos extremos


Ronaldo: “Hoje posso ir tranquilo pra balada”

Desde sempre digo que os jogadores que mais admiro e os mais importantes do futebol são o goleiro e o centroavante. Ali, a coisa se decide. Se o miolo do Inter foi melhor, este foi morto pelos jogadores que iniciam e terminam o Corínthians. De um lado, o goleiro Felipe; de outro, Ronaldo Fenômeno. Eles tiveram poucas mas decisivas participações. Enquanto Taison perdia gols, Ronaldo, aproveitava uma de suas duas chances. Do outro lado, Felipe fez imensa defesa na falta batida por Andrezinho e salvou a bola de Taison, que resolveu chutar bem no canto que o goleiro cobria, sem ver que este deixara o lado direito aberto.

Será muito difícil reverter a situação aqui no Beira-Rio. Estarei lá sofrendo e me irritando. Do outro lado está nosso velho conhecido Mano Meneses: prevejo um jogo truncado, enrolado — o Corínthians sabe que, se fizer um gol, o Inter terá de responder com quatro. Foi um péssimo resultado que só poderá ser dobrado com uma atuação heróica, daquelas que depois serão vendidas em DVD. É altamente improvável. Se fosse corintiano, convidaria os amigos para verem o jogo e compraria bastante cerveja, pois a coisa está fácil.

De bom, tivemos o triste consolo de uma atuação digna, até ofensiva.

(Será que algum empresário bondoso não arruma um negócio para Alecsandro, Leandrão e Danilo Silva? E se o Napoli levar Nilmar, ficamos com o primeiro citado? Não quero nem pensar na possibilidade…)


Barbie mostra sua face mais terrível

Já a sorte sorriu ao Grêmio. Pegou o inexistente Caracas, empatou os dois jogos e classificou-se no regulamento pelo gol que marcou fora. Observo a Libertadores e, olha, são todos japoneses. Minha esperança é o Estudiantes de La Plata. É um time corajoso que possui o melhor jogador em ação no campeonato. É um velho meio-campista, outros terão de fazer os gols e as defesas por ele, mas é a única gema no mar de claras de uma Libertadores anormalmente fácil.

(Não digo isto para irritar os gremistas. Já houve outras Libertadores até mais fáceis. Aquela que o Once Caldas venceu parecia uma brincadeira).

Gostaria de ver um São Paulo x Cruzeiro de bom nível, mas será difícil. O São Paulo aposta nos seus grandalhões e o Cruzeiro num toque de bola previsível e que me causa sono. Acho que em La Plata o Defensor morrerá sem grandes dramas. A conferir.

Nuevo Rincón de Haikus, de Mario Benedetti

O haikai clássico (ou haicai, ou haiku) tem apenas 17 sílabas, com distribuição invariável em suas três linhas: a primeira com cinco; a segunda, sete; a terceira, cinco. Portanto, isto é um haikai:

cheguei ao fórum
com sede de justiça
num baio lilás

Foi o meu primeiro haikai. O meu não é, mas o haikai deve ser um poema mínimo, completo. Colocar em 17 sílabas uma dúvida, uma opinião, uma paisagem, uma ironia ou uma piada tornou-se um jogo para Benedetti, que escrevia haikais às pencas. Neste livro que comento, há 300, um por página. Li todos de enfiada, o que me deixou meio maluco, construindo um haikai a cada pensamento que me ocorre.

haydn inventou
o quarteto que bartók
tornou perfeito

as minhas sogras
sempre me adoraram
e eu a elas

É verdade, sempre tive sorte com sogras. Aliás,

à alzira, minha
sogra, prefiro chamar
de al jazeera

E ela nunca me processou.

Os de Mario Benedetti são infinitamente melhores e garanto-lhes que é muito divertido viajar sete horas ouvindo minha mulher recitar os haikais na estrada.

qual casamento
abriga em si amor
pós sete anos?

