Dmitri Shostakovich (V)

Para Paulo Ricardo Brinckmann Oliveira

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui e acolá.

Sinfonia Nº 13 (Babi Yar), Op. 113 (1962)

Após o equívoco da Sinfonia Nº 12 – lembrem que até Beethoven escreveu uma medonha Vitória de Wellington, curiosamente estreada na mesma noite da sublime 7ª Sinfonia, mas este é outro assunto… -, Shostakovich inauguraria sua última fase como compositor começando pela Sinfonia Nº 13, Babi Yar. Iniciava-se aqui a produção de uma sequência de obras-primas que só terminaria com sua morte, em 1975. Esta sinfonia tem seus pés firmemente apoiados na história da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. É uma sinfonia cantada, quase uma cantata em seu formato, que conta com a nada desprezível colaboração do grande poeta russo Evgeny Evtuchenko (conforme alguns, como a Ed. Brasilinense, porém pode-se encontrar a grafia Ievtuchenko, Yevtuchenko ou Yevtushenko, enfim!).

O que é, afinal, Babi Yar? Babi Yar é o nome de uma pequena localidade situada perto de Kiev, na atual Ucrânia, cuja tradução poderia ser Barranco das Vovós. Ali, em 29 e 30 de setembro de 1941, teve lugar o assassinato de 34 mil judeus pelos nazistas. Eles foram mortos com tiros na cabeça e a participação comprovada de colaboradores ucranianos no massacre permanece até hoje tema de doloroso debate público naquele país. Nos dois anos seguintes, o número de mortos em Babi Yar subiu para 200 mil, em sua maioria judeus. Perto do fim da guerra, os nazistas ordenaram que os corpos fossem desenterrados e queimados, mas não conseguiram destruir todos os indícios. Ievtuchenko criticou a maneira que o governo soviético tratara o local. O monumento em homenagem aos mortos referia-se às vítimas como ucranianas e russas, o que também eram, apesar de se saber que o fato determinante de suas mortes era o de serem judeus. O motivo? Ora, Babi Yar deveria parecer mais uma prova do heroísmo e sofrimento do povo soviético e não de uma fatia dele, logo dele, que seria uma sociedade sem classes nem religiões… O jovem poeta Ievtushenko considerou isso uma hipocrisia e escreveu o poema em homenagem aos judeus mortos. O que parece ser uma crítica de importância relativa para nós, era digna de censura, na época. O poema — o qual tem extraordinários méritos literários — foi publicado na revista Literatournaia Gazetta e causou problemas a seu autor e depois, também a Shostakovich, ao qual foram pedidas alterações que nunca foram feitas na sinfonia. No Ocidente, Babi Yar foi considerado prova da violência antissemita na União Soviética, mas o próprio Ievtuchenko declara candidamente em sua Autobiografia Precoce (Ed. Brasiliense, 1987) que a tentativa de censura ao poema não teve nada a ver com este gênero de discussão e que, das trinta mil cartas que recebeu falando em Babi Yar, menos de trinta provinham de antissemitas…

O massacre de Babi Yar é tão lembrado que não serviu apenas a Ievtuchenko e a Shostakovich, tornando-se também tema de filmes e documentários recentes, assim como do romance Babi Yar de Anatoly Kuznetsov. Não é assunto morto, ainda.

O tratamento que Shostakovich dá ao poema é fortemente catalisador. Como se fosse uma cantata em cinco movimentos, os versos de Ievtuchenko são levados por um baixo solista, acompanhado de coral masculino (formado apenas por baixos) e orquestra. É música de impressionante gravidade e luto; a belíssima linha melódica ora assemelha-se a um serviço religioso, ora aum dos grandes modelos de Shostakovich, Mussorgski; mesmo assim, fiel a seu estilo, Shostakovich encontra espaço para seu habitual sarcasmo.

Tranquila crueldade: soldados alemães examinam as roupas dos mortos em Babi Yar.

“Babi Yar” é como ficou conhecida a sinfonia para coro masculino, baixo e orquestra.  A partir do texto de dura indignação de Ievgueni Evtuchenko e apesar dos problemas que ele geraria na União Soviética pós-stalinista, Shostakovich construiu um painel de extraordinária força em torno de mazelas típicas de seu tempo: o medo e a opressão, o conformismo e o carreirismo, o massacre cotidiano num Estado policial e a possibilidade de superação através do humor e da intransigência.

Em linguagem quase descritiva, combinando a severidade da orquestra com a impostação épica das vozes, “Babi Yar” tem um poder de evocação cinematográfico: raramente se ouviu música tão plástica. O realismo e a imagens dos poemas são admiravelmente apoiados pelo estilo alternadamente sombrio e agressivo da música de Shostakovich. Não obstante o grande efetivo orquestral e a tensão dos clímaxes, as texturas são rarefeitas e o coro, declamando ou murmurando, canta quase sempre em uníssono ou em oitavas — mais um elemento dessa estrutura preparada para expressar a desolação e o nervosismo.

O primeiro movimento alterna estrofes que exploram o horror e a culpa de Babi Yar com relatos de dois outros episódios — o de Anne Frank e o de um menino massacrado em Bielostok. No segundo movimento, ritmado de forma tipicamente shostakovichiana, o tom enfático das vozes falam da resistência que o “Humor” jamais deixará de oferecer à tirania. “Na loja”, o Adagio que se segue, descreve quase fisicamente as filas das humilhadas donas-de-casa numa linha sinuosa à espera de um pouco de comida. Quando chegam ao balcão, o poema diz: “Elas nos honram e nos julgam”, enquanto percussão e castanholas simulam panelas e garrafas se entrechocando. É em clima que estupefação que o movimento se encerra: “Nada está fora de seu alcance”.

A linha sinuosa torna-se reta ao prosseguir sem interrupção para o episódio seguinte, um ameaçador ‘sostenuto’ das cordas graves sob solo da tuba: é o “Medo”, componente constante da vida soviética. Contrapondo-se às sombras que até aqui dominam a sinfonia, Shostakovich a conclui com uma satírica reflexão sobre o que é seguir uma “Carreira”. Em ritmo de valsa lenta, ficamos sabendo que a verdadeira carreira não é a dos que se submetem, mas a de Galileu, Shakespeare ou Pasteur, Newton ou Tolstói: “Seguirei minha carreira de tal forma que não a esteja seguindo”, conclui o baixo, com o eco do sino que abrira pesadamente a sinfonia, agora aliviado pela celesta.

Shostakovich (esquerda), com o poeta Evgeni Ievtuchenko (direita)e o regente Kiril Kondrashin na estréia da 13ª Sinfonia.

A história da primeira execução de Babi Yar foi terrível. Houve protestos e ameaças por parte das autoridades soviéticas. Se até 1962, Shostakovich dava preferência a estrear suas obras sinfônicas com Evgeny Mravinsky (1903-1988), Babi Yar causou um surdo rompimento na parceria entre ambos. O lendário regente da Sinfônica de Leningrado amedrontou-se (teve razões para tanto) e desistiu da obra pouco antes de começarem os ensaios. Porém, como na União Soviética e a Rússia os talentos brotam por todo lado, Mravinsky foi substituído por Kiril Kondrashin (1914-1981) que teve uma performance inacreditável e cujo registro em disco é das coisas mais espetaculares que se possa ouvir.

P.S.- Por uma dessas coisas inexplicáveis, encontrei o disco soviético com o registro da estreia num sebo de Porto Alegre em 1975. Comprei, claro.

