O Leitor, de Bernhard Schlink, e o filme homônimo de Stephen Daldry

O Leitor é um livro alemão até em demasia. Seco com o Rio Grande do Sul destes dias, não há muita coisa desnecessária nele. Há algumas descrições da natureza (querem algo mais alemão?) e o restante são frases que contam a história de forma algo brusca. Como Schlink faz conosco, Hanna também é capaz de asperezas com seu menino. Bem, mas será que todo mundo conhece a história? Ora, vamos resumi-la no parágrafo seguinte.

Michael Berg tem 15 anos no período do pós-guerra na Alemanha. Ele conhece Hanna Schmitz, uma mulher de 36, bela, sexy e autoritária. Eles acabam por estabelecer um ritual diário: primeiro tomam banho, depois ele lê livros em voz alta para ela e finalmente amam-se. Uma marca inapagável na alma de um adolescente. O fim chega de surpresa quando Hanna some. Mas Michael voltará a vê-la poucos anos depois, quando já está na faculdade de direito. Ela se vê envolvida em um processo de acusação contra ex-guardas de campos de concentração nazistas. Ela fora uma delas durante a guerra.

É absolutamente admirável o trabalho de Kate Winslet ao recriar Hanna Schmitz. Toda a Hanna descrita por Schlink está no filme. Winslet é uma atriz de muitíssimos recursos e que realmente gruda no personagem, sem trazê-lo para maneirismos prontos de antemão. Cada gesto descrito por Schlink foi realizado pela atriz e pego por Stephen Daldry. Mas falta ao filme uma cena fundamental, falta ao filme a dúvida que dá a Schlink a gradiosidade que o filme não possui. Daldry ou o produtor fez questão de emburrecer o filme. No capítulo 16 da segunda parte, Berg faz uma visita ao juiz principal. Ora, isso não há no filme! Nesta visita, temos a impressão de descontinuidade narrativa; ou seja, não sabemos se foi mesmo vazia, porém, ao final do capítulo, Berg, que narra o livro, escreve que estava alegre e que poderia seguir vivendo a partir daquilo. É óbvio que ele contou-lhe sobre Hanna, passando a informação que só ele tinha ao juiz.

O que significa? Ora, que o juiz preferiu ignorar o analfabetismo de Hanna e escolheu puni-la como se ela tivesse escrito os relatórios, como queria a platéia. Ele claramente jogou para a torcida, fazendo o que toda justiça faz: julgou para o lado que parecia mais correto à opinião pública, num ridículo exercício de senso comum. Stephen Daldry escolheu a simplicidade. Ao deixar seu filme plano mais plano que podia (ou devia), perdeu uma bela oportunidade de sugerir outras camadas de experiência, de criar mais dúvidas no expectador. Sabemos que a vida é assim, que a realidade nunca se esgota, mas parece haver uma sede de burrice no cinema atual e os diretores tratam de saciá-la.

O final do livro é uma doída e envergonhada reflexão sobre a geração alemã que veio antes de Berg. Eles só pareciam capazes de crimes. E seguiam criminosos ao punir.

Excesso de temas

Quando comecei meu blog, pensei que o grande desafio seria o de arranjar assuntos para escrever 3 ou 4 vezes por semana. Consequentemente, protegi-me intitulando meu blog com temas bem gerais, dos quais gostasse muito, sem esquecer de um salvador “qualquer coisa” no final. Hoje sei que isto não é problema, pois sofro é de excesso de temas. Aqueles 3 ou 4 partos semanais ameaçam precipitar-se a cada momento que venho dar uma olhada nos e-mails, tenho é que impedir a superfetação (*).

Neste momento, debato-me entre 5 temas: um post dedicado ao livro inédito do Marcos Nunes que já está metade escrito, uma descoberta notável que fiz lendo o livro O Leitor, uma crítica ultraelogiosa ao filme O casamento de Rachel, uma divulgação das assinaturas do Guión Center de Porto Alegre (ideal para publicar no feriado?) e, afinal, a revisão do último capítulo publicado de meu Monólogo Amoroso, que um dia estará finalizado, não? Ah, e hoje escrevi mentalmente uma homenagem àquelas pessoas que me convenceram que ir a restaurantes é uma bobagem, tal a qualidade dos pratos que podem produzir em casa. Talvez devesse chamá-lo de “As Mulheres que me Alimentam”. Há os homens também, mas os deixaria de fora, por enquanto. Afinal, gostei do título.

Resolvi então fazer um protesto que terá de ser medido em escala Richter na rede mundial. Não vou escrever mais nada hoje! Foda-se!

(*) Palavra pouco utilizada, né? Superfetação significa, segundo o Aurélio, “Concepção que ocorre quando, no mesmo útero, já há um feto em desenvolvimento” ou “Coisa que se acrescenta inutilmente a outra; excrescência, redundância”.

