Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia

Eu e Elena e um admirador (dela) na Academia

Dia desses, eu e a Elena estávamos na Academia. Eu estrebuchava numa sala e ela em outra. É fato sabido que a Elena, vestindo qualquer coisa — até mesmo as camisetas antediluvianas que usa em casa — é uma mulher muito bonita e charmosa.

Pois então ela chega até onde estou dizendo que um Sr., quando ela liberou um aparelho, beijou-lhe a mão.

Homem moderno e descolado que sou, pergunto como ele beijou. Ela repete o gesto do cidadão e detecto alguma devoção na atitude.

Como russa, ela me pergunta se aquilo era um agradecimento pela cessão do aparelho ou outra coisa.
Homem esclarecido que sou, penso em esquartejar todos os velhos, gente da minha idade, presentes no local e respondo com um sorriso que ele queria outra coisa.

— Mas recém saí do hospital, tô triste, um caco, por que ficam olhando?

Homem seguro que sou, não respondo e fico fazendo séries de abomináveis, pensando que preciso acabar com minha barriga naquele mesmo minuto.

P.S.: A Elena me corrige: ela não passou o aparelho para o seu admirador, ele foi até ela, pediu licença e beijou sua mão.

Franz Moormans (1832-1893): A corte

A endocardite

Desde o dia 20 de outubro estou dormindo no hospital como acompanhante da Elena. A guerra é secundária, não sei nada da reforma tributária e minhas leituras estão quase paralisadas. Elena teve uma doença muito grave, mas está se recuperando fantasticamente. Nem parece aquela pessoa que no dia 12 perdeu os movimentos do lado direito do corpo. Naquela noite, o nervosismo parecia que ia me matar. Quando ela entrou na CTI, fiquei lá fora por alguns instantes. A coisa estava tão insuportável para mim que dei um chute numa cadeira. Só que a dita cuja estava pregada no chão. Quase quebrei o pé. Fiquei mancando três dias, só que minha mulher estava muito pior.

Porém, ela começou velozmente a melhorar e ontem, bem, ontem houve um daqueles momentos mágicos que jamais esquecerei. A fisioterapeuta levou a Elena — que já caminha normalmente — até um (excelente) piano que está num saguão do hospital. E ela tocou lindamente o Prelúdio Nº 1 do Cravo bem temperado, a Ich ruf zu dir, de Bach, e ainda improvisou Because e Here, there and everywhere, dos Beatles. A fisio chorou, enquanto minha querida reclamava que o ombro e o braço direitos ainda doíam. Eu gravei tudo, mas a Elena me mataria se colocasse o vídeo aqui, porque é violinista profissional e não pianista.

Hoje, vivo entre três polos que me puxam. A Elena, o gato Vassily — que está desesperado sem sua dona e que até passou a gostar de mim, que antes era tratado como o embaixador de uma nação inimiga — e a livraria, que está em dificuldades. (Aliás, você deve ir lá. Deve sim!).

Não sei que porra de ensinamento vou tirar disso tudo. Acho que a única obviedade a ser constatada é que tudo é muito frágil e que qualquer equilíbrio é pura aparência. Minha mulher é mais de uma década mais jovem do que eu e eu sou seu orgulhoso cuidador. Gosto de voltar à noite para o hospital e de vir aqui durante o dia. A lição talvez seja a de me mostrar o lugar onde devo ficar. Mas isso eu já sabia antes.

Passeio pânico em Porto Alegre

Dia desses, eu e a Elena Romanov estávamos passeando tranquilamente trá-lá-lá pelo bairro Menino Deus, quando vimos um cara atravessando a rua em nossa direção.

Era curioso, ele estava com uma faca na mão, mas não me pareceu ameaçador. Tenho fé na humanidade, acho que quase todo mundo é benigno. Já a Elena apertou meu braço, sinal que identifiquei como “estamos correndo grande perigo, Milton, dá um jeito, pelamor de Deus”.

Aceleramos o passo e vimos o sujeito diminuir a velocidade, escondendo-se atrás de um arbusto. Ele nos olhava, notou que a gente estava desconfiado.

