Kubrick em perspectiva

Para Bárbara Ribeiro

Kubrick // One-Point Perspective from kogonada on Vimeo.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Todos contra o tumor: Fora Bolívar!

Obs.: Nada de agredir o Bolívar fisicamente, apenas moralmente. Ele é somente um dos culpados. Há quem renovou o seu contrato e quem o escalou.

Ainda no mundo virtual, hoje, às 22h, entrará no twitter um movimento para colocar a hashtag #ForaBolívar no trending topic Brasil. Há também dois links para serem divulgados: www.forabolivar.com e http://tchaubolivar.wordpress.com/.

Atualização das 17h15: a reação da diretoria.

E, amanhã (eu não vou, mas dou a maior apoio à gurizada):

PROTESTO CONTRA A DIREÇÃO E OS JOGADORES PANELEIROS

Onde: No CT Parque Gigante
Quando: Sexta (31/08) – 15h30
O que levar: Foguetes, cartazes, faixas e indignação.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

Eram três da tarde quando Jesus lançou este grito ao céu. Há três longas horas Ele estava suspenso na cruz, pregado pelas mãos e pelos pés.

Mas se fosse essa moça na cruz, o povo resolveria o problema imediatamente.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Ospa: noite de ventos

O concerto de ontem foi uma boa surpresa. Só obras para sopros e percussão. Sei que não dá para fazer isso sempre, mas abrir as janelas com a finalidade de arejar o repertório é uma coisa comum nas boas orquestras e a Ospa, com os músicos que tem, não deve dobrar-se a auto-indulgência, nem pensar que o público é tão amador que queira sempre mais do mesmo.

O concerto abriu com a simpática Fanfarra para preceder La Péri, de Paul Dukas. Obra para metais, serve como abertura do balé La Péri. Excelente interpretação do pelotão de metais da Ospa, disposto em linha na frente do público com o maestro na plateia. Um belo fuzilamento.

Stravinsky em momento pastoral (clique para ampliar)

Depois veio a música mais chatinha da noite, a Serenata para Sopros, de Richard Strauss, a qual demonstrou um mérito indiscutível: ser curta. A coisa ficou séria na Sinfonias (isso mesmo) para Sopros de Igor Stravinsky. Com uma única mulher no grupo e em toda a noite — a clarinetista Beatriz Gossweiler — o que se viu e ouviu foi música de primeira qualidade com um show particular de Leonardo Winter e Augusto Maurer, dançando nas tortuosas melodias do talentoso nanico russo amante da grana.

(Aqui, mais fotos eróticas de Igor Stravinsky).

Após o intervalo veio a música programática de David Gillingham, Waking Angels. Desconhecia totalmente esta bela composição de 1996 sobre a AIDS. Não é um tema leve e a música — assim como a composição de Stravinsky — não é nada trivial. A audição é realmente impactante, mas bonita de se ver. Enquanto Wilthon Matos botava e tirava gatos da tuba, o pessoal das madeiras alternavam intervenções de seus instrumentos com um coral. Isto é, eles cantaram e cantaram bem e com a seriedade requerida pelo tema. Apesar de tudo, não posso deixar de sorrir ao lembrar de Klaus Volkmann cantando com tanta seriedade, ele que parece ter o sorriso naturalmente estampado no rosto. (Impressão que tenho de longe, pois nunca falei com ele. Vai ver e é o maior dos mal humorados…).

Não me apaixonei pela Suíte cp200, de Edson Beltrami. Ela tem um final interessante, mas talvez rendesse melhor se não estivesse depois de Stravinsky e de Waking Angels. Destaque para a trompas e para o oboísta que não sei o nome (Javier Andres Balbinder?).

Além de bom músico, acho que o regente Dario Sotelo deu boas e necessárias explicações. Sabe falar em público, foi simpático, etc. Está caindo de madura a sugestão de imitar a Osesp. 30 minutos antes de cada concerto, um músico da orquestra dá uma pequena aula a respeito do que se vai ouvir. Quem não se interessar, chega só para o concerto; quem quer aprender e puder chegar mais cedo, aprende alguma coisa. A formação do público não deve ser apenas como ouvinte. Waking Angels cresceu muito após a sensível explicação do maestro. Pensem nisso. A Associação de Amigos da Ospa vai acabar acontecendo e espero que consigamos encaminhar coisinhas como essas. É o mínimo. A orquestra existe para o público e formá-lo é importante.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Não, não cabe num tuíte

A lenta e atenta releitura de Ulysses — feita logo após conhecer vários ensaios acerca do livro — tem sido muito prazerosa, tanto que me preocupo por já estar na página 743 do volume da Penguin-Companhia. Desconheço o original, mas por tudo o que sei, creio poder afirmar que a tradução de Caetano Galindo está muito mais próxima de Joyce, inclusive e principalmente pelo fato de ser hilariante. Joyce não era um senhor que tomava sopa de letrinhas em todas as refeições, Joyce era um erudito e homem comum, bem tarado, desses que gostam de falar de mulher e inventar piadas masculinas de gosto duvidoso. Tais características estão no livro.

Sim, nada disso simplifica a leitura de Ulysses, apenas dá mais um ingrediente a uma mistura muito boa. Em muitos trechos, o livro justifica plenamente Virginia Woolf, que achou-o vulgar. Noutros trechos, ignorados por Virginia — os ingleses tinham um problema real com o tratamento dado ao inglês pelos irlandeses egressos do gaélico — , Leopold Bloom aparece em clara androginia. No episódio Circe, dentro do bordel, escrito no estilo que Joyce chama de “Alucinação”, Bloom participa de um julgamento após ter prestado juramento com a mão sobre a genitália. Ali, ele ouve várias acusações sobre ser muito feminino. Aqui, o termo correto não é homossexualidade, mas androginia, pois é muito sublinhado que Bloom pensa muito em sexo com mulheres, mas tem um comportamento tão pouco machista para a época que seus interlocutores sugerem que ele é uma mulher.

Na verdade, tenho mil observações sobre o livro, tudo anotado a caneta no meu exemplar, mas me dá uma preguiça de organizar que nem lhes conto.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

É só o Fernandão não inventar que ganha: Coritiba pode ter 13 desfalques para jogo contra o Inter

A imagem de 2012.

O Coritiba se reapresentou na tarde desta segunda-feira no CT da Graciosa, após o jogo contra o Figueirense, com desfalques confirmados. O meia Thiago Primão e o lateral Lucas Mendes foram diagnosticados com lesões e só devem retornar aos gramados em torno de duas semanas.

Thiago Primão sentiu dores no jogo diante o Grêmio pela Copa Sul-Americana. No final da semana, o atleta fez uma ressonância que constatou um entorse no joelho esquerdo. No entanto, não há necessidade de cirurgia e o tratamento será feito com fisioterapia no departamento médico do clube. O lateral Lucas Mendes, que foi vetado contra o Figueirense, teve uma lesão muscular na coxa e permanece fora do time.

Roberto, que levou uma pancada logo após o gol que fez contra o Grêmio, ainda não se recuperou e deve ficar à disposição de Marcelo Oliveira somente para o jogo contra o Botafogo, no final de semana. Emerson, que teve uma luxação no dedo do pé e Everton Costa, com lesão na panturrilha, seguem em tratamento.  Ainda se recuperando de lesões ligamentares do joelho, Sérgio Manoel, volante, e Jackson, lateral-direito, também estão fora da partida.

Fonte: GloboEsporte

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Complementando o sábado

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Da velhice, da sabedoria

Uma imagem de outro ano que reflete 2012.

