Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen

Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen

Este romance dinamarquês de 1880 já foi imensamente influente: ele e seu autor foram citados e elogiados por Hermann Hesse, Thomas Mann, James Joyce e Rainer Maria Rilke. E isso é motivo suficiente para lê-lo, claro. Trata-se de um excelente retrato psicológico de um artista fracassado, escrito num estilo marcado por imagens muito surpreendentes e uma análise emocional miraculosamente precisa e realista.

Li este livro justamente em razão dos elogios e referências de Hesse, Thomas Mann e Joyce e, quando o li pela primeira vez, já com mais de 40 anos, ele me emocionou de uma forma inesperada. Conto para vocês os motivos. Quando criança, minha mãe me levava à Igreja Metodista. Eu participava da Escola Dominical. Aquilo de tal modo me impressionou em sua mentira, que me tornei não apenas ateu para a vida inteira, mas me transformei numa criança e pré-adolescente tímido e um pouco raivoso com a estupidez de pessoas que pareciam acreditar — de verdade! — naquelas bobagens de vida eterna, a qual jamais poderia ser eterna por diversas e óbvias razões e que, se fosse, talvez nomeasse representantes de maior envergadura ética e intelectual. O sorriso dos religiosos me era extremamente desagradável. Só que aquilo parecia ser algo apenas meu e tratei de me recolher nos livros e no futebol, já que tinha certeza que quase todo mundo era imbecil. Sim, este foi um grave problema para mim entre meus 5 e 12, 13 anos. Tive uma infância em que procurava observar onde estavam as fissuras nas pessoas.

Bem, acabo de reler o livro em voz alta para minha mulher e ele se manteve em alta estima, apesar de seus claros defeitos. Vamos lá.

Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen (1847-1885) assemelha-se ao realismo desiludido de escritores de meados do século XIX, como Flaubert, Tchékhov e Ibsen. Sua ênfase em nossa fragilidade e nos processos biológicos que conduzem à morte, juntamente com sua retórica ateísta, o assemelha ao naturalismo de Hardy ou Zola. Seu pouco enredo parece Joyce. A descrição de estados psicológicos muitas vezes mórbidos e seu foco no artista como mártir de uma sociedade incompreensível é um mérito que o aproxima também de Dostoiévski, Machado ou Hesse.

O romance de Jacobsen reflete e acelera o fim de muitas posições antigas. O autor, que traduziu Darwin para o dinamarquês e que morreu jovem após uma longa luta contra a tuberculose, conta a história de um personagem que tenta viver, amar e fazer arte quando todos os ideais de gerações anteriores já estão desacreditados pela revelação contínua de que um ser humano é apenas outro animal.

Niels Lyhne tem uma mãe apaixonadamente idealista e um pai prosaico, empresário e agricultor. Esses dois puxam o jovem Niels em duas direções diferentes, nenhuma das quais será capaz de apaziguar sua necessidade de compreender a realidade. É claro que isso não fica tão claro e definido na consciência infantil de Niels como eu expresso aqui, mas está tudo lá.

O romance acompanha Niels desde a infância até o fim prematuro de sua vida e é organizado em torno de seus principais relacionamentos, principalmente com uma série de mulheres idealizadas, juntamente com amigos do sexo masculino que atuam como contrapesos e, às vezes, rivais eróticos.

Embora a prosa de Jacobsen muitas vezes consista em pura anotação de estados psicológicos — ela é muitas vezes sem ação –, ele também é um escritor de cenas eróticas memoravelmente vívidas que transmitem a sensualidade avassaladora até mesmo de momentos aparentemente triviais, como quando Niels encontra sua prima mais velha, Edele, que vem para ficar com a família pouco antes de sua morte prematura por tuberculose, a primeira de muitas mortes precoces na história. O que é aquela cena das flores e a posição de Edele no divã?

A morte de Edele leva Niels à sua primeira rebelião contra Deus, a divindade cruel que tirou uma vida tão jovem e bela. Ele faz um longo e irrespondível discurso mental contra aquela injustiça.

Depois, quando o amigo aparentemente pouco artístico Erik vai a Copenhague para se dedicar à escultura, Niels o segue e se apaixona pela cidade. Lá ele tem um caso de amor abortado com uma viúva mais velha e experiente, a Madame Boye. Soando como uma das heroínas feministas de Ibsen, Boye é também a primeira a dizer a Niels que a sua idealização das mulheres, da qual penso que a prosa lírica de Jacobsen era cúmplice, é, na verdade, opressiva e destrutiva. Sim, esta parte é genial.

Após o caso de Niels com Madame Boye terminar com a retirada dela para a segurança financeira e social burguesa, Niels perde a sua amada mãe, cuja busca apaixonada pelo ideal deu início a tudo.

Então Niels e Erik se apaixonam pela mesma mulher, uma adolescente aparentemente inocente chamada Fennimore. A escolha de Erik, seu arrependimento por essa escolha e seu consequente relacionamento desastroso com Niels levam o romance ao seu clímax emocional, e percebemos que todo relacionamento nesta narrativa terminará com uma morte física ou com o retorno ao rebanho da sociedade normativa.

Ou as duas coisas ao mesmo tempo, como prova a conclusão do romance: Niels afinal encontra a felicidade com outra jovem. Eles se casam, têm um filho e juntos defendem o ateísmo e o humanismo (“Deus não existe e o ser humano é seu profeta”, Niels havia afirmado anteriormente), tanto que isso choca seus vizinhos. No entanto, diante de mais uma morte prematura inexorável, será que fé retornará? A resposta varia de acordo com o personagem moribundo, mas o próprio Niels termina como o herói solitário e íntegro, confrontando a morte e confirmando que não existe Deus, nem transcendência, nem salvação.

Esse resumo e esses trechos deveriam indicar por que o romance se mostrou tão influente. É um participante muito ilustre em uma linha de romances que vai desde A Educação Sentimental, de Flaubert, de Melville, até O Retrato do Artista Quando Jovem, de Joyce, e A Montanha mágica, de Thomas Mann, romances nos quais seus protagonistas não conseguem se desenvolver como bons cidadãos ou grandes artistas, esmagados como estão por uma sociedade e um cosmos indiferente.