O nosso, sem dúvida! Eu ao menos acho, quem sabe, sei lá. Bom, eu digo que sim.

em montevidéo
algumas declarações
foram trocadas

E a Claudia é franca até demais. Bom, mas vamos ao Benedetti. Ele pode ser inteligente:

es casi ley
los amores eternos
son los mas breves

Sim, sim, mudou de categoria. Sai Milton, entra Mario. Ele pode fazer piada:

no hay laberinto
tan complicado como
los intestinos

Ser como todos nós:

cada cinco años
emborracharse un poco
tiene su encanto

Vejam como ele rouba um pouco: esse aí acima tem 6-8-6, o anterior, 6-7-5. Nos meus, tentei ficar nos 5-7-5 regulamentares. Mas como é poético!

todos tenemos
nuestro intenso y privado
apocalipsis

Mais poético ainda:

por ser secretas
las charlas del amor
son en voz baja

Pode advertir:

mujer lejana
si ja no te interesso
no me vigiles

Ser óbvio:

los periodistas
cuando preguntan tienen
ya la respuesta

Pode escrever coisas belas:

quisiera verte
cuando te quedas sola
a ver qué haces

Ser antirreligioso:

si un rayo mata
al toro / su vaquita
se vuelve atea

Dizer o que senti ao final da viagem:

cuando uno viaja
a veces le indigesta
tanto paisage

E o resto vai sem meus ruídos:

la patria es linda
sobre todo cuando uno
la recupera

me gustaría
mirarme en un espejo
que me mintiera

pobre ciervito
no tiene más remedio
que ser cornudo

el desexilio
es el manso reencuentro
con lo que fuimos

desde la foto
me miram cinco rostros
que ya non miran

los sordomudos
fueron son y serán
los más discretos

las profecías
suelen desintegrarse
en el futuro

en tiempos duros
no hay refugio más sano
que la tristeza

a tu vecino
confiésale secretos
pero de otros

prohibir um livro
es el modo más fácil
de promoverlo

los pies desnudos
saben por donde pisan
y donde pasan

quieras que no
en el bidet se lavan
viejos rencores

en el pretérito
pluscuamperfecto queda
lo que no fuimos

Preciso dizer que gostei do livro? Hein?

se não fui claro
podem me avacalhar (*)
em comentário

(*) Como estou sendo discretamente perseguido por feministas, explico. Acho que avacalhar é o melhor verbo aqui e desconheço um correspondente masculino. Se existir, mudo!

Da Beleza das Analogias e Simetrias (entre 1905 e 2005)

Porém, desde então, Gejfin foi morar no Rio…

1. Béla Bartók (1881-1945) foi um compositor húngaro.
2. Leandro Gejfinbein está vivo e é um blogueiro gaúcho, conforme vocês podem notar clicando sobre seu nome.
3. Tiago Casagrande também e é amigo do Gejfin.
4. Zoltán Kodály (1882-1967) foi um compositor húngaro amigo de Bartók.

Tiagón / Gejfin: Eu e o amigo-gêmeo Gejfin partilhamos da mesma fascinação pela memória humana. Pensar que cada pessoa tem uma História pessoal riquíssima, não importa quem seja ou onde vive, nossa – é o que os antigos definem como “muito louco”. Encontramos diversos pontos de contato quando começamos a conhecer a ficção um do outro; descobrimos que ambos usamos as lentes nada convencionais para observar o que está ao redor – pelo contrário, nos fascina o lado interno, a possibilidade escondida pela objetividade do dia-a-dia… E da ficção para os chopes de boteco, e deles certo dia imaginamos quantas histórias não estão enterradas pelas pequenas cidades do Rio Grande (só pra ficar dentro da nossa galáxia), à margem da capital, e logo, dos holofotes. Porque, mesmo que não haja glamour algum nisso, a verdade é que em algum momento nos perguntamos: o que as pessoas dessas cidades fazem quando a mídia não está olhando? E fomos curiosos o suficiente para ir lá espiar.

Bartók / Kodály: Em 1901, fascinados pela música do também húngaro Liszt, Bartók e Kodály tomaram consciência das relações de seu predecessor com a cultura popular da Europa Oriental. Ambos jovens compositores, resolveram estudar a música dos camponeses da região. Em 1905, Bartók pleiteou uma bolsa que lhes facultou recursos para recolher essas canções “em sua própria fonte” e partiu para anotá-las em companhia de Kodály. Então souberam que seus conhecimentos sobre tal assunto – e os de outros compositores – eram desfigurados, quase paródias da realidade. Na verdade, o que habitualmente se chamava de música cigana (tzigane) e danças húngaras não passavam de garatujas desengonçadas perto da caligrafia original.