Más sabe el diablo por viejo que por diablo. Traduzindo: “Mais sabe o diabo por ser velho do que por ser diabo”. Quando ouvi a escalação do Inter, tive a certeza de que o melhor caminho era o concerto de Rodrigo Calveyra e  Manuel de Olaso. Não me decepcionei, foi um extraordinário recital de música antiga. Durante o maravilhoso concerto, a única coisa que me lembrou a escalação de Fernandão eram as goteiras do Santander Cultural, fato inacreditável em se tratando de uma instituição capitalizada, creio.

Escalar Kléber no meio-de-campo… Retirar Índio, nosso homem Gre-Nal, e manter Bolívar… E o Inter ainda vem falar em juiz? Tsc, tsc, tsc… Acabo de ler no blog de um amigo colorado a avaliação da atuação de nosso grande General: Lento e desatento. Todos os desarmes eram com falta. Passou da hora de dispensar a “liderança” do ex-general do Beira-Rio. Nota 2. 

Más sabe el diablo por viejo que por diablo. Sou sócio e já disse, só volto ao Beira-Rio quando o Inter não tiver mais Bolívar sob contrato. Até lá, sou inimigo.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Porque hoje é sábado, Nadezhda Tolokonnikova, t.A.T.u., Irina Shayk e Cecília Giménez

A mulher da semana foi, indiscutivelmente, Nadezhda Tolokonnikova, a bela…

… integrante do grupo feminista punk russo batizado pelo inspirador nome de Pussy Riot.

Nadezhda, 22 anos, junto com duas de suas companheiras, foi presa sob a acusação…

… de ofender o imaculado sentimento religioso dos russos. A coisa ficou russa quando …

… elas adentraram a Catedral de Cristo Salvador (Moscou), curvaram-se diante do altar…

… e começaram a cantar, pedindo à Virgem Maria que as livrasse de Vladimir Putin.

A Rússia, apesar do atraso, tem uma saudável tradição recente de contestação feminina.

A dupla t.A.T.u. (do russo Ta Lyubit Tu), que significa “Essa Ama Aquela”, costumava …

… esfregar-se em seus shows, além de tirarem fotos na cama, etc. Não foram presas.

irina-shayk-43a

Porém, voltando a nossa programação habitual, aí está um monumento russo.

Algo que dignifica a Grande Rússia e faz-nos lembrar que é o país de Tchékhov, …

Dostoiévski, Tolstói, Shostakovich (oh, Shosta, oh, Pussy), Prokofiev, Tarkóvski e …

tantos outros grandes artistas. Irina Shayk, acima com um modelito colorado, …

é o nome deste verdadeiro abuso de beleza e exuberância açambarcante.

Infelizmente, nem tudo é perfeito e eu não pretendo deitar aqui …

… o nome do ridículo namorado de Irina, apenas vou citar que ela disse que não tem …

… interesse em casar com ele. Prova de que está apenas se divertindo.

A outra grande mulher da semana foi a espanhola Cecília Giménez e sua restauração.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Cansaço colorado, desânimo geral

Bolívar: sem seu apoio, o técnico cai

Darei meu recado rapidinho.

“Desânimo geral”, este é o titulo de uma das conversas que estamos travando em um dos grupos de discussões do Inter, justo naquele onde há mais conselheiros do clube. Mas a sensação estende-se aos outros grupos dos quais participo. Ninguém mais suporta falar sobre as escalações do time sabendo que estas são ditadas pela política do vestiário. Agora é Juan que provavelmente não iniciará o Gre-Nal — ou iniciará com mais dois outros zagueiros — tudo porque Bolívar, o líder do vestiário, o homem que avaliza treinadores, é inamovível.

Imaginem a vontade de treinar de um cara como, por exemplo, Rodrigo Moledo. Ele  conseguiu retirar o Bolívar do time num esforço supremo — na bola que jogou a mais — e saiu do time por lesão. Virou reserva novamente. Está lá, no banco. Não sou apaixonado por ele, mas Moledo foi sacaneado. Dia desses ressurgiu no lugar de Índio. E foi o melhor da defesa.

Desta forma, o melhor Inter não pode entrar em campo em função do grupo de Bolívar. As substituições comprovam. Sempre saem os mais jovens (Élton, Fred), com os confirmados permanecendo em campo. E não há como motivar aqueles que não são amigos do General. Quase todo mundo está de saco cheio: os outros jogadores e a torcida. A perspectiva é péssima, mesmo contra o time do Grêmio.

Esse Gre-Nal pode desaguar em nova e desnecessária crise, mesmo que o Grêmio seja um time de opereta. Bem treinado, mas de opereta.

Faz algum tempo que decidi: como sócio e colorado, sigo pagando o clube, mas não vou ao estádio até que veja que o vestiário não é de um grupo de ex-vencedores, porque até as vitórias têm prazo de validade no futebol.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Ospa: coisas vivas e outras apenas perfeitas na danação acústica da Igreja da Ressurreição

Ontem o concerto da Ospa previa um Festival Mozart. O programa era o que segue, copiado site da Ospa:

W. A. Mozart: La Clemenza di Tito – Overture
W. A. Mozart: Concerto para Flauta nº 1, em Sol Maior
W. A. Mozart: Andante para Flauta e Orquestra, em Dó Maior
W. A. Mozart: Sinfonia nº 41, em Dó Maior

 

SOLISTA: Leonardo Winter (flauta)
REGENTE: Ricardo Sciammarella

A acústica da Igreja da Ressurreição é uma coisa, o blog é uma coisa pessoal e Mozart é um coisa pessoal problemática. Há muitas obras de Mozart que estão no meu panteão, mas não sou um admirador incondicional de sua música assim como sou da de Bach, Beethoven, Brahms ou Mahler. Grosso modo, a qualidade da música de Mozart eleva-se juntamente com o número do Koechel. Explico: Ludwig Alois Friedrich Ritter von Köchel (1800-1877) foi um musicólogo, escritor, compositor, botânico e editor austríaco, mas imortalizou-se como musicólogo ao catalogar toda a obra de Mozart, originando os números de Koechel, pelas quais as obras de Mozart são conhecidas. Desta forma, a belíssima Sinfonia concertante de dois posts atrás é a Sinfonia Concertante para Violino e Viola, K. 364. Estranhamente, o programa da Ospa falhou ao não incluir “os Ks”, mas a gente informa pra vocês sem problemas.

Como o catálogo Koechel é cronológico, fica fácil de notar que a música da juventude de Mozart era gentil, perfeita, bonita e equilibrada. Depois, a vida, as dívidas e o contratos começaram a influenciar e sua música ganhou drama, sangue e agressividade. Melhorou muito. A abertura La Clemenza di Tito, K. 621 e a Sinfonia Nº 41, Júpiter. K. 551, são obras da maturidade do compositor. Já o Concerto para Flauta Nº 1 tem K. 313, e o Andante para Flauta e Orquestra, K. 315, são obras que se encaixam naquele mundo inodoro e perfeito do Mozart inicial. Como disse lá no início, o blog é uma coisa pessoal e eu não gosto destas obras para flauta. É muita limpeza e pouco drama.

A execução valeu pelo excelente solista Leonardo Winter que, como sempre, fez um trabalho notável, apesar do Andante arrastado demais do regente Ricardo Sciammarella, que, pelo ouvido, o desejava Adagio.

Já a qualidade musical, o pulso e a veemência da Júpiter e de La Clemenza di Tito trazem tanto interesse a um concerto que a gente consegue ignorar o fato da acústica da Igreja da Ressurreição ser tão ruim. A Júpiter é tão boa que até o minueto — terceiro movimento da forma sinfônica clássica — é legal. Por motivos certamente ligados à inadequação acústica da sala, Sciammarella fez uma virou a Ospa de cabeça para baixo, colocando, a partir da esquerda, os primeiros violinos (com os contrabaixos atrás), os violoncelos, as violas e os segundos violinos. Boa tentativa, mas a sala é incontrolavelmente demoníaca.

