cinecittà

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Por Eduardo Mello (*)

fala, milton! nem te conto estive no mesmo mesmíssimo hotel onde pisou eva green
aquela vênus pós-moderna cuja ausência no ‘porque hoje é sábado’ eu ia já criticar
mas vá lá, admito: te subestimei a propósito, chegamos a roma

mais uma partida de brasília pra nós, a primeira pras gurias. esta é fácil, elas pouco lembrarão, mas daqui pra frente… perdas de turmas e paixões irão pra minha conta, e mais do que nunca precisarei destes papeis de carta

lennucia não faz ideia, tem pouco menos de dois anos de idade. lommucia, aos quatro, entende mais ou menos. dá abraço apertado numa amiga, ao fim do último ato na escola cabo frio. pequeno balé, animado por um violão que dá melodia ao bucolismo solar de brasília. as professoras perguntam se ela voltará para visitá-las, ela grita de longe, natural, puxando a mochila, ‘não seei!! mas todo mundo tá dizendo que vai me visitar em roma!’

damos a última volta de bicicleta pelas ciclovias verdes da asa norte, embalamos objetos e lampejos. passamos em porto alegre para mais despedidas, lommucia entra em campo com o tricolor na arena, canta o hino nacional no gramado; lennucia passa a gritar ‘grêmio’ quando vê a bandeira do brasil – e vice-versa

cada escala nesse porto é um nó, sempre foi. a passagem do tempo no rosto de mãe e pai dói mais, quando vista em longos intervalos. irmão e irmã emigraram, o que nunca é bom sinal – além de dificultar a logística. restam os amigos, pontos turísticos sempre presentes, sobretudo do passado

tudo passa, com a decolagem. logo estamos em montmartre, as gurias abandonam a mesa e dançam no café des deux moulins, fingem que já falam francês com bom jur pra cá, bom soar pra lá. temem o urso empalhado do museu de história natural com a mesma convicção que creem na sereia que nada no aquarium. o hotel de senlis parece familiar, e de fato é: set d‘os sonhadores’ do bertolucci – e da eva green.

viajam de trem pela primeira vez. de paris a roma, o único carro que lhes atrai é o carrossel. de avignon, arles, nîmes, orange, ‘olhem, por aqui passaram os romanos, da cidade onde vamos morar’. não temos chance de teatro (muito menos de noite), mas as vemos correr e banhar-se nas fontes dançantes da place masséna de nice, correr até o róseo mergulho no mar do entardecer mediterrâneo

neste mesmo mar, nesta mesma hora, lá do outro lado, outras crianças fazem travessias de vida ou morte ainda não sei como explicarei a elas nem isso, nem os militares com fuzis de assalto que fazem a segurança na promenade des anglais – onde outras crianças foram assassinadas há pouco. perto disso, responder perguntas sobre sexo será barbada

não é uma sensação facilmente definida, definível, esta. partir do brasil, a representar este mesmo brasil, em período tão conturbado ao redor do mundo. atentados espocam no noticiário, em meio a nosso idílio familiar, antes, muito antes de elas começarem a desconfiar que não são mais personagens de desenho animado, que nem todos, nem todas veem o mundo com a canção fraterna de brunori sas

io vedo il mondo solo secondo me / e scrivo al mondo solo secondo me /
chissà com’è invece il mondo / visto da te

tanta coisa acontecendo, e elas só se preocupam em correr até o lanche no vagão-restaurante, subir e descer de trens, gritar, infernizar até a última escala antes do nosso próximo set. em milão, estranham o ‘ciao’ no lugar do oi, participam de atividade no ‘museo dei bambini’, onde começam a aprender italiano à força

chegamos a roma num domingo do mês de agosto, das férias e da cidade vazia mostrada, em 1962, no clássico ‘il sorpasso’

chove um pouco, vejo esse monte de malas, carrinho de bebê, fraldas a trocar, e lembro dos primeiros passos em brasília-08, bissau-10, santiago-12, brasília-14, tudo de novo

eram outras expectativas nenhuma maior do que a sensação de chegar com elas
na cidade que será também pra nós eterna

Foto: Eduardo Mello

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(*) Eduardo Brigidi de Mello é diplomata e o texto representa tão-somente a visão do autor.

Bom dia, Odair (com os lances de Paysandu 0 x 1 Inter)

Bom dia, Odair (com os lances de Paysandu 0 x 1 Inter)

Que vida dura. O Pottker nem saiu do Inter e o Odair já inventou o Parede, que errou tudo o que tentou. Tudo. Que cara ruim. Mas é outro atacante que marca, o que apaixona treinadores medrosos como tu, Odair.

Guerrero, a maior contratação do Inter dos últimos anos | Foto: Ricardo Duarte / SC Internacional

E Dale, Sarrafiore e Neílton sentadinhos no banco. Vou lhes contar…

Foi uma espécie de jogo-treino mais forte que o normal. O Paysandu só ameaçou o Inter em alguns momentos da primeira metade do segundo tempo, o resto foi de certo domínio do Inter e enrolação.

Guerrero marcou um golaço no primeiro tempo, mas infelizmente Nico López — que tinha lhe passado a bola — estava impedido.

No final da partida, Guerrero marcou novamente. E valeu. D`Alessandro está com uma vida complicada. Recebe do Lindoso, toca pro Sarrafiore e corre para abraçar o Guerrero. Chato, né?

Guerrero é um diferencial e tanto. Que baita jogador, que tremendo centroavante.

E a volância do Inter é um luxo só. Sai DOURADO e entra LINDOSO.

Chega de bobagens. Foi um jogo fácil, nem serviu como teste dada a fraqueza do adversário.

Pelo Brasileiro, o Inter (7º, 10 pontos) terá desfalques contra o Avaí (19º, 3 pontos em 3 empates), domingo (2), às 19h, no Beira-Rio: Rodrigo Moledo, Rodrigo Dourado e Iago. Paolo Guerrero fará seu último jogo antes de se apresentar ao Peru para a Copa América.

Os melhores lances começam aos 30 segundos do vídeo abaixo.

Alguns pitacos sobre o Prêmio Camões concedido a Chico Buarque

Alguns pitacos sobre o Prêmio Camões concedido a Chico Buarque

1. Acho difícil comparar a situação atual com aquela do Nobel dado a Bob Dylan. O Nobel não ficou maior entregando seu prêmio de Literatura para Dylan, diria até que ficou menor. Já o Camões — que muitos desconheciam — ficou maior ao chamar Chico Buarque.