Obs.: A descrição da música foi adaptada de um texto que Clovis Marques escreveu para um concerto no Municipal do Rio de Janeiro.

Recebendo o Dr. Cláudio Costa

Publicado em 10 de outubro de 2007

Tenho uma história muito feliz de encontros com blogueiros. Boa convivência, gentileza, piadas, amizades. Conheci muitos, dentre quais posso citar de memória Mônica, Tiago, Gejfin, Afonso, Biajoni, Olivia, Sandra Pontes, Marcão, Laura RJ, Mauro Castro, Stella, Rafael Reinehr, Sílvia Chueire, Donizetti, Inagaki, Nelson Moraes, Cynthia Feitosa, Gabriela Franco, Ticcia, Ane Aguirre, Fábio Danesi, Viva, Francisco Viegas, Nora Borges, Flavio Prada, Allan Robert, Fabrício Carpinejar, Nelson Natalino, Alê Felix, Adalberto Queiróz, Helenir Queiróz, Vanessa Lampert, Claudia Letti, Marcos Caiado, Fal, Manoel Carlos, Adelaide Amorim, Doce Maior, Thomaz Magalhães… e certamente muitos outros que esqueci e que ficarão irritados comigo.

Por falar em comportamentos limítrofes, minha mulher fica maluca quando vai receber alguém em casa. Casa? A casa se transforma. Não se sabe de onde nem como surgem toalhas novas, tudo vai para o seu lugar (ou para lugar um inédito, no caso daquelas coisas que nunca encontraram um paradeiro para chamar de seu), os sabonetes deixam de ser arredondados para adquirir sequinhos formatos de paralelepípedos, há fartura de papéis higiênicos nos banheiros — ninguém precisará gritar desesperadamente por ajuda — , fica tudo florido, as roupas DELA somem magicamente de seus habituais lugares para finalmente conhecerem o armário e eu tenho, além de organizar tudo o que é meu, que caminhar mui cuidadosamente pelo apartamento, lentamente, revisando se meus sapatos não trouxeram muito pó da rua e observando bem a nova disposição das coisas para não derrubar nada.

Como já me acostumei, não me incomodou muito a necessidade de levar o armário de CDs de um canto a outro da sala. Seu peso é mais ou menos o de um automóvel americano dos anos 60, porém, como preciso mesmo emagrecer, nem me preocupei com a ausência das rodas nem com o fato de ter alçado a cama de casal do meu filho para o quarto de cima. (Aqui há um interessante detalhe. Quando comprei a cama para o Bernardo, disse-lhe que havia três modelos na loja: No Sex, Stop Fucking e Penis Paralisator. Por profilaxia paterna, escolhi o Penis Paralisator; afinal, ele tem 16 anos, namora uma menina da mesma idade e eu não desvio um centímetro daquilo que está prescrito no Manual do Perfeito Católico: a Castidade é a Pérola das Virtudes.) Bom, então o fato é que nossos convidados, o Professor Doutor Psiquiatra e o escambal Claudio Costa e sua esposa, repousarão sobre o Penis Paralisator. Será um período imaculado na vida de nosso querido doutor. A imobilidade, dizem, além de tornar as pessoas mais espirituais, garante algumas reputações. A dele certamente não será diminuída pela falta dessas efêmeras dilatações. Ou… sei lá.

Algo que é normal lá em casa e que continuará acontecendo durante a estadia do mineiro casal é a comilança perpétua. E olha, é impossível resistir, a gente engorda pacas. Sou cobaia e beneficiário das artes de Claudia Antonini. Devido a ela, expando-me como o universo. Talvez os filhos do Claudio — eliminemos logo o “doutor” de alguém tão amável e sem frescuras –, não o reconheçam na volta, tal o incremento que sua barriga e outras partes expandíveis do corpo humano poderá receber. Mas deixo de lado qualquer possibilidade de incremento sobre o membro discutido no parágrafo anterior. Não há chances. E ele, coitado, fala sobre uma nova lua de mel em Porto Alegre…

Infelizmente, ficarão apenas de hoje até sábado. Quatro quilos? Não sei, se a Ana Letícia pedir muito, a gente pode piorar a comida… Filhos são assim: aposto que ela ficará satisfeita com o Penis Paralisator — pai, vai devagar, na tua idade… — e quererá seus papais comendo de forma equilibrada. Mas nós, que gostamos deles por serem divertidos e legais — não que ela não os ame pelo mesmo motivo — , pretendemos submergi-los em vinhos, massas, carnes e que tais. A vida é assim meio tola mesmo, né, Ana?

Há uns três meses, encontramos o Claudio aqui em Porto Alegre e posso garantir que contraí por ele uma paixão avassaladora — ainda que platônica, bem entendido. Conversamos como velhos amigos, dissemos coisa séria e muita bobagem e, quando soubemos do Congresso de Psiquiatria que ocorreria em outubro, o convite para que ficasse em nossa casa saiu-nos fácil. Ainda bem que ele aceitou nos incomodar. Era, exata e minuciosamente, o que desejávamos.

Comentários do blog anterior:

Ramiro Conceição: Dois comentários: 1) Milton, gostei muito da cinética, da fluidez do texto. 2) Agora sobre esse tal utensílio, denominado de “Pênis Paralizator”, Doutor Cláudio, cuidado!; pois o senhor e a sua senhora talvez estejam adentrado na trama mágica da teia do terrível Periquito da Genitália Grande, sob um surto da “Síndrome de Milton”. Explicando melhor. Como sabemos, quando casais se visitam, sempre, em alguma ocasião, as mulheres ficam com as mulheres e os homens com os homens. Aí, Doutor Cláudio, mora o perigo! O terrível Periquito, em milhares de subterfúgios colorados, tentará atraí-lo para o utensílio da devassidão. Mas, caro Doutor, já será tarde. O senhor ainda tentará o derradeiro argumento: Pera aí: isso não é o “Pênis Paralizator”? Mas aquela voz sedenta e cavernosa, babando de prazer dirá: “Não, querido Cláudio, aqui é o lugar do “Pênis pra Alisador”. Querido Doutor, aí — nem Freud explica!

Meg: Milton será que me colocaste no Index Prohibitorum? Nenhum comentário meu entra. Tamos maus;-) Beijos ao Cladio que deve dizer “Paralisator? antes ele do que o meu” hohoho Estou fazendo graça porque sei que não vai entrar o bendito do comentário Putz! Feliz dia das Crinaças. A começar por ti. M

M: Milton dá um beijo ou manda dar;-) um beijão especial no Claudio e na família dele. E diz que espero ele em Belém do Pará. Ele , como bom psi lacaniano, deve conhecer o inconsciente do Oiapoque ao Chuí, no caso o Oiapoque fica em Belém, mas só neste caso, especialmente para ele. beijos para ti, para a Claudia, tua mulher de verdade;-) e todas as crianças da casa Meg

Viva: Milton, tua crônica está deliciosa, como devem ser os pratos da Cláudia e a prosa do Cláudio. PS: se no domingo você amanhecer com um olho roxo, não vou estranhar. Essa função “casa organizada para as visitas” todo mundo faz. Só que não se conta!!!