Tiagón / Gejfin: Nossa idéia é compor ficção como um patchwork das diversas histórias e memórias colhidas. Não é um livro de curiosidades, é um livro sobre vida de pessoas, com a ressalva de que não é a nossa. Deixemos o encantamento para o leitor, a nós resta tentar ser o mais puros possível. Sua estrutura prevê que as pequenas cidades visitadas (no início, o parâmetro era 10 mil habitantes, mas reduzimos para metade) sejam capítulos, e junto delas, há um ensaio fotográfico. Em maio do ano passado fizemos a viagem-piloto: para Agudo, centro geográfico do Estado – embora a escolha tenha sido aleatória, na base do “e que tal…?” Jamais poderíamos imaginar tamanho êxito. Também pelos resultados práticos, mas principalmente pela sensação de olhar correspondido num flerte; chegamos lá querendo enxergar, e tudo abriu-se à observação e fruição. A acolhida foi fantástica. Conhecemos o interior da cidade, fotografamos, gravamos os diálogos entre nós; conversamos com as pessoas mais importantes e cheias de histórias da cidade, que, na verdade, poderiam ser qualquer cidadão. O cuidado que tomamos é o de deixar a curiosidade sobre “o outro”, “o estranho”, nos domínios da motivação de todo o esforço; mas na hora de transpor tudo que absorvemos, e mesmo a forma como absorvemos, há de ser a mais legítima possível, como se fôssemos também parte daquilo tudo desde sempre.

Bartók / Kodály: A partir de publicação das Canções Populares Húngaras, eles inauguram uma nova disciplina científica – a etnomusicologia. Nos anos posteriores, ampliaram seus progressivamente o horizonte geográfico de seus trabalhos: primeiro a Romênia, depois a Ucrânia, a Bulgária, até a África do Norte (Argélia e Egito) e a Anatólia (Turquia). Com o tempo, tornaram-se alvo da galhofa de certos críticos que não compreendiam a necessidade dos dois de alimentarem suas linguagens musicais com matéria viva. Estes críticos, ridicularizavam especiamente (e incompreensivamente) o último movimento da Música para Cordas, Percussão e Celesta, de Bartók, que hoje é uma das peças fundamentais do repertório erudito do século XX.

Tiagón / Gejfin: Voltamos a Porto Alegre com as sinapses lotadas de encantamento, mas não conseguimos transformá-las em texto. A experiência vivenciada repercute ainda hoje em conversa sim, conversa não; pequenos pedaços da viagem a Agudo seguidamente irrompem sobre a mesa de bar e criam lembranças de sorrisos divagantes. O projeto está interrompido por diversos motivos – um emprego fixo e verba são motivos nada originais, mas que se aplicam; mas também acho que há um frio na barriga causado pelo medo de que a próxima viagem não seja perfeita como a primeira foi. Além da viabilidade técnica para tocar o projeto adiante, precisamos romper a aura fantástica que se criou em torno do piloto.

Bartók / Kodály: O resultado, para a arte de Bartók e Kodály, foi um estilo originalíssimo. Em seus trabalhos, eles utilizavam elementos alheios à música da Europa Ocidental. Depois, conseguiram uma gloriosa união de seus estilos com o da grande tradição européia, sobretudo com Bach (caso de Bartók). Kodály foi um enorme compositor, porém – como os dramaturgos elisabetanos que tiveram o “azar” de serem contemporâneos de Shakespeare – foi sufocado pela genialidade do amigo Bartók. Bartók tornou-se subitamente célebre em 1911, quando da publicação da curtíssima peça para piano Allegro Barbaro. A música do povo era mais interessante, selvagem e intrincada do que qualquer scholar da época imaginava. O espírito científico de ambos não deve ser comparado ao dos compositores ditos “nacionalistas”, que se contentavam em tomar de empréstimo à música popular seus trejeitos para que suas obras ganhassem um colorido folclórico.