Niels Lyhne também é um livro reconhecidamente falho. Como o método narrativo de Jacobsen é principalmente descritivo e não dramático, muitas vezes carece de tensão, e a complexidade de seus personagens tende a ser afirmada de forma abstrata, em vez de retratada de forma vívida. Georg Lukács, na sua Teoria do Romance, criticou o livro por estes motivos.  Ele diz que o romance de desilusão de Jacobsen, que expressa em maravilhosas imagens líricas a melancolia do autor sobre o mundo, desmorona e se desintegra completamente. A vida desse herói, que deveria se tornar uma obra de literatura é, em vez disso, um fragmento pobre, transformada em uma pilha de escombros. O romance seria uma bela e irreal mistura de voluptuosidade e amargura, tristeza e desprezo, jamais uma unidade. Uma série de imagens e aspectos, mas não uma totalidade de vida. Vejo tudo isso no livro, mas gosto dele mesmo assim.

Jens Peter Jacobsen

Na outra ponta da noite, de Lílian Velleda

Na outra ponta da noite, de Lílian Velleda

Poesia é uma coisa complicada. É muito fácil ser ruim e alguém que faça uma boa leitura muitas vezes engana o ouvinte. Quando vai para o papel, pouca coisa sobrevive.

Por isso, fiquei surpreso com o lançamento da última sexta-feira. Em primeiro lugar porque era anunciada a página onde estava o poema. Depois porque cada participante da festa lia um. E os poemas sempre sobreviviam, seja a uma leitura um pouco pior, seja ao acompanhamento das palavras no papel. A poesia mostrava uma dimensão a mais do que o comum.

Falo do livro Na outra ponta da noite, de Lilian Velleda, lançado na Bamboletras sexta-feira passada. Poesia madura e exigente, como disse Paulo Scott. Poemas lindos e cultos, para serem lidos mais de uma vez e que crescem a cada leitura.

Gostei muito. A Livraria Bamboletras sente-se honrada pela grande noite de sexta-feira.

Um pouco sobre Nyels Lyhne

Um pouco sobre Nyels Lyhne

Certamente, Nyels Lyhne é um dos melhores livros que já li. Um pouco verboso demais, mas um clássico extraordinário.

Este livro do dinamarquês Jens Peter Jacobsen foi lançado pela Cosac em 2000, com uma segunda edição em 2001. Hoje, usado, custa uns R$ 700 (280 páginas). Nunca foi relançado, um completo absurdo.

Eu o estou relendo, agora em voz alta para a Elena, e nele redescobri trechos que parecem explicar minha pré adolescência melhor do eu jamais a entendi. Refiro-me à minha revolta contra Deus. Aquilo me fez uma pessoa diferente das outras e empurrou-me para o silêncio e para uma timidez sempre desconfiada. Só me soltava falando sobre ou jogando futebol. Quem me conhece sabe que aos 20 eu já não era assim.

Nyels Lyhne é um romance de formação e estou na página 70. Engraçado, não lembro do que virá, mas sei que, após a leitura que fiz lá em 2000, escrevi na primeira página que era “o livro perfeito”. Ou um deles.

Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia

Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia

Dia desses, eu e a Elena estávamos na Academia. Eu estrebuchava numa sala e ela em outra. É fato sabido que a Elena, vestindo qualquer coisa — até mesmo as camisetas antediluvianas que usa em casa — é uma mulher muito bonita e charmosa.

Pois então ela chega até onde estou dizendo que um Sr., quando ela liberou um aparelho, beijou-lhe a mão.

Homem moderno e descolado que sou, pergunto como ele beijou. Ela repete o gesto do cidadão e detecto alguma devoção na atitude.

Como russa, ela me pergunta se aquilo era um agradecimento pela cessão do aparelho ou outra coisa.
Homem esclarecido que sou, penso em esquartejar todos os velhos, gente da minha idade, presentes no local e respondo com um sorriso que ele queria outra coisa.

— Mas recém saí do hospital, tô triste, um caco, por que ficam olhando?

Homem seguro que sou, não respondo e fico fazendo séries de abomináveis, pensando que preciso acabar com minha barriga naquele mesmo minuto.

P.S.: A Elena me corrige: ela não passou o aparelho para o seu admirador, ele foi até ela, pediu licença e beijou sua mão.

Franz Moormans (1832-1893): A corte

Misoginia, vem aqui à mãe para levares tau tau

Misoginia, vem aqui à mãe para levares tau tau

Por Isabela Figueiredo, em seu perfil do Facebook

A escritora foi à escola do Douro falar sobre os seus livros, em particular, e sobre a leitura, em geral – com alunos do ensino secundário. Uma sala cheia, como gosta. Foi recebida pela pessoa responsável pela biblioteca. Perguntou-lhe se a escola tinha adquirido os livros sobre os quais ia falar. Não, senhora. A escritora declarou que essa tinha sido uma condição solicitada: aquisição de livros da autora para a biblioteca escolar. Um de cada. Bastava. “É que não é coerente nem profícuo falar com os alunos sobre livros se não estão posteriormente disponíveis para leitura.” A pessoa nada sabia sobre o assunto, mas gentilmente afirmou que podia falar com o senhor diretor, que disse ter a intenção de estar presente na conversa com os alunos. “Muito bem”, respondeu a escritora.

Subiram para o auditório. As turmas entraram com os professores. Primeiro o 12º ano, à frente, depois o 11º, entalado a meio da sala, a seguir duas turmas do 10º, que preencheram os lugares de trás. Alunos com bom ar. Giros. Interessados.

