Feliz 2010 / Novo Recesso

Então, em vez de pedir pelo paraíso ou gratuitamente pelo milagre da felicidade, que tal aproveitar a virada para pensar eticamente em como fazer as probabilidades moverem-se positivamente em nossa direção, na dos que amamos e, por que não exagerar, na da humanidade? Sim, é bom forçar alguns limites, desde que não sejamos obrigados a abrir mão daquilo que mais nos vale. É possível felicidade maior? Não creio.

Lembrem especialmente que, como disse C. J. Keyser, citado por nosso Magister Ludi, “A certeza absoluta é privilégio de mentes não educadas e de fanáticos” ou como minha irmã, mais sucinta, me ensinou: “Só a ignorância não gera dúvidas”.

Eu simpatizo com alguns rituais. Gosto especialmente da simbologia de renovação e recomeço que há na comemoração do Novo Ano. Por isso desejo que, apesar do calor, degustem com leveza esta época e consigam armazenar energia para manter um ritmo bom até o próximo momento de refletir um pouco — e que não precisa esperar 12 meses.

E que o resultado seja um 2010 endinheirado, saudável, amoroso, cheio de música e literatura para todos nós!

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O blog entra novamente em recesso até o próximo dia 4 ou 5.

Roman Polanski

Gostaria que todos soubessem como é encorajador, quando se está trancado em uma cela, ouvir este murmúrio de vozes humanas e solidariedade no correio matinal.

OK, pedofilia é assunto inegociável, mas, não adianta, sinto a maior solidariedade pelo grande artista Roman Polanski, 76, há meses numa cela, hoje em prisão domiciliar, pelo fato de ter mantido relações sexuais com uma menina de 13 anos em 1977. Sim, em 1977! Há 32 anos, quase 33.

A provável extinção da TVE e da FM Cultura

Olha, eu não vejo televisão. Para mim, a TV existe para as notícias e o futebol. Como as notícias vêm com o filtro das grandes corporações, fico mesmo é com o futebol. Então, não pensem que conheço a programação da TVE. Nunca conheci. Mas sei de alguns fatos: a TVE tinha uma programação que vinha de três fontes: a TV Cultura de São Paulo, TV Educativa do Rio de Janeiro e havia a programação local. O espaço era dividido por 3, de forma mais ou menos igual. Só que, em 2 de dezembro de 2007, a Educativa do Rio foi extinta para dar no lugar à TV Brasil, canal de televisão pública do governo federal, fundada no dia em que começaram as transmissões de sinal de TV Digital em território brasileiro. A programação da TV Brasil parece ser boa. Aí é que Ela entra na história. Identificando a TV Brasil como a TV do Lula, a Inepta resolveu cortar a programação vinda do Rio, ficando só com a sua e a da TV do Serra (TV Cultura de São Paulo). Nunca antes um governador achara que as TVs públicas do Brasil tinham uma programação tão partidarizada a ponto de impedir as emissões vermelhas de um ou as azuis de outro, mesmo em programas sobre arte ou gastronomia. O estranho é uma governadora que já conta com todas as emissoras comerciais — todas notoriamente pró-Ela e anti-PT — , especialmente a maior delas, parece desprezar tamanho favor, investindo seu tempo em impedir a chegada ao estado de perigosos programas lulistas à sua TV de baixa audiência… Ou quem sabe quer vender alguma coisa à principal patrocinadora?

Bem, então chegou o impasse. A TVE gaúcha e a FM Cultura estão num prédio do INSS. O contrato chegará ao seu final em março e a desgovernadora teria que manifestar sua intenção de compra até meados deste mês. O governo do RS tem mais de 1500 prédios ociosos, que poderiam ter sido oferecidos para permuta. Apesar de ter a preferência na compra, o governo gaúcho não quis adquirir o imóvel… A compra seria um ótimo negócio, o preço era uma bagatela. Porém a Néscia deixou a data expirar. Não comprou o prédio. Nem vai mais. De forma mui lépida e inteligente, a TV Brasil, a do Lula, esperou que o prazo da Trouxa passasse, foi lá no INSS e arrematou o imóvel. Imaginem só: um prédio prontinho, histórico (era o ex-estúdio da TV Piratini da rede de Chatô, encampado pelo INSS quando da falência), com estúdios, antena, estrutura, fiação, vista para o lago Guaíba, tudo lindo e pronto, como não interessaria? Só não interessa à Tola.