Lugo, o "hot" Bispo

Faz uns cinco anos, uma amiga minha que é muito bonita, foi a um evento político aqui em Porto Alegre. Lá, conheceu Fernando Lugo. Não, não engravidou, mas me contou. O cara tinha todo o jeito da religioso que fez a opção pela pobreza e, de sandálias, disse que seria candidato à presidência do Paraguai. Ela não deu muita bola para os planos do ex-bispo nem para a parte política, prestou mais atenção no sorriso contagiante, na simpatia e nas piadas. Típico. Ano passado, num jantar aqui em casa, voltou a falar no bispo:

— Viram? Meu bispo será presidente do Paraguai, claro. Ele é cheio de charme, um verdadeiro “hot” bispo. Receberia tranquilamente meu voto…

Arrã. Lugo ocupou as manchetes na semana passada. Ele confirmou ter um filho de 10 anos e pululavam mais dois candidatos a filhos seus na mídia. Estes dois logo transformaram-se em seis. Provavelmente irá para o Guiness como o homem que mais fez exames de paternidade. Sua biografia é exemplar: infância pobre, família perseguida por Alfredo Stroessner, noviciado em 1970 (19 anos), padre em 1977 (26 anos), aproximação com a Teologia da Libertação, bispo em 1994 (43 anos), ex-bispo em 2004 (53 anos), presidente do país em 2008 (57 anos). Mesmo antes de tornar-se padre, Lugo sempre confessara a amigos um plano: aos 55 anos, largaria a Igreja para escrever, dar aulas, casar e ter filhos. E, bem, sexo é algo de que ele aparentemente nunca abriu mão.

Eu realmente não gostei do debate que se criou sobre o caso. Todos discutiam a queda de popularidade e o ocultamento da verdade. OK, são fatos políticos, mas podem ser perfeitamente passageiros. Poucos discutiram que, em 2004, o Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (CERIS) fez uma pesquisa onde 41% dos padres brasileiros admitiram terem tido relações sexuais depois de ordenados. Nem todo mundo consegue ficar só na masturbação, como Ratzinger. E pouquíssimos citaram o fato de Lugo ter-se afastado aos 53 anos, quando o natural é fazer isto lá pelos 75 anos — tal fato não apontaria para uma oposição de consciência?

O celibato é uma regra criada há 1000 anos; é, portanto, posterior ao cristianismo. Porém… O que me surpreende mesmo é que não li em nenhum lugar o motivo principal de sua existência: a Igreja Católica não quer ver padres com famílias e filhos pois eles teriam HERDEIROS e estes seriam incômodos para quem sempre se utilizou do trabalho dos padres, da fé e da liberação do pagamento de impostos para ficar mais rica, ops!, desculpem, para que as obras de suas vidas dedicadas a deus ficassem não para mulheres e filhos e sim para a Santa Igreja Romana.

Acho que a crise de confiança do eleitorado paraguaio em relação a Fernando Lugo poderá ocorrer assim como aconteceu com FHC, que não era bispo mas tem filho fora do casamento. Hoje, poucos falam em FHC como pai de “filho ilegítimo” (expressão horrível e preconceituosa). O Paraguai não é os EUA e alguém poderia espalhar por lá que o celibato é desumano. Alguns padres, inclusive, acabam envolvendo-se com adolescentes de mesmo sexo, lembram…? A Igreja sabe disso e a prova é que relaxou as punições por desvios sexuais aos padres. Elas foram reduzidas no Código de Direito Canônico. Ou seja, defendido o Santo Dinheiro, que grasse a pedofilia!


— Sabias que tens algo em comum com o FHC, papito?
— Si, nuestro nombre es Fernando…

Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra de Brahms (1º Mvto: Maestoso – em 3 partes)

Abaixo, um registro antológico do imenso primeiro movimento do Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra de Brahms, com um Arthur Rubinstein velhíssimo e o Concertgebow de Amsterdam, sob a regência de um jovem e já calvo Bernard Haitink. É, na minha opinião, o melhor dos concertos para piano. Melhor ver e ouvir de joelhos o fantasmagórico primeiro tema e seu lírico desenvolvimento. Ainda mais em tão boas mãos.

Ou clique AQUI para ver a primeira parte.

Ou clique AQUI para ver a segunda parte.

Ou clique AQUI para ver a terceira e última parte.

Na praia, de Ian McEwan

Na praia (On Chesil Beach) é um pequeno romance de Ian McEwan. É, na verdade, uma novela de 128 páginas centrada na noite de núpcias de um casal. A ação passa-se provavelmente em doze horas, talvez menos. A premissa de McEwan é muito interessante: até o início dos anos 60, a Inglaterra ainda era vitoriana em termos de liberdade sexual. Isto significa dizer que não havia nenhuma. Creio que dentre as famílias brasileiras “de bem” daquela época ocorria o mesmo. Minha mãe, nascida na década de 20 do século passado, dizia sempre que meu pai era quem interessava por sexo, que ele lhe dava mais amor do que recebia. Ouvi várias mulheres nascidas até a década de 40 dizendo não entender porque suas filhas gostavam tanto de sexo… Porque para elas era um sacrifício. Mas ai de quem as chamasse de frígidas!

Florence era assim. Cresceu na mais completa ignorância e tinha um nojo infantil só de pensar em beijos de língua, quanto mais em ser penetrada. E Edward era o outro lado do mesmo problema: inteiramente ignorante a respeito do assunto e tão virgem quanto Florence, ele sofria horrivelmente imaginando uma ejaculação precoce na hora H. Sua preparação para o casamento é a de ficar uma semana sem masturbar-se. O inteligente leitor deste blog — com seus pés firmemente colocados no século XXI — já viu todo o sofrimento da noite de núpcias. McEwan, como faz habitualmente, coloca foco microscópico nas motivações e medos de Florence e Edward, mostrando a devastação que faz uma boa falta de diálogo. Quando sai de cima do microscópio, McEwan faz pequenos flashbacks esclarecedores para a formação do contexto em que o casal tenta acomodar-se.

