Presidente de Portugal defende leitura como impulso à economia: ‘É aposta no desenvolvimento a longo prazo’

Em entrevista exclusiva, Marcelo Rebelo de Souza relata suas doações de mais de 200 mil livros e títulos e comenta a polêmica sobre tributação no Brasil

De O Globo.

PORTO, Portugal — Presidente dos Afetos, como é carinhosamente conhecido em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa defende com ternura a educação e a leitura como principal caminho para o desenvolvimento econômico de longo prazo.

Em entrevista à coluna Portugal Giro, ele conta como suas doações de livros ajudaram a tornar Celorico de Basto, terra de sua avó e então município mais pobre de Portugal, em um celeiro de cultura.

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— Havia de encontrar onde apostar no desenvolvimento. E eu entendi que era a longo prazo, na cultura e na educação.

A cidade ganhou notoriedade e melhorou a infraestrutura. Depois da biblioteca, Marcelo apadrinhou uma feira do livro, que atraiu ao longo dos anos políticos, escritores, jornalistas, turistas e potenciais investidores.

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O presidente português comentou ainda a recente polêmica sobre o acesso a livros no Brasil, após estudo da Receita Federal defender a tributação no setor sob o argumento de que os pobres leem menos do que os ricos:

— É evidente que há uma clivagem econômica e social muito acentuada. Quem lê mais, escreve mais e melhor. Marca o começo da vida. As escolas públicas e particulares têm o dever de corrigir essa desigualdade — afirma Marcelo, que já fez mais de 200 mil doações.

O bolsonarismo e a taxação dos livros: hipocrisia, mentira e anti-intelectualismo

O bolsonarismo e a taxação dos livros: hipocrisia, mentira e anti-intelectualismo

Do Esquerda Online.

A isenção tributária sobre os livros é uma garantia constitucional, consagrada no artigo 150, daquela que ficou conhecida como a Constituição Cidadã. De certo modo foi um gesto de um Brasil que, recém-saído de 21 anos de Ditadura, buscou valorizar o papel da educação e da cultura – e dos livros como um de seus instrumentos – para construção de uma sociedade democrática.

Não nos deveria causar espanto um governo odioso como o de Bolsonaro voltar suas armas também contra essa garantia constitucional. Afinal, cultura e educação, já sabemos bem, são um dos principais alvos do bolsonarismo. Nesse caso específico, o argumento utilizado pelo Ministro Paulo Guedes, segundo o qual a leitura de livros seria um hábito de luxo, apenas para ricos, e que a sua taxação seria uma espécie de justiça social ao poder com isso destinar mais recursos aos pobres – ao bolsa família por exemplo – é também típico da hipocrisia e superficialidade do desgoverno federal.

Basta uma rápida ida ao texto da Constituição e veremos, por exemplo, que no mesmo artigo 150, que veda à União, Estados e Municípios a instituição de imposto sobre os livros; também há, algumas alíneas acima, a mesma garantia em relação aos templos religiosos de qualquer culto. Se você que lê essas linhas mora no Brasil, deve ter conhecimento dos verdadeiros impérios construídos com base na exploração econômica da fé.

É de conhecimento público a intensa e diversa atividade econômica que ultrapassa as paredes dos templos. E por óbvio, também sabemos que esses impérios há muito criaram raízes na política institucional brasileira, vide a própria bancada da bíblia no congresso federal com sua Frente Parlamentar Evangélica (FPE) composta de 182 parlamentares. Ao que parece, os únicos que não sabem disso são Paulo Guedes e sua equipe econômica, que ao se debruçar sobre o mesmo artigo da Constituição preferiram centrar fogo nos livros. Sabemos bem o porquê, não é mesmo?

E tem mais, quando alega que os recursos da taxação dos livros poderão ser utilizados para distribuição de renda, Guedes mente desavergonhadamente sobre a natureza da reforma tributária que está sendo planejada. No Brasil, toda a carga tributária está sustentada em cima do consumo, e não da renda ou patrimônio. Isso faz com que, ao contrário do que se pensa, sejam os mais pobres que pagam proporcionalmente mais impostos. É o que se chama de carga tributária regressiva. É justamente esse mecanismo perverso e, considerando as profundas desigualdades sociais e raciais brasileiras, racista, que o governo federal não tem a menor intenção de alterar. Nesse sentido, o discurso de Guedes não passa de um engodo.

Autoritarismo e anti-intelectualismo

Esse episódio da taxação dos livros deve ainda nos fazer pensar sobre outra lição que a História há muito nos ensinou. O Anti-intelectualismo é marcadamente um dos traços dos governos de viés autoritário. Os fascistas, particularmente, abominam a ciência com o mesmo fervor que cultuam os mitos. Num recente e necessário livro publicado em 2018, sob o título “Como funciona o fascismo”, o filosofo estadunidense Jason Stanley sustenta que:

“A política fascista procura minar o discurso púbico atacando e desvalorizando a educação, a especialização e a linguagem. É impossível haver um debate inteligente sem uma educação que dê acesso a diferentes perspectivas, sem respeito pela especialização quando se esgota o próprio conhecimento e sem uma linguagem rica o suficiente para descrever com precisão a realidade.”

Stanley ainda argumenta que, para os fascistas, o debate público deve ser ocupado não com a ciência, ou com formulações balizadas por pesquisas, pluralidade de perspectivas, experimentação e formulação de hipóteses; mas sim pela propaganda doutrinária. E para isso, recorre a ninguém menos que o próprio Adolf Hitler, que escreveu na sua biografia Mein Kampf que:

“A capacidade receptiva das massas é muito limitada, e sua compreensão é pequena; por outro lado, elas têm um grande poder de esquecer. Sendo assim, toda propaganda eficaz deve limitar-se a pouquíssimos pontos que devem ser destacados na forma de slogans.”

Num país que desgraçadamente tornou-se o epicentro mundial da pandemia, estamos experimentando da pior maneira possível a consequência do Anti-intelectualismo, da vulgarização da importância da leitura e negação da ciência. Esse governo genocida negou a gravidade da Covid-19, a apelidou de gripezinha, sabotou as medidas sanitárias e implementou uma verdadeira política anti-vacina. O preço de tudo isso está sendo cobrada em vidas e, com os sucessivos reveses do plano de vacinação que aponta para uma indefinida escassez de vacinas, ainda estamos longe de saber qual será a extensão dessa fatura sinistra.