Nina – Fenômenos: uhauhauahauhauh passei mal com a cama “penis paralizator”. aqui em casa nao e diferente. qdo tem visita e uma loucura. minha mae só falta nos pedir pra nao respirar. sem falar nos objetos novos que aparecem: talheres do faqueiro que herdou de nao sei quem, copos que eu nunca vi na vida, toalha de mesa bordada a mao (made in ceara). parece que estou em outro lugar!!! sem falar nas comidas. tenho um primo que se diverte qdo a familia inteira esta reunida. ele tira fotos da galera comendo. e so isso que se faz na familia buscape…comer!!! 150 mastigacoes por minuto!! impressionante!!! beijos

Gugala: Pelo jeito vais conseguir que o Dr. participe, solteiro, dos próximos Congressos . ahaha abraços

Cláudio Costa: Olhacá, vamos precisar de algumas laudas para falar de nossa alegria e emoção ao sermos recebidos com tanta fidalguia! Por ora, caríssimos Milton, Cláudia, Bê e Babi, deixamos aqui nosso agradecimento. Depois conto os “podres”, hehehe

Lord Broken Pottery: Milton, Boa companhia e comida farta. “Fartou” alguma coisa? Grande abraço

Flavio Prada: A raridade do encontro somada à raridade dos personagens, faz de tudo isso um momento precioso. Gente da melhor qualidade, e digo isso sem um minimo de confete, é sentido. Beijos a todos.

Ana Letícia: uahahahahaha Amei isso de “penis paralizator”!!! Tadinhos dos pombinhos enamorados, tentando comemorar longe dos “filhotinhos” os vinte e alguns anos de casamento… Crentes que teriam uma lua de mel digna dos “velhos” tempos… hehehe Milton, será que a Cláudia não é parente da minha mãe? Conversem aí e depois me contem, pois aqui em casa quando tem visita é a mesmíssima coisa! 😉 Beijos, obrigada por recebê-los, e adorei o post!

Eduardo: Milton, desejo que tudo corra à contento. Comam bem! Abraços!

As gravações históricas, uma maldição

Quando a gente ouve Pablo Casals tocando Bach, não está ouvindo Bach, o que se ouve é Pablo Casals (1876-1973) — um grande e importante homem — tocando Bach. Pablo (ou Pau, em catalão) foi enorme na luta contra a ditadura de Francisco Franco e o domínio nazista. Mais: foi ele quem trouxe de volta ao repertório as Suítes para Violoncelo de Bach mas, cá entre nós, suas gravações são péssimas. Às vezes ele desafina e o fraseado é tão duro que, bem, chega-se à óbvia e sabida conclusão de que ninguém, antes de Glenn Gould e principalmente das orquestras e executantes em instrumentos originais, sabia tocar Bach.

Sim, sei que é muita arrogância dizer que minha época sabe interpretar Bach; sim, sei que cada época deve ter o direito de dar sua interpretação para seja para ele, como para Shakespeare, Freud e outros gigantes do passado, mas também sei que nos aproximamos muito, não só dos instrumentos e da sonoridade da época, como de seu fraseado.

Hoje pela manhã, vinha de carro para o trabalho, ouvindo, como sempre, minha querida e cinquentenária Rádio da Universidade. Foi quando começou a Suíte Nº 6 com o famigerado catalão. Era um som de serrote tão horrendo que apenas esperei a manifestação de desagrado de minha mulher, uma amante da música barroca. Não deve ter demorado 3 minutos.

Essa coisa de ouvir Bruno Walter, Wilhelm Furtwängler, Karl Richter, Arthur Rubinstein e outros que vão sendo superados à medida que o tempo passa, é a própria definição de “anacrônico”. Pois homenageamos não a época do compositor, mas sim o precursor, o pioneiro, um intermediário. Quem sabe a gente deixa isso para quem se dedica à história das gravações e interpretações, hein? Nosso ouvidos merecem o melhor. Sempre.


Volta pra tumba, grande Casals!

Um resgate para o qual talvez não tenha tempo, nem saco

Não se trata de um passado tão remoto assim, são coisas que escrevi entre 2003 e 2007, mas sei que vou perder meus textos antigos da Verbeat. Meu ultracharmoso ex-condomínio vai acabar no final do ano e, apesar de meu ex-blog não estar mais no ar, há ainda mais de 280 posts lá. Tem muita porcaria, muita coisa que só teria valor naquele contexto, mas eu deveria dar uma revisada antes do tsunami.

Mas, sabe, que preguiça!

Mahler, Sinfonia Nº 1, Titã, 3º movimento

Para aquele advogado que (re)conheci quarta-feira
— deixei o cartão no escritório… era Herr Volkweiss? —
e que adora Mahler.

Mahler nunca teve problemas de autoestima, tanto que tinha certeza de que ficaria rico e famoso desde sua Sinfonia Nº 1. Mas algo deu errado. Este algo tem motivações que nossos ouvidos modernos não compreendem e que Sir Simon Rattle, atual regente da Orquestra Filarmônica de Berlim, tenta explicar abaixo. Os primeiros ouvintes julgaram inconcebível o trecho mais simples e melodioso da sinfonia, o 3º movimento baseado na antiquíssima canção de ninar francesa Frade Jacques (Frère Jacques). As ousadias do restante da obra passaram batidas, já a cançãozinha…

Abaixo, deixo-vos com a sempre tranquila explicação de Rattle e, após, com a interpretação do maestro anterior da Filarmônica de Berlim, Claudio Abbado, para a peça:

Dmitri Shostakovich (IV)

A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde foram enterrados. Aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a eles? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.

DMITRI SHOSTAKOVICH

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui.

Sinfonia Nº 10, Op. 93 (1953)

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Em março de 1953, quando da morte de Stalin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stalin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, é absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo, e sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Milton Ribeiro adverte: não ouça o segundo movimento previamente irritado. Você e sua companhia poderão se machucar.

Quarteto de Cordas Nº 6, Op. 101 (1956)

Talvez apenas aficionados possam gostar deste esquisito quarteto. Ele tem quatro movimentos, dos quais três são decepcionantes ou descuidados. O intrigante nesta música é o extraordinário terceiro movimento Lento, uma passacaglia barroca que é anunciada solitariamente pelo violoncelo. É de se pensar na insistência que alguns grandes compositores, em seus anos maduros, adotam formas bachianas. Os últimos quartetos e sonatas para piano de Beethoven incluem fugas, Brahms compôs motetos no final de sua vida e Shostakovich não se livrou desta tendência de voltar ao passado comum de todos. Enfim, este quarteto vale por seu terceiro movimento e, com certa boa vontade, pelo Lento – Allegretto final.

Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra, Op. 102 (1957)

Concerto dedicado ao filho pianista Maxim Shostakovich. É um autêntico presente de pai para filho. Alegre, brilhante e cheio de brincadeiras de caráter privado como a inacreditável inclusão — no terceiro movimento e totalmente inseridos na música — de exercícios que seu filho praticava quando era estudante do instrumento… E não se surpreenda, o primeiro movimento deste concerto é conhecido entre as crianças que veem desenhos da Disney. É a música que é executada durante o episódio do Soldadinho de Chumbo em Fantasia 2000. Quando ouço esta música em casa, sempre um de meus filhos vem me dizer “olha aí a música do Soldadinho de Chumbo”. É claro que a música não tem nada a ver com esta história infantil.  Shostakovich fez um belo concerto para seu filho, de atmosfera delicada e afetuosa. O primeiro movimento (Allegro) começa com uma rápida introdução orquestral em seguida à qual entra o piano. De acordo com a prática habitual de Shostakovich, o tema inicial é um pouco mais poético do que o segundo, de entonação mais vigorosa e rítmica.

