Grave

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Breve comentário sobre a Feira do Livro de Porto Alegre 2023

Dei uma passada na Feira agora e a coisa é de chorar. É uma feira de editoras, distribuidoras e sebos. Os sebos sabem vender, claro, os outros não. As editoras enfiam seus próprios livros, as distribuidoras não têm prática de vendas e enfiam o que têm, mas o principal, penso é, o que elas NÃO TÊM. Por exemplo, a distribuidora da Cia das Letras trouxe, por alguma razão, um acervo curtíssimo — quase nada — da dita cuja. Então, a maior editora brasileira está pessimamente representada. Procurem pelos livros da Cia! É triste. As livrarias que têm curadoria não estão na Feira porque ir à Feira é absurdamente caro. A minha Bamboletras não está lá, a Taverna não está lá, a Paralelo 30 não está lá, nem a Via Sapiens. Ou seja, as melhores tiveram que abrir mão da festa por falta de grana. O que tem é gente dizendo que “tudo é ótimo” e que “temos de tudo”. Dá vontade fazer uma barraca escrito LIVRARIA. Pois é tudo o que não há.

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Dublinenses, de James Joyce

Dublinenses, de James Joyce

James Joyce apresentou o manuscrito de “Dublinenses” pela primeira vez a uma editora em 1905. Foi rejeitado 18 vezes antes de ser finalmente publicado, em 1914. Seu contrato estabelecia que ele não receberia royalties a menos que o livro vendesse pelo menos 500 cópias — vendeu 499, informaram-lhe.

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A endocardite

Desde o dia 20 de outubro estou dormindo no hospital como acompanhante da Elena. A guerra é secundária, não sei nada da reforma tributária e minhas leituras estão quase paralisadas. Elena teve uma doença muito grave, mas está se recuperando fantasticamente. Nem parece aquela pessoa que no dia 12 perdeu os movimentos do lado direito do corpo. Naquela noite, o nervosismo parecia que ia me matar. Quando ela entrou na CTI, fiquei lá fora por alguns instantes. A coisa estava tão insuportável para mim que dei um chute numa cadeira. Só que a dita cuja estava pregada no chão. Quase quebrei o pé. Fiquei mancando três dias, só que minha mulher estava muito pior.

Porém, ela começou velozmente a melhorar e ontem, bem, ontem houve um daqueles momentos mágicos que jamais esquecerei. A fisioterapeuta levou a Elena — que já caminha normalmente — até um (excelente) piano que está num saguão do hospital. E ela tocou lindamente o Prelúdio Nº 1 do Cravo bem temperado, a Ich ruf zu dir, de Bach, e ainda improvisou Because e Here, there and everywhere, dos Beatles. A fisio chorou, enquanto minha querida reclamava que o ombro e o braço direitos ainda doíam. Eu gravei tudo, mas a Elena me mataria se colocasse o vídeo aqui, porque é violinista profissional e não pianista.

Hoje, vivo entre três polos que me puxam. A Elena, o gato Vassily — que está desesperado sem sua dona e que até passou a gostar de mim, que antes era tratado como o embaixador de uma nação inimiga — e a livraria, que está em dificuldades. (Aliás, você deve ir lá. Deve sim!).

Não sei que porra de ensinamento vou tirar disso tudo. Acho que a única obviedade a ser constatada é que tudo é muito frágil e que qualquer equilíbrio é pura aparência. Minha mulher é mais de uma década mais jovem do que eu e eu sou seu orgulhoso cuidador. Gosto de voltar à noite para o hospital e de vir aqui durante o dia. A lição talvez seja a de me mostrar o lugar onde devo ficar. Mas isso eu já sabia antes.

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First Folio, 400 anos

First Folio, 400 anos

O “First Folio” é uma das grandes maravilhas do mundo literário. Publicada em 8 de novembro de 1623, sete anos após a morte de seu autor, foi a primeira edição impressa das peças completas de Shakespeare. Sem ele, é consenso de que boa parte de sua obra teria sido perdida. Hoje, o “First Folio” completa seu 400º aniversário. É uma das pedras fundamentais da cultura humana.