Bom dia, Miguel Ángel (com os lances de Inter 4 x 0 Táchira)

Bom dia, Miguel Ángel (com os lances de Inter 4 x 0 Táchira)
Cuesta mostra o caminho | Foto: Ricardo Duarte / SC Internacional

O Inter goleou o Deportivo Táchira por 4 x 0 com gols de Victor Cuesta, Patrick, Thiago Galhardo e Yuri, em noite de bom futebol e palhaçadas.

Comecemos pelas palhaçadas. Galhardo comemorou o terceiro gol tirando a camisa para mostrar uma santa qualquer e recebeu merecido cartão amarelo. O mesmo ocorreu com Patrick no segundo gol. O moço colocou a máscara de um super-herói e recebeu outro cartão. Olho neles, seu Migué, pois o capitão Dourado não fede  nem cheira — como capitão. Um dia, esses caras recebem um segundo cartão e acabam expulsos por este tipo de bobagens com personagens imaginários.

Quanto ao bom futebol, dá para dizer que o trabalho de Ramírez começa a aparecer. O time acelerou os passes, Patrick começou a entender como deve jogar, Maurício apareceu bem e parece ser uma convicção do treinador.

O primeiro tempo foi muito bom. Dominamos e criamos situações que foram aproveitadas. Fizemos 3 x 0 e o pudemos jogar um segundo tempo mais relaxado. Se seguirmos assim contra o Juventude e o Olímpia ficará claro que o esquema está sendo absorvido. As triangulações pelas pontas funcionaram. Os lançamentos também, além de terem diminuído os passes inúteis para os lados.

A saída de bola com o goleiro é meio enervante, mas ontem vi vantagem em sair de trás com o campo mais aberto devido à marcação alta do adversário.

Como é mais gostoso falar mal do que bem em futebol, Marcos Guilherme voltou a jogar mal e torcemos por uma negociação em definitivo que o mande para a Coreia ou para a China. Já Carlos Palacios precisa de ajuda.

Houve vários impedimentos mal marcados, mas é maravilhoso um jogo sem VAR!

Voltamos a jogar pela Libertadores na quarta-feira da próxima semana (05/05). O adversário, no Beira-Rio, será o Olímpia, em partida marcada para as 21h. Antes disso, vamos a Caxias para nos enjoarmos com o Juventude às 16h de domingo (02/05), na abertura das semifinais do Picanhão.

A Idiota, os Russos e o Rei são as dicas da Bamboletras

Newsletter de 26 de abril de 2021

Olá!

A Todavia chega com Roberto Carlos, uma figura da qual nem todo mundo gosta, mas que desperta paixões a favor e contra. A Cia. vem com “A Idiota”, um livro cômico que poderia se chamar “Retrato da artista quando jovem”. E temos um belo ensaio sobre a literatura que todos nós amamos: a russa.

Boa semana com boas leituras!

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A Idiota, de Elif Batuman (Cia das Letras, 488 pág., R$ 99,90)

Neste romance finalista do prêmio Pulitzer, acompanhamos o amadurecimento de uma jovem universitária nos anos 1990 que se descobre como escritora enquanto vive as agruras e as delícias do primeiro amor. Selin, filha de imigrantes turcos, começará seu primeiro semestre em Harvard. O ano é 1995 e a internet, uma novidade. Ela se inscreve em matérias de que nunca ouviu falar, faz amizade com a carismática e cosmopolita colega sérvia, Svetlana, e começa a se corresponder por e-mail com Ivan, um estudante de matemática húngaro, mais velho. Selin falou pouco com Ivan, mas a cada e-mail que trocam, o ato de escrever parece assumir significados novos e cada vez mais misteriosos.

Como ler os russos, de Irineu Franco Perpetuo (Todavia, 304 pág., R$ 69,90)

Feito para todos que se interessam por literatura russa, este ensaio busca responder uma pergunta: por que seguimos, ao longo de décadas, lendo, discutindo e admirando os russos? Dos precursores até a literatura pós-soviética e dos emigrados, abordando teatro, prosa e poesia, Irineu Franco Perpetuo nos conduz por séculos de criação artística, iluminando e contextualizando a obra de autores como Púchkin, Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov.

 

 

Roberto Carlos — Por isso essa voz tamanha, de Jotabê Medeiros (Todavia, 512 pág., R$ 84,90)

Ninguém na música brasileira foi – e ainda é — mais popular do que Roberto Carlos. As dezenas de milhões de discos vendidos, a onipresença na televisão desde os anos 1960, os hits que marcaram gerações, os dramas pessoais, a figura pública reservada, as brigas na justiça – todos esses fatos são públicos e notórios. Mas são poucas as fontes acessíveis capazes de traçar, sem arroubos de tiete ou cores sensacionalistas, o percurso desse artista singular. Publicada no momento em que o artista completa 80 anos, esta biografia de Jotabê Medeiros consegue justamente isso. Autor de consagrados livros sobre Belchior e Raul Seixas, Jotabê se aprofunda na formação musical do artista, desde a infância em Cachoeiro do Itapemirim e os primeiros passos cantando à moda de João Gilberto, até a explosão como líder do incipiente rock nacional e os hits que ao longo de décadas emplacou entre os mais ouvidos do país.

Quiz sadomasoquista II

Deus foi sacana — como sempre é. Ele me disse que, para entrar no céu, eu teria que eliminar da memória da humanidade um autor russo de minha escolha. A listinha seria curta.

Se não escolhesse, eu iria queimar no inferno. Bah, dei uma olhada lá e o inferno não dava mesmo.

Apenas ele ouviu minha resposta. Na minha situação, qual você escolheria?

1 Dostoiévski
2 Tchékhov
3 Tolstói

(Se você tem dúvidas, adquira “Como ler os russos” de Irineu Franco Perpetuo, à venda na Livraria Bamboletras. Não vai resolver a questão deste Deus-Satanás, mas você vai aprender muito!).