P.S. — Um fato desagradável que pode ser evitado: o programa indicava que haveria um  intervalo antes da Júpiter. Por isso todos levantaram enquanto os alto-falantes mandavam a plateia sentar. Chato, né?

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Vertigem V

Equipe de resgate e familiares tentam impedir uma mulher de saltar de um prédio em Zhanjiang, província de Guangdong, em 14 de agosto de 2012. A mulher tinha matado seu sobrinho depois de uma disputa familiar. Foi salva. As fotos são da Reuters.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Festim Diabólico CCXIV

(Por isso é que mantenho a categoria “Amigos, tudo”).

Acho que ainda não chegamos à edição de nº 214, mas certamente já passamos fácil das 50 edições. Os Festins Diabólicos são as festas aqui de casa, sempre com 20 pessoas para fora. Sábado, foram 36. O motivo do nome do encontro é o filme de Hitchcock, que tinha um baú no meio da sala. Já sabem o que temos no meio da nossa, mas sem um morto dentro, se lembro bem. Ultimamente, após o jantar, quase sempre alguém senta em nosso combalido piano ou pega seu instrumento e a música acontece. São amigos, músicos profissionais, que tocam aqui em casa por pura amizade. Poderiam deixar seus instrumentos e partituras em casa. Poderiam dizer que não estavam a fim, poderiam alegar uma tendinite ou simular um desmaio, qualquer coisa que todo mundo compreenderia, mas não, eles tocam pra nós.

No grupo, há o núcleo duro, os que sempre são convidados. Dentre eles, há gente como a Nikelen e o Guto que viajam incondicionalmente por quatro horas com um filho pequeno e o deixa com a avó num hotel. E viajam mais quatro horas de volta, tudo por quatro horas de festa. É maravilhoso isso. Lamentavelmente, alguns dos habituais participantes acabaram ficando de fora no último sábado porque a casa poderia explodir de tanta gente. Fazer o quê? Bem, os dois últimos Festins foram muito particulares, mas o de ontem foi invulgar para mim. Era meu aniversário e houve algumas manifestações que realmente me tocaram.

A Claudia, minha mulher, sempre faz a comida e a bebida é trazida pelos comensais. A “chef” que fica mais próxima dela é a Astrid. Pois ontem ela veio com um exército de canapés. Dizendo assim, parece pouco. Parece até que ela comprou ali na esquina. Nada disso, ela, que está super estressada com uma série de coisas, fez um por um para quase quarenta pessoas. E eram ab-so-lu-ta-men-te geniais. Assim como os músicos que tocam aqui expressam seu carinho através de seu trabalho, há pessoas que o fazem através da comida. É o caso da Claudia e da Astrid. Agora cheguei a um impasse em meu texto porque sou bom para comer mas péssimo para descrever comida. Talvez consiga algumas fotos depois… Para que meus sete leitores tenham uma ideia, no dia seguinte, domingo, quando acordou, o meu concunhado Bruno ligou aqui pra casa perguntando se tinha sobrado canapés. Das centenas, tinha sobrado um (1) e a primeira coisa que fiz ao acordar foi zerar a conta. Peço desculpas a ele.

A música. Deve ter sido ideia da Elena Romanov. De repente, logo após o jantar, ela, que é violinista e seu marido, o violista Vladimir Romanov, prepararam as estantes. Até aí, tudo normal. O pianista Alexandre Constantino estava sentado ao meu lado com uma partitura e me informou vou tocar com eles e eu disse que estava ótimo, ora. Tudo normal. Então, o Alexandre juntou-se ao casal e eles começaram o Andante da Sinfonia Concertante para Violino, Viola e Orquestra de Mozart. A Elena sabe de amor que tenho por esta música, protagonista de minha novelinha O Violista. Foi a coisa mais linda e só pensei que aquilo era endereçado a mim quando estavam terminando. Queria até que repetissem… Eles tocaram uma redução onde o acompanhamento é feito pelo piano. Abaixo, o original.

Tchê, foi lindo. Depois o professor doutor Luís Augusto Farinatti, o Guto, fez mais um de seus tradicionais e irresistíveis stand-ups. A Carmen Crochemore me disse hoje que nunca tinha rido tanto. O curioso é que o Farinatti acha que a gente se incomoda com as repetições. Negativo, rapaz.

E depois para terminar. O Marcelo Delacroix deu um show completo aqui em casa com mais dois músicos seus amigos — o Rodrigo Calveyra e Manuel de Olaso. Confesso que tinha pedido pra ele como presente. A afinação, seu bom gosto e senso de estilo são um verdadeiro absurdo e às vezes tenho que olhar para a sala refletindo que recebi tudo o que ele desempenhou de presente, somado ao Farinatti, ao Mozart do trio e à gastronomia da Astrid e da Claudia. É óbvio que nenhum dos não citados deixam de ser extraordinários; todos são inquilinos de meu ventrículo esquerdo — que é onde o coração bate mais forte (minha irmã me ensinou) — , só que a amizade + a música ou o riso ou a gastronomia tornam tudo mais memorável, não? Ou, melhor dizendo, a amizade mais a arte acaba sendo superior, o que não significa que esta não esteja assentada naquela. Bem, ao menos aqui em casa, sempre está.

A seguir, fotos. Não sei se todos estão nelas, não contei.

Vladimir Romanov e Lia Zanini aguardando o vinho que o Augusto Maurer abre lá atrás.
Astrid Müller e Rovena Marshall: brinde e risadas para alguém fora do quadro.
Augusto Maurer e Marcelo Delacroix em primeira leitura do primeiro.
Meus filhos Bárbara e Bernardo estremecendo a foto.
Os mesmos da foto acima, mas agora absolutamente enfeitiçados pelo Farinatti. Olhem as caras.
Batatas.
Gente falando bobagem, gente ouvindo bobagem. Eu, Dario Bestetti e Luís Augusto Farinatti.
Cadê?
Antônio Castro num impasse: como pegar o garfo? Carmen Crochemore o orienta.
Igor fica aliviado quando Castro logra libertar as mãos. Com Igor Natusch, Bruno Zortea, Nikelen Witter, Farinatti, Carmen, eu e as mãos.
Mãos muito, extremamente bobas. Com Anderson Larentis, Rachel Duarte e Igor.
Claudia Guglieri ensina Vladimir como se bebe o suco.
Credo, como esse cara come (e mente). Nikelen e Farinatti.
Magro de ruim.
Grande momento. Marcelo Delacroix solo.
Uma toca violino, todos tocam piano. Com Elena Romanov, Alexandre Constantino e Liana Bozzetto.
Preparação para o Andante. Com Elena e Vladimir. Adorei.
Credo, se tu soubesses como eu te odeio, Chico Marshall! Com Farinatti , o odioso e Nikelen.
E o impossível acontece. Farinatti para de movimentar os braços.
Sei lá, acho que alguém já bebera um ribeiro de vinho. Com Chico e Astrid.
Aspecto singular da sala dos Antonini Ribeiro.
Todos ouvindo Elena, Vladimir e Alexandre. Em primeiro plano eu a Claudia.
Ah, não. Me sujei de novo! Com Rovena Marshall.
O pé da Bárbara, meu cunhado Sylvio e minha irmã Iracema. Ao fundo, no espelho, o casal Rovena e Chico.
Alexandre, o Cavaleiro das Trevas.
Tão bonita, só que ninguém queria fotografar a Bianca! Lá à direita. Com Claudia Antonini e Bruno.
Apagando a (1) velinha com la Guglieri.

