2018

2018

Acho que 2018 foi um mau ano para quase todos nós. Porém, para mim, foi principalmente o ano de uma grande virada que vai dando certo até agora. Nos primeiros dois meses do ano, eu estava trabalhando como jornalista e gostava do que fazia, mas… Lembro bem que no final em dezembro de 2017 fui até a Bamboletras, claro, a fim de comprar presentes para uma amiga que faz aniversário em 1º de janeiro. Nada me faria crer que, dois meses depois, estaria comprando a livraria.

Foto: Bárbara Jardim Ribeiro

Pois é, quase que por brincadeira, disse para a dona e fundadora da Bambô que queria comprar aquela maravilha.  A bravata foi ouvida com inesperada seriedade, pois a Lu Vilella não somente queria vendê-la, mas desejava que a livraria seguisse nas mãos de um amante de livros. O fato é que em março já estava administrando a Bamboletras, sempre com receio de não atrapalhar o que andava bem.

Todos dizem que mantivemos a alta qualidade do acervo e o bom atendimento, mas digo a vocês que era inevitável que ganhássemos aos poucos uma nova cara. Não sei se melhor ou pior, mas é um jeito diferente. Foi um início bem nervoso. Passamos por uma baita crise no setor livreiro. A agonia das grandes prejudicou a todos. Não é fácil ver chegar todos os dias e-mails com ofertas de descontos de quem, se sabia, não pagava suas contas. E a gente pagando tudo direitinho, em dia. E dando um jeito de sobreviver só na base da qualidade. Parecia que lutávamos armados de lápis que quebravam contra a pele de dinossauros doentes, mas muito perigosos.

Foto: Luiza Prado / Jornal do Comércio

No final do ano a coisa melhorou, o que nos dá esperanças de um 2019 mais tranquilo. Mais tranquilo? Bem, aí vem Bolsonaro e realmente não consigo prever nada.

A vida pessoal? Meus dois filhos se formaram. A Bárbara aqui, o Bernardo na Alemanha. Estão na luta por emprego, ele lá como estrangeiro, ela aqui enfrentando nossos caminhos tortuosos, muitas vezes fechados.

Eu e Elena seguimos bem. Todas as questões dos primeiros parágrafos tiveram o acompanhamento carinhoso dela, com muitas discussões frutíferas e excelentes sugestões. Ela é minha boa companheira. Tenho muita sorte. Às vezes fico pensando bobagens como a que segue: nasci e vivo em Porto Alegre, ela nasceu anos depois e a 12.172 Km de distância em linha reta, contornando, é claro, a superfície curva da Terra. (Diferentemente dos terraplanistas, assumo uma Terra de formato esferoide oblato, tá?). Como fui encontrá-la? Bem, é claro que sei responder, mas a rota é por demais surpreendente. Muita sorte. Nunca amei tanto alguém que não tivesse parentesco direto comigo. É óbvio que tudo o que faço é para ela.

Foto: Luiza Prado / Jornal do Comércio

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Amós Oz (1939-2018)

Amós Oz (1939-2018)

Por Heitor Lima (*)

É com profunda tristeza que anuncio a morte do grande escritor e pacifista Amós Oz. Morreu aos 79 anos em decorrência de um câncer, segundo sua filha Fania Oz-Salzberger.

A literatura faz parte da humanidade. Oz foi um inesgotável ser humano. A despeito de qualquer silogismo, os dois são signos eternos da vida, do esforço em representar o que há por baixo da realidade — da qual o olho desatento é presa de fácil captura. Impossível falar de Oz sem colocá-lo ao lado da alta literatura: escrevo sobre um homem que não poderia se separar de seus livros nem sob o conluio do tempo e da morte.