Tiagón / Gejfin: No momento em que conversávamos com nossos entrevistados, sentíamos um travo amargo – como um vinho tânico demais que passa dois dias na garrafa aberta. Porque embora jamais tenhamos nos revestido de uma posição oficialesca ou jornalística, soava ingrato e até injusto o fato de que macularemos os relatos com nossa ficção. As histórias, por si só, já são fascinantes o suficiente, e nos foram entregues com a paixão do protagonista; como evitar o medo de desapontar tantas pessoas? Não só pessoas, mas a própria história da cidade; pois não havia história simples. Nem o hotel – tu morrerias de rir se visse minha expressão no momento em que dona Eda me contou que o hotel onde estávamos hospedados, de sua propriedade, fora um hospital até os anos 40; e que a sala de tevê era, antigamente, a varanda onde os doentes tomavam sol – o que explicava as clarabóias improvisadas no teto. Pudéssemos, e sairíamos cobrindo todos os cantos de todas as cidades, escutando todas as histórias de todas as pessoas com o mesmo interesse e devoção, e transcrevendo-as depois para a eternidade das bibliotecas; porque na raiz somos apaixonados por colecionar a si mesmos, e disso vem a percepção de que todas as histórias são infinitamente ricas e multicoloridas, e que, sempre que alguma delas morre com alguém, o mundo fica um pouquinho mais árido.

Bartók / Kodály: Eles assimilaram o espírito da música camponesa, aplicando, ao criar, estruturas forjadas no conhecimento aprofundado dos esquemas populares. Descobriram, por exemplo, que a improvisação melódica se realizava por um processo que é o mesmo em todas as músicas populares: partindo de uma curta fórmula de base – que pode ser de apenas duas notas – os músicos vão ampliando progressivamente esta fórmula, e a elas retornam periodicamente no decorrer de uma peça, como se o fizessem para ganhar, a cada vez, um novo impulso. Este fato – que pode parecer uma simples definição do jazz – era desconhecido há 100 anos atrás. É inegável o mérito de Bartók de observar a realidade, depreendendo dela as leis internas de seu funcionamento para, então, empregá-las em suas obras, no sentido de que estas passassem a ser uma profunda reflexão.

Tiagón / Gejfin: Queremos reunir o material de três localidades para batermos em algumas portas – empresas patrocinadoras ou editoras – para realizar as outras sete viagens e publicar o livro. Há como ficar indiferente quando se tem nas mãos uma arte que tem como matéria-prima uma realidade distante, mas que se aproxima de qualquer ser humano na medida em que são coleções de pedaços de vida? Esse é o espírito. Queremos que o livro incentive as pessoas a fazer o mesmo consigo, praticando no seu próprio universo. Ter como retorno pessoas encantadas como nos encantamos por tudo isso. Acreditar que será possível nos move. Como pensar o contrário – que o encantamento é uma prática rara – dá medo. Vivemos conflitando essas coisas. Não raro os papos sobre o projeto chegam neste ponto, embora o fim da conversa sempre aconteça do mesmo jeito: “a gente sabe, né amigo, mesmo se nada disso acontecer – nem mais viagens, nem livro, nem nada -, pra gente, ter colocado câmera e gravador no carro e pegado a estrada rumo a Agudo, já valeu o que foi e será das mais incríveis experiências que vivemos”.

Observações finais: Bartók sentiu-se atingido quando o ministro da Educação Popular e Propaganda Nazista Goebbels, em 1936, organizou uma exposição de “Música degenerada” incluindo os nomes de Stravinsky, Schönberg e Milhaud. Escreveu ao ministro para que este inscrevesse seu nome e sua música nesse grupo. Depois, em 1938, chegou mesmo a declarar que pretendia converter-se à religião judaica como forma de ficar ao lado dos perseguidos. Expôs-se de tal maneira, que foi obrigado a aceitar os insistentes pedidos dos amigos – entre eles o de Benny Goodman – para que emigrasse, o que fez apenas em 1940. Foi para os Estados Unidos, onde morreu em 1945. Kodály viveu na Hungria até 1967. Além de compositor, era professor universitário e presidente da International Society for Music Education, da Hungarian Academy of Sciences e da International Folk Music Council.