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A magia de Tristram Shandy

A magia de Tristram Shandy

Por Vicente Battista
Traduzido por este blogueiro

Laurence Sterne, por Sir Joshua Reynolds

Uma parte significativa da grande literatura inglesa foi escrita por irlandeses — Oscar Wilde, William Butler Yeast, Bram Stoker, George Bernard Shaw, James Joyce e Samuel Beckett são um exemplo perfeito. Nenhum deles alguma vez negou a sua dívida para com Laurence Sterne, um compatriota nascido em Clonmel, condado de Tipperary, um século antes. Esta dívida não se limita exclusivamente aos autores irlandeses: o francês Denis Diderot, para escrever Jacques, o fatalista”, baseou-se na construção paródica, na rejeição das convenções narrativas e na figura do anti-herói proposta por Sterne que, aliás, foi contemporâneo de Diderot: ambos nasceram em 1713. Dostoiévski em O Idiota narra como o príncipe Mishkin conta a Yelizabeta e suas três filhas a história de uma pobre mulher humilhada em uma aldeia suíça que é literalmente retirada de Viagem Sentimental pela França e Itália, de Sterne. A sua influência também pode ser percebida em autores tão diversos como ETA Hoffmann, Victor Hugo e Charles Dickens. “Eu li Sterne. É admirável”, confessou Tolstói, e traduziu-o imediatamente para o russo; uma admiração que Goethe também não escondeu. Nietzsche considerou que “ele é o escritor mais livre de todos os tempos e o grande mestre da incompreensão… este é o seu propósito, ter razão e não estar certo ao mesmo tempo, misturar profundidade e bufonaria… É preciso render-se à sua fantasia benevolente, sempre benevolente.” Schopenhauer sustentou que os melhores romances de todos os tempos foram: Dom Quixote de La Mancha, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Julia, ou a Nova Heloísa e A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, Cavaleiro. A influência de Laurence Sterne não parou, ultrapassou línguas e continentes. Descobriremos que a escrita destemperada, cáustica e insubordinada nos textos de Julio Cortázar, José Lezama Lima e Guillermo Cabrera Infante e até Borges — a estratégia de apresentar autores e livros inexistentes como verdadeiros é típica de Sterne.

A contracapa de Tristram Shandy, que Planeta publicou em 1976, com prólogo de Víctor Sklovski e tradução de Ana María Aznar, traz uma gravura que supostamente seria o rosto de Laurence Sterne. A ironia que se percebe em seu olhar e a expressão mordaz que seus lábios refletem dão uma medida completa do personagem. Ao ver aquela gravura e ao ler seu romance, tende-se a pensar que sua biografia também poderia ser parte de uma farsa, outro truque do próprio Sterne. Porém, os dados são verdadeiros: ele nasceu em 24 de novembro de 1713, numa pequena cidade do condado de Tipperary, no sul da Irlanda. Estudou em Cambridge e em 1738, aos 25 anos, foi ordenado sacerdote da Igreja da Inglaterra. Em 1741 casou-se com Elizabeth Lumley, com quem, nas palavras de Alfonso Reyes, “não soube manter uma relação cordial”. Em 1760 obteve o vicariato de Coxwold, no norte da Inglaterra. Um ano antes, ele havia começado a publicar Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”. Os nove livros que hoje compõem a obra foram publicados, os dois primeiros em 1759 e os restantes sete ao longo dos oito anos seguintes. Sterne morreria alguns meses depois.

Começou a escrever tarde e morreu cedo. Sua vida como escritor não durou mais que nove anos, mas foi tempo suficiente para forjar um romance que criou uma nova forma de narrar a partir da paródia. Em 1760, ele publicou Mister Yorick’s Sermons, um volume no qual compilou os excêntricos sermões que proferiu como vigário na Igreja de Coxwold. Em 1767, sob o título Cartas de Yorick para Eliza, publicou a correspondência que mantinha com sua amante Eliza Draper. Tanto para os sermões quanto para as cartas de amor, ele escolheu o nome do padre Yorick, um dos personagens de Tristram Shandy e por sua vez uma espécie de alter ego do próprio Sterne. Não é por acaso que seu nome era Yorick, como o bobo da corte que Hamlet evoca no quinto ato do drama de Shakespeare. Um mês antes de morrer, apareceu A Sentimental Journey through France and Italy, que alguns consideram ser o epílogo de Tristram Shandy.

Admirador confesso de Cervantes, Rabelais, Swift, Pope e Locke, a influência de cada um deles foi essencial para que Sterne construísse uma obra-prima que, em suas quase quinhentas páginas, antecipa muitos dos recursos narrativos da vanguarda literária de final do século 19. Século 19 e início do século 20, desde peculiaridades tipográficas: duas páginas  inteiramente pretas no capítulo 36 do livro terceiro e os capítulos 18 e 19 do livro nono completamente em branco, até capítulos que consistem em uma única frase ou a prévia do monólogo interior que Joyce desenvolveria em Ulisses um século e meio depois.

Pouco depois do aparecimento dos dois primeiros livros, The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman  tornou-se um sucesso, embora não para todos: o prestigiado Samuel Johnson destacou que o romance ignorava quase todas as regras gramaticais. “Senhor, você não sabe inglês”, disse ele a Sterne, e quando Sterne, sarcástico, reconheceu que era efetivamente ignorante dessa língua, Johnson, definitivamente, declarou: “nada extravagante pode durar”. Samuel Johnson é considerado o melhor crítico literário de língua inglesa de todos os tempos. É claro que mesmo os grandes críticos às vezes cometem erros.

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