Hoje, os 130 anos de nascimento de Prokofiev

Hoje, faz 130 anos que Prokofiev nasceu. Ele morreu em 1953 e a coisa que mais me impressiona é que ele morreu no mesmo dia e ano de Stalin. Faleceram com diferença de horas ou ao mesmo tempo. E não sobraram flores nem atenções para o compositor. Sua morte quase não foi noticiada na URSS. Um troço bobo em relação à obra que o cara nos legou, mas que me deixa triste.

Como um amigo disse: “Me lembrou o episódio da morte de Tchékhov, cujo corpo foi transportado num vagão de ostras, e na estação muitos seguiram o cortejo errado, pois que também lá estava o defunto de um oficial, esperado por muita gente, oficiais e uma banda. Tchékhov teria adorado isso.

Roendo as unhas, do Paulinho da Viola

A letra de Paulinho da Viola é de uma tristeza e raiva atrozes, mas como eu gosto desta canção “Roendo as Unhas”!

Meu samba não se importa que eu esteja numa
De andar roendo as unhas pela madrugada
De sentar no meio fio não querendo nada
De cheirar pelas esquinas minha flor nenhuma

Meu samba não se importa se eu não faço rima
Se pego na viola e ela desafina
Meu samba não se importa se eu não tenho amor
Se dou meu coração assim sem disciplina

Meu samba não se importa se desapareço
Se digo uma mentira sem me arrepender
Quando entro numa boa ele vem comigo
E fica desse jeito se eu entristecer

Uma curta observação sobre burrices: a de Miguel Ángel Ramírez e a nossa

Uma curta observação sobre burrices: a de Miguel Ángel Ramírez e a nossa

Miguel Álgel Ramírez iniciou muito mal no Inter. Não é caso para demitir, claro, mas as estranhezas de ontem dão o que pensar. Ele vem com um time e, de repente, muda. Nos jogos dos titulares, Praxedes e Patrick estavam sempre presentes. Não eram nada espetaculares, mas jogavam sempre. No dia da estreia da Libertadores, eles somem. Como obter entrosamento? Não entendo. E o entregador Zé Gabriel em vez de Lucas Ribeiro? Thiago Galhardo no lugar de Yuri? Rodinei na lateral esquerda? Não são muitas bizarrices e aberrações para um só jogo, Miguel Ángel?

A não ser que ele pense que a Libertadores seja uma competição onde caibam testes.

E não me venham com Abel. Este perdeu o Brasileiro em casa para Sport e Corinthians. E foi desclassificado por Boca e America-MG também em casa.

Como se vê, a rejeição a Miguel Ángel é quase geral. Eu acho que nós somos uns burros. Nós e Miguel Ángel Ramírez. Nós — torcedores, comentaristas e jogadores — porque não entendemos o futebol moderno, flagrantemente superior. Ele porque não considera nosso atraso e não faz um gesto para adaptar -se. Tem que ir mais devagar. Se MAR tentar enfiar o jogo de posição de um dia pro outro, vai dançar.

Pois o principal erro é de orientação: implantar o tal “modelo posicional” fazendo tábula rasa do que havia. O time do Inter que foi vice tinha virtudes que deveriam ser observadas. Por exemplo, sabia fazer contra-ataque uma vez recuperada a bola, seja no campo de defesa ou por pressão. Agora, ficam ali na frente da área, trocando bola até perder ou dar um balão. E essa de botar jogadores piores no campo e melhores no banco deixa qualquer grupo de boleiros sem rumo. Tomara que melhore.

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

Torto Arado é uma sinfonia. Todo o Brasil cabe nele em movimentos rápidos e lentos, scherzi e rivolte. Há narrativa cerrada e há também contrapontos — como no final da segunda parte, chamada Torto Arado, onde a história do fundador do quilombo é contada em contraposição à ação. Mas talvez a analogia com a música só se justifique pela linda prosa de Itamar Vieira Junior.

Vamos tentar seguir sem spoilers. O livro de Itamar Vieira Junior é dividido em três partes — Fio de Corte, Torto Arado e Rio de Sangue –, cada uma formada de capítulos curtos, fáceis de ler. Fio de Corte é narrado por Bibiana, Torto Arado por Belonísia e Rio de Sangue alterna narradores.

A ação se passa em uma fazenda do interior do sertão nordestino e se inicia com um acontecimento que envolve duas irmãs, Bibiana e Belonísia. O pai delas tem grande ascendência sobre os moradores da fazenda, sendo uma espécie de reserva moral e líder espiritual do local. As pessoas dali estão fora do mundo do ponto de vista físico e social. vivendo unicamente do escape religioso personificado por Zeca Chapéu Grande, o pai das meninas. Inequívoca e involuntariamente, ele é um dos pontos de apoio da quase-escravidão dos trabalhadores, pois sente-se grato aos donos da terra por ter sido aceito e recebido. Afinal, recebeu uma terra para dela tirar seu alimento e dar lucro ao patrão. Já a nova geração não é tão grata. O modelo que vemos é muito parecido com o da escravidão, com a elite afagando seus negrinhos e levando a produção, muitas vezes deixando o pessoal faminto. A elite também pode ser violenta, mas como aquele é um Brasil esquecido, deixa assim.

O leitor não é informado de quando a história se passa. Sabemos que Zeca nasceu trinta anos após a abolição da escravatura. Porém, o estarrecedor é que, mesmo um pouco perdido no tempo histórico, dá para identificar tudo como uma realidade atual. Os quilombolas moram em casas de barro, sendo proibida a construção de casas de tijolos para que não tivessem nada que cheirasse à patrimônio. Então, de tempos em tempos, tinham que erguer nova casa, pois as chuvas e a ação do tempo derrubavam as paredes das casas. Claro que estas pessoas mal tinham tempo de cultivar a terra para sua própria alimentação… Assim sendo, como sair da escravidão?