A escritora preparou o seu cenário de trabalho, o caderno, os livros, ajeitou as mesas, tal como precisava delas, e ficou sozinha à frente, à espera. Entrou um homem e colocou-se em pé, do lado esquerdo. Não falou com a escritora nem se apresentou. Pela atenção aos alunos parecia um professor acompanhante ou um auxiliar educativo, pensou a escritora, sem se preocupar. O homem foi trocando palavras com alguns alunos. O tempo passava e nada acontecia. A certa altura a escritora perguntou em voz alta, de forma a ser ouvida por toda a sala, “quem é que faz a introdução desta sessão?” Alguém haveria de saber. O homem respondeu “faço eu”. A escritora disse “ok” e aguardou. Eram 10h40. Às 10h45 perguntou a que horas acabava a sessão, porque precisava de calcular o tempo. O homem respondeu “às 11h30”. A escritora pensou “tenho pouco tempo” e avançou que era melhor começarem. O homem respondeu que estava à espera de uma turma de 10º. A escritora calou-se. O homem continuou a falar. Esperou-se. O homem conversava com alunos do 12º. A escritora olhou para o relógio e verificou que faltavam cinco minutos para as 11, altura em que afirmou: “temos de começar”. O homem conformou-se e anunciou “temos de começar sem os que faltam.” Começou por agradecer aos alunos a disponibilidade para estarem ali. A escritora pensou que a sessão decorria em tempo de aula, com os respetivos professores. O homem declarou que os hábitos de leitura eram importantes, ele próprio lia bastante no contexto da sua profissão. Neste passo do discurso, a escritora olhou-o. Ouviu-o agradecer aos alunos a sua presença ali. A dela, escritora. Voltado para os alunos. Anunciou que a escritora “vinha falar de um livro sobre cães.” A turma que faltava entrou, finalmente, e o homem resumiu para os recém-chegados aquilo que já tinha dito. A escritora pensou “lá se vão mais dois minutos.” Felizmente, o homem concluiu a introdução, percorreu a lateral na direção da porta e saiu. A escritora ficou a vê-lo sair, boquiaberta. Quando a porta se fechou a escritora ouviu-se a exclamar “mas foi-se embora? Mas ficamos sozinhos, só eu, os alunos e professores das turmas?” Os alunos riram-se, os professores das turmas puseram os dedinhos no ar, sim, estavam ali. A escritora não perdeu tempo: “ah, ok, tudo bem, vamos lá então começar, porque tenho muito pouco tempo para falar.” A mulher pega no “Caderno de Memórias Coloniais”, levanta-o bem alto e diz “trouxe este livro para oferecer à vossa biblioteca. A vós. É um livro do qual as bibliotecas não costumam gostar, não costumam adquirir por causa de um certo palavreado que vocês usam com abundância nos corredores, de maneira que resolvi trazê-lo eu para estar disponível sem constrangimentos. Se por acaso a leitura vos for negada, façam-me saber através das redes sociais. Tenho outros livros meus para vos oferecer, o que farei dentro em pouco, mas não quero sair daqui sem deixar este aviso.” E quando levantou o “Caderno” bem alto e disse “se a leitura vos for vedada avisem-me”, a mulher percebeu que estava capaz de limpar sebo. A pessoa responsável pela biblioteca disse lá do fundo “vai estar, vai estar.” A escritora respondeu “ótimo, perfeito, é isso que quero garantir.”

A conversa correu lindamente, embora o tempo fosse escasso. Os alunos mostraram interesse em ler. Um belo encontro, como é raro.

Lanço agora eu um desafio:

– quem seria o homem que apresentou a escritora do livro sobre cães? A escritora não faz ideia de como se chama.
– porque motivo o homem não se apresentou, não falou diretamente com a escritora, não lhe agradeceu a sua presença, não se despediu e nunca estabeleceu contacto visual?
– a escritora pergunta-se se teria tido a sorte de manter um ligeiro contacto formal, porém um contacto, caso fosse o Valter Hugo Mãe, o Afonso Reis Cabral, o José Luís Peixoto, o João Tordo ou, e isso, sim, seria relevante, o José Rodrigues dos Santos ou o “tenham noção”.

E é só isto que a escritora me pediu para relatar no Dia Internacional da Mulher. Por ser o dia que é e por ter prometido à sua alma que nunca mais calaria o que não pode calar-se.

Ilustração recolhida em https://www.annesiems.com/. Vejam o trabalho incrível de Anne Siems, a quem não pedi autorização para reproduzir a ilustração.

Se a autora aqui vier ter, informo que este texto não tem fins comerciais, peço desculpa e agradeço a sua ajuda.

Atrás do balcão da Bamboletras (XLVIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (XLVIII)

Várias e boas conversas ocorreram hoje à tarde na Livraria Bamboletras. Um velho professor de literatura conversou comigo e com quem estava próximo sobre o “balaio de preconceitos” que aflorou nos últimos dias. Há os bolsonaristas que criticam O Avesso da Pele sem tê-lo lido, claro, mas há gente mais próxima de nós que só consegue falar nos poucos palavrões do livro e que o acusam de ser, pasmem, um livro racista por causa de uma cena de séquiço da qual, sinceramente, não lembro. A cena seria racista ao inverso! Ou pornográfica… Qualquer coisa serve para acusar. E meu amigo perguntou: quantos livros acusados de pornográficos se tornaram clássicos para a geração seguinte? Um monte. É só o tempo de esvaziar o balaio.

O estranho é que a história do pai sumiu da boca desses caras. O cerne virou coisa secundária. A falência educacional de nosso país descrita no Avesso é terciária. O balaio transformou o livro em outra coisa.

Os outros papos foram mais legais, excetuando-se aquele sobre Israel…

Juliette Binoche faz 60 anos

Juliette Binoche faz 60 anos

Por respeito, procurei uma foto atual de Juliette Binoche. Une photo d’aujourd’hui. Não queria uma da jovem atriz. Encontrei esta de 2022 no Festival de Berlim. Ela não para, faz filmes e mais filmes, sempre brilhantemente. Ainda bem.

Ela diz que os diretores gostam de colocá-la em papéis dramáticos e que ficam desconcertados quando a conhecem porque ela passa seus dias fazendo piadas, muitas vezes inconvenientes ou autodepreciativas. Te compreendo, Ju.

Hoje, está completando 60 anos. Gosto demais da poesia de seu rosto, assim como da inteligência que transborda de seu olhar. Parabéns, deusa.

Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo

Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo

Bem, então, o estar à parte interessa-me do ponto de vista humano. E se me interessa do ponto de vista humano, interessa-me do ponto de vista literário. 

Isabela Figueiredo, em entrevista para a Bertrand Livreiros

Humano, demasiado humano. O título de Um cão no meio do caminho poderia ser o mesmo da obra de aforismos de Nietzsche. Entre o melancólico e o bem-humorado, a portuguesa Isabela Figueiredo arrasa neste romance. Li os dois primeiros livros de Isabela e neles ficava clara a estupenda narradora. Mas Caderno de Memórias Coloniais era autobiográfico e o mesmo parecia acontecer com A Gorda. Este Um Cão seria seu primeiro livro com história original e acabou que o li com ainda maior prazer.