Fontes consultadas: Leandro Gejfinbein e Tiago Casagrande escreveram a quatro mãos suas seções. As de Bartók e Kodály foram escritas por mim com o sempre providencial auxílio da memória de livros e discos e – muito mais importante – o da História da Música Ocidental de Jean e Brigitte Massin, um calhamaço de quase 1300 páginas, da Nova Fronteira, 1997 e o da Música da Modernidade de J. Jota de Moraes, Ed. Brasiliense, 1983.

A Gaivota, de Anton Tchékhov / O último a sair acende a luz, romance inédito de Marcos Nunes

É sabido que a leitura de livros russos oferece alguma dificuldade com os nomes dos personagens. Nas relações formais ele utilizam o sobrenome; nas informais, o nome; nas íntimas, um diminutivo carinhoso e, quando ficam irritados, vão de nome e patronímico. Li rapidamente, sempre em transportes coletivos, a peça A Gaivota de Tchékhov. Mesmo com a facilidade de ter sempre indicado o nome de quem fala, fiz a habitual confusão, toda hora tinha que voltar um pouco para me achar, pois os personagens falavam muito uns nos outros com diferentes nomes, sempre cheios de letras. (E a última vez que resolvi simplificar um sobrenome cheio de consoantes deu no que deu, né?).

Mais um parêntese: (comprei o volume na Beco dos Livros. Fora buscar o Auto da Barca do Inferno para minha filha e dei de cara com uma edição portuguesa de meu autor predileto. A Gaivota e O Cerejal (no Brasil, O Jardim das Cerejeiras) por dez pilas. Editorial Presença, Lisboa, 1963. Na hora de pagar, o dono da Beco me disse que o site MundoLivros é melhor do que a Estante Virtual porque na MundoLivros dá para pagar direto com cartão, como fazemos na Amazon e nos sites de grandes livrarias. Então, os portoalegrenses já sabem: a primeira opção é a Ventura Livros — Rua Marechal Floriano, 439, Centro, Fone 3226.7075 –; a segunda, a MundoLivros). Prometo que vou até o final sem mais parênteses, tá?

Apesar dos personagens debaterem-se com assuntos íntimos e problemas um tanto antiquados, A Gaivota nos dá um quadro muito claro de uma situação histórica. Uma vez, descrevendo os contos do Tchékhov, o escritor e tradutor Rubens Figueiredo disse que ele consegue nos sugerir, através de fatos e diálogos aparentemente simples, outras camadas de experiência. Isso é ainda mais supreendente se pensarmos que Tchékhov é um Bill Evans, isto é, não é um pianista cheio de dedos, via de regra é econômico, discreto. E esta magia parece amplificada em suas peças de teatro. São “audíveis” os subtextos que se movimentam durante os diálogos, ora indo ao encontro da fala e das opiniões que são ditas, ora indo em direção contrária, comentando silenciosamente sua tolice e inutilidade.

O último ato de A Gaivota passa-se dois anos depois da ação dos primeiros atos. É o clássico: na primeira parte é montado cuidadosamente um conflito que explode na tentativa de suicídio de Treplev, após uma desilusão amorosa e literária. Dois anos depois, temos um Treplev razoavelmente bem sucedido, porém casado com uma mulher que despreza, ainda sofrendo com a indiferença da mãe, uma atriz que só pensa em si e em manter seu caso amoroso — de uma forma muito parecida com a personagem de Debra Winger no recente filme O Casamento de Raquel. O desenlace é o desenlace que não vou contar. É simples e não é. Há todo um contexto que parece incontrolável como um mar em movimento. Não é o mesmo mar que sepultou os amigos de minha mulher — Rino Zandonai, Giovanni Lenzi e Luigi Zortea estavam no tal voo da Air France — na volta de Gaspar (SC) para a Itália, eles que tinham vindo rapidamente ao Brasil fazer o repasse de 22 mil euros para vitimas da enchente de 2008. O imprevisível mar de Tchékhov é aquilo que permanece em nossa mente após a leitura, levando vidas de cá para lá, ao acaso, à toa, sem finalidade alguma.