Torto Arado conta uma boa história sem ser panfletário ou “urgente”. Tudo se desenrola com naturalidade. Certamente é um livro político — o que não é? –, mas é uma história cheia de humanidade que não faz críticas nem discursa, apenas conta uma boa história de forma bonita e realista. Disse um amigo que, se olharmos nossa realidade com o rigor de um exame clínico, não tem jeito — a conclusão te obriga a ser de esquerda e o resto é lero lero.

O cenário é o de Guimarães Rosa e Graciliano, mas o baiano Itamar não é nem um nem outro. De Guimarães tem o belo texto, mas não o trabalho de linguagem, de Graça tem o absoluto realismo, mas sua indignação é bem mais contida. Claro que a direita já soltou seus traques, pois não gosta de nada que seja vivo, só que vamos deixá-la de lado. Ou talvez ela não tenha lido o livro, o que é mais provável.

Torto Arado mostra uma parte ignorada pelo país. Demonstra claramente os motivos que levam boa parte da população negra e indígena se encontrarem entre os mais pobres da população por motivos que vêm lá da época da colonização. E convence como realidade e literatura.

Torto Arado recebeu os prêmios Leya, Oceanos e Jabuti.

Itamar Vieira Junior (1979-)

Atrás do balcão da Bamboletras (XXXVIII)

Entra um senhor de sandálias com um carregado sotaque alemão e pergunta se temos O Continente, de Erico Verissimo. Disse que tinha vindo à Bamboletras por recomendação de um amigo. Ele nos conta que encontrou o livro há muitos anos em seu país e que agora quer ler o original, de tanto que gostou. Abre a mochila, pega um paralelepípedo bem protegido por papel pardo, e nos mostra a edição alemã de 1955. Diz que jamais foi reeditado por lá. É impressionante, até porque a terceira parte de O Tempo e o Vento saiu só em 1962 — O Continente é de 49. O problema foi explicar a ele que as editoras transformaram o livro em dois volumes no Brasil. Examinei seu exemplar: uma coisa linda e, sim, tinha O Continente completo. Os dois volumes em português já estão na sua mochila, ao lado da relíquia.

O sorriso dele ao folhear os livros compensa tudo o que a livraria está passando nesta pandemia.

Um romance histórico, outro que é só romance e um espetacular livro de crônicas são as dicas da Bamboletras

Newsletter de 19 de abril de 2021

Olá!

Semana boa para ler! Imaginem que tem um feriado encravado bem no meio dela! Nossas sugestões só incluem livros deliciosos — bons de cama, cadeira, mesa, rede e sofá.

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O Último Processo de Kafka, de Benjamin Balint (Arquipélago, 272 pág., R$ 64,90)

Franz Kafka, pouco antes de morrer, deixou ao seu melhor amigo, Max Brod, também escritor, a tarefa de queimar seus manuscritos — muitos deles inéditos. Para nossa sorte, Max traiu Franz transformando seu amigo em um dos maiores nomes da literatura do século 20.”O Último Processo de Kafka” é um mergulho fascinante na origem, na importância inestimável e no destino de grande parte destes documentos, que por quase meio século, juntaram pó num apartamento pequeno em Tel Aviv. Nos dias atuais, combinando seus talentos de pesquisador, ensaísta, biógrafo e repórter, Benjamin Balint alterna seu olhar entre a grande amizade de Kafka e Brod e a longa batalha judicial de uma velha senhora solitária contra poderosos interesses nacionais.

A Cachorra, de Pilar Quintana (Intrínseca, 160 pág., R$ 39,90)

Desde muito cedo, a vida de Damaris é marcada por tragédias. Ela carrega uma solidão que talvez tivesse sido aplacada pelo filho que nunca conseguiu ter. Cuidar da casa de veraneio há muito abandonada pela família Reyes ocupa seus dias, aliviando sua consciência pelo que sente ter sido uma omissão sua no passado, mas nada disso lhe traz conforto. Quando, num rompante, decide adotar a cachorra da ninhada de uma vizinha, Damaris tem a chance de desviar um pouco o foco das tentativas frustradas de engravidar. A fêmea que agora circula pela casa modesta faz aflorar instintos protetores e violentos, emoções díspares e profundas que supostamente só poderiam ser despertadas pela maternidade.

Ingresia, de Franciel Cruz (P55, 260 pág., R$ 40,00)

Ingresia é um livro de crônicas sobre a província da Bahia lambuzada de dendê e de exclusões. O autor, Franciel Cruz, é um jornalista e personagem deste livro espetacular. São crônicas e mais crônicas, uma melhor que a outra, todas muito bem escritas, todas em rigorosa forma franceliana — uma linguagem barroca e desbocada, irreverente e ateia, altamente pessoal, cheia de surpresas e beleza. Sim, beleza, esta fugidia menina. Tanto que às vezes temos que lê-las duas vezes por pensar que perdemos algo da forma no afã (recebam meu afã no peito) de não perdemos a linha do pensamento original e bêbado do autor que escrevia bêbado, mas editava sóbrio (beijinho no ombro, Hemingway). E a capa? Que capa, senhores!

Um velório dedicado a mim na noite passada

Em um grupo do Facebook, o Alex Caldas perguntou sobre como as pessoas gostariam que fossem seus funerais. O inacreditável é que morri em sonho na última noite. Vários queridos amigos meus estavam no velório e eu me sentindo o próprio Brás Cubas, só que sem Virgília.

A atmosfera era de pura amizade. Todos estavam bebendo e não havia padre. Uma maravilha! O ambiente não religioso era tão bom que não me assustei nem quando o caixão estava indo naquele estrado para ser incinerado.

A boa notícia é que estava todo mundo lá. Então, vocês sobreviveram a mim.

A cerimônia foi finalizada com a Elena tocando a Chaconne de Bach. O pessoal aplaudiu e acordei bem tranquilo, ao lado da violinista.