Nasceu Amos Klausner, mudando posteriormente para Oz (palavra hebraica que significa “coragem”). Filho de judeus poloneses que fugiram de Odessa, na Ucrânia, passando pela Lituânia e chegando ao Mandato Britânico da Palestina no ano de 1933. Nasceu em 1939 numa “pátria incompleta”, antiga promessa de uma real pátria judaica. Açoitado pelo medo constante dos árabes enfurecidos, dos britânicos armados até os dentes, Oz cresceu como um “pequeno fanático”, como retrata na maravilhosa novela autobiográfica Pantera no Porão e na sua autobiografia, e assim permanece durante boa parte da infância, sob pressão das grandes dificuldades ideológicas e existenciais. Com o tempo percebe que, antes das nossas grandes diferenças existe a nossa unidade evidente: o espetáculo da humanidade. Seus laivos ideológicos tendenciosos se dissolvem enquanto brota a semente da subversão ao preconceito, da compreensão, do amor genuíno. Em seu livro Como curar um fanático admite que todos temos um aspecto de fanatismo no que somos. Porém cabe a nós mesmos identificá-lo e, até onde for possível, enfraquecê-lo. Isso é, segundo Oz, um exercício de compreensão mútua.

Em todos nós há o locus da maldade, crueldade e do egoísmo. Mas há também uma bondade genuína, uma capacidade de raciocínio amplo e inclusivo, uma força modificadora persistente.

Foi um dos fundadores e maior representante do movimento israelense Paz Agora e o escritor mais influente de seu país. Israel aparece em boa parte de seus romances como núcleo gerador. Tel Aviv é como a respiração do desenvolvimento e da velocidade. Mas é no kibutz, o embrião de uma sociedade democrática, que sua obra aponta o esforço da reconstrução da humanidade, partindo de um ponto de vista de respeito, convivência e união.

Oz tinha uma particular posição quanto a guerra entre Israel e Palestina: “É um choque entre o certo e o certo”, diz ele. Para o escritor, a única possibilidade de reconciliação está em abrir mão, ceder um pouco do que é de seu de direito, estar aberto a abraçar a sua dor e a dos outros. Está em sofrer uma perda: mais uma ferida no orgulho de um povo para alcançar uma relação pacífica. O registro em sua obra do microcosmos do kibutz (já que residiu em um, dando aulas, participando de suas demandas e relações) e suas considerações e posições sobre os problemas da guerra (já que lutou na guerra dos seis dias e na guerra do Yom-Kippur) estão sempre no caminho da compreensão, da capacidade de dar e receber, de sofrer e crescer.

Em “O mesmo mar”, um de seus romances mais experimentais, ele escreve o seguinte poema em prosa:

A duas vozes

Por trás do primeiro regato talvez se esconda um segundo.
Por causa da corrente impetuosa desse riacho, o primeiro,
quase não se pode ouvir o murmúrio
do segundo, o oculto. Rico está sentado numa pedra. Quem sabe
só se pode ouvir no escuro? Rico se dispõe a esperar.

Há em Rico, um personagem que vaga sozinho pelos ermos do Tibete para buscar sua paz interior, uma angústia pela morte da mãe, uma dor que o obriga a sair do tumulto. Assim como há também uma angústia em Ionatan Lifschitz do romance Uma certa paz, que deseja, na verdade, sair de uma estagnação interior e um excesso de paz enquanto mora num kibutz. Angústia tão grande que ele decide partir de fato e deixar seu pai, sua companheira e a lembrança da filha que morreu. Para Oz o ser humano não é simples e imutável. É uma existência dinâmica e complexa, repleta de contradições e anseios. A obra do israelense nos diz que a nossa unidade está na imensa capacidade de mudar, de transformar e ser transformado. Não é por acaso que Tchékhov e seus dramas essencialmente humanos sempre foram uma paixão dele. Em Judas há uma desilusão com a própria vida, uma subversão de antigas crenças, um amor quase físico pelo nada, mas há uma posterior reconstrução e uma renovação da dúvida, força geradora do nosso crescimento. Nas seguintes e últimas linhas do romance:

Schmuel continuou ali em pé, no meio da rua deserta. Baixou do ombro o kitbag, depositou-o no asfalto empoeirado. Com cuidado, pôs o casaco sobre o kitbag, e também a bengala e o chapéu. E perguntou a si mesmo.”

E perguntou a si mesmo”. Esta última frase vem depois de um ponto final, quase como se estivesse condensada em si mesma mas, na verdade, sendo a condensação do próprio romance, da humanidade pulsante que permeia a obra inteira. A vida perde uma de suas maiores joias. Mas Amós Oz é e sempre será uma força vital e literária que vibra e reverbera dentro de cada um de seus leitores, amigos, alunos e família.