Ela conta a história de José Viriato, um solitário catador de lixo que quase só sai de casa à noite. Um dia ele conversa com Beatriz, conhecida no bairro como a Matadora, mas que na verdade é um pessoa bastante reservada, uma acumuladora que mantém tudo o que é seu em caixas e vive apertada num canto de seu apartamento. Ela fica doente, ele a trata, tornam-se amigos e muitos dos seus traumas vão lenta e delicadamente surgindo sob o olhar inteligente de Isabela. São dois personagens invisíveis, mais por terem desistido do que por vulnerabilidade social. (Vulnerabilidade no Brasil não é mesmo que em Portugal). E não, não é uma história de amor.

Fiquei muito surpreso com a crítica hostil que apareceu na Folha de São Paulo. Ainda bem que não acreditei nela. Ela dizia que o livro é sobre a amizade e reclamava que Isabela não dá espaço ao leitor para pensar. Não entendo, pois (1) é muito mais do que uma história sobre amizade: o livro é tanto sobre este tema quanto sobre solidão e traumas e (2) encontrei bons espaços para reflexão. Se Viriato é falador, a história de Beatriz é apenas espreitada. Muito de si é deixado a cargo de nossa imaginação, assim como na relação entre os pais de Viriato.

Não há nada de pieguice no dolorido livro de Isabela. Um cão é compassivo e duro, franco e abrasivo, e alguns dos mais exigentes leitores da Livraria Bamboletras, retornaram perguntando se temos outro no mesmo estilo.

Isabela Figueiredo

 

Mariana Enriquez

Mariana Enriquez

Eu adoro a escritora argentina Mariana Enriquez. Mas custei a entrar em sincronia com seu livro Nossa Parte de Noite.

Sou um sujeito que não consegue levar a sério o sobrenatural, seja ele em filmes, em livros ou nas formas mais comuns do catolicismo, islamismo, neopentecostalismo, etc. Falou em magia, milagre, vida depois da morte ou em entidades, deu pra mim.

Então, me raciocinei todo e passei a encarar aquilo que de inexplicável acontecia como um elemento do terror muito próprio da autora. Isto é, relaxei e a coisa começou a funcionar.

Acho que nunca esquecerei os últimos capítulos que li do livro — não cheguei à metade de suas 541 páginas. São maravilhosos.

 

Rádio

Rádio

Eu gosto de rádio. Muito. Mas hoje a quase totalidade das emissoras tem péssima programação musical, apresentadores muito limitados com opiniões irrelevantes ou casuístas, certamente ditadas pelos donos ou anunciantes. Rimou.

Só me sobraram duas: a briosa e querida Rádio da Ufrgs (AM, mas que pode ser ouvida na Internet) e a FM 107,7.

O futebol? Ele passa por uma agonizante fuga de cérebros. Há poucas exceções. Para ouvir um Sala de Redação ou outro programa de rádio, só com muita compaixão pela humanidade.

Mozart, o K. 515 e o som do trompete

Mozart, o K. 515 e o som do trompete

Esta manhã, estava ouvindo o Quinteto K. 515 de Mozart na Rádio da Ufrgs, admirando a proeminência das violas. Contrariamente à maioria dos compositores, ele admirava o instrumento e muitas vezes o assumia ao tocar em quartetos de cordas.

Mozart aparentemente não gostava era do violoncelo, mas o que detestava mesmo era o trompete.

Quando criança, quando ouviu pela primeira vez um trompete de perto, ficou nauseado e vomitou.

Coisas das sensibilidades dos gênios.

Em carta, Einstein e Arendt denunciaram o fascismo sionista de Israel em 1948

Em carta, Einstein e Arendt denunciaram o fascismo sionista de Israel em 1948

No dia 2 de dezembro de 1948, o jornal americano The New York Times publicou uma carta, assinada por Albert Einstein, Hannah Arendt e Sidney Hook, entre outros, condenando as ações de Menachem Begin. líder do novo Partido da Liberdade, em visita aos Estados Unidos — Begin que depois tornou-se primeiro-ministro de Israel (1977-1983) e Prêmio Nobel da “Paz”

Aos Editores do New York Times:

Entre os fenômenos políticos perturbadores de nossos tempos está a emergência no recém criado Estado de Israel do ”Partido da Liberdade” (Tenuat Haherut), um partido político estreitamente assemelhado em sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos Nazista e Fascista.

Ele foi formado a partir de membros e seguidores do antigo Irgun Zvai Leumi, uma organização terrorista, facção direitista e organização chauvinista na Palestina.

A visita atual de Menachem Begin, líder deste partido, aos Estados Unidos é, obviamente, calculada no sentido de dar a impressão de apoio americano ao seu partido, por ocasião do advento das eleições israelitas e para cimentar laços políticos com os elementos Sionistas conservadores dos Estados Unidos.

Vários americanos de reputação nacional têm emprestado seu nome para dar boas vindas a sua visita. É inconcebível que aqueles que se opõem ao fascismo no mundo, se corretamente informados sobre a história política e perspectivas de Mr. Begin, possam acrescentar seus nomes e apoio ao movimento que ele representa.

Embora esse irreparável perigo ocorra pela forma de contribuições financeiras, manifestações públicas a favor de Begin ou pela criação na Palestina da impressão de que um grande segmento da América apóia os elementos fascistas em Israel, o público americano deve ser informado sobre a historia e os objetivos do Sr. Begin e do seu movimento.

As promessas públicas do Partido de Begin não correspondem, quaisquer que sejam, ao seu caráter real. Hoje falam de liberdade, democracia e antiimperialismo, enquanto até recentemente pregavam abertamente a doutrina do Estado Fascista. É em suas ações que o partido terrorista denuncia o seu caráter real; de suas ações do passado podemos julgar o que dele pode ser esperado fazer no futuro.

Ataque sobre Deir Iassin

Um exemplo chocante foi seu comportamento na vila árabe de Deir Iassin. Esta vila, distante das principais estradas e circundada por terras judaicas, não tomou nenhuma parte na guerra e chegou a contrariar o lado árabe que queria usar a vila como sua base.

Em 9 de abril (The New York Times) bandos terroristas atacaram esta vila pacifista, que não era um objetivo militar na luta, matando a maioria de seus habitantes — 240 homens, mulheres e crianças — e mantiveram alguns deles vivos para desfilarem como cativos através das ruas de Jerusalém.