Um grande mistério bachiano: o corno da tirarsi

Um grande mistério bachiano: o corno da tirarsi

Traduzido por mim da Scherzo

Achamos que sabemos tudo sobre Bach e sua música, mas o compositor mais universal da história da música ainda guarda muitos mistérios. Por exemplo, o que era o corno da tirarsi? É um instrumento que aparece em quatro cantatas: Schauet doch und sehet, ob irgend ein Schmerz sei BWV 46, Halt im Gedächtnis Jesum Christ BWV 67, Herr, gehe nicht ins Gericht mit deinem Knecht BWV 105 e Ach! ich sehe, itzt, da ich zur Hochzeit gehe BWV 162. O instrumento ainda é assunto de debate hoje, uma vez que não está claro se ele seria mais parecido com uma trompa ou com um trompete. Ou vice-versa (obviamente, nenhum corno da tirarsi chegou aos nossos dias, nem há qualquer iconografia dele). Seu sobrenome (da tirarsi) pode levar à conclusão de que o instrumento possuía uma haste ou hastes (como um trombone) e que para fazê-lo soar era necessário puxá-las (daí, o tirarsi). Mas nem todo mundo pensa o mesmo.

Com apenas três dias de intervalo, o Bach-Stiftung de St. Gallen e o Nederlandse Bachvereniging publicaram gravações da Cantata BWV 67 em seus respectivos canais do YouTube. Os suíços, como sabemos, estão gravando (e lançando em sua própria gravadora) em áudio e vídeo toda a música vocal do Kantor. Os holandeses estão indo um pouco mais longe, pois estão fazendo o registro completo dos trabalhos de Bach em seu site. As diferenças entre o corno da tirarsi usado por um e outro não podem ser maiores.

O Bach-Stiftung de Rudolf Lutz privilegia um instrumento que é apresentado neste vídeo pela conceituada trompista inglesa Anneke Scott, especialista em todos os tipos de trompas históricas e figura onipresente nas principais formações historicamente informadas da Europa:

Por sua vez, o Nederlandse Bachvereniging, dirigido nesta ocasião pelo seu diretor artístico titular, Jos van Veldhoven, privilegia outro modelo, construído em sua oficina pelo trompetista (inglês, como Scott) Robert Vanryne, que é justamente quem o toca nesta gravação do conjunto holandês. Aqui estão as explicações que Vanryne sobre o instrumento e o que poderia ser o corno da tirarsi de Bach:

Tendo visto e ouvido as explicações de Scott e Vanryne, vamos agora verificar os resultados. Primeiro, a gravação da Cantata BWV 67 pelo Bach-Stiftung de St. Gallen, com Olivier Picon (provavelmente o melhor especialista em trompas históricas do momento) tocando o corno da tirarsi (atenção em 2min30, é necessário clicar em play e depois em Assistir no Youtube):

E, em segundo lugar, vamos dar uma olhada na gravação feita pelo Nederlandse Bachvereniging dessa mesma cantata, com o referido Vanryne tocando o que parece ser uma variante de um trompete natural e que tem que tem pouco de uma trompa (atenção em 2min50):

Duas grandes versões de uma autêntica joia de Bach! Mas ainda não desvendamos o que era o corno de tirarsi. Talvez o retrato de Gottfried Reiche (1667-1734) nos ajude. Reiche não foi apenas um grande trompetista a serviço de Bach em seu período de Leipzig, mas também um amigo próximo do compositor de Eisenach. Sem ser exatamente igual a nenhum dos dois instrumentos em disputa, o que Reiche tem em mãos é muito mais próximo do de Picon do que do de Vanryne.

Caso alguém queira saber mais sobre o corno de tirarsi, pode consultar aqui. Esta é a tese de doutorado elaborada em 2010 por Picon após terminar seus estudos na Schola Cantorum Basiliensis.

A cena do jantar de Fanny e Alexander

A cena do jantar de Fanny e Alexander

Por Thomas Vinterberg, na Criterion

Thomas Vinterberg não se apega mais aos princípios ascéticos do Dogma 95, o movimento cinematográfico que fundou em 1995 com o diretor dinamarquês Lars von Trier. Mas há algo que permaneceu constante ao longo de sua carreira: o foco na construção de personagens e na dinâmica social. Desde que foi aclamado pela primeira vez em 1998 com seu drama sombrio e cômico Festa de Família, o qual ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Cannes, ele mostrou grande variação estilística em filmes como o thriller romântico It’s All About Love, o drama A Caça e a adaptação de Thomas Hardy, Longe deste Insensato Mundo, além dos esplêndidos A Comunidade e Submarino. Seu filme mais recente, Outra Rodada (Druk), é um estudo que acompanha um grupo de professores enquanto eles testam a teoria de que um certo nível de álcool no sangue pode aliviá-los do tédio melancólico da vida cotidiana. É filme que está sendo muito bem recebido por público e crítica e este mês está concorrendo a dois Oscars: melhor diretor e melhor longa internacional.

Antes de falar com Vinterberg pelo Zoom no início deste mês, pedi a ele que falasse sobre uma cena favorita de um filme de nossa coleção. Ele escolheu com entusiasmo o jantar de Natal do épico semiautobiográfico Fanny e Alexander (1982) de Ingmar Bergman, cena que há muito tem sido um guia para ele e que foi diretamente referenciado em Festa de Família. Neste artigo, editado em conjunto a partir de nossa conversa, ele fala sobre como a abordagem artística do grande autor sueco e a sensibilidade escandinava o influenciaram. —Hillary Weston

.oOo.

Eu comecei a escola de cinema no início dos meus vinte anos, e nosso professor de história do cinema disse que tínhamos que assistir a todos os filmes de Ingmar Bergman. Na época, eu era um jovem inquieto e no começo não os entendia. O professor disse que estava tudo bem se dormíssemos durante a exibição. Apenas tínhamos que ser capazes de dizer que os tínhamos visto. Mas então, lentamente, ao longo das aulas, seu trabalho me afetou — e nunca mais deixei de ver seus filmes.

Quando assisti Fanny e Alexander pela primeira vez, fiquei apaixonado pelo filme. Era uma sensação rara, apenas possível de se ter quando assistimos a certos grandes filmes. Era sobre um garotinho de cabelos escuros, sua bela família e sua experiência dentro da riqueza e da brutalidade da vida na burguesia de Estocolmo. Era também sobre ele enfrentar a perda do pai, que morre na primeira metade do filme e a chegada de um padrasto, que usa sua fé em Deus para oprimir a família. É a primeira metade do filme que mais admiro, especialmente a festa de Natal, que estabeleceu o padrão para o que estou fazendo como cineasta.