Obs.: Fotos de Liana Bozzetto, Lia Zanini e Augusto Maurer.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

O louco de palestra (por Vanessa Barbara)

O louco de palestra (por Vanessa Barbara)

Em dezembro passado, o escritor gaúcho André Czarnobai, o Cardoso, publicou um diário na piauí intitulado “Pasfundo calipígia”. Salvo engano, foi a primeira vez em que se utilizou em letra impressa o termo “louco de palestra”. Imediatamente, a expressão ganhou densidade acadêmica e popularizou-se nos redutos universitários nacionais, encorajando loucos latentes e chamando a atenção da saúde pública para o problema.

O louco de palestra é o sujeito que, durante uma conferência, levanta a mão para perguntar algo absolutamente aleatório. Ou para fazer uma observação longa e sem sentido sobre qualquer coisa que lhe venha à mente. É a alegria dos assistentes enfastiados e o pesadelo dos oradores, que passam o evento inteiro aguardando sua inevitável manifestação, como se dispostos a enfrentar a própria Morte.

Há inúmeras categorias de loucos de palestra, que olhos e ouvidos atentos podem identificar em qualquer manifestação de cunho argumentativo-reflexivo, com a palavra franqueada ao público.

Há o louco clássico: aquele que levanta, faz uma longa explanação sobre qualquer tema, que raramente tangencia o assunto em debate, e termina sem perguntar nada de específico. Seu único objetivo é impressionar intelectualmente a plebe, inclusive o palestrante oficial. Ele sempre pede licença para “fazer uma colocação”.

Há o louco militante, que invariavelmente aproveita para culpar a exploração da classe dominante, mesmo que o tópico do debate seja arraiolo & bordado.

Há o louco desorientado, que não entendeu nada da palestra – e não vem entendendo desde a 2a série, quando a professora lhe comunicou que o Sol é maior que a Terra – e, depois de circunlóquios labirínticos, faz uma pergunta óbvia.

Há o que faz questão de encaixar no discurso a palavra “sub-repticiamente”: é o louco vernaculista.

Uma criteriosa tipificação do objeto de estudo não pode deixar de registrar o louco do complô, que, segundo integrantes do próprio complô, é “aquele que acredita que toda a imprensa se reúne de madrugada com o governo ou a oposição para pegar a mala de dinheiro”.

Ou o louco adulador, que gasta os trinta segundos que lhe foram franqueados para dizer em dez minutos como o palestrante é divino. O louco deleuziano, que não sabe o que fala, mas emprega muito a palavra “rizoma”. E o louco pobre coitado, que pede desculpas por não saber se expressar, o que não o impede de não se expressar durante minutos intermináveis.

Depois de falar “Gostaria de fazer uma colocação”, todos podem usar a expressão “na chave de…”. Como nessa típica colocação: “O jornalismo entendido na chave da sociologia é sem dúvida uma ocupação rizomática, em termos de vir-a-ser.” São poucos os que dizem que algo acontece por causa de outra coisa. É sempre “por conta” da qualquer coisa em questão.

No entender de Cardoso, é raro não haver um louco à espreita quando ele está palestrando (ou painelando, ou debatendo, ou mesmo plateiando). O mais recente de que ele tem lembrança manifestou-se num encontro de blogueiros com editores, em São Paulo. Na ocasião, um camarada que até então ouvia tudo com atenção – mas em silêncio – pediu a palavra. “Em primeiro lugar, queria dizer que não sou blogueiro, não leio blogs, não entendo nada dessas coisas, mas também tenho direito a uma opinião”, afirmou, à guisa de apresentação.

E prosseguiu, o celerado: “Sou médico comunitário, organizo saraus na periferia e quero dizer que discordo de tudo que todo mundo falou aqui. Está todo mundo puxando o saco da Companhia das Letras.”

E disse mais: “O blog da editora está muito feio. Não tem cara de blog. Tem mais cara de site, e além disso acho que ninguém quer ler sobre os bastidores de como são feitos os livros.”

Em poucos minutos, ele invalidou audaciosamente tudo o que havia sido postulado até então. É o louco de palestra majestático, que ouve a conferência com ar de superioridade e acha tudo uma grande e gorda estultice.

Um bom louco de palestra é sempre o último a falar, pois passa o tempo todo digerindo o que foi dito. Só então ele pode dar alguma declaração desvinculada do tema, equivocada, mal-intencionada ou apenas incompreensível. Para o jornalista Matinas Suzuki, o tipo contempla com desprezo o que se discute, aguarda pacientemente a sua vez e, então, discorda com virulência. “Me corrijam se eu estiver errado”, ele diz a certa altura, só para parecer democrático. “Concordo com tudo o que vocês disseram, mas ao contrário”, prossegue. Ou ainda: “A minha colocação engloba a do companheiro e vai além”, num típico comentário condescendente de loucos de assembleia.

Há que se distinguir o maluco de palestra do desvairado de assembleia estudantil ou sindical. Nesta última, não há palestrante; todos têm o direito de incluir o nome na lista de oradores e falar, sem a necessidade de se ater forçosamente a um tema.

Segundo uma enquete com personagens da época, um dos mais célebres representantes dessa categoria, na década de 70, era o Gilson, um estudante do curso noturno de economia na Universidade de São Paulo. Era um gordinho trotskista que tinha a voz fina e usava um bigode ralo. O outro era o Reinaldinho, da ciências sociais, que, qualquer que fosse o assunto, dava sempre um jeito de encaixar a frase: “O concreto é a síntese de múltiplas determinações.” É verdade. Até Marx sabia disso. Mas repetir o conceito em todas as assembleias da usp dos anos 70 nem Engels aguentaria.

Embora essas duas categorias de louco (palestra vs. assembleia) se diferenciem por motivos óbvios, existe a possibilidade de infiltração de loucos de palestra numa típica assembleia estudantil/sindical. O infiltrado, em regra, é aquele que toma o microfone à revelia de todos e anuncia: “Questão de ordem!”, ainda que a alegação não proceda. Daí em diante, a performance é livre.

São assim os loucos de palestra: audazes, imprevisíveis, implacáveis, destituídos de noção ou sentido. Cardoso também se lembra de um debate em Curitiba, quando “um senhor moreno, grisalho, com uma sacola ecológica atravessada no peito e toda a pinta de quem pratica ioga, anunciou que ‘a internet é como uma vaca mágica, de onde cada um extrai o leite que deseja’”.

Infelizmente, é só isso que ele se lembra daquela longa e bizarra colocação.

Há quem se depare com um louco contemplativo, que é dos mais difíceis de lidar. Sobretudo na primeira mediação de sua vida. Foi o que ocorreu com o escritor e editor Emilio Fraia, que, nervoso e pautado por dezenas de papéis amarelos, conduziu um debate entre o cineasta Hector Babenco e o escritor William Kennedy, no dia 11 de agosto, em São Paulo.

“Primeiro, a moça levantou a mão e disse: ‘Eu tenho uma pergunta’”, contou Emilio Fraia com a pungência de quem luta contra um quadro de estresse pós-traumático. “Então, ela disse não saber por que estava ali. Viu que haveria uma palestra e entrou.” A moça era de Minas, estava há quatro dias num quarto de hotel, sozinha. “Mas gostei muito do que o senhor Kennedy falou, de ter sido recusado por treze editoras antes de publicar. Sou artista plástica.”

Nesse instante, começaram os apupos da plateia: “Pergunta!” Intrépida, ela não fez caso: “Tenho um trabalho baseado em cores e…” Apupos, apupos.

Ao término do arrazoado, Fraia não conseguiu esboçar reação. Ficou vermelho. Paralisado. “Até que a palestra encerrou-se por si só. Foi o fim, nada mais poderia acontecer após aquela intervenção”, relata.