Então, ergueu a faca e cortou um galhinho, gritando para nós:

— É boldo!

PQP, que cag@ço!

Moro e seu apelido

Normalmente, eu seria absolutamente contrário a chamar o Moro de Marreco. Ele não escolheu grasnar, aquilo veio pré-instalado, não é culpa dele. Só que é tão bom chamar o Conje de Marreco, né? Eu o chamo assim. De Marreco. Sempre.

Aliás, cassem-no, e à Conja Olhuda também. Preciso voltar a achar meu apelido de criança injusto… Eu tinha pés muito grandes para meu tamanho e me chamavam de Pato, na verdade me chamavam de Qüem, que era a voz do Pato… Lembram do clássico da Bossa Nova “O Pato”? Pois é, veio dali. Um apelido cheio de referências culturais!

Injusto nada!, eu gostava do meu apelido e respondia que eu era todo proporcional, com TODAS as extremidades avantajadas…

Mulheres

Na minha infância, éramos 5. Meu pai, minha mãe, minhas irmãs e eu. Quem mandava eram as três mulheres, com absoluta predominância de minha mãe. Meu pai às vezes se revoltava, mas era sempre uma coisa meio histérica e ele se aquietava depois. Era como deixar uma criança gritar até cansar. Quando a mãe não estava, a liderança se transferia para minhas irmãs.

Então, aprendi desde cedo a respeitar as mulheres. Elas mandavam em mim e, certo, também me tratavam muito bem. Sempre tive sorte. Adolescente nos anos 70, via meus amigos assobiarem ou gritarem “Gostosa” para uma mulher qualquer e ficava quieto, não obstante a oceânica e quase dolorosa atração que sentia pelo sexo oposto.

Até hoje, se uma mulher reclama de mim, ouço sua voz duas vezes mais alto. Me assusto mesmo, coisa que jamais ocorre se um homem reclama. Neste caso, estou sempre pronto para debochar e faço isso muito bem, acredito.

Talvez seja um problema psicológico, mas jamais vou tratá-lo. Ainda mais que nesta manhã dormi além da conta e sonhei que ouvia os gritos da mulher estuprada por aquele jogador de futebol.

Saí da cama totalmente em pânico. E louco para dar uns socos naquele sujeitinho.

Molly, a gata da Shakespeare and Company

Molly, a gata da Shakespeare and Company

Por algum motivo, lembrei disso agora.

Em fevereiro de 2014, eu e Elena estávamos em Paris, dentro da Shakespeare and Company, quando comecei a contar pra ela que a livraria mantinha há 100 anos uma gata branca, que era sempre apenas uma e sempre chamada Molly (Bloom, certamente). Disse para ela que eu achava que era em razão dos ratos da beira do Sena, mas que eu nunca tinha visto a lendária gata. Então, passeando lentamente, entramos numa sala e lá estava ela, uma enorme gata branca. Uma mulher disse que Molly recusava contatos, só que, minha filha, ninguém resiste à Elena.

Um Milagre

Acaba de ocorrer um Milagre aqui em casa que gostaria que fosse reconhecido pelo Vaticano.

O café tinha acabado e eu comecei a procurar se ainda tínhamos algum pacote perdido no armário. Foi quando uma sacolinha amarela se desequilibrou lá em cima e veio na minha direção. Era a sacola amarela do Café do Mercado com dois pacotes do café Montanhas do Espírito Santo para serem moídos.

Neste momento, envolvido por aquele maravilhoso aroma, penso na existência de D… Não, no reconhecimento do Vaticano.

Quando contei o Milagre pra Elena, ela disse que comprara os pacotes na quinta-feira — “eu fui no Mercado Público” — mas isto não empana a realidade da multiplicação dos cafés. E a queda? Como vocês explicam o Milagre da Queda, hein?