Algo que aprendemos na escola foi a ideia de “história natural”. Por exemplo, a história natural de ir ao cinema envolve ir à bilheteria e comprar um ingresso, ir ao banheiro, comprar um doce ou pipoca, mostrar seu ingresso e encontrar seu assento. Essa é uma história inteira por si só. Não parece muito interessante quando você fala sobre isso assim, mas você pode realmente aprender muito sobre as pessoas em meio a essa cadeia de eventos. Elas lavam as mãos? Elas reclamam do preço do doce? Elas esperam por alguém antes de se sentarem? Há muitas coisas que você pode revelar sobre os personagens desta forma, e em Festa de Família eu mantive isso muito estritamente. Cada vez que eu ficava preso na minha escrita, simplesmente voltava à história natural — e é isso que Bergman faz. Você observa a progressão natural de uma festa de Natal, passo a passo.

Tive a sorte de ter uma conversa sobre Fanny e Alexander com Bergman depois de fazer Festa de Família. Foi apenas um telefonema, mas foi longo. Ele chamou meu filme de obra-prima e fiquei muito orgulhoso. Disse a ele que tinha que me desculpar por roubar uma de suas cenas, porque há um momento que é quase uma cópia exata do baile pela casa em Fanny e Alexander. Ele disse: “Oh, isso não importa, eu roubei a cena de O Leopardo, de Visconti!”

A cena da ceia de Natal no filme de Bergman é um estudo perfeito dos personagens. Ele captura o que as pessoas mostram ao mundo, como desejam aparecer quando estão ao redor de uma mesa e como revelam o que está escondido quando estão em seus próprios quartos. Sei disso por minha própria vida, porque cresci em uma comunidade hippie. Todas as noites eu ia a uma enorme mesa de jantar com vinte pessoas, e todos eles estavam se apresentando como queriam ser. Ao mesmo tempo, eu sabia exatamente o que estava acontecendo em suas vidas, nos cômodos ao redor da casa. Foi nessa mesa que vi pessoas que seriam derrubadas se não fossem socialmente fortes, que vi gente ser humilhada, mas também foi onde senti uma sensação de união que proporcionava muita euforia. Portanto, a mesa de jantar sempre foi o que me definiu e Bergman refletiu minha experiência de volta para mim.

A maioria dos cinegrafistas que conheço são obcecados por Sven Nykvist, porque ele tem essa maneira linda e suave de mostrar algo que é tão escandinavo, algo que você simplesmente não consegue descrever. Fanny e Alexander é como uma peça de ouro em meio a todos os filmes que vi. Tem muito calor, mas quando está escuro é muito escuro, semelhante a O Poderoso Chefão. Isso me apresentou a opções de cores realmente densas e corajosas. Isso é típico da Escandinávia, onde você tem essas horas azuis muito longas e depois vem a neve e você se esconde do frio refugiando-se em casas fechadas. A escuridão do filme é amplificada pela luz do início e pela vivacidade dos personagens.

Bergman sempre discordou veementemente de movimentar muito a câmera. Lars von Trier e eu o convidamos para fazer um filme do Dogma, mas ele achou o Dogma a coisa mais boba de que já tinha ouvido falar. Os filmes do Dogma levam a câmera onde os atores estão, Bergman coloca os atores na frente de onde ele gosta que a câmera esteja. Ele foi educado no teatro, então sabia como fazer algo como um corte no palco. Quando os personagens de repente ficam em silêncio ou se sentam, é como um corte; se todos no palco olham para uma pessoa, é como um close-up. Ele também usou esses artifícios em seus enquadramentos de câmera.

Bergman tem sido um modelo exemplar de várias maneiras para mim. Admiro sua coragem, sua severidade e crença em sua própria história. Eu o admiro por permanecer fiel ao que estava fazendo. Ele foi tentado por todos os tipos de oportunidades em todo o mundo, mas ele permaneceu na Suécia e fez seu trabalho em sua pequena ilha. Uma vez, ele descobriu que um filme seu estava fazendo sucesso em Cannes ao ler um jornal enquanto estava no banheiro. Acho que ele é um modelo de como ser cineasta — você tem que se ater ao seu ofício e não se deixar levar por tudo ao seu redor.

Quando me casei, minha esposa ainda não tinha visto Fanny e Alexander, então ela assistiu a primeira parte no começo de uma noite, e nós assistimos ao resto juntos na manhã seguinte. Fazia anos que eu não o via e ela chorou na segunda parte. Naquele momento, recebi um telefonema de alguém do Guardian, que começou a me entrevistar sobre Bergman, e pensei, que interessante, minha esposa está assistindo a um filme dele agora. Conversamos bastante e de repente eu perguntei: “Por que você me ligou para falar sobre Bergman?” E o jornalista respondeu: “Oh, você não sabia? Ele faleceu esta manhã.” Então, parece que estávamos assistindo Fanny e Alexander enquanto Bergman estava morrendo.

Não assisto Fanny com tanta frequência, mas lembro sempre de sua sinceridade. É tão rico e cheio de detalhes, muito irrestrito e ainda assim muito preciso. Essa combinação só pode vir de um mestre.

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Thomas Vinterberg é o diretor de Festa de Família (1998), Submarino (2010), A Caça (2012), Longe deste insensato mundo (2015), A Comunidade (2016) e Outra Rodada (2020), que é indicado a dois Oscars.

Não diga noite, de Amós Oz

Não diga noite, de Amós Oz

Teo é um arquiteto de 60 anos em vias de se aposentar. Noa tem 20 anos a menos e é professora. Eles formam um casal que vive em uma pequena cidade do interior de Israel, Tel Keidar, no limite do deserto. Teo é respeitado por suas realizações passadas. Noa passou a maior parte de sua vida cuidando do pai. Quando um aluno de Noa morre, ela recebe uma incumbência do pai do garoto: a de criar uma clínica de recuperação para jovens que se envolveram com drogas. Tudo seria mais ou menos pago por ele.