Nesse embate, quem se rala é a TVE e a FM Cultura. Agora, a Parva arranjou um lugar para as emissoras: um andar inteiro do Centro Administrativo, um garajão no térreo, hoje cheio de entulho. Detalhe: a TVE tem que se mudar para lá em março. A Tonta chamou a transferência de local de Revitalização. Na boa, eu fico imaginando o ânimo dos funcionários da empresa com a Revitalização que a Palerma pretende. O jornalismo da TV não informa absolutamente nada sobre seu futuro. É a chapa branca elevada a níveis paroxísticos: prefere não olhar para a injeção letal que se aproxima. O presidente do Conselho Deliberativo das Emissoras percebe manobras do Desgoverno para acabar com as emissoras. Ah, é mesmo? Como ele descobriu?

Falta nos fará a FM Cultura, 107,7. O melhor da música brasileira toca ali. Um dia, Mônica Salmaso falou comigo em Parati e disse, encantada:

— Lá vocês têm aquela rádio. A melhor do país.

Ali, pode-se ouvir o melhor mesmo. É a única FM onde se pode ouvir Hermeto, Guinga, Edu Lobo, os grupos instrumentais só ouvidos no exterior, toda a discografia da Biscoito Fino, etc. E há um glorioso programa diário de jazz, o “Sessão Jazz“, apresentado há 11 anos pelo apaixonadíssimo Paulo Moreira. São duas horas por dia na companhia de um baita conhecedor. É algo finíssimo, um luxo que a Ignara não deseja ter. É notável: Serra e FHC demitiram John Neschling lá, o Yedão trata de imitá-los envenenando a cultura daqui com uma desLeal secretária, com uma Sinfônica sem sede e agora… Caramba, que coincidência!

Links importantes:
Blog dos funcionários da TVE e da FM Cultura e
Abaixo-assinado conta a extinção da TVE / FM Cultura

A dona do Clarín adotou seus dois filhos em maio e julho de 1976, só que…

… a fundadora do movimento Avós da Praça de Maio, Chicha Mariani, suspeita que Marcela Noble, filha de Ernestina Herrera de Noble, dona do grupo Clarín, seja sua neta Clara Anahí, cujos pais foram sequestrados por militares em sua casa, em novembro de 1976. A Câmara Federal de San Martín determinou a realização imediata de exames de DNA.

De acordo com o registro da adoção, de 13 de maio de 1976, a viúva de Roberto Noble compareceu perante a juíza Ofelia Hejt com uma bebê a qual chamou Marcela. Ela disse que a tinha encontrado onze dias antes em uma caixa abandonada na porta de sua casa. Ofereceu como testemunhas um vizinho e o zelador da casa ao lado. Em 2001, o suposto zelador Roberto Antonio García disse ao juiz Roberto Marquevich que nunca trabalhou como zelador em sua vida. Seu trabalho durante quarenta anos, foi como um motorista de Noble e da viúva. García acrescentou que Noble nunca morou na casa que onde foi encontrada a criança, fato confirmado por registros oficiais. Alías, nem o alegado vizinho, ja falecido, morou lá.

A adoção do outro filho, Felipe, também é suspeita. Seus registros de adoção dizem que sua mãe, Carmen Luisa Delta, colocou-o à disposição da mesma juíza Hejt em 7 de julho de 1976. No mesmo dia, sem maiores considerações e sem determinar as circunstâncias do nascimento, a juiza concedeu a adoção. Hoje, sabe-se que Carmen Luisa Delta nunca existiu.

Aqui, o imbroglio completo no Pagina 12. Na Argentina, as coisas são investigadas, as pessoas são punidas. É uma gente curiosa, né?