Outra recente ocorrência de louco contemplativo deu-se numa palestra da escritora Fred Vargas, no Rio de Janeiro, acerca do caso Cesare Battisti. Um sujeito pediu a palavra e falou vinte minutos sobre a sua militância no Nordeste, nos anos 50, sem pronunciar nem uma vez o nome do Battisti.

Com esse tipo de maluco em vista, o cartunista Laerte Coutinho confessou imaginar o que restaria daquela experiência para o sujeito, o louco propriamente dito. “Acho que tudo se reduz à sua própria intervenção”, filosofou Laerte. E emendou uma teoria: dos debates, o louco de palestra deve se lembrar tão somente da sua performance. “Lembra aquela vez, em Curitiba, quando eu levantei a mão e comparei a internet a uma vaca mágica?”, diria o sujeito, satisfeitíssimo, numa reunião de um hipotético Grupo Unificado de Apoio aos Loucos de Palestra, o gulp.

O que poucos sabem é que a origem do louco de palestra remonta à história do pensamento. “Acho que ele surgiu pela primeira vez na Ágora grega: a democracia está cheia de loucos de palestra”, postula o editor Milton Ohata.

Na peça As Nuvens (423 a.C.), o dramaturgo Aristófanes, por exemplo, faz chacota dos sofistas – os loucos de palestra mais insignes da Grécia Clássica. Naquele tempo, já existiam “profetas, quiropráticos, mocinhos cabeludos, poetas ditirâmbicos, astrólogos, charlatões, impostores e muitos outros mais”, diz o texto. Gente que se rendia ao arrebatamento do discurso e à volúpia da articulação, um bando de consumados tratantes, palavrosos e descarados. Tais como Cairefonte, discípulo de Sócrates, que levantou certa vez a mão e perguntou ao mestre qual das duas era a teoria certa: “O mosquito, ao zumbir, se utiliza da boca ou justamente do contrário?”

Na antiga Palestina, talvez durante o Sermão da Montanha, devia haver loucos de palestra prontos para agir. Uma das perguntas lançadas ao Filho de Deus, e omitida dos registros canônicos, teria sido: “E aí, o que está achando de Cafarnaum?”

Especulações à parte, uma coisa é certa: foi um louco de palestra fariseu que abordou o Messias com uma pergunta mal-intencionada, e que recebeu como resposta: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Uma reação divina ao interlocutor maledicente.

O que nos leva ao difícil papel do mediador. É sabido que, diante de um louco de palestra, ele tem poucas opções. Uma é dirigir-se a uma rota de fuga predeterminada, levando os braços ao ar e abandonando o público à própria sorte. A segunda é a solução escolhida por Emilio Fraia: a completa e resignada paralisação, seguida de conclusão precoce do seminário e aceitação da ruína. Numa variante pouco mais elegante, o mediador pode emitir um constrangido “Fica aí a pergunta”, e encerrar a palestra com certo ar de mistério.

A terceira saída é se fingir de louco e ignorar a intervenção por completo. A tática é defendida por oradores calejados como o jornalista Humberto Werneck. Durante um papo sobre seu livro O Santo Sujo, em Belo Horizonte, um rapaz pediu a palavra e não fez pergunta alguma – divagou sobre coisas que ninguém entendeu. “Acho que era doidinho, e não fiz mal em esperar que esvaziasse a piscina verbal. Levou vários minutos. O cara terminou sem ponto de interrogação. Agradeci a participação e fui ao perguntador seguinte”, conta, sem constrangimento.

A quarta e última reação possível é a mais artística e profissional de todas. No domínio dessa técnica estão mediadores experientes como o crítico de arte Alberto Tassinari. Ele diz ter muita paciência quando um louco desses se pronuncia, “pois sempre bate em algum lugar respondível e o diálogo fica tremulando entre sua racionalidade intrínseca e sua irracionalidade que vem de fora, fora de hora e quase inutilizando tudo”.

O professor Samuel Titan Jr., da usp, é do mesmo time. “Meu louco favorito começa pedindo para fazer uma colocação e embarca imediatamente na autopromoção, que pode ser pseudoacadêmica, pseudoliterária ou de fundo ressentido (nas variantes de raça, sexo, classe, opção sexual ou todas as anteriores)”, revela, com a sabedoria advinda da experiência.

Nesses casos, ele recomenda que a única saída para se livrar da situação é “responder alguma coisa que não tenha nada a ver com o que ele disse e que tenha alguma coisa a ver com o que você tinha tentado dizer, tudo isso olhando no olho da criatura e usando cá e lá umas palavras difíceis, que é pra ver se o bicho se intimida – em geral, nem um pouco”.

É preciso encarar essas coisas filosoficamente, pondera Titan, que há poucos meses teve que enfrentar um belo exemplar da espécie.

O episódio ocorreu em 25 de março, na Casa do Saber, em São Paulo, num debate sobre ensaísmo. Estavam presentes o arquiteto Guilherme Wisnik, o artista plástico Nuno Ramos, Matinas Suzuki Jr. e, como mediador, Samuel Titan Jr.

A gravação em vídeo do colóquio é uma verdadeira obra-prima tragicômica. Por um feliz acaso, a câmera permanece focada nos quatro palestrantes durante a longa peroração de uma moça da plateia, que deve ter tomado fôlego antes de se levantar. Cada um dos intelectuais supracitados reage à sua maneira, coçando a cabeça, esfregando o nariz, olhando pra cima e tentando desesperadamente manter a compostura diante de ocorrência tão alarmante.

A intervenção se dá em dois tempos. No primeiro, que dura quase cinco minutos corridos, a moça expõe a sua verve: “A minha pergunta é sobre lugares e fronteiras”, inicia, num tom didático que pressupunha prévia reflexão sobre o tópico. “Eu vejo o ensaio como um espírito livre do pensamento expresso na forma escrita. Então acho que ele merecia um lugar de destaque, mas pelo que eu vejo da discussão, do debate entre vocês, há uma questão do lugar e das fronteiras, quando se fala num lugar chamado ‘entre nós’, ou quando se fala no Brasil, no mundo e, indo mais além ainda dessas fronteiras, na própria realidade.”

Dominado por um compreensível reflexo instintivo, Nuno Ramos passa a beber água compulsivamente. Samuel Titan alterna vigorosas coçadas de cabeça a uma distraída extração da pele ao redor das unhas. No coração de todos, a esperança de que a pergunta não tardará. A moça prossegue: “Eu vejo o ensaio como esse espírito livre do pensamento escrito porque ele vai além do pensamento escrito, chegando na realidade, com toda essa liberdade de conexões intertemas, e não só temas intelectuais ou conceituais ou acadêmicos, mas os próprios acontecimentos da realidade.”

Curiosamente, os quatro palestrantes decidem apoiar-se no cotovelo esquerdo, recostam-se nas cadeiras e cruzam os braços, como que tentando se defender da avalanche de conceitos que lhes são atirados impiedosamente.

E a moça vai em frente: “Então vejo uma maneira de resolver esses dilemas, essas questões que foram apresentadas, e me atendo ao que foi debatido entre vocês, que os ensaístas deveriam eles mesmos se colocar como espíritos livres.”

Sublinhe-se que ela faz referência à discussão e promete se ater ao que foi debatido, como se procurasse despistar a audiência. Dito isso, segue em frente: “Criar como que uma onda, o ensaio como uma pedra que cai na água e gera ondas não só daquilo a que ele se propõe, mas indo além. Indo além da própria subjetividade de quem escreve, ou do próprio arsenal de conhecimento acadêmico restrito, então o próprio ensaio brasileiro precisa adotar a postura de quebrar essa fronteira e se colocar como um ponto de convergência de forças que estão presentes no mundo hoje, tanto politicamente, como literariamente, cientificamente, artisticamente.”