2. Sabemos que este prêmios muitas vezes são geopolíticos. Vários Nobéis foram dados a escritores menores porque estes faziam oposição a governos absurdos. Assim, a distinção para Chico Buarque chega para chamar a atenção das pessoas para o país, além de incomodar os fascistas ou ignorantes que elegeram um iletrado que, logo após a chegada ao poder, extinguiu o Ministério da Cultura como se fosse um penduricalho inútil.

3. Caberia também acrescentar que Chico sempre teve posições políticas claras, nada lisas ou duvidosas.

4. Chico é um representante importante da cultura nacional que está sendo atacada. Passou a vida entre Drummond, Bandeira, Vinícius, João Cabral, Tom Jobim e um monte de gente que o influenciou. Parece que João Cabral recebeu o Camões, mas mesmo assim vale a observação. Temos alguém mais importante?

Manuel Bandeira, Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes

5. Li quase todos os livros de Chico. ‘Budapeste’ é excelente e ‘Leite Derramado’ é muito bom. E ele não faz o óbvio. Seus livros não são “para vender” por carregarem um autor conhecido. São originais e são literatura.

6. Como este governo precisa ver seus inimigos no chão, a ridícula ministra Damares, ao exibir para deputados, em tom crítico, num telão, algumas imagens de Lula, Marighella, etc., mostrou uma foto de Chico e disse, quando apareceu uma foto de Chico: “Eu acho que esse é um cantor, né?”. Ou seja, até a débil sentiu o golpe.

7. Interessa mesmo saber se o prêmio foi para o músico, para o autor ou para a figura pública? Talvez seja para o homem que transita como poucos entre o erudito e o popular, não?

8. Para finalizar, voltando a Dylan e às provocações: “E quem há de negar que Chico lhe é superior?”.

Este retrato seria de Johann Sebastian Bach jovem

Este retrato seria de Johann Sebastian Bach jovem

É este o jovem Johann Sebastian Bach? Pesquisadores de Leipzig suspeitam que sim — mas querem submeter o retrato a mais investigações.

Do Bild

Foto: Silvio Buerger

Até agora só o conhecemos com queixo duplo e peruca. Isso pode mudar: o Arquivo Bach examina um retrato até então desconhecido. Os especialistas suspeitam fortemente que ele mostra o jovem Johann Sebastian Bach (1685-1750).

“Dois anos atrás, um comerciante de Saarland nos ofereceu uma imagem de propriedade privada”, explica o diretor Peter Wollny. Desde então a barganha é examinada.

Prof. Dr. Peter Wollny (sentado) e dr. Manuel Bärwald em frente à pintura | Foto: Silvio Buerger

Se é real, seria uma sensação: até agora, temos que nos contentar com o retrato de Elias Gottlob Haußmann (1695-1774), que mostra Bach em uma posição muito rígida dois anos antes de sua morte. “Aquilo não combina com ele, Bach era mais animado”, diz o diretor de Bachfest, Michael Maul.

A pintura de aproximadamente 80 x 70 cm de largura surgiu indiscutivelmente no período após 1700, quando o Bach era jovem: “Ele tem um rolo de música na mão, ao fundo há um órgão”, diz Wollny. A trilha leva a Weimar, onde ele foi, de 1708 a 1718, como organista da corte. Wollny: “Não é improvável que ele fosse o modelo do pintor.”

O trabalho não está assinado, mas é pós-datado. Por volta do ano de 1800, alguém notou no verso: “O famoso organista e construtor de órgãos Bach morreu em 28 de julho de 1750.”

A inscrição na parte de trás do quadro | Foto: Silvio Buerger

Isso deixa os cientistas Maul e seu colega Dr. Manuel Bärwald suspeitem que a imagem esteva em um arquivo ou biblioteca por um longo tempo antes de ser propriedade privada. Que isso poderia ser uma falsificação por razões financeiras, é improvável, já que Bach foi esquecido por volta de 1800.

O Arquivo Bach agora quer arrecadar dinheiro para continuar as investigações. “Além disso, a imagem deve ser restaurada”, diz o professor Wollny.

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Eu, Milton Ribeiro, achei-o muito parecido com Gérard Depardieu jovem.

Sobre “As Academias de Sião”, conto de Machado de Assis

Sobre “As Academias de Sião”, conto de Machado de Assis

O conto completo está aqui, dentro do site Domínio Público.

As Academias de Sião, de Machado de Assis, dá pano para muitas mangas, apesar de não ser um de seus maiores contos. O pano para as mangas é tecido ao longo de um plot mais do que original para a época: as academias de Sião tentavam resolver um peculiar problema: “Por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? O que as induziu a discutir isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira que o rei não cuidava de outra coisa”.

Uma das academias venceu, a que declara que a alma é sexualizada. E ela extermina (literalmente) as outras. Kinnara, a mais bela concubina do Sião era uma mulher máscula: “Um búfalo com penas de cisne”. Kinnara convence o rei para que suas almas troquem de corpo por seis meses. Cumprido o prazo, cada uma seria restituída ao corpo original. A fábula de Machado pega emprestado temas orientais, sobretudo hindus. Basta lembrar o parentesco do conto com a “história hindu” de Thomas Mann As Cabeças Trocadas, onde há um personagem belo, mas com um corpo magérrimo, e outro feio, mas de belo corpo. Em Mann, há a troca de cabeças; em Machado, a de almas.

Após a troca, Kalaphangko, ou o corpo do rei agora com alma de Kinnara cuidou da fazenda pública, da justiça, da religião e matou uns tantos que não pagavam impostos. “Sião finalmente tinha um rei”, afirma Machado. Já a alma do rei “espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara”. Sim, Machado de Assis diverte-se sempre conosco. E nós com ele.

O conto parece indicar que a alma masculina seria mais ativa e racional, enquanto a feminina seria passiva e emocional. Mas Machado de Assis não está aqui criando teses e sim controvérsias e boas piadas. Um pouco mais sobre Kinnara. Quando há a troca de almas, ela passa a um plano secundário e Kalaphangko planeja matá-la para não desfazer a troca, porém ela revela estar grávida e o rei sente-se incapaz de matar seu próprio filho, símbolo de sua virilidade e da continuidade da linhagem real. Ou seja, primeiro Kinnara consegue fazer a troca de corpos através de um beijo e depois logra não ser morta pela maternidade, um predicado físico feminino. Neste sentido, a simples Kinnara é mais uma mulher decisiva num mundo machadiano cheio delas. As mulheres de Machado seduzem, escolhem, querem e conseguem, expelindo sensualidade tanto em lentas e inexoráveis secreções ou como em espasmos (ou jatos…).