Na praia é uma história triste com algumas cenas engraçadas. É uma história impossível nos dias de hoje, ao menos entre os jovens médios ingleses ou brasileiros. É a narrativa da derrota de dois jovens amantes. Tudo poderia dar certo se houvesse um pouco de diálogo e compreensão. Os dois querem isso, se amam, mas não vencem a incomunicabilidade. Quando conversam, não conseguem fixar-se no sexo e complicam-se falando de dinheiro e vida profissional. Não há caminho de saída.

Mais um grande livro de Ian McEwan, um excelente escritor antiquado.

Rascunho completa 9 anos apresentando alguma fúria…

Durante um mês, comprem todos os cadernos culturais que falam um pouco de literatura. Separem as páginas literárias das outras. Façam o mesmo com a Bravo, Cult, etc. (Deixem a Continente de fora). De posse de todas estas páginas, joguem tudo no liquidificador. Guardem o bolo de papel resultante. Depois peguem a Rascunho daquele mês e façam o mesmo com ela. De posse dos dois bolos de papel, vá até a balança literária mais próxima e compare seus pesos. Mesmo que a Bravo e outras usem papéis mais pesados, o bolo de papel jornal da Rascunho terá maior peso. Sempre. Façam a experiência.

Pois a Rascunho completou nove anos em seu número 108 (108 / 12 = 9). Sou assinante e recebi a revista ontem. Está esplêndida. Mas vamos a seus pontos mais “anormais”. Não creio ter havido uma combinação entre os articulistas, houve apenas a coincidência de vários se referirem à decadência cultural de nosso querido Brasil, quiçá do mundo.

Já na capa — normalmente laudatória em publicações comuns — há uma paulada: Um Shakespeare manco, fanho e chato – Tradução de Carlos Alberto Nunes mostra como é possível converter um gênio em um autor quase ilegível e aborrecido. Lá dentro, em longo artigo, os três volumes do Teatro Completo de Shakespeare, em tradução de Nunes, são queimados peça por peça. Não, não há fúria aqui.

Mas há aqui, ó. Fernando Monteiro adentra furibundo uma megalivraria e segue um leitor comum qualquer. Ele, o leitor, busca primeiramente os best-sellers coca-cola, depois dá uma olhada nas obras factuais (aquelas que nos fazem revelações sensacionais sobre o assassinato de Kennedy, por exemplo), dirige-se aos livros de auto-ajuda e dá uma passada de olhos na LITERATURA propriamente dita. Passemos a palavra a Fernando:

Não adianta vir pra cima de mim tentando dizer que, ora, tudo é literatura.

Sabemos que não é. Por exemplo: Lya luft sabe, perfeitamente, que o que ela deu para escrever, nos últimos anos, não é literatura de modo algum, e não adianta ela até ameaçar (conforme ameaçou, num programa televisivo de entrevistas) que “se retiraria”, etc., caso os entrevistadores continuassem a chamar de auto-ajuda a auto-ajuda da lavra recente da senhora Luft, com a qual Lya ajuda o editor Sérgio Machado a ajudar a conta bancária própria com os novos títulos da “escritora” gaúcha auto-ajuditícia.

A Rascunho não precisa de minha ajuda (mais ajuda?) nem dos livros de auto-ajuda, mas mesmo assim eu volto à carga: precisamos dar peso — em leitores, em divulgação — a revista de Rogério Pereira. Ela está cheia de bons articulistas (Monteiro, Castello, Ruffato, Eduardo Ferreira, o Rodrigo Gurgel que detonou aquela tradução de Shakespeare), é grande em todos os sentidos, sempre vem com mais de 30 páginas, é séria, não parece existir por obra de editores interessados em aumentar as vendas e… tem NOVE ANOS.

Que chegue aos NOVENTA!

A um Escritor que Amo

Quando o li pela primeira vez, foi por exigência do colégio. Tinha 14 anos e foi uma revelação. Nunca antes me deparara com nenhuma atividade que me interessasse de verdade. Não queria ser médico ou engenheiro – tinha eu 14 anos de idade… – mas poderia ser aquilo. Escreveria livros! A partir daquele, comecei a procurar outros do mesmo autor e notei como ele frequentemente citava músicas. Ora, meu pai era um homem de muitos discos, então era fácil conhecer as coisas de Beethoven, Mozart, Brahms e Bach de que ele falava. Depois, conheci Herbert Caro, que — amigo de Erico — fez-me uma relação verbal das músicas que ele ouvia repetidamente em casa, enquanto escrevia ou nos intervalos. Sabe-se hoje que Erico Verissimo deixou por escrito a recomendação de que, se quisessem lembrá-lo no futuro, não precisariam fazer grandes homenagens e discursos, bastaria reunir seus amigos e leitores “numa noite, qualquer noite” e tocar um “dos últimos quartetos de Beethoven, algumas sonatas de Mozart e qualquer coisa do velho Bach. E o resto – que diabo! – o resto é silêncio.”