Dois movimentos vivos e felizes cercam um melancólico, tocante e melodioso segundo movimento. A inspiração óbvia para este concerto foi o Concerto em Sol Maior (1931) de Ravel. Leonard Bernstein deu-se conta disto e gravou um de seus melhores discos em 1978, acumulando as funções de pianista e regente nos dois concertos. Se este concerto não arrancar algum sorriso do ouvinte, este necessitará de urgentemente de antidepressivos.

Sinfonia Nº 11, Op. 103 – O Ano de 1905 (1957)

Esta sinfonia talvez seja a maior obra programática já composta. Há grandes exemplos de músicas descritivas tais como As Quatro Estações de Vivaldi, a Sinfonia Pastoral de Beethoven , a Abertura 1812 de Tchaikovski, Quadros de uma Exposição de Mussorgski e tantas outras, mas nenhuma delas liga-se tão completa e perfeitamente ao fato descrito do que a décima primeira sinfonia de Shostakovich.

Alguns compositores que assumiram o papel de criadores de “coisas belas”, veem sua tarefa como a produção de obras tão agradáveis quanto o possível. Camille Saint-Saëns dizia que o artista “que não se sente feliz com a elegância, com um perfeito equilíbrio de cores ou com uma bela sucessão de harmonias não entende a arte”. Outra atitude é a tomada por Shostakovich, que encara vida e arte como se fosse uma coisa só, que vê a criação artística como um ato muito mais amplo e que inclui a possibilidade do artista expressar — ou procurar expressar — a verdade tal como ele a vê. Esta abordagem foi adotada por muitos escritores, pintores e músicos russos do século XIX e, para Shostakovich, a postura realista de seu ídolo Mussorgsky foi decisiva. A décima primeira sinfonia de Shostakovich tem feições inteiramente mussorgkianas e foi estreada em 1957, ano de muitas glórias além do quadragésimo aniversário da Revolução de Outubro. Contudo, ela se refere a eventos ocorridos antes, no dia 9 de janeiro de 1905, um domingo, quando tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo. O protesto, feito após a missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao czar, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos.

O primeiro movimento descreve a caminhada dos trabalhadores até o Palácio de Inverno e a atmosfera soturna da praça em frente, coberta de neve. O tema dos trabalhadores aparecerá nos movimentos seguintes, porém, aqui, a música sugere uma calma opressiva.

O segundo movimento mostra a multidão abordar o Palácio para entregar a petição ao czar, mas este encontra-se ausente e as tropas começam a atirar. Shostakovich tira o que pode da orquestra num dos mais barulhentos movimentos sinfônicos que conheço.

O terceiro movimento, de caráter fúnebre, é baseado na belíssima marcha de origem polonesa Vocês caíram como mártires (Vy zhertvoyu pali) que foi cantada por Lênin e seus companheiros no exílio, quando souberam do acontecido em 9 de janeiro.

O final – utilizando um bordão da época – é a promessa da vitória final do socialismo e um aviso de que aquilo não ficaria sem punição.

Concerto Nº 1 para Violoncelo e Orquestra, Op. 107 (1959)

Shostakovich e o grande violoncelista Mstislav Rostropovich eram amigos tendo, muitas vezes, viajado juntos fazendo recitais que incluíam entre outras obras, a Sonata para violoncelo e piano, opus 40, já comentada nesta série. Desde que se conheceram, o compositor avisara a Rostropovich que ele não deveria pedir-lhe um concerto diretamente, que o concerto sairia ao natural. Saíram dois. Quando Shostakovich enviou a partitura do primeiro, dedicada ao amigo, este compareceu quatro dias depois na casa do compositor com a partitura decorada. (Bem diferente foi o caso do segundo concerto, que foi composto praticamente a quatro mãos. Shostakovich escrevia uma parte, e ia testá-la na casa de Rostropovich; lá, mostrava-lhe as alternativas, os rascunhos ao violoncelista, que sugeria alterações e melhorias. Amizade.)

Estilisticamente, este concerto deve muito à Sinfonia Concertante de Prokofiev – também dedicada a Rostropovich – e muito admirada pelos dois amigos. É curioso notar como os eslavos têm tradição em música grandiosa para o violoncelo. Dvorak tem um notável concerto, Tchaikovski escreveu as Variações sobre um tema rococó, Kodaly tem a sua espetacular Sonata para Cello Solo e Kabalevski também tem um belo concerto dedicado a Rostropovich. O de Shostakovich é um dos de um dos maiores concertos para violoncelo de todo o repertório erudito e minha preferência vai para a imensa Cadenza de cinco minutos (3º movimento) e para o brilhante colorido orquestral do Allegro com moto final.

Quarteto de Cordas Nº 7, Op. 108 (1960)

Mais um quarteto de Shostakovich com um lindíssimo movimento lento, desta vez baseado no monólogo de Boris Godunov (ópera de Mussorgski baseada em Puchkin), e mais um finale construído em forma de fuga, utilizando temas do primeiro movimento. Uma pequena e curiosa jóia de onze minutos.

Quarteto de Cordas Nº 8, Op. 110 e Sinfonia de Câmara, Op. 110a – Arranjo de Rudolf Barshai (1960)

Na minha opinião, o melhor quarteto de cordas de Shostakovich. Não surpreende que tenha recebido versões orquestrais. Trata-se de uma obra bastante longa para os padrões shostakovichianos de quarteto; tem cinco movimentos, com a duração total ficando entre os 20 minutos (na versão para quarteto de cordas) e 26 (na versão orquestral). O quarteto abre com um comovente Largo de intenso lirismo, o qual é seguido por um agitado Allegro molto, de inspiração folclórica e que fica muito mais seco na versão para quarteto. O terceiro movimento (Allegretto) é uma surpreendente valsinha sinistra a qual é respondida por outra valsa, muito mais lenta e com um acompanhamento curiosamente desmaiado. O quarteto é finalizado por dois belos temas ; o primeiro sendo pontuado por agressivamente por um motivo curto de três notas e o segundo formado por mais uma fuga a quatro vozes utilizando temas dos movimentos anteriores.

Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.

Um ataque de A4, gramatura 75 g/m2

De forma surpreendentemente irônica, o jornal do SBT “desconstruiu” a última farsa de José Serra, que foi apedrejado por uma bolinha de papel e teve que fazer tomografia e repousar. Qualquer agressão é inadmissível, mas capitalizar sobre uma não-agressão não é digno de um candidato à Presidência da República. Depois, uma boa charge de Amarido e, a seguir uma montagem de nosso querido Cloaca News.

Uma cueca para elevar a autoestima masculina

A rede varejista britânica Marks & Spencer está vendendo uma cueca tranquilizadora para os homens que têm problemas de autoestima. Pelo equivalente a 15 dólares, você pode ver surgir a aquela genitália avantajada com a qual não nasceu. De frente e perfil.

Segundo a empresa, agora os homens podem desfrutar as mesmas tecnologias que têm há muito tempo servem às mulheres: roupas que melhoram as formas, como o Wonderbra. Dizem que ao menos a confiança vai às alturas.

Confortável para andar e sentar. Adaptável. Escamoteável. Apalpável. A publicidade diz que as cuecas deixam sua genitália abaulada em mais de 40%. Porém…, a empresa produz também outro estilo de roupa íntima; afinal, você pode também querer aumentar sua bunda.