Tenho vontade, mas reluto em fazer uma interpretação do século XXI sobre um conto que não é mais do que um scherzo de Machado. Mas há outros aspectos intrigantes neste conto cheio de curiosidades que independem do instrumental psi de nossos dias. (1) Machado não cai em momento algum nas piadas fáceis e depreciativas de uma sociedade machista — e estamos em 1884. (2) Diferentemente de Tolstói, por exemplo — um escritor absolutamente contemporâneo de Machado — , o brasileiro não está nem um pouco preocupado em explicar o mundo ou em trazer a Verdade e a Solução a seus leitores. Ele apenas narra brilhantemente os fatos e nos deixa aqui pensando… (3) Os acadêmicos consideram uns aos outros perfeitos estúpidos, mas permanecem academia, inclusive protagonizando o festivo momento final de As Academias de Sião, cantando todos juntos o hino “Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!”.

A bela Kinnara — àquele momento já destrocada — não entendia como os membros da academia podiam ser a claridade do mundo quando reunidos e se detestarem separadamente… Mas sabemos que é assim. É notável que o fundador da Academia Brasileira de Letras nos passe uma noção tão bufa e verdadeira do comum das academias — locais que  podem ser melhor descritos como cestas de ofídios do que como clarões para o mundo.

Bom dia, Odair Hellmann (com os melhores lances de Santos 0 x 0 Inter)

Bom dia, Odair Hellmann (com os melhores lances de Santos 0 x 0 Inter)

Num domingo inacreditável, onde houve cena de bolsonaristas retirando da porta de uma Universidade a faixa “Em defesa da educação”, fato que alude a tempos mais nazistas, o Inter fez um bom jogo contra o Santos na Vila Belmiro. Mas poderia ter sido melhor que o 0 x 0.

Tivemos grandes chances para vencer. O resultado foi bom, porém, com as substituições tolas no segundo tempo, Odair estragou o que preparara durante a semana. A entrada de Pottker no ataque instalou aquele elo mais fraco que faz a engrenagem quebrar.

Nonato segue jogando bem | Foto: Ricardo Duarte

Há ainda medo de ganhar fora de casa. O Inter mostra postura e emite discursos de time pequeno — parece que um empate na Vila é a melhor coisa do mundo. É bom, claro, mas time grande só comemora empate quando este serve para classificar ou ganhar um campeonato.

Para mim, ontem ficou provado que propondo o jogo fora de casa o Inter pode vencer mesmo os times grandes brasileiros.

Mas voltando ao culpado por fazer o Inter parar, Pottker não tem mais condições de jogar no Inter. Se o Corinthians quer, que seja feliz com ele. Não é um mau jogador, é que ficou marcado e não parece ter calma para dar a volta por cima. Está pisando na bola, perdendo gols e irritando. Além do mais, impede que outros jogadores apareçam. Para não falar em meninos, Sarrafiore e Dale estavam no banco.

O Inter fez um grande primeiro tempo, caiu no segundo, quando voltou a pedir para perder. Quase conseguiu.

Bruno e Emerson Santos foram bem e Nonato carimbou novamente sua titularidade.  Nico tem jogado mal, né? Parede é fraco e gostaria de ver Sarrafiore e Neílton jogando tempo mais do que ele e Pottker. O VAR anulou um gol do Inter e um pênalti marcado para o Santos. Ambos corretamente.

Agora as atenções se voltam para o jogo decisivo das oitavas de final da Copa do Brasil contra o Paysandu, quarta-feira, em Belém-PA. Na ida, vencemos no Beira-Rio por 3 x 1 e podemos perder por um gol de diferença. O jogo é quarta-feira (29), às 19h15.

Pelo Brasileiro, o Inter volta a campo no próximo domingo (2/6), às 19h, para enfrentar o Avaí no Beira-Rio. Estamos na 7ª colocação com 10 pontos em 6 jogos e um aproveitamento bem baixo (55% dos pontos).

P.S. — O Inter deveria liberar urgentemente Pottker, Wellington Silva, Tréllez, Camilo, Alvez e Danilo Fernandes. Eles têm altos salários e resultados insuficientes.

Navegante, com Dudu Sperb e Guinga

Navegante, com Dudu Sperb e Guinga
Capa do CD Navegante | Foto Claudio Etges

No início de 2018, assisti a um show meio improvisado de Guinga e Dudu Sperb no StudioClio. Guinga tinha chegado à Porto Alegre naquela mesma tarde e eles tinham ensaiado apenas uma vez. A dupla se observava bem para entrar junto, mas não ocorreram problemas. Era clara a afinidade, a apresentação mais parecia um reencontro. Foi realmente um arraso.

Depois, eles repetiram a dose em mais três espetáculos. Foram espetáculos mesmo, com a voz de Dudu cantando as melodias do tremendo compositor e violonista que é Guinga.

Agora, a Bamboletras recebeu o CD Navegante — Dudu Sperb recebe Guinga. Acabo de ouvi-lo. Ele traz as belas interpretações de Dudu com as harmonias de Guinga ao violão. Trata-se de uma verdadeira joia. No disco, estão algumas das melhores canções do compositor carioca como Bolero de Satã (imortalizada por Elis), Você, Você (de Guinga e Chico Buarque, que apareceu no disco As Cidades, do último), Catavento e Girassol (cantada originalmente por Leila Pinheiro, creio), Silêncio de Iara, Senhorinha e o fado clássico, adoradíssimo na minha casa, Navegante. Como se não bastasse, ainda há uma homenagem à Marielle Franco: Nobreza da Maré.

FAIXA A FAIXA POR DUDU SPERB

1 – Sete estrelas (Guinga/Aldir Blanc)

Ao ritmo de uma toada de Guinga, com essas palavras de Aldir Blanc, abrimos o CD: “Eu canto a música da gente quando nua e crua…”. Além de traduzirem um pouco o espírito de outras parcerias desses dois compositores, elas representam um perfeito preâmbulo para o que está por vir, para a audição do disco. Mais adiante, a letra diz: “toda mentira minha é verdadeira”. Se pensarmos que as palavras “nua” e “crua” podem ser associadas ao conceito de verdade, é igualmente possível se compreender que essa veracidade se dá, também, através da “mentira” da canção. Ou seja, a música (que não somos nós, especificamente, mas que é uma manifestação nossa) traz em si a possibilidade da gente “ser” e “existir” de diversas formas através da interpretação. Pra mim, isso é um pouco como se dizer: “essa é a nossa música e através dela e de sua fantasia nós nos desvelamos”. E tudo que as pessoas ouvirão nesse disco tem como fundamento essa premissa da arte de ser uma “mentira” portadora de uma “verdade”.