Um frio na barriga

A Bamboletras me dá grandes alegrias, mas também muitas preocupações. Eu sou um cara azarado. Quando comprei a Livraria, o dono do cinema do Shopping Nova Olaria resolveu dizer que Lula não estava lendo na prisão, pois não sabia ler. O público dele era formado por gente de esquerda… Aquilo foi um tiro no pé que também nos atingiu. As pessoas simplesmente boicotaram o cinema, boa parte do público culto deixou de entrar no Olaria e tivemos queda nas vendas.

Depois, todos sabem, em 19 de março de 2020, o comércio de rua fechou e nós tivemos que mudar todo nosso estilo de vendas, apelando para as telentregas e para as vendas pelo site. Foi a segunda paulada que levamos, esta muito mais forte. Sobrevivemos com imensas dificuldades.

Agora, quando estávamos no caminho da recuperação, o Nova Olaria fechará por dois anos para reformas. Estávamos saindo de uma forma planejada, mas, sem aviso, recebemos uns tapumes pretos aqui na frente que dão toda a impressão de que TUDO FECHOU  lá dentro.

E estamos novamente na correria, alertando a todos que a vida ainda pulsa forte por aqui.

Eu sinto aquele frio na barriga de quem está (muito) escaldado. O novo local (Venâncio Aires, 113) é muito adequado para nós, mas, com o nosso azar, não sei o que será. O fato é que conviver com a pindaíba é uma merda, digo a vocês. Quem passou por isso, sabe.

Foto de Luiza Prado / Jornal do Comércio

Elena

Elena

Hoje é teu aniversário, Elena. Diz o Google que tu nasceste a 12.138 Km de onde nasci. Isso em linha reta porém curva, porque a terra é redonda, sabemos. Não sei o que mais admiro em ti. Tua boa conversa, tua beleza, teu companheirismo, tua inteligência, teu humor ácido — de que sou a vítima preferida –, tua elegância difícil de caracterizar. Mesmo quando vestes uma de minhas camisetas furadas de andar em casa, pareces perfeitamente composta. Tu vestes aquilo de um jeito que sei lá. Pareces uma nobre vítima de um naufrágio ou uma aristocrata que está camuflada em casa. Eu? Eu me sinto como a camiseta, ora. Aliás, perto de ti, sempre fui a camiseta puída que teve sorte. E que fica feliz.

Não vou colocar uma foto tua com uma de minhas camisetas porque podes provocar paixões, então vai uma tirada em 2020. Sabes onde estavas?

Da Belarus, uma história triste

Da Belarus, uma história triste

Vou contar uma história pra vocês, a Elena que me perdoe.

Corria o ano de 1997 na Belarus e a coisa estava pior do que nunca. A Elena recebia o correspondente a 18 dólares por mês, tinha uma filha e estava grávida de um menino. Pasmem, ela recebia este salário tocando na extraordinária Filarmônica da Belarus. Era para passar fome e digamos que ela não tinha como fazer as contas mensais fecharem de uma forma agradável. Antes de receber, costumava faltar pasta de dente em casa, além de outras coisas.

Para garantir a sobrevivência, ela cantava numa igreja e depois era alimentada por lá. A filha ficava na creche e, à noite, Elena conseguia fazer um jantar digno — este fato é um ponto de honra para ela. O jantar tinha que ser sempre bom e era, com mais de um prato.

Certa vez, entrou uma graninha a mais (ou ela recém recebera seu salário, não lembro bem) e ela resolveu fazer uma extravagância após um ensaio. Talvez vocês não saibam, mas há poucas coisas no mundo mais intensas do que a fome de uma mulher grávida. E quando têm desejo então nem se fala. No caminho para a casa, carregando sua bolsa e o estojo do violino, ela passou por uma feira enorme de Minsk. E escolheu comprar uma linda ricota, a ricota dos sonhos, aquela de consistência, textura e gordura perfeitas, logo ela que anos depois descobriria que era alérgica à proteína do leite, mas que amava os queijos — e a seguir se sentia mal, claro.

Encontrada e comprada a iguaria, ela a colocou na bolsa junto com a carteira. E foi para a casa de ônibus. Se estou falando de violino, bolsa, carteira e ônibus, você, leitor esperto, já se deu conta. Sim, ela foi roubada. Levaram-lhe a ricota e a carteira.