Relendo Michael Kohlhaas, tendo pequenas surpresas

Por achá-lo parecido com Desonra, comecei a reler ontem a grande novela de Heinrich von Kleist (1777–1811), A Vingança de Michael Kohlhaas. A forma com que os dois caminham inexoravelmente para a desgraça, conscientes mas irredutíveis, é muito semelhante. A diferença principal é a raiva. Michael Kohlhaas tem ódio.

E, prova de que os livros dialogam entre si, começo a encontrar casualmente, aqui e ali, novo temas. Imaginem que Kafka fez apenas duas leituras públicas — evento comum na Alemanha até hoje. Uma delas foi dedicada a ler passagens de Michael Kohlhaas. Kafka disse que “não poderia sequer pensar” neste trabalho, sem ser levado às lágrimas e ao maior entusiasmo. E, ao que parece, o romance Ragtime, que não li, de E. L. Doctorow, utiliza elementos do enredo. Doctorow declarou que seu livro é uma deliberada homenagem à história de Kleist.

Será que é fácil de achar? Meu livro é da Editora Três (uma coleção de 1974) e os direitos de tradução são da Melhoramentos. Coisa muito antiga.

Desonra, de J. M. Coetzee

Nunca tinha lido nada de J. M. Coetzee, autor sul-africano vencedor do Nobel de 2003. Desonra é de 1999. Ficou pronto, portanto, nove anos após o fim do apartheit e cinco depois das primeiras eleições livres da África do Sul. Tal cronologia é importante, pois Desonra é um relato seco e brutal onde o racismo, a “necessidade” do cumprimento do politicamente correto e a luta pela terra estão presentes.

David Lurie é um professor universitário que leciona poesia numa Universidade da Cidade do Cabo. Tem uma vida desinteressante (até para o próprio) e bem organizada, a qual inclui uma prostituta às quintas-feiras. Depois de um encontro casual num supermercado com esta mulher — outro encontro casual num supermercado ocorrerá nas páginas finais do romance com outro gênero de prostituta –, Lurie começará a ver seu mundo desmoronar. Primeiro, tem um caso com uma aluna. O julgamento da Universidade é absolutamente inacreditável, mas digamos que Lurie não a auxilia em nada. Como um Michael Kohlhaas moderno, o professor resolve entrar no mundo da desgraça de forma reta e vencedora… Depois da exoneração, Lurie vai passar um tempo com sua filha Lucy numa fazenda do interior. Lá, mais eventos ocorrem: pai e filha são atacados por uma gangue de três negros e Lucy é sexualmente agredida num estupro múltiplo que resulta em gravidez. Por um lado, a filha do professor parece aceitar a ocorrência. Seria uma espécie de revanche dos negros, ultrapassaria as meras dimensões individuais. Durante o ataque, Coetzee, que se limita a narrar os fatos concisamente, “larga” — o verbo melhor talvez seja mesmo este — uma frase-tese inteiramente estranha à linguagem utilizada pelo romance: Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil… Obviamente, Coetzee não é trouxa. A frase não está ali por acaso. Com ela, ele pretende demonstrar ela a inadaptação da velha moral e da velha cultura aos novos tempos violentos.

A prosa seca de Coetzee não é das mais agradáveis, mas é eficiente para contar uma história onde o engenho está em significar muito: há a inutilidade cultural daquilo que Lurie faz e diz — o que dizer da ópera que nunca será ouvida e que parece ter sido composta para um cão que será sacrificado? –, há as desonras — a da aluna, a do professor acusado por assédio, a da filha, a do pai, a dos agressores, a dos que tomam a terra, a dos que aceitam como verdade o politicamente correto… enfim, a desonra completa da sociedade — e há o principal: a falta de vontade de comunicação. Quando terminei de ler o romance, a impressão que tive foi a de ter lido uma série de diálogos e pensamentos de personagens que não encontram ouvintes ou repercussões em outros. Não há nenhum empenho de compreensão, nem residual.