.oOo.

(*) Heitor Lima é um amigo de Fortaleza, estudante de psicologia e apaixonado por literatura.

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Um bebum rumo à aposentadoria

Um bebum rumo à aposentadoria

Sempre fui um bebedor de segunda divisão, mas capaz de alcançar sem dificuldades os grandes campeões em épocas de festas como o Natal, Ano Novo, Carnaval e dias especiais. Hoje, aos 61, fazer isso significa um dia seguinte inteiramente inútil, de ressaca, sentindo-me realmente mal. Há que beber com moderação.

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Livros

Livros

Em vários aspectos, os livros são curiosos. Eles nos trazem cultura, tranquilidade e clareza de pensamento, ao mesmo tempo que nos dão uma noção cada vez mais exata de nossa imensa ignorância. Acho que qualquer bom leitor torna-se uma pessoa humilde, mas feliz.

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Feliz Natal!

Feliz Natal!
Foto: Karin Rosenthal

Feliz Natal a todos. Que o rango seja farto (e gostoso), que as chatices familiares sejam mínimas e tudo ocorra com prazer e paz. Ah, e por favor, não dirijam alcoolizados. Utilizem serviços como o Uber ou aquele parente abstêmio.

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Atrás do balcão da Bamboletras (IX)

Atrás do balcão da Bamboletras (IX)

Uma verdadeira história de Natal

Neste domingo, chegou um rapaz aqui no balcão, disse que administrava alguns bares e queria comprar livros para todos os funcionários. Mas ele não desejava um balde de livros qualquer e sim escolhê-los um a um, conforme a personalidade de cada presenteado. Funcionou assim: ele falava um pouco de cada um, nós indicávamos de acordo com o perfil e ele conferia para ver se realmente se encaixava. Algo apenas possível numa livraria onde quem atende conhece o que vende. Foram 16 livros para toda a equipe, do porteiro ao gerente.

Ah, se todos fossem iguais a ele! Talvez o país fosse um pouquinho diferente, né?

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Querem ver o alto nível da coisa? Abaixo, os livros escolhidos:

— O tribunal da quinta-feira – Michel Laub
— Um útero é do tamanho de um punho – Angélica Freitas
— O papel de parede amarelo – Charlotte Perkins Gilman
— Um teto todo seu – Virginia Woolf
— O velho e o mar – Ernest Hemingway
— Outros jeitos de usar a boca – Rupi Kaur
— Novas contistas da literatura brasileira
— Fahrenheit 451 – Ray Bradbury
— Liga da canela preta – José Antônio dos Santos
— O fuzil da caça – Yasushi Inoue
— Na minha pele – Lázaro Ramos
— Flor de açafrão – Guacira Lopes Louro
— Belchior: apenas um rapaz latino-americano – Jotabê Medeiros
— Uma ovelha negra no poder – Andres Danza
— Sobrevivendo no inferno – Racionais MC’s
— A máquina de fazer espanhóis – Valter Hugo Mãe

(*) Quem comprou os livros foi o proprietário do Agulha e do Vasco 1020.

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Atrás do balcão da Bamboletras (VIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (VIII)

Chega um rapaz de barba, bem apessoado, diz que é leitor do blog de Milton Ribeiro e pergunta:

— Tenho uma amiga que estuda o luto. Preciso dar um presente pra ela. Vocês teriam um livro que fale a respeito?

Dei uma revisada na minha cabeça e lembrei.

— Temos “A Morte do Pai”, de Karl Ove Knausgård. A primeira metade do livro é sobre a adolescência do autor no interior da Noruega, já a segunda — umas 200 páginas — é sobre a morte do pai dele que está referida no título.

Os olhos dele, inteligentes como os de todo leitor de Milton Ribeiro, pedem mais informação.

— Esse pai tinha passado dois ou três anos bebendo pesado e, durante este período, jamais limpara nada na casa em que morava. Tudo estava emporcalhado, cheio de garrafas sujas, TUDO estava absolutamente inabitável, nem falemos do banheiro… Mas o autor e seu irmão encasquetaram de fazer o velório ali mesmo e começaram a limpar tudo. Eu disse tudo. Até entre os azulejos. Tudo. Só os dois. E as lembranças vêm. E o autor tem crises de choro. Enfim… É um trabalho de luto.