Depois daquela peroração sem perguntas, Samuel Titan interrompe a moça e faz o que pode para encaminhar o debate. Os palestrantes comentam uma suposta “zona de conforto” no ensaísmo brasileiro, termo que a moça citou a esmo, dentro de um contexto só dela. O debate parece que vai engrenar. Que nada: num momento de deslize do mediador, a moça da plateia leva a melhor e consegue retomar o raciocínio: “Tenho visto coisas riquíssimas”, ela interrompe, e torna a abusar de advérbios: politicamente, literariamente, cientificamente.

É o segundo momento de sua dissertação, quando, em resumo, ela conclui que é preciso cultivar um ensaio “que também se dilui, também luta sub-repticiamente. Tem que haver uma coragem de sair da zona de conforto, quebrar essas fronteiras pra conseguir criar novas fronteiras, realmente fazer diferença na realidade”. Assim é encerrada a sua fala e, com ela, o debate.

De tanto ver Nuno Ramos bebendo água temeu-se que ele pudesse ter uma congestão.
A lenda é difusa, mas deve ter ocorrido nos anos 60, durante uma aula do professor Bento Prado Jr., na rua Maria Antônia. Terminada a explanação, em que o docente citou o filósofo Plotino várias vezes, um aluno respeitosamente levantou a mão e disparou: “Com licença, professor. Esse Plotino aí não seria o Platão, não?” Ao que o mestre respondeu: “Não, cretão.”

Como prova de que os tempos mudam, mas os loucos continuam, o escritor Antonio Prata relembra um doido recente da usp. Sua alcunha: Santo Agostinho. “Era um cabeludo, barbudo, meio sujão, sempre chegava com uns jornais que a gente não sabia se estava lendo ou se tinha dormido com eles”, descreve. O sujeito tinha lido uma única coisa na vida: Santo Agostinho. “E não importava qual fosse a aula, não importava quanto tempo ele tivesse que esperar, em alguma hora ele achava a ligação. Não fazia uma pergunta, ele vomitava: “Professor, professor, isso aí que você está falando de – Descartes – Platão – Adorno – neo-liberalismo – assentamento – greve – filtro solar – não tem a ver com aquele conceito do Santo Agostinho?”

É o louco monotemático, de tendência obsessivo-compulsiva.

Vale observar que nem as grandes personalidades estão imunes ao ataque verbal de um desatinado espectador. Conta-se que, durante uma reunião da esquerda latino-americana em Paris, na época das ditaduras militares, um louco de palestra investiu contra o escritor Mario Vargas Llosa. Da plateia, um barbudão levantou e vociferou: Mientras Obregón se moria en la selva por el pueblo peruano, tu, que hacias?

O público silenciou. Sem se abalar, Vargas Llosa respondeu que dava aulas de literatura espanhola numa universidade. E devolveu a pergunta: Y tu, que hacias?

Yo tenía la hepatitis, disse o barbudão.

Uma categoria popular é a do louco lírico. “É o cara que, a todo custo, quer ler um poema, um conto, o primeiro capítulo de um romance. Já aconteceu de pegarem o microfone da minha mão e saírem soltando o verbo”, disse o escritor Marcelino Freire. Para ele, os poetas são os piores: estão sempre pedindo a voz.

O cartunista Laerte aprecia em particular o louco superespecialista, que conhece o seu próprio trabalho melhor que você, e aponta incoerências e contradições no que acabou de ser dito. Esse tipo pode trazer proventos vantajosos e é até possível forjar um deles para atuar em sua própria palestra – o sujeito levanta a mão e diz que certamente naquele trecho você fez uma referência velada à noção de witzelsucht tal qual é discutida em Heidegger. Gênio, grande pensador, você emite um “arrã” de modéstia e segue para a próxima pergunta.

Para o crítico Rodrigo Naves, que ministra um curso livre de história da arte em São Paulo, os doidos mais comuns são os carentes, que se põem a falar de seus problemas afetivos, existenciais, mercadológicos. “Tem um oriental que já vi se pronunciar em três ocasiões diferentes”, conta, ele mesmo um ocasional louco de palestra, do tipo agressivo, se bem que em recuperação. Houve uma vez em que Naves se ergueu da cadeira e, indignado com a opinião do palestrante, disse: “Não, não, não, não. Não, não, não”, como só um bom profissional do ramo conseguiria exprimir.

Há um subgênero de louco latente que, no entender do jornalista Elio Gaspari, é aquele que vai para as conferências, ouve tudo com atenção, mas o negócio dele é a comida oferecida ao final do evento. “Conheci um elegantíssimo, nos Estados Unidos, que ia de terno jaquetão. A piada era que um dia ele faria uma pergunta recitando todas as palestras que ouvira”, conta.

O mais recente registro formal de um louco de palestra ocorreu no último dia 10 de agosto, após um bate-papo com os cartunistas Gilbert Shelton e Robert Crumb, em São Paulo.

A intervenção abilolada saiu nas páginas do Estado de S. Paulo, registrada por Jotabê Medeiros: “Um maluco gritou lá de cima do mezanino perguntando qual seria a personalidade morta que Crumb elegeria para tomar uma cerveja consigo.” Crumb retrucou: “Não tomo cerveja com gente morta. Na verdade, nem tomo cerveja.” Em outro momento da noite, o cartunista pediu que um fã dominasse seus ânimos. “‘Shutupfuckoff!’, rosnou, e o menino riu.”

Bem-aventurado é o louco anônimo, o louco voluntário, o que se levanta indômito no meio da palestra e parte rumo à consagração. Amaldiçoadas sejam as perguntas por escrito, as regras contra a manifestação do público, o apupo impaciente, a placa de aplausos obrigatórios, as pessoas que jogam tomates em quem está atrapalhando o andamento da coisa.

Amaldiçoado seja o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que no livro Minhas Palavras agradece aos alunos por suas reações “mudas, mas perceptíveis” que lhe permitiram desenvolver o pensamento sem grandes atropelos.

Viva aquele que comparece a palestras apenas para matar o tempo, e que ainda assim não perde a chance de se expressar, pois que é interessado em dividir suas opiniões com os outros seres. Viva a falta de noção, de vergonha e de respeito às autoridades presentes.

Todos têm um louco de palestra dentro de si, esperando para aflorar. Somos apenas reprimidos pelos grilhões da compostura, da sanidade mental e da idade adulta, o que nos impossibilita de protagonizar, em conferências, grandes momentos da história da argumentação humana – como quando, na Flipinha de 2005, um ouvinte de 5 anos de idade levantou a mão e perguntou ao escritor Luis Fernando Veríssimo: “Você gosta de suco de uva?”

.oOo.

Vanessa Barbara é jornalista e escritora.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Um dos presentes que recebi…

… fez intensa referência a este blog e a outro. Era uma bela caneca ornamentada com a imagem abaixo. Clique na imagem para ampliar, vale muito a pena. A concepção foi de Francisco Marshall e a produção foi dele e de sua filha Heloísa, que andaram muitos quilômetros de bicicleta ontem pela manhã a fim de conseguir alguém que entregasse a caneca a tempo. O périplo foi realmente imenso. Durante o dia ou à noite de hoje, maiores detalhes sobre a modesta festa para quase 40 aqui em casa.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Porque hoje é sábado, Liv Tyler

Liv Tyler é uma belíssima atriz, mas tem um grave defeito.

Não gosta muito de tirar a roupa, prefere ser clássica como as estrelas do passado.