Ontem à noite, fui a um concerto em homenagem aos 100 anos de nascimento de Erico Verissimo – ele nasceu em 17 de dezembro de 1905. Executou-se um quarteto de Mozart, outro de Beethoven e o esplêndido Op. 25 de Brahms. Foram apresentados por membros do Salzburg Chamber Soloists Ensemble. O fundador e regente desta orquestra é um portoalegrense chamado Lavard Skou-Larsen. Lavard é um violinista filho de mãe brasileira e pai dinamarquês e, mesmo morando desde os 4 anos em Viena, conhece a obra de Erico por influência de sua mãe. O concerto foi espetacular, com destaque para a violoncelista – e mulher de Lavard – Adriane Savytzky, para a pianista israelense Revital Hachamoff e para o entusiasmo, tesão e alegria de todos. Não houve discursos. Com fotos de Erico por todo o lado, ouvimos música. A empresa patrocinadora fez das suas apresentando um vídeo institucional, mas sabemos que sem patrocínio não tem concerto. Se todas as homenagens a Erico forem deste porte, teremos um grande final de ano em Porto Alegre.

Erico viajava muito ao exterior e costumava dizer aos que não conheciam Porto Alegre: “Moro numa cidade que tem Orquestra Sinfônica”. Para ele, isto demonstraria inequivocamente nosso tamanho, civilidade e humanismo. Tinha razão. Espero que a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre não esqueça dele.

P.S.- Esta pequena crônica foi escrita em abril de 2005. Sim, a Ospa homenageou Erico no concerto do dia 13 de setembro de 2005. O programa não foi um horror, mas também não incluiu nada que o escritor especialmente admirasse: começou com a Abertura da ópera “Fosca” de Carlos Gomes, depois veio o Concerto para Piano e Orquestra em lá menor de Schumann e finalizou com a Sinfonia nº 4 em ré menor, também de Schumann. Poderiam ter lido trechos de seus livros, apresentando as músicas depois, mas como são uns béocios, perderam a oportunidade. Uma pena.

O caricatural placar da decisão do Campeonato Gaúcho…

… revela o quanto os campeonatos regionais são heterogêneos, anacrônicos e antiquados. Na decisão de 2008, Inter 8 x 1 Juventude; em 2009, Inter 8 x 1 Caxias. Parece piada. Quando o Inter resolve VENCER um time do interior do Rio Grande do Sul no Beira-Rio, o primeiro tempo pode acabar em 7 x 0, fato que não acontecia há 68 anos.

Se estou feliz? Claro que estou, ganhar o Campeonato Gaúcho é melhor do que perdê-lo, mas falando sério, preferia não jogá-lo. Queria um Brasileiro de ponta a ponta do ano, uma Copa do Brasil com todos os clubes — os que vão à Libertadores não têm datas para jogá-la, sem os regionais teriam… –, folgas para os clubes nas datas Fifa, etc. Um Gauchão, ganho ou perdido, é a mesma coisa — nada.

Mesmo assim é engraçado ganhar de um time da Série C. Aqui, a avassaladora goleada:

Já na decisão paulista, o destaque foi o chilique de Diego Souza. Diego dá razão àquele meu amigo português que afirma tratar-se de um imbecil. Explico: Diego foi jogador do Benfica. Acabou corrido de lá. Vejam abaixo as estrepolias de um grande profissional:

Uma fotografia amarelada que não vi

Sim, amarelada e ao fundo, atrás da mesa de trabalho do detetive Jaime Ramos, na sede da polícia da cidade do Porto, em Portugal, havia uma fotografia antiga. Qualquer torcedor do Porto reconheceria o sorriso do maior jogador de futebol nascido no Peru em todos os tempos e herói do clube português: Teófilo Cubillas. Enquanto leio Longe de Manaus, lembro da melhor escalação peruana: Rubiños; Campos, Fernández, Chumpitáz e Fuentes; Roberto Challe, “El Cabezón” Mifflin e Teófilo “Nene” Cubillas; Baylón (“Cholo” Sotil), Perico León e Gallardo.

Eu era uma criança e tal escalação era algo que ouvia como se fosse um poema. Não tinha muito contato com a língua espanhola e adorava a sonoridade de nomes como Chumpitáz, Roberto Challe, Mifflin, Hugo Sotil e do musical ataque de Baylón, Perico León e Gallardo. Porém, …

Falemos sério, o Peru não existe há décadas no mapa do futebol. Um grande time peruano nos parece mais inacreditável quanto um Uruguai candidato a algo grandioso, mas quando os anos 60 viravam em direção aos 70, a sonora seleção peruana era temida. Tinha grandes jogadores. Se Mifflin jogou no grande Santos de Pelé e Gallardo no Palmeiras campeão de 1967, houve dois supercraques que ganharam o mundo: Cubillas e “Cholo” Sotil. Sotil não interessa a esta crônica, mas mesmo assim vamos dar-lhe a chance de mostrar-se no Impedimento através de seu gol no espetacular Real Madrid 0 x 5 Barcelona na temporada de 73-74. O jogo ficou famosíssimo na época, o treinador da Barça era Rinus Michels, o maestro era Cruyff, o cruzamento é do próprio Johan e o narrador é catalão…

Teófilo Cubillas era uma espécie de sósia de Muhammad Ali e é lembrado por muitos como o maior jogador que já vestiu a “camisola” do FC Porto, do Alianza e da seleção peruana. Jogava na posição dos craques, fazendo a ligação entre o meio de campo e o ataque. Costumava driblar sempre para a frente e tinha um chute potentíssimo e certeiro. Fazia muitos gols. É o oitavo maior goleador em Copas do Mundo e, tendo jogado 905 partidas em sua carreira, marcou 526 gols, fazendo uma média de 0,58 gols por jogo (0,61 em seus tempos de Porto ou 72 gols em 118 jogos e ainda, pasmem, 0,77 gols por jogo em Copa do Mundo, o que o torna o maior goleador não-atacante das Copas). Não é, portanto, jogador para ser esquecido por torcida nenhuma.