2 – Canção do Lobisomen (Guinga/Aldir Blanc)

Essa é uma canção que, em música e letra, me parece uma boa introdução ao universo de Guinga. Sombria e bela, alude à fera incorporada à nossa humanidade que nos faz, por vezes, destruir aquilo que mais queremos ou necessitamos, que carrega o veneno sem entender por que e sem saber como se desvencilhar, se curar disso. Uma obra perene, mas que, especialmente nesse momento, se apresenta ainda mais ampliada em seu sentido.

3 – Choro pro Zé (Guinga/Aldir Blanc)

Esse choro com ares de jazz foi feito em homenagem ao grande saxofonista Zé Nogueira, com uma letra que reflete sobre a simbiose da música com a vida e do músico com seu instrumento. Mesmo sutilmente, nessa faixa cantei buscando colocar na voz ainda mais a entoação de um instrumento de sopro, como um sax.

4 – Catavento e girassol (Guinga/Aldir Blanc)

Outro clássico, e uma das canções mais conhecidas e admiradas de Guinga, Catavento e girassol é um exemplo perfeito de excelência, de beleza e de sofisticação. A exemplo do Quereres de Caetano, esse choro-canção versa sobre os desencontros dos desejos, das condutas, do jeito de ser de duas pessoas. Aqui, entretanto, essas oposições se colocam talvez de forma um tanto mais ambígua por serem colocadas mais singularmente como complementares. Exatamente como o que ocorre num reflexo no espelho: a imagem refletida sendo, ao mesmo tempo, o oposto e o arremate. E sua melodia, que vai e volta, inquietante e dramática, é marcante e sublime. Para mim, que sou barítono, os tons de muitas obras de Guinga às vezes beiram os limites da voz. A exemplo de “Canção do Lobisomem” e “Neblina e flâmulas”, entre outras, essa foi uma das canções do CD em que foi necessário atingir regiões bastante graves, um desafio técnico que resultou num ganho interpretativo: fiquei contente com as zonas sombrias da voz que alcancei e pelo quanto pude me adequar a elas para trabalhar a emoção. Me parece que, dessa forma, essas composições ganharam outros contornos.

5 – O silêncio de Iara (Guinga/Luis Felipe Gama)

Desde que a ouvi, no disco Noturno Copacabana, me encantei com esse belíssimo e singular choro-canção que alude, de forma sutil, à mítica senhora das águas, a sereia do folclore brasileiroEla possui em sua melodia algo de soporífico, de vai e vem, ao que a letra se amolda de forma hábil e elegante.

6 – Bolero de Satã (Guinga/Paulo César Pinheiro)

Foi através de Bolero de Satã, interpretada por Elis Regina e Cauby Peixoto, em 1979, que tomei conhecimento de Guinga. Lembro do quanto fiquei impressionado e encantado ao ouvi-la. Por esse motivo, pelo que ela teve de primordial como introdução ao universo do compositor, essa era uma canção que não poderia faltar no CD: gravei-a porque adoro a canção, mas sobretudo como uma homenagem a Elis, a Cauby e ao próprio Guinga.

7 – Ilusão real (Guinga/Zé Miguel Wisnik)

Outro choro-canção, misterioso, que desafia o cantor com sua melodia complexa. A letra “em aberto”, de Wisnik, permite inúmeras percepções, interpretações. Estão aqui reunidos, numa canção, dois dos principais compositores da atualidade, que estão entre os meus preferidos, e em cujas obras eu me perco e me encontro.

8 – Nobreza da Maré (Guinga/Anna Paes/Simone Guimarães)

Única obra inédita do CD, Nobreza da Maré é uma rara parceria de Guinga com outras duas compositoras. Simone Guimarães já havia feito letras para algumas de suas melodias, mas creio ser essa a primeira vez que ele, além de dividir a autoria com duas mulheres, ainda compartilha a composição da música com uma delas, no caso, com Anna Paes. Isso é ainda mais interessante pelo fato da canção também prestar homenagem a uma mulher: a vereadora Marielle, assassinada há um ano no Rio de Janeiro. Um lindo e comovente choro que me foi apresentado pelo próprio Guinga, em 2018, quando chegamos a interpretá-la, meio de improviso, num show do StudioClio.

9 – Avenida Atlântica (Guinga/Thiago Amud)

Me encantei com esse samba-canção ao ouvi-lo numa gravação de Guinga com o clarinetista italiano Gabrielle Mirabassi. Na mesma hora perguntei a Guinga se tinha letra. Felizmente havia uma letra encantadora de Thiago Amud, outro parceiro constante do mestre carioca. Trata-se de uma canção suave e lírica como o vai e vem das ondas, e outra linda homenagem ao Rio de Janeiro.

10 – Nonsense (Guinga/Paulo César Pinheiro)

Essa composição é uma preciosidade das preciosidades. E pensar que Guinga e Paulo César Pinheiro a conceberam quando tinham por volta de 20 anos, apenas… Sua narrativa de um suicídio é feita em frases que, por serem articuladas de formas completamente inusuais, dão uma certa sensação de falta de sentido. Porém, os significados de fato estão sendo explicitados ali; basta ouvi-la uma segunda ou uma terceira vez, se debruçando mais sobre a letra. Depois de cantada uma vez inteira, a narração retorna, completa, com a mesma letra em português, mas com uma pronúncia forçadamente francesa, o que faz ampliar ainda mais essa sensação de nonsense, de não discernimento, de falta de lógica. As palavras em português “entoadas em francês”, promovem então uma desarticulação ainda maior, deslocando, misturando, escondendo ou revelando significados, aqui e ali. E a melodia dessa valsa que vai e volta, que avança e que novamente é retomada, se projeta de forma espiralada como num voo desnorteado, sugerindo ela também uma ação incompleta ou uma indecisão de chegar ao fim.