Talvez nós, brasileiros, estejamos acostumados a isto e não nos choquemos tanto com este tipo de histórias e mesmo em histórias de cunho menos social, a incompreensão já foi diversas vezes palmilhada: a incomunicabilidade de Antonioni, a de Pamuk, McEwan ou Rushdie, para dar exemplos próximo de mim, mas nunca a tinha visto toldada de tal desilusão e impotência. O livro é bom? Sim, é ótimo. Tem de ser lido? Sem dúvida! Mas lhe falta alguma coisa.

A sucessão de tragédias é tão rápida e espetacular, os acontecimentos se precipitam de forma tão contundente, o romance é tão curto, que a estrutura da história fica por demais aparente. A partir da metade do livro, ficamos aguardando o que mais de ruim Coetzee nos trará. Eu não peço uma redenção final, nem maior suavidade, apenas acho que a máquina de geração de desgraças de Coetzee funcionou com tamanha rapidez que deu ao romance um excesso de situações limite em curto espaço de tempo. Ora, isto não apenas lhe retira verossimilhança como lhe dá um aspecto esquemático. Como disse acima, sigo gostando e indicando Desonra, mas acho que Coetzee criou material e situações para algo ainda melhor.

Abaixo o Natal!!!

O Natal devia ser como a Copa do Mundo, de quatro em quatro anos. O que há de bom nestes dias? Estar com a família? Sou alguém bastante sociável, gosto de minha familia e já os vejo frequentemente. Então, prefiro estar com eles sem as besteiras mesquinhas e os milagres da época. Mais do que o primado do consumo, detesto as promoções de bons sentimentos, a hipocrisia, a religião, a obrigação de felicidade. Pior, hoje serão servidas iguarias irresistíveis, vai se comer muito e não quero engordar. Por mim, dormia cedo. E amanhã todos voltarão porque haverá comida demais…

É uma festa legal quando temos crianças pequenas, mas agora, qual é o sentido? Há a necessidade de estarmos alegres após passar o dia arrumando a casa e lembrando de detalhes… Pois é, já viram, vai ser aqui em casa. Se a gente fica sério, as pessoas se preocupam. Então, o negócio é beber. Haja saco. Ainda bem que chove. Podia vir uma tempestade e faltar luz no meio da festa! Seria uma novidade!

Festa por festa prefiro a virada do ano. Ao menos é sem presentes e com menos religião. E, associada à data, há uma simbologia de renovação, de planos e mudanças quase sempre falsas, mas ao menos pensadas. Já o Natal… é pura merda. Na minha infância, era comemorado na manhã do dia 25. A gente acordava e havia presentes sob a árvore. Fim. Hoje é um happening, vão tomar no cu.

Um homem deve saber a hora de trocar seu e-mail ou Recebendo mensagens da estrela spammer Onyx

Meu amigo Fernando Guimarães, coloradíssimo, recebeu este e-mail deste célebre deputado do DEM/RS:

Sua resposta, 3 minutos depois, foi uma perfeição:

—– Mensagem encaminhada —-
De: Guimaraes Fernando
Para: Onyx Lorenzoni
Enviadas: Segunda-feira, 21 de Dezembro de 2009 10:47:52
Assunto: Res: Feliz Natal Colorado

Não esqueça do meu Panetone !

Fernando Guimarães

Algo vindo do Onyx… Olha, nem embalado à vácuo, sem contato manual.

As mulheres

Abaixo, uma conversa que eu e minha mulher, Claudia Antonini, tivemos no MSN esta manhã.

Acho que demorei a adolescer. Deixem eu recomeçar: sei que demorei a adolescer. Lembro que meus amigos faziam coisas que eu, uma criança, temia. Não fiquei muito traumatizado, mas só eu conhecia a inferioridade que sentia e escondia. Depois, equiparei-me a eles, mas a noção de atraso ou lentidão deslocou-se para as mulheres. Posso ter meus méritos aqui e ali, mas há algo no gênero de inteligência delas que me escapa definitivamente. Tenho-lhes inveja. Às vezes me irrito com as confusões nas quais as mulheres são especialistas, porém foram incontáveis as vezes em que fui salvo, aconselhado ou conduzido por elas. Só eu sei que a minha piada no MSN, apesar de fraca, foi tão verdadeira como as boas piadas são. Pois só eu conheço a inferioridade que sinto e escondo.