Por isso é que o detetive Jaime Ramos, do excelente romance Longe de Manaus, de autoria do português Francisco José Viegas, tem uma foto amarelada dele em seu escritório, um antigo e insistente recorte de jornal mostrando os dentes brancos do sorriso de Teófilo Cubillas. Os fóruns de “adeptos” do FC Porto lastimam que não haja NENHUM GOL feito por Cubillas para o Porto no YouTube. E não há mesmo! Os que estão disponíveis com boa imagem são os seguintes.

Na Copa de 70 contra o Brasil:

A virada contra a Bulgária na Copa de 70 (Cubillas marca o 3 a 2):

Novamente contra o Brasil na Copa América de 1975, vencida pelo Peru:

Dois gols geniais no mesmo ângulo, contra a Escócia na Copa de 78:

O câncer no futebol peruano parece ter sido instalado naquele dia 21 de junho de 1978, quando a Argentina fez-lhes 6 x 0 num jogo pra lá de esquisito. Houve suborno? Estou certo que sim. O time peruano, de futebol vistoso e ofensivo, podia tomar 6 a 0 dos argentinos, mas nunca com aquela postura de Clemer cagado na Bombonera. Cubillas estava em campo. Ele e seus companheiros pareciam ter sido acometidos pela Síndrome de Bartleby: a bola vinha para o Peru e eles faziam como o personagem de Melville: I would prefer not to. O país ainda foi à Copa de 1982. Lá fez um fiasco e nunca mais. Tanto que hoje é o último colocado nas eliminatórias.

Longe de Manaus, de Francisco José Viegas

A religião devia ser praticada em silêncio. Devia ser tão silenciosa como o vento nas florestas, apenas um rumor a chegar à atmosfera, uma fogueira crepitando lá, muito longe. É assim. Menos Deus, delegado, menos Deus. Para sermos melhores, precisamos de menos Deus, de menos crime, de menos assassinos, de menos mandamentos, de menos obrigações. E de mais cerveja barata, sem dúvida.

Delegado Osmar Santos, em Longe de Manaus

Faltam 12 páginas para eu acabar a leitura, mas, apesar do autor qualificá-lo como um “romance policial”, acho que posso ler depois as 12 faltantes das 462 páginas do livro. Porém, Longe de Manaus começa assim:

Um romance policial, como se sabe,
tem suas regras.
Este não tem.

Hum… Melhor ler as 12 páginas antes de continuar.

Voltei. Foi complicado conseguir Longe de Manaus. Num dia de 2005, a dona de uma livraria de Aveiro, O Navio de Espelhos, entrou em contato comigo a fim de obter permissão para entregar a seus clientes um mimo: meu pequeno conto O teclado onde pomos nossas mãos, que seria impresso pela livraria de forma artesanal. Em troca, pedi apenas duas coisas a Sónia Sequeira: que me enviasse uma versão do mimo e o romance Longe de Manaus, naquela época recém publicado. Esperei um ano e, antes de enviar um e-mail furibundo para Aveiro, terra de meus avós, fiz rápida pesquisa e descobri que a livraria tinha falido, provavelmente por culpa de meu conto. Esqueci a história e o livro. Depois, soube que Longe de Manaus fora lançado no Brasil pela Record, mas demorei a comprá-lo. Comprei-o há pouco e, em época de tantos arrependimentos, não me arrependo de tê-lo feito. O livro é bom pacas e deve ter merecido os prêmios (ou o prêmio) que ganhou em Portugal.

Tratar Longe de Manaus como um livro policial é uma redução. Guardadas as proporções, podemos resumir Os Irmãos Karamazov a um whodunit: “Quem matou o velho Fiódor?” Ou seja, ambos são policiais, mas também não são. Ou, escrevendo melhor, somos levados pelo que o romance tem de policial, mas o foco de interesse dos autores também é outro. Depois de um conflito bastante complexo e muito bem posto, Viegas e seu detetive Jaime Ramos vão nos apresentando pachorrentamente uma série de personagens construídos minuciosamente que têm em comum a distância geográfica, a língua e a solidão. Talvez a única exceção sejam Daniela e Helena, mas esta acaba assassinada e aquela só não parece mais solitária pela escancarada paixão com que o autor a trata.

Francisco José Viegas faz variações sobre o gênero estabelecido dos romances policiais. A primeira surpresa é que lemos um romance intimista onde as informações que fazem a trama ir à frente são largadas de forma casual — muitas vezes em digressões interessantes, mas que não parecem dizer respeito ao enredo –, formando um todo rarefeito. É curioso. Também seu detetive está fora da rotina: é um pequeno-burguês meio de saco cheio, louco para voltar para casa, abrir uma cerveja, dependendo desta acender um charuto, e ter uma conversa autista com Rosa. Mas não pensem que nas variações há vanguarda ou elaborado trabalho de linguagem. Não. É um romance clássico cheio de inventividade e charme. Também não pensem que ele está na categoria dos livros que parecem terem sido escritos para o passado. Sua amoralidade não deixa dúvidas que pertence ao tempo presente, assim como o fato de Viegas utilizar o “português brasileiro” e o “português português”, num livro que se passa em Angola, em Portugal e no Brasil.