11 – Neblina e flâmulas (Guinga/Aldir Blanc)

Essa é uma canção que nos apresenta um Aldir Blanc mais lírico do que o usual. Me apaixonei por ela na primeira vez em que a ouvi, no CD que Leila Pinheiro gravou com as canções de Guinga. Sobretudo a melodia, sempre me deu vontade de chorar. Novamente os graves se impuseram, e eu imergi numa interpretação mais densa, fazendo sobressair um certo sentido de perdição que ela revela. Essa foi a única composição que, em nossos poucos encontros para definir o repertório do show, Guinga cogitou subir o tom. Mas eu me propus a cantá-la assim, no tom original como as demais canções, seguindo a navegar por suas profundezas. E adorei o resultado.

12 – Você, você (Guinga/Chico Buarque)

A única parceria desses dois mestres cariocas só poderia resultar nessa maravilha. Letra e música são tão misteriosas, tão perfeitas em si mesmas e em seu casamento, que foi um encantamento interpretá-la. E, para minha própria surpresa, essa foi uma das execuções que saíram mais de pronto. Foi só eu me deixar levar, seduzido por ela, por seu misto de devaneio e realidade, de vigilância e sono.

13 – Senhorinha (Guinga/Paulo César Pinheiro)

Creio que, junto com Bolero de Satã, essa é a canção mais conhecida de Guinga. E ela é também, possível e provavelmente, a mais amada pelo público, uma modinha que alia delicadeza e beleza em cada nota de sua primorosa melodia a uma letra plena do encanto e da sofisticação de uma história de contos de fadas. Há muitos anos, eu já havia registrado essa canção, apenas de modo demostrativo, para um outro projeto de disco que não chegou a acontecer. Agora, com sua bênção e tendo-o como guia, finalmente pude interpretá-la com Guinga.

14 – Navegante (Guinga/Paulo César Pinheiro)

Outra composição da juventude de Guinga e Paulo César Pinheiro, esse fado é uma beleza que, se não soubéssemos, julgaríamos ter sido feita por compositores mais maduros e experientes. Depois de todas as histórias narradas nas canções anteriores, essa me parecia a obra perfeita pra fechar o disco. Somos todos navegadores e seguimos rumos, queiramos ou não. Mas justamente aqui, imersos nesse universo de canções, o que fazemos, mais do que qualquer coisa, é ir em busca de emoção, soltos na imensidão. E o disco, que começou com uma espécie de testemunho sobre a música, termina ecoando a palavra coração.

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Quem conhece sabe que Guinga (Rio de Janeiro, 1950) é um dos maiores compositores brasileiros. Artista de longa e brilhante trajetória, excepcional violonista com vários discos gravados, tem obra reconhecida, tanto no Brasil como no exterior. Teve canções gravadas por cantoras como Elis Regina, Clara Nunes e Leila Pinheiro. Mais recentemente, vem atuando ao lado de Mônica Salmaso, Maria João, Esperanza Spalding, André Mehmari, Francis Hime, Gabriele Mirabassi e de grupos como o Quinteto Villa-Lobos, entre outros. Não, não é pouco. E, para completar, sobre suas melodias se debruçaram alguns dos maiores letristas brasileiros, como Chico Buarque, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, etc.

Desde 1988, Dudu Sperb (Porto Alegre, 1961) tem trabalhos como intérprete em projetos com músicos como Paulo Dorfman, Adão Pinheiro, Cau Karam, Toneco da Costa, Fernando do Ó, Giovani Berti, Maurício Marques, Arthur de Faria, Michel Dorfman, Vagner Cunha, Nico Bueno e Luiz Mauro Filho, entre outros. Atuou junto a artistas como Zé Miguel Wisnik, Ná Ozzetti e Milton Nascimento e apresentou-se em países como França, Holanda, Bélgica, Portugal e Uruguai. Possui quatro CDs gravados.

cinecittà

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Por Eduardo Mello (*)

caríssimo milton,
livreiro, agora
certificado em cartório
come va
nosso porto dos casais
de todas as cores
nosso porto alegre?
goethe zola
medem e scola
já contaram
o que se passa em roma
acrescento aqui
meu pé de pátina

15 de março de 1944, cárcere da gestapo em oslo, petter moen rabisca no escuro: ‘hoje quero escrever algumas palavras, consolar-me um pouco… a solidão consome a força do pensar, que depende de estímulos externos’

em 15 de março de 2019, piazza navona em roma, lennucia garante: ‘eu parlo talniano. e portoghese!’. lommucia ganha um broche do brasil, ajeita na blusa, sai toda orgulhosa na primavera que ilumina a praça: ‘assim todo mundo vai saber que eu sou brasiliana!’

são quase dez anos da primeira brisa de bissau. temos duas novas companheiras de viagem, que já sentem a força dialética da primeira remoção. em poucos meses de escola multilíngue, misturam talniano-francese-inglês-portoghese

os tempos são outros, a história agora é tanto minha quanto delas – e da experiente diplomatriz. lommucia trabalha comigo, frequenta o centro cultural brasil-itália, já tem vaga ideia do que representa uma embaixada. nem sonha, porém, nem ela nem lennucia, quão peculiares são suas declarações de brasilidade

cruzamos a navona, ex stadio di domiziano. ela brinca com um sósia do chaplin, corre atrás de bolhas de sabão que nos levam até a via della scrofa, até a via di ripetta. se impressiona com o tevere, com o verde das árvores do mausoléu de augusto, ‘que bella essa igreja, pai, mas que que é uma igreja?’. brinca na fonte do ara pacis, enquanto vai sendo desarmada a exposição sobre mastroianni

nosso táxi bate num carro do exército, ‘ma cosa fa stocazzo!’, descemos, andamos de mãos dadas em direção ao bonde 19 na via delle belle arti, um pouco antes do museu etrusco na villa giulia, estrela do grande bellezza

entramos em uma enorme igreja. ela vê cadeiras alinhadas e exclama, ‘pai, parece um cinema!’ uma declaração subversiva, mal sabe a guria onde tá se metendo. como se tivesse lido aquela frase do trotsky no átrio do museu do cinema de torino, algo como ‘sonho com o dia em que as igrejas se transformem em cinemas’ ou ‘o cinema diverte, excita a imaginação pela imagem e afasta o desejo de entrar na igreja’ ou ‘o dogma do cinema é embaralhar as ideias’

bueno, não lembro bem. eu, que não curto revoluções permanentes, só espero que os cinemas continuem assim, humildes e litúrgicos cinemas de bairro. lomuccia, que se seguir nessa linha vai acabar se rebelando contra mim, sobe no tram com grande esforço, não quer ajuda, depois quer colo, espalha costa abaixo as pernas da guria que nasceu em santiago, caminhou em brasília e irá ler em roma