As cuecas vêm em preto e branco e  podem ser compradas através da Internet. Ah, a Marks & Spencer também fabrica camisas que escondem a barriga e mostram músculos inexistentes.

Vaticano dispensa Carla Bruni por ter posado nua

Apesar das greves e dos problemas internos que tem enfrentado (e que causa), o presidente da França, Nicolas Sarkozy, é invejado. Imaginem que é casado com Carla Bruni, a baranga que você vê abaixo. Na semana passada, ele foi ao Vaticano para uma visita daquelas de boa vizinhança para com quem é o pastor de tantas almas. A finalidade seria a de conversar a respeito da grave questão dos ciganos na França, porém, antes da visita, recebeu um recado. Este dizia que Carla Bruni “não seria bem-vinda no Vaticano”.

O papa estaria preocupado com a fama excessiva de Bruni, acrescida do fato de ela já ter posado nua… Tá bom.

Mas Jesus Cristo não defendeu a prostituta Maria Madalena de um apedrejamento? E ela não teria se tornado sua discípula? Por que a ex-modelo Bruni não poderia privar com o papito? Afinal, ela é hoje a primeira dama da França. Quanta hipocrisia. Não sei como algumas pessoas ainda suportam a religião católica.

No Psiquiatra

E então o psiquiatra me ouviu por cinco horas, três horas no primeiro dia e duas no segundo. Um tempo espantoso e inesperado para quem, como eu, pensava que eles só trabalhavam de 50 em 50 minutos. Perdi compromissos. Ele me perguntava sobre tudo e eu disse que havia apenas 3 ou 4 períodos de minha vida que interessavam, que os outros eram ociosos. Mas não, ele quis uma coisa cronológica e organizada, queria uma visão geral. Eu despejava detalhes que ele ia anotando e a garganta me doía de tanto falar, pois raramente era interrompido. Aí, cheguei na parte em que eu, rindo do absurdo, contei que, apesar do que pago, apesar de ter deixado tudo para ti, de ter me despojado, tu ainda querias mais e declaravas-te insatisfeita e desatendida, dizendo que eu não fazia nada de bom para ti e as crianças. Quando falei isto, ele me interrompeu como um guarda de trânsito. Sim, ele levantou o braço; eu vi a mão dele espalmada na minha direção. Parei imediatamente e ele tomou a palavra. Disse que tu tinhas razão, que o fato de eu só ter tirado da casa minhas roupas, meus discos, meus livros e nada mais era incomparável ao vazio que uma pessoa rígida e de poucos amigos reais sente ao perder alguém sociável e um elo de comunicação com as novidades, desde as fofocais até as culturais, principalmente as últimas. Seguiu falando que provavelmente tinhas passado por uma fase em que foras a todos os concertos, viagens e filmes, uma fase em que não poderias perder nada, nenhuma festa ou encontro, a fim de tentar preencher o espaço que eu estava desocupando, mas que isso não o deixaria repleto e tu necessitarias de mais ainda. E me acusou, na fala pausada e tranquila dos psis: “Na verdade, ela não mente, tu a despojaste”. E sorriu. E voltou a seu silêncio. E eu, com aquele negócio que nunca tinha considerado, com aquele disparate perfeitamente lógico que nunca tinha me ocorrido, com a repugnante e conhecida sensação de burrice e ignorância dos fatos, simplesmente não conseguia mais reencontrar meu assunto e reouvia tu dizeres que era um absurdo eu ter levado duas estantes de livros, que aquilo deixara um enorme buraco naquela parte da biblioteca e que estavas tentando desesperadamente tapá-lo para que os amigos e as crianças não notassem o quanto a parede era feia. E eu, com tudo aquilo dando voltas na minha cabeça, enquanto já falava sobre outro assunto, pela primeira vez depois de horas andando em linha reta e cronológica, retornei e perguntei ao psiquiatra se ele falara sério e ele assentiu e mandou eu continuar porque já estava anoitecendo.

(E eu até hoje desconfio que ele declarou aquilo só para me motivar a falar mais.)

-=-=-=-=-=-

Análise:

1. Imagino que o texto é a culpa porque você é quem cobra, de “fato” e de forma razoável e participativa, o estudo dos filhos pois sei que você é que “senta” para estudar junto. Agora você vai dizer que também tem que se sentir culpado por deixar um vazio de civilidade na vida de quem lhe sufocou por anos? Não conta a sua solidão nem ter que deixar casa e filhos enquanto ela se agarrava a tudo – segundo a nova explicação do “psi” – para preencher o vazio que você deixava? Pergunto: Se um é “estantes de livros” – cultura, lazer – o outro seria a “parede feia” que precisava se esconder dos filhos e amigos? É super preconceituoso crer que mães amem que pais ou que sejam mais capazes de criar, nada prova isso mas as leis ainda dificultam a guarda aos pais e, mesmo “pães” como você, que se despojam de tudo para aplacar a culpa de se sentir ausente no dia dos filhos, mesmo sem ter criado a situação.

2. Tudo bem, tudo bem, a psicanálise busca um olhar além do obviamente conhecido por você sobre você mesmo. Não esse aí, não sobre ela. Vc há de me perdoar, esse seu psiquiatra nada tem de psicanalista, duvido até que seja psiquiatra. Vai ver era o advogado dela disfarçado (que aliás era um bom final para o texto…rs). E o espaço que ficou na sua vida afetiva pela ausência dela e dos filhos, era muito maior, não era? E na vida física, digamos assim, a falta da casa e TUDO que tinha dentro e te dizia respeito, não deixou um ” espaço vazio”? A psicanálise nada tem a ver com esta coisa que sabemos, óbvia, e sim aquelas que nos angustiam e que não conseguimos perceber o porquê de nos angustiarem e as vamos repetindo na vida. Bah, tchê, tu devias ter me perguntado por uma indicação. : ) O texto está ótimo!! Só reclamo do formato de “tijolo”. Beijos. PS: e que história era aquela de vc gostar de poemas melancólicos? Taí, novidade pra mim.

3. Alguém me disse certa vez que a pior coisa que alguém pode te fazer é mudar a tua própria percepção da realidade. Parece que este teu “psicodoido” segue esta linha. PQP.

4. Quero o endereço do seu psicanalista: quem sabe me dá um curso? “Descentralizar e desconstruir” nossas convicções pode ser doloroso, mas é na brecha entre a fantasia e a realidade que surge o “Real da Coisa” (!). Inda por cima, lhe deu o mote.

5. O que mais me impressiona é que depois de ouvir tudo o que você ouviu, rever e revirar as suas convicções, adquirir um sentimento de culpa com a sensação de que jamais conseguirá cancelar o mal causado, um sentimento de dívida impagável, como algo que não tem conserto, como o balão de gás que escapa da mão e se perde no céu imenso; o que mais me impressiona, nem chega a ser a mudança de postura e um certo mal-estar permanente, mas é saber que você ainda precisa pagar o psicanalista.

6. Fazer psicanálise é fugir tanto ao controle dos autopadrões que deu até vontade de voltar, lendo o texto. Grandes epifanias. E com o tempo, a gente não se sente mais burro de não ter pensado *daquela forma. a coisa mais fascinante que descobri é que minhas armadilhas são tão inteligentes quanto eu julgo ser.