Sim, apesar das diferenças ideológicas que mantenho com Viegas — que incluem sua trágica e ridícula preferência pelo FC do Porto, além de ele ter se equivocado sobre a qualidade do futebol de Rentería — indico fortemente a leitura deste vinho do Porto. Sem tônica, argh, por favor. (Piada misteriosa, só compreendida por quem leu o livro).

Obs.: De alguma maneira, esta resenha terá algum seguimento durante a semana no Impedimento. Motivo: a foto amarelada de Teófilo Cubillas no escritório de Jaime Ramos.

Anton Bruckner: Sinfonia Nº 9 – 2º Mvto (Scherzo, em duas partes)

O velhinho Günter Wand (1912-2002), aos 76 anos, dá aqui uma amostra de sua genialidade no Scherzo que o personagem de Erland Josephson em Sarabande, de Ingmar Bergman, ouvia com a cabeça entre duas imensas caixas de som. Wand é uma figura queridíssima dos aficionados da música erudita. Suas notáveis interpretações e sábias entrevistas — inteiramente livres daquele Complexo de Deus que aflige a 77,5% dos médicos (já vivi com uma que contraiu a doença), 75,3% dos advogados e 50,1% dos regentes — são referências de boas leituras e de compreensão do outro.

Sugiro a quem tiver acesso a exemplares antigos da revista Gramophone: procurem a entrevista de Wand onde ele fala de seu trabalho de adaptação às sinfonias de Mozart, Beethoven, Brahms e Bruckner. Realmente, o velho não sofria do citado Complexo. Dá-lhe, Wand!

Ou aqui.

Ou aqui.

Porque hoje é sábado, Audrey Hepburn

As muito feias que me perdoem // Mas beleza é fundamental. É preciso

Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso // Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture

Em tudo isso (ou então // Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível. É preciso // Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito

Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto

Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.

É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche

No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso

Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas

Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços

Alguma coisa além da carne: que se os toque // Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos

Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro

Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e

Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem

Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então

Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca // Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos

Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas

No enlaçar de uma cintura semovente. // Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras

É como um rio sem pontes. Indispensável.

Texto: fragmento inicial do poema Receita de Mulher, de Vinícius de Moraes.

Dedicatória: Porque eu SEMPRE CONCORDO com o Cristóvão Feil, dedico este PHES ao notável blog Diário Gauche — talvez o único que leio TODOS OS DIAS –, que publicou em sua sempre mutante abertura a primeira foto deste post.

A Cordialidade Desnecessária & A Salvação por Clint Eastwood

Por uma questão de “teologia e simetria”, como diria o grande escritor e gozador John Kennedy Toole, Clint Eastwood fez da cena final de Gran Torino uma grande exceção em sua carreira. É seu último filme como ator. Menos pior que segue diretor.

Faz algum tempo, o escritor português Francisco José Viegas escreveu em seu blog:

O ressentimento apoderou-se da blogosfera nos últimos tempos sob a máscara do debate. Não, não é que deva existir um debate «frouxo», inócuo — falo dos termos do debate. Mas, como tenho dito várias vezes, longe de mim tentar propor «um tom», seja lá isso o que for, uma espécie de norma bem-educada de dizer as coisas. Às vezes, basta ler os adjectivos — quando não há nome (designação, pessoa, outro, coisa) que não tenha um adjectivo por perto. Evidentemente que o «ressentimento» é outra coisa, uma espécie de marca da cultura oficial contemporânea. Por exemplo: todo o texto que nos é estranho passa por ser a manifestação de um pecado original; os outros transportam sempre um vírus. Nesses casos, até o riso é feito de ressentimento. E o ressentimento está ligado à vigilância permanente, às comparações abusivas, ao controle à distância, ao patrulhamento ideológico. E se não está, é meio caminho.

Em meu blog, com raras exceções, o debate tem sido leve e tranquilo. Porém, noto ranço em várias outras plagas virtuais. Uma vez, há uns quatro anos, escrevi um post sobre a Rádio da Universidade que foi distribuído entre professores do Instituto de Artes e profissionais da rádio. Nunca li tantas ofensas! Quanta descortesia e ressentimento, ainda mais que eu flagrantemente conhecia a rádio, conhecia música e tinha razão. Depois daquilo, a rádio mudou. Claro, não sou santo, fiz analogias que queria engraçadas, mas que certamente soaram agressivas por lá. Poderia desculpar-me de meus excessos se o pessoal da rádio se manifestasse com calma. A discordância permaneceria. Será que também entrei no jogo?

Este tema pode ser expandido para fora do mundo dos blogues. De forma geral, a vida está muito “gritada”. Podem ser gritos literais ou podem ser insistências cujo efeito é o mesmo. Ontem, um vendedor de seguros me telefonou e, após apresentar-se, procurou vender seu produto. Tratei de explicar com simplicidade que já tenho seguro para o carro, para a saúde, para a vida, para a morte e não desejava pagar outro. (Não usei estas palavras, fui gentil.) Isto provocou o sarcasmo do vendedor Vinícius, que me felicitou por ser tão feliz e não precisar de nada. (Na verdade eu preciso de tudo).