Como o soldado conserta o gramofone, de Saša Stanišić

O livro de um bósnio que fala da Guerra dos Balcãs com a poesia possível. E muita poesia é possível naquele país de loucos, festas e guerras. Um livro cheio de ideias intrigantes e metáforas amalucadas que só, talvez, um bósnio pudesse criar. Cômico, pitoresco, comovente e trágico como um filme de Emir Kusturica, o romance é dividido em três partes para contar a história da infância e juventude de Aleksandar. A primeira parte narra a história de sua família em Višegrad, com especial afeto para com a figura do vovô Slavko, um nacionalista sérvio seguidor de Tito, que inspira o neto a contar histórias. Vovô Slavko morre enquanto a Iugoslávia sucumbe (1991), obrigando a família a emigrar para a Alemanha, fugindo da guerra. Filho de mãe muçulmana e pai sérvio (como o autor), não é adequado permanecer. A segunda parte é catalisada por um pacote de lembranças do avô, enviado a Aleksandar pela vovó Katarina, que permaneceu em Višegrad. Quando tudo era bom — um livro dentro do livro — é dedicado ao avô e é uma nostálgica reconstrução da vida anterior à guerra. A terceira parte conta como Aleksandar, adulto, retorna para sua Višegrad, tentando juntar os cacos do que já não existe mais e conhece o tio Miki, por demais informado sobre os crimes de guerra. Aqui, há o episódio inesquecível de um jogo de futebol entre sérvios e bósnios durante uma trégua. Contado de forma mirabolante e cômica, é o ponto alto do romance, assim como fora a história da amizade de Aleksandar com o italiano Francesco na segunda parte.

O ambiente é alegre, principalmente porque visto sob os olhos de uma criança e da nostalgia, mas o país, a cidade e Aleksandar sofrem com uma guerra onde mistura-se o ódio étnico (entre bósnios, sérvios e croatas) e o religioso (entre cristãos, muçulmanos e ortodoxos).

A ponte do Drina, rio-personagem que banha Višegrad. Dela, foram jogados
milhares de corpos. O rio da vida do vovô Slavko torna-se cemitério.

Bem, porém este é um blog cujos temas emergem conforme a vontade e o humor de seu autor. Hoje não quero falar sobre limpezas étnicas, OK? Bem, o ambiente de festa dos filmes de Kusturica deve ser mesmo o bosnian way of life

No exterior, as pessoas pensam que nós estamos sempre festejando por aqui. (…) Isso não corresponde muito bem à verdade, pois em algum momento temos que arrumar o que ficou desarrumado com os festejos.

O trecho acima vem logo antes de uma festa para a inauguração de uma privada nova, a primeira privada interna da casa.

Conheci Saša Stanišić em Porto Alegre. Tem apenas 31 anos e escreveu seu livro aos 28. Ele me foi apresentado pelo tradutor Marcelo Backes. Sim, o livro é em grande parte autobiográfico e possui algumas poucas falhas que coloco na conta da pouca idade, mas… que escritor ele poderá tornar-se, que imaginação! É original foi escrito em alemão, pois Saša (diz-se Sacha) vive na Alemanha, mas as metáforas e o ambiente regado a…

Autumn has arrived, along with the need for comfort,
delicious rich foods and of course hot plum brandy “sljivovica”.
Before 5PM it is medicine, after 5PM it’s alcohol
. )

… não pode ser mais bósnio. Vale a pena ler!

Milton faz 46

Publicado em 15 de agosto de 2003

Envelhecemos lenta e sorrateiramente, mas há nossos aniversários para nos lembrar a idade. É como se o tempo não fosse a contínua secreção que é e se tornasse um espasmo anual. Meu espasmo se dará em 19 de agosto. Sofro pouco com a idade, quase a ignoro; há as rugas e os cabelos grisalhos, mas as outras mazelas estão sendo indulgentes comigo. Por enquanto, a única pessoa que me chama de “tio” é meu sobrinho e ainda consigo manter o mesmo ritmo de atividade do passado.