A maior parte da comunidade judaica ficou horrorizada com aquela ação e a Agência Judaica mandou um telegrama de pesar ao Rei Abdulah da Trans-Jordânia. Contudo, os terroristas, longe de se envergonharem de seu ato, ficaram orgulhosos com aquele massacre, divulgado amplamente e convidaram os correspondentes estrangeiros no país para testemunharem os cadáveres amontoados e a devastação geral em Deir Iassin.

O acontecimento de Deir Iassin exemplifica o caráter e as ações do Partido da Liberdade.

No interior da comunidade judaica eles têm propugnado uma mistura de ultra nacionalismo, misticismo religioso e superioridade racial. Como outros partidos fascistas eles têm sido usados para esmagar as greves e têm-se dedicado à destruição de sindicatos livres. Em seu lugar eles têm proposto sindicatos corporativistas no modelo fascista italiano.

Durante os últimos anos da esporádica violência antibritânica, os grupos IZL e Stern inauguraram um reino de terror na comunidade Judaica Palestina. Professores foram espancados por se pronunciarem contra eles, adultos foram alvejados por não deixarem suas crianças juntar-se a eles. Por métodos de gangsterismo, açoites, quebra-vidraças e roubos em larga escala, os terroristas intimidavam a população e exigia-lhe pesado tributo.

Os membros do Partido da Liberdade não têm nenhuma participação nos logros construtivos na Palestina. Eles não reivindicam nenhuma terra, nenhuma construção de habitações e apenas depreciam a atividade defensiva judaica. Seus esforços de imigração muito propagandeado foram diminutos e devotados principalmente para atraírem compatriotas fascistas.

Discrepâncias Observadas

As discrepâncias entre os bravos clamores que estão sendo feitos agora por Begin e seu partido e a história de sua performance no passado da Palestina não portam a marca de um partido qualquer. Este é o selo de um Partido fascista, pelo qual o terrorismo e o embuste são os meios e o ”Estado Regente” é o objetivo.

À luz das considerações anteriores, é imperativo que a verdade sobre o Sr. Begin e seu movimento seja tornado conhecido neste país. É de toda maneira trágico que a liderança maior do Sionismo Americano tenha se recusado a participar da campanha contra os esforços de Begin, ou mesmo de expor aos seus constituintes os perigos para Israel do apoio a Begin.

Os abaixo assinados, portanto, através deste meio de publicidade apresentam alguns fatos salientes que dizem respeito a Begin e seu Partido; e recomendam a todos os interessados a não apoiarem esta última manifestação do fascismo.

Nova York, 2 de dezembro de 1948

Isidore Abramowitz,
Albert Eistein,
Hannah Arendt,
Abraham Brick,
Rabino Jessurun Cardozo,
Herman Eisen,
Hayim Fineman,
M. Gallen,
HH. Harris,
Zelig S. Harris,
Sidney Hook,
Fred Karush,
Bruria Kaufman,
Irma L. Lindheim,
Nachman Maisel,
Seymour Melmam,
Myer D. Mendelson,
Harry M. Oslinsky,
Samuel Pitlick,
Fritz Rohrlich,
Louis P. Rocker,
Ruth Sagis,
Itzhak Sankowsky,
I.J. Shoenberg,
Samuel Shuman,
M. Singer,
Irma Wolfe,
Stefan Wolfe.

A versão deste documento online foi copiada de um microfilme da edição impressa do The New York Times, pesquisada pela professora universitária Laura Nader e outros acadêmicos na Universidade de Berkeley, Califórnia. Uma versão escaneada pode ser vista, em formato .pdf, em Proquest: University Microfilms.

Fonte: Einstein Internet Archive (marxists.org)

Fuga da Sibéria, de Leon Trótski

Fuga da Sibéria, de Leon Trótski

Não, nada de Revolução, propaganda ou discursos políticos. Mas quem já leu Trótski pode facilmente intuir o grande narrador (e leitor) que há por trás do revolucionário. Por trás? Não, aqui, o narrador está no centro do palco. Traduzido pela primeira vez no Brasil e escrito pelo próprio protagonista da aventura, Fuga da Sibéria narra a fuga em um trenó de renas por mais de 800 Km na Sibéria. Ele leva mais de um mês indo de trem em trem, sempre altamente vigiado, junto de outros políticos presos, inventa uma doença para não chegar ao destino e foge com a ajuda de um siberiano totalmente bêbado…

Como participante da Revolução de 1905, sufocado pelo poder czarista, Trotsky, de 27 anos, foi julgado e deportado perpetuamente para a Sibéria. O destino final está localizado acima do Círculo Polar Ártico, a 1.600 km da estação ferroviária mais próxima. Num dos postos da viagem, o prisioneiro inicia a sua fuga pela estepe siberiana, um território selvagem e extremo, com temperaturas inferiores a -25 ºC e populações com costumes, alcoolismo, pobreza e solidariedade desconhecidas.

Este é o relato em primeira pessoa daqueles dias exaustivos de perseguição. Temendo a cada momento sua captura e confiando sua vida e liberdade ao imprevisível cocheiro Nikífor, Trótsky torna-se, talvez contra sua vontade, um viajante preocupado. Ele viaja pela tundra, fica fascinado pelas renas, passa as noites perto do fogo como qualquer outro nômade siberiano, tenta colocar Nikífor na linha, traça estratégias para evitar ser reconhecido, faz anotações e sempre tem o revólver em mãos como último recurso. Este diário de viagem, escrito enquanto ocorria nas paradas para descanso e alimentação, agitado pelo suspense e pela expectativa, é muito bom, parece um filme de ação. com algum humor. Curiosa e felizmente, Fuga da Sibéria mostra-nos como pensava o jovem Trotsky, um narrador literário na sua forma mais pura.

Um dos apelidos de Trótski era “caneta”. Estava sempre com uma na mão.

Macha, de Claudia Tajes

Macha, de Claudia Tajes

Claudia Tajes é uma escritora que sabe fazer rir como poucos. Neste Macha, o humor é em parte substituído pela leveza ao tocar em temas não tão fáceis. Li este livro em voz alta durante 4 noites para minha mulher. No início nós ríamos muito, depois a coisa ficou mais séria e as risadas foram substituídas por sorrisos.