‘mi sento vecchio quando leggo il giornale’, canta la municipàl

as breaking news do jornal trazem projeções do mercado imobiliário sobre os efeitos da mudança do clima na itália: desvalorização dos imóveis à beira de rios e mares, inundação de veneza e napoli em mais sete décadas. amigo espanhol do programa mundial alimentar volta do zimbábue. o problema é a seca inédita, e agora o furacão que devastou moçambique, as pessoas não sabem para onde ir. muitos acabarão na itália, onde cresce o debate sobre o acolhimento de migrantes e a oxfam diz que também aqui os 5% mais ricos detém patrimônio igual ao dos 90% mais pobres. i read the news today, oh boy!, diz lennon. as heart-breaking news

como o trabalho de um professor, este mister exige leitura e releitura da história diária do brasil, do mundo e do posto da vez, hoje a itália

mas sempre que abro a porta
o piano da diplomatriz
lennucia corre
pra me abraçar
com braços
pernas
e o mundo

A Piazza Navona, em Roma

.oOo.

(*) Eduardo Brigidi de Mello é diplomata e o texto representa tão-somente a visão do autor.

Instruções para os Criados, de Jonathan Swift

Instruções para os Criados, de Jonathan Swift

O grande irlandês Jonathan Swift (1667-1745) foi um homem da universidade e da igreja que teve a inteligência de desconfiar do bom senso e preferir a sátira. É autor de dois clássicos absolutos — Viagens de Gulliver e Modesta proposta para impedir que os filhos das pessoas pobres da Irlanda sejam um fardo para os seus progenitores ou para o país e para torná-los úteis ao interesse público. Sim, o segundo título é esse mesmo, apesar de o livro ser mais conhecido como Modesta Proposta, é claro.

Neste Instruções para os Criados (Editora Âyiné, 129 páginas), Swift dedica-se a fazer o que diz o título, só que… Bem, nada do que o autor prescreve visa algum ganho para os empregadores, apenas para os empregados. Na verdade, o livro dá instruções detalhadas sobre como os criados devem fazer para obter vantagens pessoais e de como não serem descobertos.

O grande mérito do livro é o de dar uma visão muito clara do trabalho e da vida doméstica na Irlanda do século XVIII. Toda aquela sujeira em que todos viviam… Montes de urinóis e de comida acondicionada sem geladeira. Muito curioso. Dá para sentir o cheiro daquela sociedade.

Literariamente, Swift demonstra enorme domínio da paródia. É um trabalho mais despreocupado do que a Modesta Proposta. Aqui, o autor nos lembra de seu passado como seu passado (real ou imaginário) como lacaio e dá grande inventividade à função nos atos de sacanear o patrão e seus convivas ou fornecedores. Mas  vai além da simples paródia ou sátira. Tudo vem recheado observações astutas sobre a natureza humana e preciosas observações sobre a vida no início do século XVIII, como já disse. Cada cínico ou malicioso conselho a cada tipo de servo — mordomo, cozinheira, tutora, governanta, lacaio, concheiro, são 16 as funções examinadas pelo livrinho — beira o absurdo e, ao fazê-lo, desconstrói e divertidamente revela o absurdo sistema social que a Inglaterra do século XVIII. Swift não chega a agradar aqueles que gostariam de vê-lo como um verdadeiro conservador ou um pretenso revolucionário, já que Instruções para os Criados não tem nenhuma ênfase pré-revolucionária sobre a injustiça do sistema aristocrático…

Swift não está preocupado com a reforma da sociedade, ele está ocupadíssimo zombando e denunciando as dificuldades da natureza humana. E nisso é muito melhor do que qualquer panfleto revolucionário.

Jonathan Swift, um tremendo gozador

Sim, eu digo sim, de Caetano W. Galindo

Sim, eu digo sim, de Caetano W. Galindo

O primeiro e fundamental acerto de Caetano Galindo é a escolha do tom de sua visita guiada ao Ulysses de Joyce. Conhecedor dos labirintos às vezes complicadíssimos do livro, ele é um visitante cuidadoso e humilde, que limpa os pés no tapete de entrada e senta-se formalmente na sala, só que sem nunca perder o bom humor. Ele pede tacitamente que nos comportemos da mesma forma, sempre dizendo que o tópico analisado pode significar isso ou aquilo, talvez aqueloutro ou ainda algo que nem imaginamos. Assim, logo ficamos sabendo que o pote servido ao lado do café pode conter sal e que o doce pode vir antes salgado.

Galindo não deseja explicar a obra máxima de Joyce de forma completa e taxativa — tarefa praticamente impossível –, mas faz algo melhor: abre um leque de possibilidades para quem leu ou lerá Ulysses. E faz isso brilhantemente. Sabe que não pode ser completo, repito, que não poderia ser exaustivo, mas explica MUITO. Bem humorado, lamenta as pessoas que vão abrir Sim, eu digo sim para se fazerem de entendidos em bares. Neste caso, “eu tenho que lhe dizer que você estará perdendo muita coisa. Muito livro”.

De acordo.

Há muito a discutir. Afinal, Joyce, com ironia típica, disse que a verdadeira chave para a imortalidade literária era manter os acadêmicos ocupados. E encheu seu livro de mistérios, alguns aparentemente inextricáveis. Galindo não engana e chega até a nos indicar onde muita gente boa desiste de lê-lo.

Após uma excelente introdução, ele nos pega pela mão e examina cada um dos 18 capítulos de Ulysses. Traça paralelos com a Odisseia de Homero e detalha muitíssima coisa. Eu garanto que saí da leitura desta obra com alguns centímetros a mais. O livro tem 375 páginas. Começa analisando o uso e abuso do discurso indireto livre, fato que me tonteou de verdade mais de uma vez, e vai adiante analisando a amizade de Bloom e Dedalus, a sexualidade de Leopold e Molly, a variação dos estilos narrativos, a presença de Boylan, os fatos ligados à forma de pensar e agir do início do século passado, os trechos favoritos de Joyce.

Galindo sabe muito e tem muito a dizer. Suas explicações e esclarecimentos fizeram um bem danado a este leitor das três traduções do Ulysses no Brasil. Sim, sua abordagem é fascinante. E assim vamos examinando o grande livro dedicado ao homem comum durante o dia 16 de junho de 1904. Os monstros e sereias de Homero vão sendo substituídos por elementos parodísticos geniais e tão habituais que os rastros do Odisseu ficam apagados. O leitor meio dedicado meio ignorante como eu vai se surpreendendo com a riqueza de detalhes insuspeitados do livro de Joyce. E passa a amar ainda mais o livro.