Apesar de ter qualificado sua postura como defeito, respeito, claro.

Para se encontrar as fotos mais típicas de nosso tradicional espaço sabatino, …

Liv-Tyler-12

… tive que pesquisar o passado de Liv, que inclui uma estreia num bom Bertolucci.

O motivo de sua presença justo neste fim-de-semana é A Tentação (The Ledge), …

filme absolutamente surpreendente no qual ela ocupa papel central.

(com sono, meio bêbada ou chapada?)

É um filme onde ela é casada com um cristão fundamentalista norte-americano que a …

… controla após tirá-la de uma pior. Mas um ateu vem a conhecê-la e a perturba.

Filosófica e sexualmente.

Um filme exemplar, que deveria ser um absoluto sucesso, …

… mas que passará em quase silêncio por nossas telas.

E, de quebra, com esta maravilhosa mulher,

… cuja boca é inequívoca nudez.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

A vida que ninguém vê, de Eliane Brum

Lembro de ter lido algumas das reportagens literárias da série A vida que ninguém vê na Zero Hora. Gostava daquilo. Eram casos de pessoas anônimas, cujas vidas eram descritas numa linguagem derramada, intensa, que funcionava, iluminava o jornal. Acho que as histórias eram publicadas semanalmente. Comprei o livro da reunião delas numa feirinha do Mercado Público e li 50 páginas de enfiada no mesmo dia. E, juntas, tudo funcionou bem pior. O esquema geral ficou aparente demais, a linguagem tornou-se pesada, a adjetivação passou a incomodar. Como gosto de mim e, consequentemente, de sentir prazer em ler, fechei o livro e voltei a ele 15 dias depois, lendo uma história a cada dois dias. Melhorou muito.

Sei bem o motivo da primeira rejeição, mas isto faria com que eu desse uma imensa volta que passaria pela minha experiência e preferências como leitor — que absurdamente já ultrapassa os 40 anos de consumo diário de livros… — a teóricos como Pound, Bakhtin e James Wood. Seria longo e chato fazer o périplo, mas vou dar uma tangenciada, vou evitar a abordagem literário-ontológica e partir para o sociológico. Em outras palavras, vou enganar vocês ignorando toda uma faceta do livro, restituindo o caráter boêmio e irresponsável deste blog…

Outro problema da coleção de histórias é a escolha de seus personagens. Com poucas exceções — só o carregador de malas e o colecionador? — , temos uma galeria de desvalidos, de pessoas realmente paupérrimas ou deficientes, como se um solteirão sozinho num apartamento de classe média ou a estudante do interior que se esforça como Sísifo em vestibulares não fossem anônimos. O fato de serem de classe média não os deixa visíveis e talvez eles estejam desesperados ou indiferentes ou compulsivos ou infelizes ou eufóricos em outros âmbitos. Sabemos que uma lente de aumento sobre qualquer ser humano torna-o distinto, único. Ou seja, o sujeito não precisa estar numa situação-limite para ser interessante e estar na vida que ninguém vê.

A escolha quase exclusiva pelos enjeitados coloca-nos numa situação de culpa em relação a eles, certo; mas também coloca-os numa vitrine na qual a classe média pode observá-los como num zoológico. Parece haver uma separação, uma fronteira nos olhos da autora. Não gostei da opção e acho que a galeria deveria ser mais equilibrada em função da proposta. Afinal, o título do livro não é A pobreza que ninguém vê.

Para finalizar: costumo ler as colunas de Brum. Se as da Vida que ninguém vê já eram boas, as atuais são muito melhores. Gostaria de ler seu livro de ficção Uma Duas. Isso me faz recordar que estou de aniversário domingo!

.oOo.

P.S.– O que dá ler duas vezes Ulysses em três meses… Hoje, eu escrevi naturalmente: Mesmo os pianistas mais geniais têm seus momentos de absoluta bocabertice. Já a interpretação, a concepção, reafirmam Hewitt como a maior pianobachiana viva. Putz, tô me sentindo como aqueles gaúchos que passam uma semana no Rio e voltam chiando. A propósito, esqueci de comentar aqui uma das passagens mais cômicas que já li: os fatos imediatamente posteriores ao encontro entre Bloom e Gerty MacDowell, sobre cheiros e coisas que grudam. Hilariante!

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Gremistas não sabem onde fica o Estádio Olímpico

Como é que eles cantam “Com o Grêmio onde o Grêmio estiver” se não sabem onde estão?

Costumo discutir com meus amigos gremistas sobre a localização do Estádio Olímpico Monumental (grandioso, não?), o qual possui este nome por ter sido a sede principal das Olimpíadas de Porto Alegre. Sempre soube que o time da Azenha era, na verdade, o time da Medianeira, mas eles e a imprensa esportiva desejam ser “da Azenha”. Há músicas do clube que falam em Azenha e o site do clube confirma a informação. São equívocos.

Pois, em verdade, o estádio localiza-se na Medianeira, sendo que apenas o Pórtico Monumental e Imortal dos Campeões faz limite com o modesto bairro onde morei alguns anos. Como somos pessoas normais, sempre estranhei que abrigássemos o santuário de Zeus. Hoje eu descobri a verdade:

Medianeira é um bairro da zona sul da cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Foi criado pela Lei 1762 de 23 de julho de 1957, com limites alterados pela Lei 4626 de 21 de dezembro de 1979. Foi o primeiro bairro criado por lei.

(…)

O bairro também abriga o Estádio Olímpico Monumental, do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, que fica nos limites com o bairro vizinho da Azenha. Entretanto, como o acesso se dá por este último – e, para confundir, por uma avenida homônima ao bairro -, muitas pessoas acreditam que o referido estádio fica no bairro Azenha, o que é uma inverdade.

OK, nosso estádio deveria ser chamado de Beira-Lago, mas isso eu não acho tão divertido.

O bairro Azenha encontra-se às costas do fotógrafo que mostra a parte mais desinteressante da Medianeira | Foto: http://espaomarapoatextoseimagens.blogspot.com.br/

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Os 100 anos do ícone literário A Metamorfose, de Franz Kafka

Franz Kafka, autor de A Metamorfose, que completa 100 anos em 2012

Publicado em 15 de abril de 2012 no Sul21

Em 2012, a clássica novela de Kafka, A Metamorfose, estará completando 100 anos. A marca que ela deixou na cultura ocidental é tão profunda quanto aquela deixada por 1984 de George Orwell e por pouquíssimos outros livros dos últimos séculos. E, com efeito, aqueles que leram a pequena obra de pouco mais de 30 mil palavras, dificilmente deixarão de lembrá-la e, dentre os apaixonados pela literatura ou pelo fantástico, não é raro encontrar quem saiba recitar de cor o início da novela, certamente uma das melhores e mais intrigantes aberturas da literatura de todos os tempos:

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos.

O que terá acontecido comigo?” ele pensou.

Tradução de Marcelo Backes para a L&PM

Apesar de ter sido publicada em 1915, A Metamorfose foi escrita em novembro de 1912. A quase centenária novela foi concluída em apenas 20 dias no dia 7 de dezembro de 1912, quando Kafka escreveu à sua eterna e repetida noiva Felice Bauer: “Minha pequena história está terminada”. Há outra nota muito significativa escrita por Kafka. Dois meses antes, ao finalizar O Veredicto, outra pequena novela, Kafka registrou em seu diário que havia descoberto “como tudo poderia ser dito”. A Metamorfose foi a primeira tentativa após a nota.