A entrevista-relâmpago que Luís Carmelo fez comigo

Saudades da Verbeat que acabará em dezembro deste ano…

Em setembro de 2006, o Miniscente de Luís Carmelo estava publicando uma interessante série de curtas entrevistas acerca da blogosfera e dos seus impactos na vida dos entrevistados. Respondi assim as questões propostas.

– O que lhe diz a palavra “blogosfera”?

A blogosfera não é apenas a soma de blogues, mas sobretudo seus links, comentários e leitores, blogueiros ou não. A blogosfera se diferencia por disponibilizar ferramentas de comunicação, através das quais o leitor pode participar ativamente da festa e não somente assisti-la. A palavra blogosfera também me diz de conteúdos que vão do sublime e inteligente ao vulgar e burro. Porém, depois de viver mais de três anos nela, posso dizer que aqui não há mais bobagens do que nas revistas semanais. Estas são imbatíveis no quesito “ruindade” e, aqui, ainda temos a vantagem de poder xingar e ser xingado…

– Seguiu algum acontecimento nacional ou internacional através de blogues?

Sim, poucos, mas importantes. Por exemplo, a melhor cobertura dos eventos relacionados ao furacão Katrina foi realizada pelo blog de Idelber Avelar (Professor de Literatura Latino-americana e Etnomusicologia da Universidade de Tulane, Nova Orleans, que possui o blog O Biscoito Fino e a Massa – http://idelberavelar.com/). Além de informações e fotos da cidade, ele montou uma rede de comunicação para que as pessoas pudessem dizer em que local estavam, etc. Foi uma súbita diáspora e o Idelber conseguiu fazer com que muita gente fosse encontrada e pudesse dizer “Olha, estou vivo, mas quero saber onde estão fulano e sicrano”. Outro evento que acompanho através de blogues é a tentativa de censura de vários deles, realizada pelo truculento ex-presidente – e, pasme!, membro da Academia Brasileira de Letras do Brasil – José Sarney.

– Qual foi o maior impacto que os blogues tiveram na sua vida pessoal?

Ser visitado e talvez lido semanalmente por 1200 pessoas é certamente, um impacto na vida de qualquer um. Há que se ter atenção para com este fato. Passo duas horas por dia lendo blogues e talvez quatro horas por semana escrevendo o meu. Mas o maior impacto é o de ser reconhecido como blogueiro quando não estou na frente do computador ou saber que há pessoas desconhecidas que estão informadas sobre minha vida. Explico: meu blogue faz explicitamente Improvisações sobre Literatura, Música, Cinema e Qualquer Coisa, principalmente. Neste Qualquer Coisa, entram alguns posts confessionais. Outro fato impactante foi o de ter ido à Europa e ter ficado exclusivamente hospedado na casa de blogueiros que não conhecia pessoalmente. E isto na Espanha e na Itália. Sim, fui sempre muitíssimo bem tratado, fui aonde quis e, puxa, fiz uma enorme economia!

– Acredita que a blogosfera é uma forma de expressão editorialmente livre?

Sem dúvida. Meu blogue fica num condomínio de cujo manifesto chama-se Liberdade de Comunicação e que tem, como membros, pessoas de esquerda — a maioria — , de direita, religiosos, provocadores, ateus, alternativos, etc. De nosso manifesto, trago o seguinte trecho:

Hoje, eu e você somos livres para informar e sermos informados, num fluxo que trafega por meios livres. Mas não vivemos num mundo livre. Liberdade por si só não é suficiente, porque ela não pressupõe naturalmente outro conceito importante: democracia. A mídia tradicional (rádios, TVs, jornais, portais web) está longe de ser proporcional à quantidade de informação produzida, tanto quanto ao número de indivíduos que as recebem. As pontas são infinitamente maiores que os meios existentes. Há um estrangulamento. E quando isso acontece, alguma coisa fica de fora do fluxo. É isso que a mídia tradicional faz: filtrar. Selecionar informações para distribuí-las ao maior número de pessoas possíveis — donde o termo “meios de comunicação de massa”. Poucas informações produzidas são veiculadas, poucos produtores tem poder para comunicar o que querem, e poucas opções temos de receber o que de fato queremos. E se não recebemos, a informação existe? De fato, sim; na prática, não. É o sujeito que grita na sala vazia. Sujeito que talvez tenha coisas relevantes a dizer. Todos nós temos coisas a dizer, sim. Por que não teríamos? No modelo vigente, a mídia escolhe por nós. Ela cerceia a própria liberdade que tanto precisa, em nome de uma efetividade — muitas vezes, manchada pela face comercial que a viabiliza (quando não é a própria razão de existir). Mas eu quero falar. Quero falar o que eu quiser. E falar para quem eu quiser. Para quem quiser me ouvir e que vai poder me achar. Quero ouvir. Ouvir o que eu quiser. E ouvir de quem eu quiser. De quem quiser me falar e que vou poder encontrar. Essa é a verdadeira liberdade e democracia da comunicação. Isso, os meios de massa jamais poderão oferecer, mas a Internet sim: com o blog. Uma ferramenta pessoal, acessível, de baixo custo, sem intermediários, apoiada em uma mídia instantânea e de alcance global. Não apenas o diário virtual, pense de novo: Blog é o suporte tecnológico de uma revolução na exposição de idéias, na distribuição de informação, na democratização da comunicação. Na internet, qualquer sujeito que quiser exercitar sua liberdade de expressão encontra um sujeito exercitando sua liberdade de informação. Isto é liberdade. Isto é democracia. Esse é o direito que deve ser assegurado.

Dmitri Shostakovich (III)

Música (de Anna Akhmátova)

Dedicado a Dmitri Shostakovich

Algo de miraculoso arde nela,
e fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar,
depois que todos os outros ficaram com medo de se aproximar.
Depois que o último amigo tiver desviado o olhar,
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores tivessem começado a falar.

Seguimos nossa série iniciada aqui e continuada ali.

Quinteto para piano, Op. 57 (1940)

A música perfeita. Irresistível quinteto escrito em cinco movimentos intensamente contrastantes. Seu estilo é clássico, porém raramente todos os integrantes tocam juntos, a não ser no agitado scherzo central. O prelúdio inicial estabelece três estilos distintos que voltarão a ser explorados adiante: um dramático, outro neo-clássico e o terceiro lírico. Todos os temas que serão ouvidos nos movimentos seguintes apresentam-se no prelúdio em forma embrionária. Segue-se uma rigorosa fuga puxada pelo primeiro violino e demais cordas até chegar ao piano. Sua melodia belíssima e lírica que é seguida por um scherzo frenético. É um choque ouvir chegar o intermezzo que traz de volta a seriedade à música. Apesar do título, este intermezzo é o momento mais sombrio do quinteto. O Finale, cujo início parece uma improvisação pura do pianista, fará uma recapitulação condensada do prelúdio inicial.

O Quinteto para piano recebeu vários prêmios que não vale a pena referir aqui, mas o mais importante para Shostakovich foi a admiração que Béla Bartók dedicou a ele.

Sinfonia Nº 7, Op. 60, Leningrado (1941)

De história riquíssima, a Sinfonia Nº 7 – dedicada à resistência da cidade de Leningrado cercada pelos nazistas – deve sua celebridade a uma transmissão de rádio feita para a cidade devastada e sitiada. Ela auxiliou as autoridades soviéticas a elevar o moral em Leningrado e no país. Várias outras performances foram programadas com intenções patrióticas na União Soviética e na Europa. É música de primeira linha, sem dúvida, mas creio que a notável Sinfonia Nº 11, tão superior à sétima, é tão mais eficiente como musica programática de conteúdo histórico, que torna falso qualquer grande elogio. De qualquer maneira, é esplêndido o primeiro movimento que descreve a marcha nazista. Também é importante salientar o equívoco do grande público que vê resistência e patriotismo numa obra sobre a devastação e a morte. Mas, como diria Lênin, o que fazer?