Ela diz que não há quase criminalidade com armas na Belarus, que pouca gente é assassinada, por exemplo, mas que os ladrões são exímios, roubam mesmo, estão por todo lado e jamais são detidos.

Quando chegou em casa, ela nem se deu conta da carteira, só do sumiço da ricota. Já falei para vocês da fome das grávidas. Ela não lembra se chorou, mas acho que sim, conheço ela.

(E o filho nasceu em Manaus, pertinho da Amazonas Filarmônica e do famoso Teatro. Mas esta é outra história).

Sobre certa crítica cinematográfica

Sobre certa crítica cinematográfica

Eu e Elena estávamos conversando sobre o filme Lamb e ela disse que não gosta de ler críticas porque ou eles dão spoilers ou veem sentido a detalhes que podem ser meramente casuais… Como as paredes vermelhas em Gritos e Sussurros, completei.

E eu lhe contei uma história com meu pai. Estávamos vendo Tristana, de Luis Buñuel e, de repente, lá pela metade do filme, todo o elenco, que falava francês, passava a falar espanhol.

Na saída, um conhecido crítico explicava a um grupo de pessoas sobre a mudança de idioma. Falava que a elegância e frieza do francês dava lugar à sensualidade e informalidade do espanhol e que aquilo acompanhava o que era contado no filme.

Meu pai ficou contrariado e, desconfiado e cara de pau como era, foi falar com o operador do cinema. O cara lhe explicou que o segundo rolo viera em espanhol por engano e que algum cinema de Recife estava vendo o filme com a primeira metade em espanhol e a segunda em francês…

Na praia 2

Eu e Elena podemos discordar em coisas desimportantes, mas concordamos no principal. Por exemplo, adoramos concertos e concordamos que os bons banhos de mar são os intrépidos.

E vamos lá na frente, deixando preocupados os salva-vidas. No início desta semana, um deles me chamou. Não foi a primeira vez, mas desta vez fiquei muito chocado. Ele apitou, me chamou e disse que a bandeira era vermelha e que havia, aqui e ali, correntes que poderiam nos levar para o fundo.

OK. Eu prometi — e fomos obedientes — um melhor comportamento. Mas ele completou sua explicação assim:

— E se vier um repuxo forte? E daí, veterano, tu te garante?

Veterano? PQP, fiquei pensando só umas 72h na palavra. Credo, é triste ter 64 anos.

Quando contei o fato para minha irmã, ela rolava de rir.

Já a Elena, nos dias subsequentes, ao chegar na praia, estufava o peito como uma heroína de guerra e dizia, só pra me consolar:

— Lá vêm os veteranos.

Obs.: Ela é bem mais jovem do que eu.

Na praia 1

Eu e Elena passamos uma semana na praia. Foram dias lindos e calmos. Estávamos precisando disso. Eu estava há dois anos trabalhando praticamente todos os dias.

Houve algumas cenas engraçadas e outras lindas, como a noite em que voltávamos a pé do mar e, quando ultrapassávamos uma avó de mão com seu netinho, este viu seus pais virem na direção contrária.

Ele abriu os braços, abriu um enorme sorriso e começou a gritar:

— Pai! Mãe! Tem uma lua lá! Tem uma lua lá! — e abria o quanto podia seus braços para dar a dimensão da lua.

Seu pai fez uma cara de encanto absoluto, pegou o guri no colo e todos eles voltaram para a beira-mar.

Pai

Hoje faz 28 anos do falecimento de meu pai. Acho que foi o primeiro dia tão-somente triste, o primeiro dia 100% e absolutamente triste de minha vida. Fui acordado pela notícia. Ele tinha 30 anos a mais do que eu. Então, fico pensando se pode ser verdade que tenho apenas mais dois anos.

Hoje, dentro de minha cabeça, Clara Nunes está cantando uma canção de Chico Buarque chamada Umas e Outras que lá pelas tantas diz: “Cruzes, que vida comprida / Pra que tanta vida, pra gente desanimar”.