Este aniversário vai ser bem diferente. Vou ganhar de presente, no próximo sábado, uma festa de proporções sinfônicas, se a comparar com as camarísticas que tive até hoje. Confirmaram presença umas… 54 pessoas. É muito. Ao mesmo tempo que estou feliz, sinto-me um pouco constrangido por movimentar toda esta gente. Minha baixa auto-estima está com um indisfarçável sentimento de desconforto com as todas as coisas boas que tem me acontecido; estou conseguindo pressioná-la e seus argumentos perdem a força. Há coisas hoje de que me orgulho solidamente: a relação com meus filhos, família e amigos, meu bloguinho e – o principal e catalizador de tudo – minha relação com a Claudia, que com sua presença diária me dá, além do melhor e mais amoroso dos convívios, repetidas provas de serem injustificadas as confusões e depressões que às vezes me perseguem. (E ainda prepara festas!)

Porém, antes que mude de confuso a bobo alegre, convém pôr um ponto final a esta intervenção.

Diante de Deus

Chega um momento na vida em que é necessário falar com Deus. Mas, ai, o guichê de Deus recém tinha atendido a ficha 98 e seu número era o 317. Ele aguardou, ouvindo os cambistas gritarem números menores. Pagou caro pelo 119. Quando chegou sua vez, pensava que veria toda sua vida passar num átimo por seus olhos, porém viu apenas um padre. Este deu-lhe um comprimido e indicou-lhe a sala ao lado. O homem, desconfiado, não engoliu a pílula vermelha, mas dirigiu-se à sala. Havia dezenas de pessoas nos bancos, enquanto atendentes caminhavam entre elas analisando quem já era alma e quem não era ainda. As almas eram levadas para uma porta branca, as ainda não-almas causavam-lhe um misto de dó e repugnância; ficavam ali, aguardando seu momento. Sentiu medo. Como sairia? Deveria tomar a pílula? Fingiu-se de drogado. Quando uma mulher de preto e lenço na cabeça passou à sua frente, ouviu-a dizer Esse ainda demora um pouco e a resposta de outra: É. Ele tinha certo talento para meter-se em confusões, mas aquilo talvez fosse demasiado. A sala começava a ficar vazia e os avaliadores sempre emitiam a opinião de que ele iria demorar mais um pouco. Minutos depois, sentiu pegarem seu braço, abriu os olhos e viu um padre preparando certamente a injeção letal, aquela para evitar o serão. O padre assustou-se quando ele disse Eu não deveria estar aqui. Como resposta, o representante de Deus leu o prontuário: Falar com Deus, uma vida mixuruca como a sua?, só tomando o remédio. Ele explica que quer sair, mas o padre diz-lhe que o único caminho é o da porta branca, que sua repartição funciona como o tempo, só tem um sentido. Reforçam a segurança. Vê um guarda magro, narigudo e de faces chupadas postar-se bem na frente da porta de entrada a fim de impedir-lhe o retorno. Na sua insígnia está escrito seu nome e a repartição à qual pertence: “K.”. O impasse está montado e o padre diz-lhe com voz sedutora, Eu poderia lhe dar outra ficha para o senhor voltar amanhã. Ele admite que é uma saída honrosa para ambos e aceita a nova ficha. Dirige-se ao guarda que, sem dizer palavra, aponta-lhe a porta branca num gesto peremptório. Nervoso, o homem perde o controle e grita afirmando saber que aquela saída-entrada estava destinada apenas para ele. Ouve o padre murmurar às suas costas Quanta pretensão… O homem procura acalmar-se, pois sempre soube que o bom senso e a razão podem milagres. O padre solicita que ele se dirija à porta branca e ele responde É possível, mas ainda não. Observa o efeito da frase. O padre permanece impassível; sabe-se lá se não há orgulho na expressão do guarda.