Mais? Mais! Imaginem uma cidade cercada por alemães há 18 meses, uma orquestra improvisada vestida com suéteres e jaquetas de couro, todos magérrimos pela fome, a rádio transmitindo o concerto, várias cidades soviéticas estreando a obra ao mesmo tempo, Arturo Toscanini — anti-fascista de cabo a rabo — pedindo a partitura nos Estados Unidos (ela foi levada de avião até Teerã, de carro ao Cairo, de avião à Londres, de onde um outro avião da RAF levou a música ao maestro), Shostakovich na capa da Time. Ou seja, a Sétima é importante. Nos EUA, em poucos meses, foi interpretada por Kussevítki, Stokovski, Rodzinski, Mitropoulos, Ormandy, Monteaux, etc. Um espanto.

Numa das maiores homenagens recebidas por uma obra musical, Anna Akhmátova escreveu o seguinte poema ao ser posta à salvo das bombas alemãs pelas autoridades soviéticas:

Todos vocês teriam gostado de me admirar quando,
no ventre do peixe voador,
escapei da perseguição do mal e,
sobre as florestas cheias de inimigos,
voei como se possuída pelo demônio,
como aquela outra que,
no meio da noite,
voou para Brocken.
E atrás de mim,
brilhando com seu segredo,
vinha a que chama a si mesma de Sétima,
correndo para um festim sem precedentes.
Assumindo a forma de um caderno cheio de notas,
ela estava voltando para o éter onde nascera.

Pois é. Mas falemos a sério: não é a maior sinfonia de Shosta. Fica atrás da oitava, décima, décima-primeira, décima-terceira, décima-quarta e décima-quinta. Mas que é famosésima, é.

Sinfonia Nº 8, Op. 65 (1943)

Esta enormidade musical é também muito admirada, mas é música que, apesar de não ser nada má, perderá para suas irmãs gêmeas compostas depois, dentro do mesmo espírito. Gosto muito da beleza austera do quarto movimento em 12 variações – uma passacaglia – e também dos dois primeiros, com destaque para o divertido diálogo entre o piccolo, o clarinete e o fagote do scherzo. Apenas não suporto o terceiro movimento, de efeito fácil e heroico, cuja melodia entoada pelo trompete poderia ser suprimida. (Hoje, discordo de minha avaliação).

Quarteto de Cordas Nº 2, Op. 68 (1944)

Este trabalho em quatro movimentos foi escrito em menos de três semanas. A abertura é uma melodia de inspiração folclórica, tipicamente russa. O grande destaque é o originalíssimo segundo movimento, Recitativo e Romance: Adagio. O primeiro violino canta (ou fala) seu recitativo enquanto o trio restante o acompanha como se estivessem numa ópera ou música sacra barroca. O Romance parece música árabe, mas não suficientemente fundamentalista a ponto que a Al Qaeda comemore. Segue-se uma pequena valsa no mesmo estilo. O quarto movimento é um Tema com variações que fecha brilhantemente o quarteto.

É curioso que neste quarteto, talvez por ter sido composto rapidamente, há uma musicalidade simples, leve e nada forçada. Talvez nem seja uma grande obra como os Quartetos Nros. 8 e 12, mas é dos que mais ouço. Afinal, esta é uma lista pessoal e as excentricidades valem, por que não?

Sinfonia Nº 9, Op. 70 (1945)

Desde Schubert, com sua Sinfonia Nº 9 “A Grande”, passando pela Nona de Beethoven e pelas nonas de Bruckner e Mahler, que espera-se muito das sinfonias Nº 9. Há até uma maldição que fala que o compositor morre após a nona, o que, casualmente ou não, ocorreu com todos os citados menos Shostakovitch. Esta sinfonia — por ser a “Nona” — foi muito aguardada e, bem, digamos que não seria Shostakovitch se ele não tivesse feito algo inesperado. Stálin ficou muito decepcionado com ela.

Leonard Bernstein lia esta partitura dando gargalhadas desta piada músical, cujas muitas citações formam um todo no mínimo sarcástico. O compositor declarou que faria uma música que expressaria “a luta contra a barbárie e grandeza dos combatentes soviéticos”, mas os severos críticos soviéticos, adeptos do realismo socialista, foram mais exatos e apontaram que a obra seria debochada, irônica e de influência stravinskiana. Bingo! Na verdade é uma das composições mais agradáveis que conheço. O material temático pode ser bizarro e bem humorado (primeiro e terceiro movimentos), mas é também terno e melancólico (segundo e largo introdutório do quarto), terminando por explodir numa engraçadíssima coda.

Apesar dos cinco movimentos, é uma sinfonia curta, muito parecida em espírito com a primeira sinfonia “Clássica” de Prokofiev e com a Sinfonia “Renana” de Schumann, também em cinco movimentos.

Deixando de lado a geopolítica soviética e detendo-se na obra, podemos dizer que esta Nona é uma consciente destilação de experiências e, talvez uma reação, muito cuidadosamente considerada, contra as enormidades musicais oriundas da guerra das duas sinfonias anteriores.

Cá entre nós, é puro divertimento.

Concerto para Violino, Op. 77 (1947-48)

Como o Quinteto, outra obra-prima. É incrível que este concerto tenha recebido tão poucas gravações. Quando Maxim Vengerov e Mstislav Rostropovich o gravaram em 1994 para a Teldec, o resultado foi que o CD acabou sendo considerado o melhor do ano pela revista inglesa Gramophone e também, se não me engano, pela francesa Diapason. Dedicado a David Oistrakh, teve sua estréia realizada apenas em 1955, em razão dos problemas que o compositor arranjou com Stalin e com o Relatório Jdanov, já discutidos na primeira parte desta série.

Shostakovich o considerava uma sinfonia para violino solo e orquestra. A comparação é apropriada. Não apenas a estrutura em quatro movimentos, mas também sua longa duração (40 minutos), são exageradas para o comum dos concertos. Apesar de termos aqui a primeira e significativa aparição de melodias baseadas no motivo DSCH – o que será melhor explicado no comentário da Sinfonia Nº 10 -, apesar de tal tema aparecer no segundo movimento, esta obra tem seu coração no terceiro movimento Passacaglia – Andante. São nove variações sobre o mesmo tema em que somos lentamente levados do clímax para a calma e não ao contrário, o que é mais comum. A orquestra vai pouco a pouco deixando a voz individual do violino levar a música até uma longa cadenza, que alguns consideram um movimento a parte que se liga organicamente ao movimento final. Um espanto!

24 Prelúdios e Fugas, Op. 87 (1950-51)

A força simbólica da música de câmara deixada por Shostakovitch e a carga alegórica nela contida fazem uma pausa aqui. O fato de escolher o gênero do prelúdio e fuga, escrevendo precisamente 24 deles, vale como um magnífico juramento de lealdade a Bach, o pilar fundamental da música de todos os tempos, que fixou o mesmo número de peças em cada um dos dois cadernos do Cravo bem temperado.