Hoje estou o rei dos tergiversadores.

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Costumo acompanhar meio de longe o grosso da produção literária nacional e de perto seus principais autores. Sei que O último a sair acende a luz é digno de publicação em qualquer lugar do planeta. Mas recuemos…

Marcos Nunes é um habitual comentarista deste blog. Ele me enviou seu romance. Se eu quisesse, leria. Comecei a gostar lá pelo terceiro capítulo. Na verdade, comecei a gostar muito, fato que persistiu até a última linha de um “.pdf” de letra horrivelmente pequena, pois o Marcos quis que eu economizasse em papel e tinta, pensando que meu oftalmologista fosse mais barato. A propósito, não sei dizer-lhes o tamanho que o livro teria com caracteres de tamanho normal, mas acho que dobrariamos as 139 que li.

O que faz um romance ser lido num concurso? Eu suponho que seja um bom começo. É como na Justiça. Um psiquiatra forense me disse que os juízes leem menos que 5% de um processo, eles dão só um “vistaço” (gíria utilizada pelo mesmo profissional). Isto é, informam-se sobre o que desejam os contendores, dão uma olhada nos títulos, no que está em negrito e julgam sem atentar a muitos detalhes. Os julgadores de concursos provavelmente agem da mesma forma. Se o começo não agradar, adeus. Só pode ser este o motivo pelo qual o romance de Marcos Nunes não se classificou nem para a segunda fase de um concurso literário: o primeiro capítulo não é digno do restante do romance. Então é provável que, assim como a maioria dos processos, seu texto tenha morrido na desídia do julgador.

Mas depois a coisa engrena. E como! Ontem, o Marcos escreveu a seguinte frase num comentário: “…só a ficção arranha a verdade. O resto é equívoco”. Tudo a ver. O último a sair acende a luz é um romance que cerca algumas verdades através de um grupo bastante grande de personagens, todos muito próximos do dinheiro — alguns nadando nele — do governo e de sua periferia: os meios de comunicação, os favores, os grandes e pequenos rolos. Se eu escrevesse que quase todos os personagens estão fazendo algum gênero de filha-da-putice, estaria dando uma impressão um tanto tosca de um texto muito sofisticado, então digo que em quase todos eles parece haver um filho da puta que acabará dando o ar de sua graça se tiver chance. Não sou muito de rir enquanto leio, mas Marcos conseguiu me arrancar algumas boas risadas, principalmente com as referências irônicas que faz a seu próprio texto, quase um ritual de fim de capítulo.

É um excelente livro que não busca desvios naquilo que conta. O que tem de ser dito, é dito com as palavras corretas e verossimilhança. O sexo é sexo e as intenções são as intenções. Naturalismo? Não, nem perto. O cinismo de alguns personagens e de suas trajetórias é tal que torna-se outra coisa. Não me façam recorrer aos gregos para explicar que uma das formas de se descaracterizar algo é recorrer à hipérbole, ou seja, intensificá-lo até o inconcebível. É o que ocorre aqui. A sinceridade, a clareza de alguns acontecimentos narrados pelos protagonistas, de seus planos e propósitos é tão clara que torna-se representação das posturas mais comuns de quem, afinal, manda em nós.

Cada capítulo, à exceção do último, foca sua atenção em um grupo de personagens cujo traço como é a fome, seja por dinheiro, poder e eliminação de obstáculos, seja pela Santíssima Trindade: beber, comer, foder. Isto segundo o autor, claro.

O Marcos me disse que eu me irritaria com o final do livro, onde ele dá um fecho nada tchekovniano à história. Nada disso. O final, apesar dos personagens não terem nada em comum com os de Truffaut, parece o fechamento de um de seus filmes. Câmera no alto, música paradoxal de Corelli, narração em off contando-nos o destino dos personagens, um homem à morte e uma última auto-referência do texto. Olha, gostei muito. Não, não serei processado por ter lido este.

A internet e as relações humanas

Os compositores de obras musicais costumam dar indicações quanto ao modo como deve ser tocada esta ou aquela peça. Entre cronistas não existe este hábito. Mesmo assim, aviso aos meus leitores que esta crônica deve ser lida con amore.