Os Melhores Filmes de 2009

Dos 57 filmes que vi NO CINEMA em 2009 — conforme anoto em Últimos Filmes Assistidos (acima) — dei nota máxima apenas a 6:

2009/18 – Violência Gratuita – Funny Games – 2007 – EUA – Michael Haneke – 5
2009/29 – O Casamento de Rachel – Rachel Getting Married – 2008 – EUA – Jonathan Demme – 5
2009/35 – Stella – Stella – 2008 – França – Sylvie Verheyde – 5
2009/41 – O Grupo Baader Meinhof – Der Baader Meinhof Komplex – 2008 – Alemanha / França / República Tcheca – Uli Edel – 5
2009/49 – Anticristo – Antichrist – 2009 – Alemanha / Dinamarca / França / Itália / Suécia – Lars Von Trier – 5
2009/57 – Partir – Partir – 2009 – França – Catherine Corsini – 5

E, destes, dois são um pouco maiores que os quatro restantes. Como ninguém está me obrigando a escolher um deles como “o melhor do ano”, aqui vão meus dois melhores de 2009:

Foram filmes que apresentaram efetivas novidades, seja de linguagem (Rachel) ou temática (Anticristo). Também foram os únicos que me motivaram a sentar e escrever a respeito. Em 5 de maio, escrevi Eu não quero um deus que possa perdoar o que fiz, resenha insuficiente sobre o grande filme que é O Casamento de Rachel e, em 13 de outubro, voltei a demonstrar minha incompetência no post Anticristo, de Lars von Trier, com a diferença de que, no último, fui salvo pelos comentaristas.

Curiosamente, O Casamento de Rachel foi recebido friamente ou ignorado pelas pessoas e pela crítica, fato que me deixou desconcertado, enquanto que com Anticristo ocorreu justamente o contrário, mas algumas pessoas o viram de forma tão periférica ou tola que voltei a ficar desconcertado. Houve exceções, claro, mas a maioria nem pareceu ter passado perto do filme… Uma pena.

RBS está morta de preocupação com o consumo de álcool por parte dos jovens…

… tanto que publicou matéria moralizante no último sábado. Era cheia de dados comprobatórios e o tom era da necessária proteção a nossos adolescentes. Porém, …

… seu principal evento para jovens, o medonho Planeta Atlântida, tem até cerveja oficial. Vai ver que sou eu o trouxa. Afinal, a RBS quer proteger nossos jovens servindo-lhes a pior cerveja do mercado. Só pode ser isso! Afinal, são tantos os jovens que se deslocam para lá em seus carros! Há que protegê-los! Tal anúncio dialoga de forma mui subliminar com as campanhas de Paz no Trânsito! Eu é que não tinha entendido!

Après Diário Gauche. Ici.

Findi futebolístico

Messi fica com raiva quando o acusam de não ser argentino. O fato é que ele nunca conseguiu repetir as atuações que dá a Barça na seleção. Deve ser horrível para ele, mas é verdade. Para completar, ele marcou o gol que acabou com as pretensões do Estudiantes de La Plata no último sábado. Sim, ele é profissional, porém seu gol não colabora em nada para uma imagem mais “argentina”. As manchetes dos jornais falam que Messi enfiou um punhal no Estudiantes. Isso tem todos os ingredientes de um drama. Messi joga nervosamente em sua seleção e cada vez melhor no Barcelona. Ou seja, sua responsabilidade aumenta conforme acumula glórias para os catalãos. Daqui há pouco, só o título mundial o redimirá.

Ontem, Benfica e Porto fizeram o jogo mais violento que vi em anos. Se fosse no Brasil, teríamos 2 expulsões nos primeiros 15 minutos e os ânimos se acalmariam. Talvez só o político da Fifa Carlos Simon tolerasse as agressões. O Benfica mereceu a vitória. O zagueiro brasileiro David Luiz é espetacular. Se eu fosse o Dunga, chamava agora. Sabe desarmar, cabecear, sair jogando, tudo. E tem raça.