Outro exemplo: no final de semana, fui a uma “comemoração” na qual houve discussões sobre futebol que ultrapassaram os limites do objeto da controvérsia. Rapidamente, um gremista estava chamando de palhaço um colorado. Eu peguei meu copo de cerveja e dei meia volta. Eles que se matassem.

Porém à noite assisti à uma entrevista de Clint Eastwood na TV (Actor`s Studio). Foram duas horas de uma pessoa encantadora, alegre, inteligente e fundamentalmente inteira (*)! Fiquei engolindo cada palavra com a certeza de que meu objetivo de velhice seria o de tornar-me um cara parecido, em humor, com ele. Meu filho Bernardo também ficou cativado pelo homem Clint Eastwood.

(*) Pessoa inteira: jargão da área psi. Trata-se de uma pessoa centrada, mas não auto-centrada ou em faixa própria. Alguém que possui uma trajetória com um conceito, com uma essência que o apóia. Pessoa de ética inabalável, tolerante e que não pula de galho em galho. Simplificando, o “inteiro” é o mesmo em qualquer circunstância, não diz uma coisa e faz outra, nem tem duas caras.

O comentário de Charlles Campos merece vir para o post:

Há alguns anos, deprimido diante ao que me afigurava ser um constante fracasso emocional, escrevi alguns cartázes de urgência com a frase”Jamais, em qualquer ocasião, magoe as pessoas!”, e afixei em pontos estratégicos pela casa. Quando retornei, ao final da tarde, encontrei-os empilhados sobre a estante, e imaginei que a moça da limpeza deveria ter sentido um constrangimento quase igual ao meu por não saber onde colocar aqueles frutos do meu esquecimento. Uma das histórias dolorosamente inesquecíveis e redentoras do meu avô, que ele a contava sempre à atenção dos constantes pedidos da família, foi quando, em uma de suas idas da fazenda à cidade, parou sua caminhoneta para auxiliar um homem que se encontrava com o carro danificado ao lado, na estrada de chão. Meu avô não se lembra que peça sobressalente de sua caminhoneta ele dispôs para sanar o avario do veículo, ele só se lembra da para sempre incompreensível resposta que deu quando o desconhecido lhe perguntou quanto havia sido a ajuda, e meu avô respondeu:”Uns dez reais e morre o assunto”. Como haveria de ser, um mês depois, meu avô se viu com o pneu do carro retalhado, em uma estrada de terra de pouquíssimo movimento, sozinho e sem macaco sob o sol a pino… e quem aparece? Para-lhe do lado aquele mesmo desconhecido, com um sorriso cordial e uma disposição de erguer o carro com os braços, se fosse preciso. Mas não foi; ele retirou seus acessórios do porta malas, trocou o pneu de aro espesso e trabalhoso, detectou que se perdera um dos parafusos e usou um dos seus. No final, diante o homem suado e sujo de terra, meu avô profere aquela já por ele intuída sentença de condenação:”quanto foi?”, ao que o homem responde:”ô compadre!, coisas assim a gente não cobra não. Somos um pelo outro.” Foi a maior vergonha da vida de meu avô, ele contava. Ele nunca desejou tanto um tapa na cara. Imagino que, numa escala continental, ele se sentiu como a companhia imperial inglesa diante todos aqueles indianos seminus sentados em posição de lotus e não reagentes, que conseguiram a independência nacional através de uma arma inédita na història: o constrangimento do lado que detêm o poder, pela súbita consciência explícita da desarrazoada desproporção do uso do poder.

Esse não é um assunto superficial, e é uma surpresa encontrá-lo em seu blog logo cedo ao acordar. Minha preocupação constante continua sendo o de não magoar as pessoas com o que digo, por várias razões. Piegas dizer isto? É; mas não sei dizê-lo de uma forma menos convencional, menos lyaluftiniana. Ao mesmo tempo, acho salutar expressar o pensamento, com toda a afronta a enorme tendência ao senso comum que nos domina, com seu poder de atração quase irrefutável. Por isto a surpresa de, após um noite de insônia diante o micro, aterrorizado diante o passeio alucinógino por tantos endereços cheios de pretensões, vaidades, inocuidade de espírito e de intelecto, com “ensaios” literários atravessados em colunas opressivas de propaganda de varejo e últimas novidades tecnológicas (textos que sempre me lembram aqueles coitados sentados em pleno centro urbano, com um colete amarelo no qual se lê ”Compra-se Ouro”), retorno ao seu espaço e vejo essa confluência cigana de medos intimamente arraigados sobre fúria, necessidade de calma, e ainda a necessidade da crença desesperada na palavra.

Vou ter um filho daqui a quatro meses, o que me faz temerosamente feliz. E a maior lição que prevejo pela frente, a passar para ele, é o exercício salutar e superestimadamente sofrível de engolir sapos, e ao mesmo tempo incentivá-lo ao contato com mortos ilustres que nunca fizeram outra coisa senão expulsar anuros a grito. Ensina-lo que a gentileza possui uma estética muito sui generis, às vezes não tão catártica quanto acompanhar aos berros “God Save the Queen” dos Sex Pistols, mas mais verdadeira e compensadora na hora de saber o valor de favores desabnegados e aceitar o dedo em riste no trânsito até que se desgaste por total inapetência a vontade onanística de matar. Por que, no primeiríssimo momento que precede à reação, nós somos uns serezinhos cruéis. Mas só nesse enorme e libidinoso momento inicial.