Com Teo e Noa beirando uma surda e educada crise de relacionamento, ela procura de todas as formas concluir o projeto inventado pelo pai do menino. Ela não quer que Teo, o homem que todos consultam e que tudo sabe sobre projetos governamentais, se imiscua em algo que é dela. Só que a clínica dificilmente sairá do campo das boas intenções porque os políticos da cidade não querem drogados na região e não conseguem ver na iniciativa vantagens para a cidade. Quem sabe um memorial para lembrar o menino? Ou um atelier, ou um centro para jovens gênios da computação. Por que logo drogas?

O livro é narrado ora por Noa, ora por Teo. Um e outro revelam um delicado e cansado amor entre pequenas discordâncias. A história parece modesta, Noa e Teo parecem estar atormentados pela pouca importância de seus compromissos comuns e pelo isolamento. Não diga noite descreve-os como duas pessoas que lutam para ficarem juntas, principalmente por meio de rituais domésticos que demonstram a crença resignada, mas romântica, de que tais rituais não são apenas cheios de beleza, mas talvez sejam tudo o que há de prazer na vida.

O enredo consiste em um pequeno conjunto de circunstâncias. É uma história principalmente de boas intenções mal interpretadas. O ex-aluno de Noa morreu de overdose de drogas e o pai do menino, suspeito de ser traficante de armas, aborda Noa com a ideia de um centro de reabilitação de drogas dedicado à memória de seu filho. O pai doará muito do dinheiro necessário para estabelecê-lo. Noa, lisonjeada e surpresa por ser convidada para chefiar o centro, trata de tocar o projeto. Ela organiza um pequeno grupo de pessoas para ajudá-la a planejar a clínica e arrecadar dinheiro. A ideia da clínica torna-se uma oportunidade para o romancista olhar para as tensões e dramas mesquinhos de uma pequena comunidade.

Fiquei mais interessado nas partes da história que se concentram em Noa. Quando a conhecemos, ela é jovem, brilhante e espalha “um rastro de perfume” pelo apartamento. Recentemente, ela foi animada pela ideia da clínica, embora o projeto a tenha afastado de Teo, que observa suas idas e vindas e explosões de entusiasmo com certo ceticismo. Depois de todos os anos juntos, Teo ainda a ama, embora sua condição seja a de um velho sem entusiasmo. Quando ele tenta ajudá-la — como arquiteto, ele está mais conectado aos poderes municipais, especialmente à prefeita de Tel Keidar –, intercedendo por Noa, ela perde o foco, como se tudo tivesse sido estragado para ela pelo interesse e participação de Teo. É uma calma crise.

A verdade é que ela é recebeu a informação de que o estudante morto estava ligeiramente apaixonada por ela. Quem afirma isso é Tali, uma amiga do estudante que diz a ela que o uso de drogas na comunidade não é tão generalizado ou um problema sério na cidade. Isso faz com que Noa perca o foco. De repente, ela começa a passar um tempo excessivo fazendo compras e indo ao cinema com a jovem. Tali é uma filha substituta, é uma negação de sua própria meia-idade ou as duas estão se apaixonando?

Não diga noite é uma melancólica música de câmara. É de um gênero de romance repousante que é regido por uma estética de calma. E é muito bom.

Amós Oz, na época da publicação de ‘Não diga noite’

Só rico lê? Federici, um clássico moderno e um romance brasileiro são as dicas da Bamboletras

Newsletter de 12 de abril de 2021

Olá!

Numa semana em que a Receita Federal declarou que “só rico lê”, devemos apontar o desconhecimento que esta tem de nossa “elite”.

O estudo ‘Retratos da leitura no Brasil’, realizado pelo Instituto Pró-Livro, mostra que as pessoas leem mais hoje do que em 2007 e 2015.

O interesse crescente pela leitura no conjunto da população apenas cai justamente entre os entrevistados definidos como “classe A”, conforme a faixa de renda.

Nesse grupo, que reúne os mais ricos, os que “gostam muito” de ler eram 48% em 2015, e caíram para 42%. Os que gostam “um pouco” eram 42%, e passaram a 41%. E os que não gostam saltaram de 10% para 17%.

Ademais, se os ricos lessem, não estaríamos na situação em que estamos.

Francamente…

Mesmo aos trancos e apesar do governo, a Bamboletras segue e seguirá. E ainda dando dicas. Confira abaixo.

Boa semana com boas leituras!

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O Jardim dos Finzi-Contini, de Giorgio Bassani (Todavia, 280 pág., R$ 69,90)

Um clássico moderno. O destino de parte dos protagonistas deste livro está anunciado nas primeiras páginas: os campos de concentração nazistas. Mas tudo se passa num enorme jardim na cidade italiana de Ferrara. À medida que a Segunda Guerra desponta, a relação da jovem Micòl Finzi-Contini com o narrador deste livro mostra suas limitações. Mas são essas mesmas limitações que fazem desse caso de amor não correspondido um dos mais pungentes da literatura moderna.

 

 

O Patriarcado do Salário, de Silvia Federeci (Boitempo, 208 pág., R$ 49,00)

‘O patriarcado do salário’, da filósofa italiana Silvia Federici, traz ao leitor uma série de artigos que abordam a relação entre marxismo e feminismo do ponto de vista da reprodução social. Retomando diversas discussões presentes nas obras de Karl Marx e Friedrich Engels, a autora aponta como a exploração de trabalhos como o doméstico e o de cuidados, exercido sem remuneração pelas mulheres, teve e tem papel central na consolidação e na sustentação do sistema capitalista. Revisitando a crítica feminista ao marxismo e trazendo para o debate perspectivas contemporâneas sobre gênero, ecologia, política dos comuns, tecnologia e inovação, Federici reafirma a importância da linguagem, dos conceitos e do caráter emancipador do marxismo.