— Está bem, vou levar.

Ele, que já tinha escolhido mais uns 5 livros, faz a compra e sai da Livraria Bamboletras.

Passa 3 minutos e ele retorna.

— Quero um pra mim também. Gostei da história.

Agora só sobrou um exemplar, mas vamos pedir mais, imagina se não.

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Anotações sobre Mozart provocadas pelo filme Amadeus

Anotações sobre Mozart provocadas pelo filme Amadeus

O personagem principal de Amadeus (1984), de Milos Forman, é Antonio Salieri. É ele quem conta a história. Mas a figura estrelar é a de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), um moleque de enorme gênio e risada contagiante, muito sedutor no início do filme e dramático no final. O roteiro é baseado na peça homônima de Peter Shaffer, livremente inspirada nas vidas dos compositores Mozart e Salieri, que viveram em Viena na segunda metade do século XVIII. Amadeus foi indicado para 53 prêmios e recebeu 40, incluindo oito Oscars (entre eles o de melhor filme e o de melhor ator principal para F. Murray Abraham, no papel de Salieri).

Revi o filme há dois dias. Obviamente, ele não é rigorosamente biográfico. O roteiro é esplêndido ao amarrar a realidade e as lendas que se formaram nestes mais de 200 anos, acrescentando mais alguma coisa às últimas.

Como tenho que preparar uma pequena palestra na APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre) sobre o filme e penso que minha parte seja mais a da história da música, escrevi (ou montei) o texto abaixo, utilizando muito a História da Música Ocidental de Jean e Brigitte Massin e outras informações esparsas. Divirtam-se.

O ambiente infantil

Há uma cena na qual Mozart, quando criança, toca piano ou cravo de olhos vendados, lembram? De Gottlieb para Amadeus.

A vida de Mozart começou como um conto de fadas. Era um lindo menino emotivo, terno, dócil e espontâneo. Queria aprender tudo — como, por exemplo, matemática. Nasceu numa família unida: brincava bastante com Nannerl, a irmã mais velha e muito musical, e tinha como professor o notável pedagogo que era seu pai Leopold. (Leopold é, inclusive, autor de um Tratado sobre como tocar violino que é um clássico até hoje). E então aconteceu o milagre: aos seis anos, a criança revelou que poderia tornar-se um músico superdotado. Tocava cravo com grande habilidade, compunha promissoras pecinhas, mas, sobretudo, compreendia como a música se processava. Ou seja, assimilou rapidamente suas técnicas e estilos.

A família prestou mais atenção no virtuose do que no compositor. E papai Leopold largou tudo, dedicando-se exclusivamente a ensinar e a explorar o fenômeno. Dali por diante, entre 1762 e 1768, dos seis aos doze anos de Wolfgang, Leopold levou seu filho e irmã para exibições em toda a Europa. Salzburgo era apenas porto seguro onde, entre um sucesso e outro, eles vinham refazer suas forças.

Munique, Viena, Bruxelas, Paris, Londres, Haia, Paris, Zurique, Viena, as cortes e os soberanos, os diletantes e os curiosos maravilhavam-se diante do pequeno milagre. Para que mais patente ficasse o virtuosismo de Wolfgang, faziam-no executar proezas do tipo das que se exige de um cachorro amestrado, como tocar por cima de um pano que cobria o teclado ou de olhos vendados. O menino — afagado, presenteado e recompensado financeiramente — era a grande estrela. Ele literalmente sentava no colo de duquesas e príncipes e causava admiração por ter conservado sua humildade, simpatia e simplicidade. Mais proveitosas do que estas apresentações circenses, foram as relações travadas com compositores. Um deles iria marcar por muito tempo o estilo mozartiano: Johann Christian Bach, um dos filhos do homem.

Sua produção como criança e adolescente demonstram domínio da linguagem musical, mas ainda não aparecia a futura genialidade.