HERBERT CARO

Talvez esta seja uma experiência comum a muita gente, talvez não. Antes da Internet e, principalmente, dos blogs, eu utilizava muito o telefone. Conscientemente ou não, reservava horários noturnos para fazer longas visitas telefônicas aos amigos. Eram comuns os telefonemas de mais de uma hora onde exercitava meu razoável dom de escutar e minha discutível oratória. Nesta época, já ouvia uma crítica interna que advertia ter sido um erro grosseiro o quase ter abandonado as conversas que antes tinha em sebos e livrarias nos finais de tarde, assim como a tradicional discussão sobre música erudita na King`s Discos dos sábados pela manhã (onde recebia verdadeiras aulas quando jovem). O telefone, pensava, substituíra pobremente a observação da postura, do olhar e dos gestos dos amigos. É certo que tenho a sorte de possuir muitos amigos e nunca deixei de encontrá-los. Porém aqueles civilizados, alegres, gentis e “casuais” encontros em locais onde se podia jogar conversa fora sem maiores objetivos foi pouco a pouco substituído por vozes ao telefone.

O telefone impedia que se abrisse o leque de amizades como acontece nas livrarias e discotecas. Aos que já estão pensando que foram meus filhos os culpados disto, respondo que a utilização do telefone foi pré-prole e aos que acusarem nossos relacionamentos amorosos de exigências exclusivistas não posso responder, pois não lembro de meu primeiro casamento, tendo até esquecido se o nome de minha esposa era Suélen ou Pâmela…

Já viram que hoje estou em ritmo de conversa… Continuemos. As mudanças foram um sinal dos tempos? Acho que não. Ainda hoje, dia desses, fui passear por algumas livrarias do centro ao final da tarde e encontrei — sempre fora do âmbito das horrendas mega — pessoas falando em livros e contando casos. (Para quem mora em Porto Alegre, posso indicar a Ventura Livros como um local com enorme potencial para se comprar livros e para boas palestras. Os donos são acolhedores e conhecem muito bem aquilo que vendem. O Gustavo e seu sócio são representantes de uma raça que as mega-livrarias – sei lá por quê – parecem desejar extintas: são leitores de primeira linha, sabem muito e são civilizados, solidários, dando até descontos aos amigos…)

Também a Sala dos Clássicos é um local em que pode-se encontrar apaixonados debatedores defendendo o vulgar Concerto Nº 5 para Piano e Orquestra de Beethoven em detrimento do maravilhoso Nº 1 de Brahms. (Importante: eu amo Beethoven, mas este Concerto cujo primeiro movimento é pura ornamentação é de matar. Concordo: há gosto para tudo — no mundo há, inclusive, vegetarianos e pessoas que só ouvem Wagner.)

Voltemos a nosso assunto, pois quero lhes falar que, após abandonar o olhar, o ambiente e o gesto, troquei a voz pelos e-mails e blogs. Hoje, quase não falo mais ao telefone, só o utilizo para recados e conversas curtas. Mesmo as consultas que fiz a alguns amigos e, principalmente, àquela psicanalista formada pela Sorbonne, acerca da interpretação “do tal post da cizânia” resultaram curtíssimas; todos têm computadores conectados à rede em suas casas e as conversas foram esclarecedoras e exclamativas, mas breves. O grosso foi por MSN.

De qualquer forma, os novos vínculos formados pelos blogs e pala rede são muito fortes e creio que este seja um dos maiores elogios que possam ser feitos aos textos numa época em que a literatura fracassa diante de outros meios de expressão. E o leque de amizades potenciais guardado pela rede é aparentemente inesgotável. Não ousaria listar aqui os novos amigos com receio de ofender alguém pelo esquecimento, mas digo que, se eles têm a desvantagem de estar longe, têm a vantagem de nunca terem me decepcionado quando os conheci pessoalmente — ao contrário! Mas não me convenço muito: é raro vê-los, ouvir suas vozes, apertar suas mãos, beijar as bochechas ou alcançar-lhes um copo. Acho triste.