All that mythology

Pertenço àquele grupo de pessoas que adoram de música e gravações ao vivo. Claro que uma gravação de estúdio deve ser tão perfeita quanto o possível, mas é ao vivo que o artista faz contato direto com seu público; é ao vivo e no entusiasmo causado por esta interação física que temos a expressão mais sincera e direta; é sem a mediação de engenheiros de som, produtores e outros que tais que o verdadeiro artista criará a expressão só passível de ser inventada na presença do receptor. É apenas numa apresentação ao vivo que a música pode ser maior do que quem a executa. Nesses momentos, o artista pode escolher sentimento à técnica e mandar a perfeição às favas em nome da celebração. Mas me entusiasmo e tergiverso…

Acho que nunca Porto Alegre assistiu ao Orfeu de Claudio Monteverdi (pronuncia-se montevêrdi). Por isso e pela beleza da música, foi oportuno o Concerto do StudioClio da última sexta-feira, dedicado a seleções do Orfeu entremeados com explicações de Francisco Marshall a respeito de all that mythology. Num ambiente muito tranquilo e de bom humor, a Confraria Música Antiga apresentou, na primeira parte do programa, algumas peças instrumentais e árias do primeiro grande gênio da música ocidental.

Monteverdi causou sensação com Orfeu, a primeira ópera de todos os tempos. Até aquele momento, em 1607, apenas a poesia lírica fora musicada. Os madrigais duravam de dois a quatro minutos. Então Monteverdi compôs um poema pastoral — uma fábula, como ele próprio a batizou — de uma hora e meia de duração. A tarefa não era nada simples. Ele tinha apenas que descobrir como dar coerência a uma peça com elementos e situações muito diversas por meio de uma nova forma. O que ele tinha na mão? Ora, o madrigal, o recitativo (espécie de canto falado) e sua imaginação. O que ele conseguiu em termos de dramaticidade é espetacular, apesar de utilizar estruturas muito simples e lineares. A história começa alegre e termina em tragédia — com Eurídice (diz-se, em italiano, Euridítche) no quentinho do inferno. Só um gênio com o talento dramático de Monteverdi conseguiria inventar uma nova linguagem que pudesse auxiliar a contar uma história tão cheia de variações de espírito em seu personagem principal. Há um momento especialmente complicado: aquele quando Orfeu pensa que salvará Eurídice e já está prévia e equivocadamente feliz.

A Confraria Música Antiga esteve impecável com Fernando Cordella (cravo). Cíntia de Los Santos (soprano) e Nikolaj De Fine Lichts (flautas) cometeram pecadilhos que só um IMBECIL não relevaria. Pensemos: estamos em Porto Alegre, assistindo a uma peça inédita, preparada para apenas uma noite, pois não há público para mais; ademais, sabemos que a segunda apresentação, aquela para a qual nossa triste cidade não tem público para assistir, é sempre melhor; como se não bastasse, temos uma orquestra sinfônica que só percorre o repertório mais básico, nauseante e batido. Considerando-se tudo isso, eu seria ridículo se perdesse meu tempo apontando os pequenos (mesmo) e DESCONSIDERÁVEIS erros cometidos por quem FAZ CULTURA na cidade. Ainda mais que o conjunto, o ambiente e as explicações nos colocaram perfeitamente no contexto de Monteverdi e de sua ópera.

A segunda parte de all that mythology contou com uma surpreendente e ótima peça de Francisco Marshall e Dimitri Cervo. Solis invictus foi solarmente interpretada por Cíntia de Los Santos, César Rodrigues Pereira (tenor), Dimitri Cervo (piano) e Javier Balbinder (oboé, excelente). Deixou aquele gostinho de ECM New Series no ar. Quem conhece a ECM e seus novos trabalhos sabe que este é um elogio que raros merecem, pois estamos falando ao mesmo tempo de absoluta qualidade e contemporaneidade.

Amanhã à noite (segunda-feira, 21/12), tem mais. O soprano Luísa Kurtz e o pianista Carlos Morejano vão dar um recital certamente superior à foto que acompanha o programa… Conheço o pianista Morejano — é excelente. Luísa Kurtz é colecionadora de boas críticas e pode ser ouvida na gravação abaixo, de som não muito bom, mas onde ficam claras sua potência e belos agudos. O duo está indo para a Itália e o concerto tem nome dramático: Concerto d’addio. Para que não pensemos que se trata de intenção ou ato falho, não seria melhor já deixar agendado um Concerto di ritorno? Hã? Hã?