Os tais caquinhos, de Natércia Pontes (Cia. das Letras, 144 pág., R$ 64,90)

Faltava muita coisa no apartamento 402. Mas sobravam muitas outras: caixas de papelão, bandejas de isopor, cacarecos, baratas, cupins, muriçocas, poeira, copos sujos. Abigail, Berta e Lúcio formam um trio nada convencional. Duas adolescentes dividem o apartamento com o pai, um homem amoroso, idiossincrático, acumulador, pouco afeito à vida prática, que torce para que a morte venha logo lhe buscar e dá conselhos incomuns às filhas: “É muito bom sentir fome”. Os tais caquinhos é um romance de formação trágico e comovente, capaz de arrancar risos nervosos. Ao descrever o dia a dia de uma família simbiótica em meio a uma cordilheira de lixo que só faz crescer, Natércia Pontes desenha um fascinante romance.

Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo

Sem sentimentalismos baratos, a narradora traz-nos capítulos breves que são como flashes, diapositivos do colonialismo e da vida colonial.

Por Almerinda Bento, no Esquerda

Um livro sem rodriguinhos (sentimentalismo barato, em português brasileiro), em que a narradora recorda a sua infância vivida em Moçambique até aos 13 anos e os seus primeiros tempos em Portugal, então já como retornada. Organizado em capítulos, alguns bastante breves e sincopados, são como flashes, diapositivos do colonialismo e da vida colonial.

As personagens centrais deste “Caderno de Memórias Coloniais” são o pai da narradora (uma menina branca) e a própria narradora. O pai é o homem que ela ama e que vai trair (verbo que usa várias vezes ao longo da narrativa) porque renega os comportamentos incompreensíveis, reprováveis e inaceitáveis que ele tinha para com os naturais daquele país de África. Um livro forte, directo, a descascar o complexo colonial de ocupação abusiva e de desrespeito pelo outro, porque o outro é de cor diferente, tem uma natureza inferior, era um animal. “Venham falar-me do colonialismo suavezinho dos portugueses… Venham contar-me a história da carochinha”, diz a narradora quase no final do livro.

Para além de ser um livro desassombrado e honesto, tem honras de prefácios de Paulina Chiziane e de José Gil, já eles dignos de serem lidos e aqui referidos. “Este livro trata das relações de género, do colonialismo e do nacionalismo. Poucas são as obras literárias que tratam destas questões com tanta profundidade.” escreve a escritora moçambicana. E continua: “ Estávamos eu e tu, cada uma no seu lado da barricada, quando o colonialismo aconteceu. Tu, branca, filha de um colono racista e eu, negra, filha de um colonizado, também racista.” Já José Gil assinala, a terminar: “Estas “memórias” são mais do que lembranças, são a própria vida, ontem-agora, a nossa vida de filhos de colonos (ou não) de Moçambique. Neste sentido, o “Caderno de Memórias Coloniais” de Isabela Figueiredo é mais do que um inventário romanceado de factos e acontecimentos: consegue exprimir-nos como se nós, leitores, tivéssemos todos atravessado o que autora experienciou. Nós todos somos “a pequena colona branca” com alma de preta, com a existência estilhaçada e o violento desejo de viver.”

Mas ainda antes dos prefácios, a autora dirige umas palavras prévias a quem a lê, explicando o porquê deste “Caderno”: “Não havia com quem falar sobre as coisas que me interpelavam, nomeadamente as que juntavam e separavam um ser humano de outro. Não existia essa linguagem nem discurso. Ninguém era capaz de me explicar.” (…) “O paradoxo reside no facto de só se ultrapassarem os choques de uma vivência, desenterrando-a, revolvendo os seus restos. O tempo silencioso apenas se abstém de produzir ruído.” (…) “A História enfrenta sempre esse grande óbice, que cabe aos investigadores ultrapassar: o silêncio sobre o que muito se calou ou escondeu. O que não honra. O lixo faz-se desaparecer, os cadáveres emparedam-se e tudo deixa de existir. Não vimos, não sabemos, nunca ouvimos falar, não demos por nada.”

“O “Caderno de Memórias Coloniais” relata a história de uma menina a caminho da adolescência, que viveu essa fase da vida no período tumultuoso do final do Império colonial português. O cenário é a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, espaço no qual se movem as duas personagens em luta: pai e filha. São símbolos de um velho e de um novo poder; de um velho mundo que chegou ao fim, confrontado por uma nova era que desponta e exige explicações. A guerra dos mundos em 1970.”

“Mas o “Caderno” transcende as questões de poder colonial, racial, social e de género, transformando-se, também, numa narrativa de amor filial conturbado e indestrutível.”

A linguagem é crua, capaz de escandalizar espíritos mais sensíveis. Aliás, o livro foi mal amado por muitos que se viram retratados, mas que não assumem as marcas odiosas do colonialismo e do racismo; mas também foi muito bem recebido “pela crítica, pela Academia e pelos leitores em geral”, tendo sido lido e estudado no mundo inteiro, com várias edições desde 2009, indo já na 9ª edição. Pretas e senhoras (mulheres decentes), pretos e brancos, havia uma clara separação e hierarquização, pelo que embora um branco pudesse casar com uma negra, uma branca assumir uma relação com um negro levaria à inevitável proscrição social. A estratificação estava claramente estabelecida: quem vendia na rua; quem tinha acesso só ao elevador de serviço para ir buscar o lixo do prédio; quem recebia as sobras; quem recebia roupa velha e rasgada; quem se sentava em determinados lugares no cinema e só naqueles.

A filha do electricista que observa tudo e que ouve as conversas do pai com os outros homens e que, quando é mandada para a Metrópole, com a incumbência de contar o que os pretos estavam a fazer aos brancos que só sonhavam transformar África numa Califórnia, sente que traiu o pai porque nunca foi capaz de o fazer. Ou de o fazer, como ele queria. A verdade é que “o tempo dos brancos tinha acabado.”

Há pois, nesta obra, um antes e um depois da independência. A menina branca, filha do colono racista, vai viver para a casa miserável da avó, vai ser a retornada gorda, vai sentir o desenraizamento e o desamor com que é olhada pelos portugueses da Metrópole.

Estes são breves traços do livro e da leitura que faço dele, mas acho que ele ainda fica mais rico com os prefácios com que Paulina Chiziane e José Gil brindaram este livro imprescindível para se fazer a história do colonialismo e racismo português.