Felice Bauer: duas vezes noiva de Kafka, jamais casaram

Tudo é muito enigmático em se tratando de alguém tão tímido e com tão poucos amigos como Kafka, mas certamente a frase escrita tem o significado de uma iluminação e tudo o que o escritor criou a partir dali — uma notável série de romances e novelas onde podem ser listados O Foguista, Diante da Lei, A Colônia Penal, O Processo, Carta ao Pai, Um Médico Rural, O Artista da Fome, O Castelo e A Construção, dentre outros — são obras ou de primeira linha ou de conteúdo nada desprezível ou esquecível. O crítico Otto Maria Carpeaux, que emigrou para o Brasil com a ascensão do nazismo, lembra:

— Fui apresentado a Kafka em Praga. Estávamos num jantar. Disseram-me que se tratava de um gênio. Era muito magro, sabemos hoje que tinha 1,82 m e por volta de 65 quilos. Estava num canto, sozinho. Fui até ele de forma a integrá-lo na conversa geral. Quando me apresentei, entendi seu nome como Kauka, porque ele falava muito baixo. Ora, se era Kauka, não era aquele autor do qual recebera dois livros que ainda não lera. Tentei puxar conversa, mas ele não dava continuidade, respondendo apenas o mínimo. Achei que incomodava e me afastei.

Kafka com seu grande amigo Max Brod na praia

Carpeaux — um grande crítico literário, autor de uma alentada História da Literatura Ocidental em oito volumes — arrependeu-se pelo resto da vida por ter desistido tão rápido de um escritor que passou a incensar poucos anos depois. Ele ouvira errado, não era Kauka, era mesmo o Kafka dos livrinhos recebidos.  É compreensível que Carpeaux lamente a perda da oportunidade, mas não é lógico torturar-se — afinal, era o ano de 1921 e, embora a tal “iluminação” fosse de 1912 e o escritor tivesse vivido até 1924, Kafka nunca chegou a ser muito conhecido enquanto vivo. Era um escritor obscuro que publicava alguma coisa e engavetava outras. Quando morreu, pediu a um bom amigo que destruísse seus escritos não publicados. Para nossa sorte, Max Brod foi um amigo ainda melhor e o traiu, salvando para o mundo romances como O Processo e O Castelo.

Hoje, os volumes de crítica da obra de Kafka enchem estantes, mas os enigmas permanecem, mesmo em relação a A Metamorfose. Sabe-se que Kafka leu trechos da obra para Max Brod e outros de seus poucos amigos. Os biógrafos dizem que o grupo ria do grotesco das cenas. Kafka também. É possível ler Kafka em registro cômico, sem dúvida, mas é indiscutível que a leitura mais grandiosa é a que coloca o homem em desespero frente à existência. Há uma quase imperceptível camada de humor e outra de ironia, esta pouco mais espessa, perpassando seus textos, mas o efeito geral nunca pode ser descrito como alegre ou motivador. Na verdade, é um narrador imperturbável contando uma história sufocante, sem apelar para fórmulas de suspense ou terror. Gunther Andres, na página 19 de Kafka: pró e contra (os autos do processo), resume brilhantemente: “O espantoso, em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém”.

Franz Kafka com a irma Ottla, no Centro Histórico de Praga

O título A Metamorfose provavelmente se refere não somente à mudança física de Gregor Samsa – nome estruturalmente bem semelhante à Kafka, não? –, que se torna um inseto “certa manhã”, como a todas as outras mudanças decorrentes na família. Se antes da metamorfose toda a família dependia de seu trabalho como caixeiro-viajante e o apoiava e amava, com a transformação em inseto e consequente prisão no quarto, o pai é obrigado a voltar a trabalhar, a ingênua e pura irmã de 17 anos também, a mãe passa a costurar e a casa transforma-se numa hospedaria onde Gregor é mais do que dispensável, é indesejado. A transformação física de Samsa gera outra metamorfose e pode-se dizer que ele passa de parasitado a parasitário, de arrimo a peso morto e objeto de repulsa.

Kafka pedira "encarecidamente" que a figura de Gregor não fosse retratada por seu editor, a posteridade não lhe deu atenção

É estranho que Gregor acorde aquela manhã sem tentar analisar o que teria acontecido, como e por quê. A pergunta “O que terá acontecido comigo?” é isolada. Depois, ficamos sabendo de suas incomodações com a vida anterior e temos a impressão de que a atual tanto faz. Em alguns momentos da narrativa, ele parece estar vingando-se, em outros, concupiscente. O ostracismo no seio familiar, a pressão do trabalho, a necessidade de obedecer, a profunda insatisfação de estar sendo escravizado, tudo o que a novela sugere encontra repercussão na vida do autor. A história do homem tornado besouro é inteiramente realista. O problema familiar recebe uma importante observação do tradutor Marcelo Backes: “Kafka invoca seu pai, mãe e irmã quase sem o uso dos pronomes possessivos. É algo muito insistente. É raro que o narrador fale de SUA irmã, de SEU pai, de SUA mãe. Eles são, na maior parte das vezes, apenas pai, mãe e irmã, sem a afetividade do pronome possessivo e vivendo tão-só em sua condição genérica de pai, mãe e irmã”.

No clássico Conversações com Kafka (1920-1923), Gustav Janouch cita que Kafka afirmara que “A metamorfose não é uma confissão, ainda que – em certo sentido – seja uma indiscrição”. Indiscrição certamente menor do que a célebre Carta ao Pai, mas não tergiversemos.

Detalhe da adaptação para os quadrinhos de 'A metamorfose', de Franz Kafka, desenhada por Peter Kuper (Clique sobre a imagem para ampliar)

A forma como Kafka monta rapidamente os conflitos do livro também surpreende. O primeiro está no famoso primeiro parágrafo, depois há outros dois conflitos graves, construídos na mesma linguagem direta e sucinta, de exatidão quase cartorial: o momento em que Gregor é visto pela primeira vez por seus familiares — uma cena de notável realização artística de Kafka — e momento onde a irmã de Gregor, Grete Samsa, aconselha seus pais a livrarem-se do enorme inseto, pois já haviam tentado de tudo para conviver com ele. Há também a interpretadíssima agressão com a maçã, mas talvez o que deixe o leitor mais perturbado é o que subjaz desde a primeira até a última palavra: é o fato de que outro acontecimento extraordinário simplesmente não ocorre. Não há o momento de explicação para o acontecido ou do retorno ao estado normal. Na verdade, não há explicações, tudo fica aberto às interpretações, há uma aristotélica e perturbadora ausência do esquema clássico de exposição, conflito, clímax e conclusão.

Kafka pediu a seu editor que evitasse desenhar, mesmo de longe, a figura de Gregor, mas hoje temos versões de Gregor Samsa até em quadrinhos, além de filmes. Para alguns trata-se de uma barata, apesar de que os sinais indicam claramente para uma espécie de besouro. Invocamos novamente o tradutor Marcelo Backes: “Kafka o refere apenas como “rola-bosta” (besouro). Mas o que é objetivo pode ser tanto mais difuso, uma vez que Mistkäfer (rola-bosta) pode-se referir também e inclusive a uma pessoa suja e descuidada, ou tratar-se de um escaravelho qualquer, uma vez que é designação comum a insetos coleópteros, coprófagos e escarabeídeos, que em geral vivem de excrementos de mamíferos herbívoros”.

Kafka sempre dizia: “Tudo o que não é literatura me aborrece, e eu odeio até mesmo as conversações sobre literatura”. O que incluiria certamente este artigo. Ou seja, vale muito mais a pena ler a pequena e revolucionária novela.

 

Uma curiosa campanha para o incentivo à leitura, feita pela Johnson County Library em 2010

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Em 1914, a Alemanha entrava na guerra. Quem estava nas comemorações?

Do meu imenso e sempre surpreendente arquivo de fotos…

O jovem Adolph Hitler, aos 25 anos, ficou feliz

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!