Em capítulos curtos, Tajes vai acrescentando dados sobre o caos que se instala na vida de Celina. Esta é uma bancária de 48 anos que, numa manhã, após sonhos intranquilos, acorda inadvertidamente metamorfoseada em uma estranha criatura que faz xixi em pé e coça as partes íntimas em público. Ou seja, acorda com um pênis, com mais barriga e menos bunda, com mais pelos e mais peso. Quando acorda e vai ao quarto do filho pegar uma camiseta maior, acaba agredida, pois o filho acha que um ladrão entrara em casa. OK, sem spoilers. E não preciso falar no óbvio parentesco da história com Kafka.

Celina é separada de Roney, um sujeito escroto que fica abismado e profere todo gênero de preconceitos frente a transformação da ex. O emprego é outro problema, a forma de vestir é mais um — o fio de consequências parece não ter fim. E os amigos? Tajes trata o tema de forma leve e coloca Celina — que a esta altura talvez já queira ser Afonso (nome do pai de Celina) ou sabe-se lá quem — em várias situações que nos faz pensar nos problemas de adequação de gays e de transsexuais a um mundo machista e dominado pelas Leis de Damares do binarismo rosa e azul. É realmente um atrevimento mudar de sexo ou expressar-se através das roupas… E como demonstrar seu carinho para o filho todo desconfiado?

Li o livrinho de Tajes porque um muito qualificado grupo de leituras escolheu-o para iniciar seus trabalhos em março de 2024. Entendo perfeitamente o motivo. São poucas páginas e muito pano pra manga.

Claudia Tajes | Foto: FSP

Pessoas decentes, de Leonardo Padura

Pessoas decentes, de Leonardo Padura

Este é o melhor dos romances do detetive Mario Conde. Dizer isto não é dizer pouca coisa. Em mais esta novela policial, Padura trata do assassinato de um ex-ministro cubano num momento de grande efervescência em Cuba, com a visita de Barack Obama e dos Rolling Stones. O assassinado é Reynaldo Quevedo, uma pessoa absolutamente asquerosa. Muita gente gostaria de ter a honra de por fim a seus dias, pois era o Jdanov cubano, o homem que perseguia os artistas a fim de colocá-los na linha, o cara que acabou com a carreira de vários deles e que também não facilitava a vida de gays e lésbicas. Porém, apesar de estar quase feliz com a morte do sujeito, cabe a um Mario Conde já aposentado dar uma mão a seus ex-colegas policiais. Afinal, eles estavam atarefados com Obama e os Stones. Para quem não sabe, Conde é uma espécie de alter ego dos desencantados cubanos, um cético que perdeu toda a esperança. Já o morto é um filho da puta sob todos os aspectos e, através da busca de seu assassino, é revisto todo um processo histórico obscuro da revolução.

Mas há outra história e outro crime. Como muitos de vocês sabem, Padura gosta de contar duas histórias em capítulos alternados. Vamos a elas, sem spoilers.

Havana, 1910. Naquele tempo, Havana era chamada a Nice da América. Significava dizer uma cidade de festa, alegria, álcool e prazeres. Lá vivia o cafetão mais famoso e querido de Havana, Alberto Yarini y Ponce de León, grande amigo do detetive Arturo Saborit. Havia uma bonita história de amizade e fidelidade entre ambos, entre o “cafetão bom”, que tinha aspirações mais elevadas do que administrar jogos de azar e suas prostitutas, e o policial. Um caso de assassinato de duas mulheres em Havana Velha expõe a luta entre Yarini, refinado e de boa família, e seu rival Lotot, um francês, que contesta sua posição de proeminência. O desenvolvimento destes acontecimentos terá uma ligação com a história do presente de uma forma que nem o próprio Mário Conde suspeita. Ah, importante: Alberto Yarini foi um personagem real, ele existiu.

Havana, 2016. Um acontecimento histórico abala Cuba: a visita de Barack Obama no que foi chamado de “Degelo Cubano” – a primeira visita oficial de um presidente dos EUA desde 1928 –, acompanhada de eventos como um show dos Rolling Stones e de desfile da Chanel, vira o ritmo pachorrento da ilha de cabeça para baixo. Assim, quando um ex-líder do Governo cubano é encontrado assassinado no seu apartamento, a polícia, ocupada com a visita presidencial, recorre a Mario Conde para auxiliar na investigação. Como já disse, o morto tinha muitos inimigos, pois no passado atuara como censor para que os artistas não se desviassem dos slogans da Revolução. Fora um homem despótico e cruel que encerrara a carreira de muitos artistas que não queriam ceder a seus pedidos e extorsões. Quando aparece um segundo corpo assassinado com o mesmo método poucos dias depois, Conde deve descobrir se as duas mortes estão relacionadas e o que está por trás desses assassinatos.

Como sempre, Padura remonta acontecimentos históricos e políticos. No caso de 2016, revemos a arte dos contrarrevolucionários e os excessos do processo de Inquisição. A conjuntura é o assassinato de um daqueles inquisidores que, como sempre, se beneficiou de abusos de poder.  O cenário das duas histórias é bastante peculiar e funcional à narrativa, com muito cubanismo e bom humor. Porém, em ambas as ficções prevalece um tom melancólico — o entusiasmo dos amigos de Conde pelas degelo que vivem não o atinge e, a certa altura, falando sobre essas mudanças, conta ao amigo e irmão de vida, o magrelo Carlos: “Claro que é necessário, muito necessário. Deixe que as coisas aconteçam… Mas não creio que aconteça nada além do que está acontecendo. E a qualquer momento tudo volta e a gente se ferra”. Sim, foi o que aconteceu. Houve um grande revés nos anos seguintes, em grande parte graças às decisões teimosas de Donald Trump.

A estratégia narrativa de alternar as duas histórias funciona muito bem, os diálogos são trabalhados detalhadamente, as cotas humorísticas são entregues fundamentalmente nessas conversas dos personagens. Havana é a protagonista do romance, o ambiente que existia em Cuba em 2016 é transmitido com grande precisão e há uma elaborada reconstrução daquela cidade em 1910.

Será que eu deveria manter a primeira frase desta resenha? Padura tem 14 romances, 10 com Mario Conde. Talvez eu não devesse me atrever a fazer uma avaliação de todas as obras do grande escritor cubano, mas afirmo com segurança que Pessoas Decentes está entre as melhores. Não tem como não estar.

Recomendo muito.