Para finalizar, garanto-vos que Galindo mostra e dá acesso a muita coisa, praticamente sem interpretar. Deixemos os “interpretaços” para os divãs, né?

Recomendo!

Caetano Galindo em foto pescada do Youtube

Neste sábado (11), a Ospa apresentará a Sinfonia Nº 10 de Shostakovich

Neste sábado (11), a Ospa apresentará a Sinfonia Nº 10 de Shostakovich

Eu tinha 16 anos e simplesmente precisava conhecer a Sinfonia Nº 10 de Shostakovich. Era o inverno de 1973. Shostakovich, imaginem, ainda estava vivo — ele faleceu em 1975. Então escrevi uma carta — sim, papel, selo, envelope, correio — para a Rádio da Universidade, dirigida ao programa Atendendo o Ouvinte. Duas semanas depois, pude ouvir a maravilha deitado em minha cama. Hoje é muito fácil ouvi-la.

Dmitri Shostakovich em 1953
Dmitri Shostakovich em 1953

Shostakovich foi provavelmente o único compositor nascido no século XX a desenvolver um tipo de sinfonia instantaneamente reconhecível, que poderia estar ao lado das de Beethoven, Mahler ou Sibelius. Embora cada uma das sinfonias de Shostakovich tenha suas características distintivas, elas compartilham muito uma com a outra. A maioria delas se baseia nos movimentos tradicionais, com scherzo, adagio, alegretto, etc. O que Shostakovich fez com essas categorias, no entanto, foi único. Seus scherzi, sombrios e sarcásticos, não são como quaisquer outros — haverá o exemplo em vídeo do scherzo da décima abaixo –, e seus movimentos de abertura, muitas vezes mais lentos do que o que se está acostumado, também são inconfundivelmente seus.

Sua Sinfonia Nº 10 é um monumento da arte contemporânea que contém música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tudo isso em esplêndidos quatro movimentos. Tem, ademais, uma história bastante particular. Stálin…

A Sinfonia Nº 10, Op. 93, foi estreada pela Orquestra Filarmônica de Leningrado sob regência Yevgeny Mravinsky em 17 de dezembro de 1953, após a morte de Joseph Stálin em março daquele ano. Não está claro quando foi escrita: de acordo com a composição das cartas do compositor foi entre julho e outubro de 1953, mas a extraordinária pianista e colaboradora Tatiana Nikolayeva declarou que foi concluída em 1951, quando o compositor estava proibido de estrear obras pelo regime soviético.

Em 1948, Shostakovich, Prokofiev, Khachaturian e outros notáveis compositores da URSS foram censurados por escrever o que os censores do partido chamavam de música “formalista”, uma palavra-código para dissonâncias e expressões de emoções negativas ou cinismo. Naturalmente, examinados contra tais padrões vagos, virtualmente qualquer composição estava vulnerável a ataques, e muitos trabalhos de Shostakovich foram criticados. A partir de 1948, a maioria dos compositores do país não tinha certeza do que era seguro escrever.

Como escrevi antes, em março de 1953, quando da morte de Stálin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram normalmente negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stálin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo. Sua oposição ao restante da obra faz-nos realmente pensar em alguma segunda intenção do compositor.

De qualquer forma, este movimento diabólico tem ecos de obras anteriores de Shostakovich, como a Sexta e Oitava Sinfonias e o Primeiro Concerto para Violino. É, de certo modo, o outro lado do primeiro movimento sério e trágico. Talvez precisemos dessa brincadeira grosseira, antes de seguirmos para um estado mental mais tranquilo.

Abaixo, este segundo movimento da Sinfonia com Andris Nelsons.

Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo pela primeira vez o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Ele é repetido várias vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stálin está morto, Shostakovich, não. Ou então que o compositor, orgulhoso, diz “Eu escrevo o que eu quero”.

Aqui, Shostakovich toca o tema DSCH ao piano de uma forma extravagante:

O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Dada a complexidade da Sinfonia e as terríveis experiências de Shostakovich com os críticos do Partido Comunista, é compreensível que o compositor não quisesse comentar sua 10ª Sinfonia em detalhes. Sua declaração para o Sovietskaia Muzyka foi absurdamente auto-depreciativa. Shostakovich, que com tanta frequência fora forçado a exercer autocrítica no passado, agora a levou a um ponto inacreditável: “Como meus outros trabalhos, escrevi isso muito rapidamente. Isso é provavelmente mais um defeito do que uma virtude, porque há muito que não pode ser bem feito quando se trabalha tão rápido”. O que essa afirmação estava tentando fazer era evitar os críticos em seu jogo sujo. Então, minimizou a importância do trabalho. Os críticos engoliram a isca e castigaram a peça apenas por ser “pessimista” e “individualista”. Porém… Os músicos e plateias, por outro lado, assumiram imediatamente a 10ª, tanto na União Soviética quanto no exterior. É uma de suas sinfonias mais frequentemente executadas. Uma compilação recente lista nada menos que 70 gravações.

A Sinfonia completa com o grande Bernard Haitink:

No próximo sábado, às 17h, a Ospa apresenta esta sinfonia na nova Casa da Música da Ospa.

O programa completo do concerto:

Gilberto SalvagniConcerto para Trompete e Orquestra 
Dmitri ShostakovichSinfonia nº 10

Solista: Tiago Linck (trompete – Brasil)
Maestro: Stefan Geiger (Alemanha)