É, os dias 10 e 11 de dezembro nunca mais foram os mesmos após 1993.

Eu e minha filha Bárbara

Eu e minha filha Bárbara

Eu lembro de quando eu ficava deitado com minha filha antes de ela dormir. A Bárbara Jardim ainda não era alfabetizada — devia ter uns cinco anos — e adorava ou ouvir as histórias que eu sempre inventava na hora ou ser desafiada em cálculos “complexos”. Pois todo dia chegava uma hora em que eu dizia que ia transformar sua massa encefálica em guisado, que a cabeça dela ia explodir, que ela sujaria a cama com o líquido vermelho que escorreria de seu cérebro destruído para sempre, tal a dificuldade do próximo desafio. Ela ria muito disso tudo e eu perguntava, por exemplo:

— Quanto é 47 + 25?

Então ela se escondia sob as cobertas, provavelmente usando os dedos para resolver algum impasse, e voltava SEMPRE com a resposta certa. Sempre. Mesmo quando passei para os 3 e 4 dígitos. Só por isso é que até hoje, aos 27 anos, ela ainda tem um cérebro.

Registros fotográficos familiares da época da construção do Beira-Rio

Registros fotográficos familiares da época da construção do Beira-Rio


Milton Nerd dentro do Beira-Rio em construção em setembro de 1968 (eu tinha 11 anos). A época era de ditadura, mas os óculos são do Realismo Socialista.


Eu e minha irmã …


E meu pai, falecido em 1993 e que infelizmente não pode ver Campeão do Mundo o clube que me inoculou com tanta competência.


Orgulho após impedir o octacampeonato do Grêmio (foto de janeiro de 1970, 12 anos)

Há oito anos — like a rolling stone

No dia anterior, ela visitara o ex-marido que ainda habitava o apartamento onde moraram por quase uma década. No momento de sua chegada, a filha correra para o lado do pai, como era habitual há alguns meses. Afinal, a mulher passara a encontrar defeitos em tudo que a enteada dizia ou fazia e a menina apressava-se em ir para a cama cedo todas as noites, antes que a mulher chegasse da faculdade — ou das festas. Desde dezembro, quando Marcos anunciara sua intenção de não fazer mais tentativas de fertilização in vitro, ela tratava a filha com visível desdém.

Mas naquele dia ela viera cedo, por volta das 20h. Quando entrou na sala, sua face de ossos proeminentes estava vermelha, ainda mais inchada do que o normal. Disse que precisava da chave do carro.

— Por quanto tempo?

— Dois ou três dias.

— Tudo bem, estão aqui.

E ela foi embora, não sem antes deixar no ambiente algumas ofensas, as quais foram recebidas com risos pelo marido e apreensão por parte da filha. O casal estava separado há três meses, desde que o marido descobrira o adultério da mulher, concretizado com um amigo da família.

Desde então, Marcos não sabia se ela estava morando na casa da mãe ou no apartamento do novo namorado. Eles ainda não tinham conseguido conversar a respeito dos acertos necessários. Na única visita que a mulher fizera ao advogado que ele constituíra, ela saiu batendo a porta, chamando-o de desaforado.

No dia seguinte, Marcos trabalhava normalmente quando recebeu uma ligação. Era de sua ex-mulher e ele atendeu prontamente, pensando que ela lhe faria algum gênero de proposta de separação. Mas não. Ela lhe comunicou aos berros — e com um turbilhão de ofensas de baixo calão — que tinha trocado as chaves da porta do apartamento e que ele deveria morar, e só por apenas quinze dias, na casa dos fundos, bem conhecida dele, já que sua mãe passara os últimos dias de sua vida ali. Suas roupas e alguns poucos pertences estavam lá.