A audição desta obra — escrita logo após o Relatório Jdanov — mostra-nos como o compositor concentrou-se em sua arte no momento em que sua obra não podia ser executada na União Soviética. O resultado é altamente pessoal, rigoroso e comovente. Não lembro de outro compositor que tenha feito homenagem maior a Bach. É um Shostakovitch contido e calmo, fazendo música absoluta da melhor qualidade. Quem conhece um pouco a história da música, ficará emocionado e feliz com a audição desses prelúdios e fugas que procuram aproximar-se, moderna e contemporaneamente, do maior de todos os compositores. O resultado é esplêndido, coisa de gênio.

Uma curiosidade: para executar esta obra completa, que dura, em média, 140 minutos, os pianistas normalmente utilizam duas noites. E sim, não é qualquer amador que pode enfrentá-la.

Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.

Meu Monza 1990

Para  H., esteja onde estiver

Acho que posso dizer o mês em que comprei o tal Monza. Foi em dezembro de 1997. A primeira façanha que fiz com ele foi a de encostar numa das colunas do edifício em que morávamos. Nunca arrumei o arranhão nem no carro, nem na coluna. Eu não desejava adquiri-lo. A empresa passava por sua primeira crise e eu preferia que ficássemos – eu, minha ex e meus filhos – com o Uno novo e completo que tínhamos. Mas minha ex encheu o saco, queria ir para a praia e precisávamos de um carro maior. Eu disse que levaria a tralha primeiro e voltaria para buscar o resto, isto é, as pessoas; mas Suélen (ou Pâmela, nunca lembro o nome de minha ex) não quis de modo algum.

Eu que comprasse um segundo carro, maior. OK. Na época, ainda não me dava conta de que há anos odiava mortalmente Pâmela e que nossa relação era doentia. Comprei em 1997 um Monza 90. Não era um grande carro, mas também não era nada inaceitável. Procurei o maior e mais barato possível e apareceu aquela coisa azul-marinha, 4 portas, 1.8, gasolina. Já na loja eu o chamei de fusca grande, pois ele não tinha nenhum acessório agradável: vinha sem direção hidráulica, sem ar condicionado, sem rádio — instalei depois um — e os vidros eram de girar manivela. Mas era simpático, apesar de ter sido recebido por Suélen com um “mas não tem ar condicionado!”.

Fomos para a praia, ficamos amigos de um bando de argentinos e nos despedimos deles da forma mais emocionada, voltando para nosso inferno. Em 1998, meu filho tinha 7 anos e minha filha, 4. Era e ainda é divertido ficar com eles quando não estão brigando. Aliás, eu só convivia com eles e com amigos. Em casa, evitava a companhia de Pâmela. Muitas vezes saíamos com nossos amigos e depois eu tinha que levar a babá em casa de madrugada. Eu nunca retornava imediatamente. Esperava que Suélen dormisse antes, pois sua voz, ouvida distintamente, era-me irritante. Ficava dando voltas, dirigindo pela cidade. Aquilo era um alívio e eu ia me afeiçoando ao fusca grande.

Naquele ano nos mudamos para uma casa maior e lá fui eu com meu Monza. Aí  vocês sabem, não?, quando a coisa fica insustentável, a gente arranja problemas com a maior facilidade. Eu ia numa academia e tinha muito contato com minha professora, claro. A gente estava há dias naquelas piadas e brincadeiras de sedução, que normalmente não levam a lugar nenhum, quando ocorreu a festa de fim de ano. Ah, que maravilha. A festa era na Cachaçaria Água Doce e vocês, meus experientes sete leitores, sabem o quanto bebe um homem infeliz. Apesar de minha querida H. ter surgido tão sozinha quanto eu, não dei muita importância ao caso e me atirei à cachaça. Passamos a festa inteira sem conversar.

Na saída, eu estava simplesmente podre, pedindo uma cama enquanto minha amiga finalmente chegava-se a mim.

— Estava observando o que tu bebeste. Foi uma grandeza, né?

Não sou um bêbado chato, só fico tonto e com sono. Meu humor não varia muito. Eu respondi que achava impossível ir em linha reta até a porta do carro. Ela anunciou que iria me monitorar. Fui na frente, com ela a três passos de mim, rindo. Entrei no carro e ela entrou pelo outro lado. Foi então que notei que H. viera sem seu Gol preto. Eu a achava muito bonita e sempre pedia para ela me empurrar durante alguns alongamentos. Quando vi que ela largava todo o seu peso sobre mim, passei a solicitar seus serviços assim:

— quero sentir o peso do teu corpo sobre o meu…

e ela achava graça. Eu também. Dentro do carro, por uma dessas ideias idiotas que sobrevêm aos bêbados, sugeri que fôssemos para o banco de trás. Isso numa travessa da Carlos Gomes. Sim, ela também estava embriagada, é certo. Não me passou pela cabeça a palavra “Motel”, entendem?, estava há muito tempo fora do mercado. Pois após os amassos, enquanto procurava abrir as calças para me sentir mais livre, consegui cair no vão entre os bancos. Lembro de nosso ataque de riso.

Acabamos na casa dela. Olha, fui muitas vezes lá e creio nunca ter sido descoberto. Lembro que H. ligava para minha casa e ou eu atendia ou Suélen me passava a ligação. Era tão, mas tão claro que não era visto. Minha ex saía muitas vezes sozinha, eu também. Ela gostava de uns simulacros de ciúmes, eu não. Espero sinceramente que ela me corneasse tanto quanto eu a ela ou mais, mas duvido muito, ela é de família católica e curitibana. Lembram quando eu escrevi sobre roubo de livros, dizendo que o bom ladrão de livros não olha para os lados, agindo com naturalidade? Pois é. O pessoal da academia nos via como um casal, todos sabiam, éramos um casal. Não nos escondíamos.

Uma vez, fui visto pelo chefe de Pâmela no cinema. Só que os homens têm aquela solidariedade natural e ele disse para ela que tinha me visto no cinema… sozinho. Sensacional a manifestação de bom humor do chefe, fiquei quase nervoso.

Mas voltemos ao Monza. Houve um dia em que o meu consórcio preventivo foi sorteado e eu, em 2001 — em minha opinião prematuramente — ,  vendi por quase nada o Monza de tantas alegrias. Por que falo nele hoje? Ora, porque o vi. Está em péssimo estado aos 20 anos. Eu estava voltando da clínica onde está internada minha mãe. A gente perde a dignidade na velhice. Ou ganha outra. Olhei a placa, era ele, o final 2287. Lembrei de seu cheiro e o do perfume de H. — muito mais próxima de mim do que minha mulher — , lembrei do dia em que meu filho disse do banco de trás que deus não existia porque ele andara de avião e não vira ninguém nas nuvens, lembrei de minha filha querendo que eu SEMPRE parasse nas praças para andar de balanço – podia ficar horas balançando-se, olhando o mundo à sua volta — , lembrei de Pâmela perguntando se aquele carro nos levaria MESMO à Florianópolis e, fundamentalmente, de que ele nunca, mas nunca mesmo, me deixou na mão.

Foram 4 anos só botando gasolina, água, pastilhas de freios novas, ar nos pneus e, pô, trocando óleo. Certamente, na casa de Suélen, há fotos em que ele aparece de forma casual. As fotos acima são falsas, de um irmão gêmeo mais metido, com ar e direção, modelo Classic, também de 1990, que está a venda por R$ 3.900,00 num site aê.