Eu e Padura | Foto: Roberta Fofonka

Nas redondezas da Bamboletras (sábado, 20/01/2024)

Nas redondezas da Bamboletras (sábado, 20/01/2024)

Mesmo para uma pizzaria popular como a Domino’s, a postura da mulher era por demais à vontade. Sentada, com as costas encostadas na parede e com os pés descalços sobre outra cadeira, ela parecia estar em casa.

Estava com, supostamente, seu companheiro e eu sentei bem na frente dela, em outra mesa. Ele falou primeiro.

— Até que horas a gente vai ficar aqui?

Ela respondeu:

— Até eles fecharem à meia-noite.

Eram 20h15. Eu olhei para ela, que passou a falar comigo:

— É que estamos sem luz em casa, então é melhor ficar beliscando uma pizza e bebendo cerveja — riu. — Aqui pelo menos tem luz e ar condicionado.

Este é um retrato de Porto Alegre pós-temporal.

100 anos da morte de Lênin

100 anos da morte de Lênin

Lênin morreu há exatos 100 anos, em 24 de janeiro de 1924. Seu corpo permanece embalsamado em um mausoléu na Praça Vermelha. Dizem que o custo de mantê-lo é de 200 mil dólares anuais e os Eduardos Leites de lá querem enterrá-lo. Ou talvez privatizá-lo.

Mas Putin afirmou: “De jeito nenhum. Não devemos tocar nisso”.

Até 1961, o corpo de Lênin esteve acompanhado do corpo também embalsamado de Stálin, mas então Kruschev decidiu que Lênin não poderia ficar em companhia de alguém que fez tanto mal ao Partido e o georgiano foi parar num cemitério para finalmente decompor-se.

O embalsamado
A linda Nadezhda Krupskaya, esposa de Lênin, não gostou nem um pouco desse negócio de embalsamá-lo.

Ao Sul da Fronteira, de Rogério Brasil Ferrari

Ao Sul da Fronteira, de Rogério Brasil Ferrari

Alguns de vocês sabem que eu sou um livreiro que lê e escreve bastante. Alguns sabem que eu, hoje um jornalista cultural em estado de latência, faço minhas resenhazinhas. Deste modo, por ser isto ou aquilo, às vezes recebo livros autografados de presente. Infelizmente, apesar da vontade, não leio todos, pois não faria mais nada além disso. Porém, muitas vezes leio e, se é o caso, trato de elogiá-los aqui. É o caso.

Ao Sul da Fronteira, do gaúcho Rogério Brasil Ferrari, é um livro que envereda por diversos caminhos sem se perder em nenhum deles. No início, parece o retrato de um casal porto-alegrense cujo casamento matou o sexo — cuidem-se meninos! — e onde a mulher vai procurar diversões sensuais em outras plagas. Parece que tudo se dirige a uma história erótica como tantas. Mesmo com a diferença entre o que foi procurado na internet e o que acabou encontrando, Helena vai à Montevidéu para um encontro. Estava precisando. Afinal, diversão era tudo o que faltava em casa.

Quando chega ao país vizinho, ela encontra o que busca e muito mais. Encontra sexo, álcool, aventura e alguém com uma história incompleta devido a fatos ligados à Operação Condor, alguém que insiste em incomodar quem não quer remexer no passado. E, bem, então teremos um thriler erótico? Não, ainda não expus todos os elementos. Há uma pesada questão familiar ocorrendo com a pessoa de Montevidéu, muito mais pesada do que as bebedeiras do marido de Helena que, obviamente, descobriu-se apaixonado pela esposa assim que ela cruzou o Chuí.

Rogério Ferrari mistura tudo isso num livro de grande competência. Nada de discursos inflamados ou palavras de ordem, nada de espasmos, a tragédia e a tristeza de nosso continente vem chegando como uma secreção que embebe tudo lentamente e que por fim sufoca. É daqueles livros que o leitor primeiramente estranha a forma do texto — com uma estranha notação para as falas e outras originalidades — e depois não desgruda mais.

Como nova intervenção gonzo, digo que, no primeiro dia contei para minha mulher o que tinha lido. Estava, claro, no começo do livro, quando ele dá sua primeira virada. Na noite seguinte, ela me pediu a continuação e assim fomos até o final. Ela conheceu todos os personagens principais e a história sem ler o livro. O que prova isto? Prova que a história é boa, pois minha Elena não é trouxa como o marido daquela Helena.

Recomendo. O livro está esperando por você aqui na Bamboletras.

Rogério Brasil Ferrari

Maestro, um retrato (muito) incompleto de Leonard Bernstein

Maestro, um retrato (muito) incompleto de Leonard Bernstein

Rafael Ortega Basagoiti

O personagem Leonard Bernstein era excessivo. Ele viveu em um conflito quase permanente sobre como administrar a homossexualidade, ou melhor, a bissexualidade, em tempos em que a tolerância (especialmente nos Estados Unidos) não era o que é agora, e além disso foi investigado pelo FBI por sua tendência esquerdista. Apaixonado, extrovertido, suas manifestações de efusividade seriam hoje objeto, no mínimo, de escândalo (sua própria filha declara em um dos documentários que beijava todos que estavam ao seu alcance, um músico da Filarmônica de Viena relata o assunto com ironia: “Disseram-me, não enxugue, afinal é suor de Bernstein”). Na época em que conheceu sua futura esposa, Felicia Montealegre, ele já havia tido seus namoros homossexuais, e Paul R. Laird, em sua excelente biografia (Life and Work of Leonard Bernstein , Turner, 2018), sugere que sua amizade com Aaron Copland provavelmente foi mais do que isso.

Mas o ambiente era o que era, e um de seus mentores, Serge Koussevitzky, então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, pressionou-o a mudar seu sobrenome (sugeriu Leonard Burns) para eliminar o toque judaico e a se casar. Ambas as coisas, a segunda destinada a reprimir os rumores de sua homossexualidade, ajudariam sua carreira. Lenny não mudou o sobrenome, mas se casou com Felicia. O conflito sobre sua sexualidade persistiu e ele acabou se separando da esposa para se juntar ao amante Tom Cothran. Mas quando Felicia foi diagnosticada com o câncer que acabaria com sua vida, ele voltou e ficou com ela até sua morte. Ele a amava, não há dúvida disso, por mais que sua tendência sexual o levasse para outras camas.