Para terminar, uma lembrança de uma grande palestra do Joseph Bródski ( no livro de ensaios “Menos que Um”), que versa sobre a interpretação do dito “ofereça a outra face”. Bródski diz que ignora-se, a maioria das vezes, o que vem depois neste vaticínio, que é: “e se alguém lhe solicita acompanhá-lo por uma jarda,vá com ele mais cem”. e cita o exemplo de um prisioneiro de um gulag, que, oprimido por um guarda à tarefa inócua de remover um monturo de pedras de um lado para outro do pátio da prisão, o faz inúmeras vezes, durante um dia e uma noite inteiras, durante muito mais tempo que o guarda levou para se humanizar e olhar aquilo como o reflexo de seu brutal constrangimento.

Cortando o cabelo com o Sr. Renato

Luiz corta seu cabelo no mesmo lugar há décadas. Hoje, porém, entrou no primeiro barbeiro que encontrou e que lhe pareceu agradável: um antigo e tradicional local no centro de Porto Alegre com o incrível nome de Salão Elegante.

Mal tinha adentrado o enorme recinto — um verdadeiro salão — extremamente simples e um senhor parou a sua frente, com a mão estendida:

— Sou Renato — cumprimentou — e estou inteiramente a seu dispor.

Após apertar-lhe a mão, Renato fez uma série de salamaleques servis que Luiz achou risíveis. O barbeiro tinha por volta de 65 anos e cara de vovô bondoso. Luiz notou que a função com ele seria lenta, lentíssima, e que não adiantaria nada dizer “Estou com pressa, meu amigo”. Era uma questão de estilo. Começou a observar e a admirar seus antiquados gestos rituais. Ficou fascinado com a forma com que o Sr. Renato pegava as tesouras e testava-as no ar antes de qualquer corte. Lembrou-se de uma cena do filme de Luchino Visconti, Morte em Veneza: aquela em que Dirk Bogarde (no papel de Aschenbach) faz a barba pensando apaixonadamente no menino Tadzio. Luiz tinha relaxado na cadeira e entrara no clima do filme, tanto que o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler — trilha sonora do filme — começava a ser executado em sua memória, acrescido de um interessante sono pós-prandial. Foi quando o Sr. Renato atalhou:

— O Sr. não vai deixar de ler a última Playboy, né?

Abriu os olhos e deu de cara com a grande bunda de uma mulher.

Já vira aquele latifúndio dotado de duas belas coxilhas saracoteando na TV e em fotos. Certamente fotoxopadas. Um heterossexual mais truculento diria que um anjo macho soara o alarme a fim de tirar-lhe às pressas — e de forma competente — daquele devaneio homossexual entre Aschenbach e Tadzio. Luiz até pensou em dizer ao Sr. Renato que verdadeiramente não estava com vontade de ver o traseiro de nenhuma mulher naquele momento, mas sabia, desde que se conhecia por gente, da existência de um código masculino que o obrigava a uma vulgaridade e taradice sem tréguas, sob pena de ser apontado como “aquele gay que teve nojo da mulher da capa da Playboy”. As mulheres apreciam homens sensíveis, mas colegas de sexo não podem ficar desapontados. Luiz não cometeria deslizes, não poderia voltar-se para o respeitável Sr. Renato e dizer-lhe:

— Meu amigo, estava fantasiando com um filme de Visconti que descreve a paixão de um compositor no final de sua vida por um menino belíssimo. Amo este filme e, de olhos fechados, já estava ouvindo sua trilha sonora quando o Sr. me veio com a bunda dessa gostosa. Guarde a revista!

Ou será que poderia usar esta alternativa?

— Ihhh, cansei de comer esta mulher.

Ou:

— Minha esposa está vindo aí. Deixa pra lá.

O fato é que, obedientemente, pegou a revista e começou a folheá-la, enquanto a 5ª seguia tocando mesmo fora de seu habitat.

— Tem uns artigos ótimos aí. Bons para um dia de chuva.

Arrã, então Luiz já sabia a que se dedicava o respeitável Sr. Renato em dias de chuva…

— Mas o Sr. oferece esta revista por causa dos artigos? -– perguntou Luiz.

— É claro, há as mulheres também; veja a capa, é uma bonita moça, quem não gosta? — respondeu o respeitável Renato –, mas o principal são os artigos. Eu só leio os artigos.

Claro. Luiz olhou para o chão e viu uma pilha de mais ou menos duzentas Playboys. Quantos artigos não haveria ali? Eram dignos de serem catalogados por assunto. Como o Sr. Renato faria suas consultas?

Ironicamente, um artigo lhe interessou verdadeiramente e Luiz seguiu lendo a Playboy até o fim. Ficou na dúvida entre devolvê-la ou não acompanhada de uma observação hardcore quando, rápido como um raio, ouviu o barbeiro trovejar:

– E esta aqui é a do mês passado!

Enquanto folheava a segunda revista, sorria ironicamente à imagem de Aschenbach morrendo serenamente no Lido, com o olhar posto em Tadzio. E dormiu.