Marcos desligou o telefone no meio da ligação e telefonou para sua filha. Esta já sabia de tudo e falou que a mulher estava louca. Ligou então para sua irmã, que também já tinha sido informada. Ligou então para vários amigos. Estes não sabiam de nada e ofereceram quartos para que ele passasse alguns dias. Eram unânimes; ele não deveria voltar lá. Marcos não pensava assim, achava que podia ficar na ex-casa de sua mãe por alguns dias. Ligou então para sua recente namorada e ela reafirmou: voltar está fora de questão. É que depois da agressão moral gratuita, os amigos tinham receio de outros ataques, verbais ou até físicos. De qualquer modo, Marcos foi até lá com um amigo. Chegaram calmamente, analisando o caso. Discutiam principalmente o caráter adesista da vizinha de cima, que apoiava sua quase ex-mulher. Riam das transformações instadas pelo oportunismo dela.

Ele foi até a casa de trás. Lá, viu suas coisas atiradas, trocou de roupa e foi embora. Recebeu um telefonema. Era sua nova namorada pedindo para que ele fosse ao concerto daquela noite, pois Eugênia, a mulher, sempre comparecia, tinha ambições políticas e estava montando uma Associação de Amigos da orquestra que daria o concerto. Ele deveria aparecer bem vestido e tranquilo. Marcos concordou.

Quando desceu as escadas com o amigo, olhou para a sacada de seu apartamento e viu Eugênia falando ao telefone. Ela voltou o rosto para ele. Este estava ainda mais inchado e vermelho.

Marcos foi ao concerto. Depois, foi a um pequeno hotel da rua marechal Floriano, onde deitou-se numa boa cama para receber uma chuva de pó de cupim, que entrava na boca e nos olhos e que lhe fez dormir de bruços. Pela manhã, tomou banho e foi trabalhar. No dia seguinte, quando saiu do trabalho, fez pela primeira vez aquilo que se tornaria um hábito. Por motivos óbvios — afinal, era uma pessoa asseada –, foi até a loja Só Cueca da Sete de Setembro, depois foi até a loja da Hering da Rua da Praia para comprar uma nova camiseta e subiu até a Jerônimo Coelho comprar meias. Com o tempo, na Hering, tornou-se uma da diversões das atendentes. Ao final da tarde chegava e perguntava o que deveria vestir no dia seguinte. Tinha que combinar com sua única calça e sapato. Elas usavam toda a sua criatividade para que ele tivesse as melhores combinações para sua calça bege e sapato marrom. Só que naquele 23 de outubro de 2013, Porto Alegre recebeu uma das maiores chuvas de sua história e a coisa não estava engraçada. Os sapatos reclamavam em voz alta, as calças estavam sujas, sujíssimas, e ele teria que lavar, mas como?

Acima, em vídeo a chuva de 23 de outubro de 2013 em Porto Alegre

Já estava tirando par ou impar entre a casinha de sua mãe e o hotel dos cupins. Subiu a Mal. Floriano e viu-a transformada numa cachoeira. Mas não podia desobedecer à ordem dos amigos e da namorada, eles foram seus esteios. Havia vários oferecimentos de quartos, mas cadê a cara-de-pau? Marcos estava pegando o telefone para falar com alguém, ao mesmo tempo em que dirigia uma vaga prece aos cupins, quando ele tocou. Era sua namorada dando-lhe uma quase-ordem:

— Não te preocupa com a chuva, vem para cá. Meus filhos estão na casa do pai. Tenho lavadora e secadora. Amanhã, tudo estará limpo.

Eram namorados recentes e ele ainda não tinha dormido na casa dela. Os sapatos ficaram no corredor. Marcos entrou na ponta dos pés. Hoje, mora lá há mais de oito anos.

Sala da Música do Multipalco Eva Sopher

Sala da Música do Multipalco Eva Sopher

Não mentiria muito se dissesse que estive o dia todo com a Elena. Durante os três ensaios do dia, almoçando, jantando, caminhando, tomando café, tudo.

A foto da camiseta foi ela quem tirou e a arte a la Warhol foi uma gentileza do Artur Barcelos, que poderia ser o que quisesse na vida, mas que escolheu ser um grande professor de História. Boa escolha. um grande professor de História. Boa escolha.