Quando: 11 de maio de 2019 (sábado)
Local: Casa da Música da Ospa

Lavando louça com Ulysses

Lavando louça com Ulysses

Há dez minutos, bêbado, estava lavando louça e pensando nos motivos que levam à imortalidade do Ulysses, de Joyce. São tantos motivos que eles montam uns por cima dos outros, procurando ganhar importância. Acho que os 18 estilos de narração têm papel fundamental. Acho que o paralelismo com a Odisseia é lindo. O labirinto das referências nem se fala. Acho que o homem feminil Leopold Bloom, cujo comportamento causa até hoje tanta discussão — um homem sensível, que fazia café para a mulher com a qual não tinha mais relações sexuais, que se preocupava com os filhos, que não trepava com a mulher após a morte de Ruby, um dos filhos, que tolerava o amante em sua cama na sua ausência, isso em 1904 –, é um tipo fundamental, mas acho que as piadas grossas, os incríveis e coloridos trocadilhos, a falta de limite entre erotismo e pornografia é ainda mais central no livro. Por exemplo, na cena com Gerty em que ele se masturba na praia, embevecido pela beleza da moça, ela vê o que ele faz (sem problemas), ele ejacula nas calças (OK), mas Joyce vai além: Bloom caminha, a coisa seca, gruda. o prepúcio fica fora do lugar, ele precisa ajeitar as coisas no púbis. Também quando Molly — à noite, sempre à noite, antes de dormir, como as mulheres gostam — faz uma DR em silêncio, num furioso fluxo de consciência, o autor não recua, usa todos os termos e diz o que até hoje evitamos. Esta é uma das razões pelas quais todos nós dizemos “sim, eu digo sim” à Ulysses. Tem muito Freud e sexo em Ulysses. Não é um livro conservador. Ele é absolutamente aberto e franco. E o mundo não evoluiu suficientemente para absorvê-lo. Enquanto não o fizer, ele estará pulando, vivo, na nossa frente.

(Só evitem a tradução do Houaiss, OK?)

Joyce e o neto Stephen em 1932

Defeitos e perguntas em manhã preguiçosa

Defeitos e perguntas em manhã preguiçosa

Li sobre a existência de romances, novelas e contos com as sinopses numeradas abaixo. Nunca as li. Soube delas através do ensaio Comicidade e Riso, de Vladimir Propp. Não é um bom livro, porém, para mim, é quase impossível não ficar fantasiando sobre os temas, mesmo de descrições tão curtas. Certamente, mais um defeito de fábrica.

1. A relação da senhora simplesmente agradável com a senhora agradável sob todos os aspectos.

2. A secretária que descreve diferentes pratos com tamanho apetite que ninguém consegue trabalhar.

3. Para enganar seus credores, declara-se insolvente. Passa seus bens para o nome do genro. Então, o genro vira-lhe as costas, deixa-o ir preso e usufrui de pequena fortuna.

4. O marido, brincando, diz à mulher e à sogra que ganhou na loteria. Ele lamenta a brincadeira, mas bem depressa a mulher, a sogra e outros parentes demonstram tamanha cobiça que ele os observa, desconhecendo-os.

Não obstante as interessantes sinopses e suas possibilidades cômicas, tão importantes para Propp, o que me interessa é que a ficção, ao expandir tais argumentos, procurará representar a realidade, acabando por ultrapassá-la e tornando-se também realidade. Será a verdade ficcional uma mentira? Sim, mas não é ela quem mais se aproxima da verdade? E, quando lida, a história ainda é do autor ou é do leitor que se apropria e reinterpreta aquela realidade? Quando lemos Lucien de Rubempré fazendo seus cálculos contábeis, ainda somos nós mesmos? E por que temos a necessidade de ler ficção? Seja Joyce, novelas na TV ou de ler romances românticos de bancas de revistas?

Mais: vocês, meus sete leitores, acreditam em alguma coisa do que escrevo aqui? Ou são só simpáticos e aceitam a convenção mesmo sem acreditar?

Angela Hewitt disse:

Angela Hewitt disse:

“Você passa a poder fazer quatro ou cinco coisas ao mesmo tempo, porque é isso que você está fazendo quando está tocando Bach”, diz Hewitt. “Isso lhe dá uma incrível memória, porque memorizar Bach é a coisa mais difícil que você pode fazer. Dá disciplina para sua vida cotidiana, pensamento e clareza. E também uma grande sensação de conforto e alegria e apreciação do belo”.

Retirado daqui.

Bom dia, Odair (com os principais lances de Inter 2 x 1 Flamengo)

Bom dia, Odair (com os principais lances de Inter 2 x 1 Flamengo)

Que grande jogo foi Inter 2 x 1 Flamengo! Mas não dá para recuar contra eles, que têm um ataque poderoso. Esse negócio de ficar só contra-atacando não funciona quando o adversário é Flamengo, River, Palmeiras, etc.

Quando o jogo começava, novamente me veio aquela sensação estranha — afinal, havia um árbitro tranquilo que comandava e fazia tudo conforme o habitual. Não adianta, o Campeonato Gaúcho é uma VÁRZEA, com seus juízes burros, formatados e atrapalhados demais.

Fizemos um grande primeiro tempo. Disse que D`Alessandro deveria entrar somente durante o jogo, mas ele me fez engolir a opinião. Jogando sem preocupações com marcação — deixando a função para os mais jovens Nico e Patrick –, Dale fez muito boa partida. Na verdade, o esquema mudou. Dourado e Edenílson ficaram protegendo a zaga, enquanto Nico, Dale (pelo meio) e Patrick formaram uma linha mais à frente.

Foi num cruzamento perfeito dele que Guerrero fez nosso primeiro gol aos 5 min e, puxa, poderíamos ter ampliado o placar. Na verdade deveríamos, considerando a história do jogo. Perdemos gols com Dale e um incrível com Nico López após lançamento de Iago.

Para variar, Odair resolver iniciar o segundo tempo acadelado, no velho esquemão reativo. Claro que o Flamengo nos empurrou para trás, mas não tínhamos nenhum contra-ataque e parecíamos conformados com o 1 x 0.

E tomamos o gol de empate.

E então Odair acertou duplamente. Trocou o já cansado Dale por Sarrafiore e Patrick, de péssima partida, por Parede. E voltamos a pressionar até Sarrafiore marcar um golaço.

Se Moledo foi o melhor em campo, foi Sarrafiore quem decidiu o jogo | Foto: Ricardo Duarte / SC Internacional

Logo depois do gol, lembrei que Camilo jogou o Gre-Nal do Gaúcho com o Sarrafiore no banco. Ah, Odair.

Os destaques da partida foram a zaga do Inter. A dupla esteve sensacional, com Moledo jogando muito. Zeca foi bem. Dale, Guerrero, Sarrafiore, Nico e Parede também. Quem esteve mal? Só Patrick.

Com a vitória, somamos nossos primeiros três pontos no campeonato, subindo para a 12ª posição da tabela. Cabe destaque também para o grande público presente. Ao todo, mais de 40 mil pessoas tomaram as arquibancadas do Beira-Rio. Sábado, teremos uma baita pedreira: o Palmeiras, às 19h, em São Paulo.

E a vida segue.

No vídeo abaixo, os melhores lances começam aos 17 segundos.