É esta relação única entre Lenny e Felicia, e o conflito sexual que lhe está subjacente, que é o foco do filme Maestro, protagonizado e realizado por Bradley Cooper, produzido pela Netflix e agora disponível na plataforma. Não entrarei no aspecto puramente cinematográfico neste artigo, mas vale a pena fazer algumas anotações que surgem depois de ter visto o filme. Não há nada de questionável, em princípio, no fato de o filme focar nessa relação, a ponto de Felicia (aliás, maravilhosamente interpretada por Carey Mulligan), ser praticamente o papel principal. Na verdade, é uma faceta pouco delineada em outros documentários. E, a julgar pela declaração da própria filha Jamie (protagonista de uma das cenas do filme, que motiva Felicia a pressionar Lenny a falar com ela e a negar os rumores sobre sua homossexualidade), é uma questão bem retratada. Acredito, no entanto, que existe um problema, e não de menor importância, em outros domínios.

Compositor, pianista, diretor, divulgador, ensaísta e professor. Talvez você possa encontrar pessoas que desenvolveram todas ou quase todas essas facetas, mas para elas terem feito isso no nível de excelência em que Leonard Bernstein fez, é, não acho que estou exagerando, muito difícil, se não impossível. Lenny foi uma das grandes personalidades musicais do século XX, sem dúvida. Muitos podem não gostar de sua música, ou pensar que ele não deveria ter ido além dos (ótimos) musicais. Para outros, seus modos no pódio podem parecer exagerados, teatrais, pouco ortodoxos e até caóticos (aqueles saltos, aquele balanço de braço, aquele movimento corporal, aquela técnica de batuta, no mínimo singular…). Talvez sua tendência, como maestro, para tempos realmente extremos — exceto o último Celibidache e algumas gravações de Bach de Scherchen, é difícil lembrar de lentidão mais no limite do que aquelas do último movimento da Nona de Mahler nas mãos de Bernstein — seja indigesto para alguns, porque foge ao cânone.

Mas esse caráter excessivo foi e continua sendo fascinante. Ele vivia a música com uma intensidade contagiante. Os seus critérios podem ser discutíveis, o seu gesto e o sus batura quebram toda a ortodoxia. Mas o que aquele homem transmitia… a paixão, a convicção, eram tais que era literalmente impossível não o seguir, não se sentir capturado pela sua mensagem, fosse ela música, interpretação ou divulgação. “Eu amo duas coisas: música e pessoas. Não sei qual dos dois eu prefiro.” Estas são as primeiras palavras de uma declaração um pouco mais longa que Leonard Bernstein, com a voz já muito rouca, em 1990, poucos meses antes de morrer, diz à câmera com comovente ternura. É o início de um estupendo documentário, The Gift of Music, narrado por Lauren Bacall e editado em DVD pela Deutsche Grammophon. Há outro documentário, Larger than life, também magnífico, creio que disponível na medici.tv.

Qualquer um desses documentários, ou qualquer uma das muitas entrevistas com Bernstein –entre elas, a que você pode ver aqui, da série Kennedy Center Honors Legend — deixa um retrato dele muito mais completo e fascinante do que o deste filme de Bradley Cooper.

Porque, na minha humilde opinião, é aí que reside o seu principal (embora não único) defeito: intitulado Maestro, espera-se encontrar um filme em que todas estas facetas estejam mais ou menos bem retratadas. Mas a música, apesar do título, parece uma companheira marginal. Aquela que é considerada sua principal obra, a Missa, aparece saindo na ponta dos pés. O mais conhecido, West Side Story, mal participa. Não há nada da sua relação, muito longa e profunda, com a Filarmónica de Israel, nem com a de Viena, a Baviera ou o Concertgebouw. Pior ainda, presume-se que o espectador conheça muito bem a vida de Bernstein antes de assistir ao filme, porque se não for o caso, a presença fugaz de pessoas tão essenciais na sua vida como Aaron Copland ou Koussevitzky é dificilmente identificável. Outros, igualmente importantes, como Dimitri Mitropoulos, o realizador grego que o impulsionou a ser compositor, ou Fritz Reiner, seu professor no Curtis Institute, em Filadélfia, nem sequer aparecem. Também passa despercebida, ou quase, a sua extraordinária atividade de divulgador que está no YouTube… Ver qualquer um destes vídeos explica de uma forma muito simples porque este homem conseguiu fisgar milhões de pessoas pela música clássica.

Mais difícil de traduzir em filme é seu papel como colunista, mas também é altamente recomendável aprofundar-se na inestimável descrição que faz de seu querido Mahler neste artigo: Mahler – Chegou a sua hora – na Alta Fidelidade, Vol 17 no. 9, setembro de 1967, posteriormente reproduzido em seu primeiro ciclo Mahleriano para CBS-Sony. É difícil explicar, sem meandros técnicos, o que é a música de Mahler, o que ela expressa e significa, com mais precisão e riqueza do que a escrita nesta coluna.

Além disso, interpretar um regente (e ainda mais um como Bernstein) é extremamente difícil, o que deve ser levado em conta ao julgar o trabalho de Cooper. O ator americano, treinado pelo diretor do Metropolitan, Yannick Nézet-Séguin, se sai razoavelmente bem em uma cena com o coro, mas quando tenta reproduzir a lendária gravação da Segunda Sinfonia de Mahler na Catedral de Ely (que faz parte do ciclo de Mahler gravado em DVD pela Deutsche Grammophon) vai longe demais. Lenny era, como já observei, excessivo. Cooper vai mais longe, mas o que em Bernstein parece um excesso natural, em Cooper parece beirar o grotesco. A sua caracterização, incluindo a controversa prótese nasal, é ótima. A dublagem presta um péssimo serviço, no entanto. A voz de Bernstein, especialmente a do Bernstein mais velho, parece demasiado melíflua (compare com o original da entrevista citada acima, mas também com o som original do filme).

Em suma, o mais problemático é que muitos virão esperando ver um retrato de Bernstein com aquelas múltiplas facetas ligadas à música que, além disso, teve uma relação única com a sua esposa, e que viveu um duro conflito com a sua tendência sexual. Mas o que você verá é o retrato de alguém que teve uma relação única com sua esposa, enquadrada em um duro conflito com sua tendência sexual… e que, além disso, também era músico. Mas como isso é pouco, o título é enganoso, porque não responde ao que se vê depois. O retrato esperado permanece incompleto.

O Bernstein de verdade