Durante todo o ano de 1769, Leopold e Wolfgang permaneceram em Salzburgo: o adolescente de treze anos foi nomeado Konzertmeister do arcebispo. Permaneceu no cargo por 12 anos, até 1781. Mas, entre 1770 e 1773, o jovem Mozart fez três viagens à Itália, com estadas mais longas em Verona, Florença, Nápoles, Bolonha, Veneza e Milão. E tome soberanos: o papa nomeou-o cavaleiro da Espora de Ouro; em Bolonha, o padre Martini, ilustre erudito, iniciou-o nos estilos da música antiga e fez com que Mozart fosse aceito como membro da Academia Filarmônica. Mozart tinha 14 anos e esta foi a última alta distinção que recebeu na vida. Mas, nessas viagens, recebeu da música e da vida italianas muito mais que lições de contraponto: aprendeu novos contornos melódicos e uma nova vivacidade, jamais sobrecarregada.

Pensando melhor, talvez o maior ensinamento que Mozart recebeu da Itália foi a revelação de si mesmo, tanto assim que italianizou o último de seus prenomes, Gottlieb (em latim, Theo-philus), para Amadeo ou Amadeus.

A autonomia

No filme, ele aparece adulto e livre de qualquer emprego regular. Isso não era muito comum na época

Sua maior aspiração era a de libertar-se da semi-escravidão na qual a maioria dos músicos da época se encontrava. Todos trabalhavam para as cortes ou igrejas. Em 1781, Mozart fez aquilo que depois foi chamado de “o 14 de julho dos músicos”. Ele passava uma temporada em Viena dando concertos e recebeu uma notificação do arcebispo com ordens para retornar imediatamente a Salzburgo, ficando proibido de, no futuro, dar concertos sem autorização expressa. Mozart desobedeceu, consciente do que fazia. Licenciou-se do cargo por sua própria conta e risco. Na tentativa de “convencê-lo” a retornar, um dos funcionários do arcebispo chegou a dar-lhe um pontapé.

Me disseram que eu era o patife mais devasso que já servira à igreja, que ninguém nunca tinha servido tão mal ao arcebispo, que me aconselhava a partir hoje mesmo, senão ia escrever para Salzburgo mandando cortar meus vencimentos… Chamou-me de mendigo, de piolhento, de cretino… Não quero mais saber de Salzburgo, odeio o arcebispo até a loucura. Lá em Salzburgo, ele é o senhor. Mas aqui não passa de um idiota, como eu sou aos olhos dele… Acredite-me, caríssimo pai, preciso de toda minha força viril para lhe escrever aquilo que manda a razão… Mas mesmo que eu tenha de mendigar, não vou querer mais, de forma alguma, estar a serviço de tal patrão.

Mozart desejava ser um músico independente em Viena e passou assim seus dez últimos anos de vida. Teve dias de glória, especialmente como virtuose do piano, mas conheceu também a amarga experiência dos imprevistos associados à “liberdade do artista”. Como compositor, teve admiradores, inclusive nas classes dirigentes. Só que depois de 1785, começaram os fracassos. Eles se iniciaram com os seis quartetos de cordas dedicados a Haydn. O fracasso não ocorreu junto ao homenageado, um dos raros que imediatamente souberam dar valor às composições, mas junto ao público de Viena que antes o amava.

“Música que nos faz tapar os ouvidos”, tal foi o julgamento. O hoje célebre quarteto “As Dissonâncias” (K. 465) continha, é claro, algumas dissonâncias em seu início. Quando o editor Artaria, depois de os haver publicado, enviou-os à Itália, os seis quartetos de Mozart foram logo devolvidos porque havia erros de impressão. Os erros eram simplesmente os acordes inusitados escritos por Mozart.

(Quando mostraram o Quarteto das Dissonâncias para Haydn, ele disse que era um equívoco, que aquilo não podia ser. Então, lhe disseram: “Mas é de Mozart”. E o velho respondeu: “Bem, neste caso, trata-se de um erro de minha parte. Eu é que não entendi.”).

Porém, para explicar o fracasso de Mozart em Viena, há que se levar em conta outros fatores que não apenas a originalidade e as “dificuldades” de sua música. Temos que mencionar seu pouco tino para negócios, e sobretudo dizer que, se Mozart houvesse vivido mais tempo, teria visto melhorar sua situação material e assistido a uma verdadeira revanche artística. Sim, a revanche veio de forma fulgurante logo após sua morte.

Apesar de tudo isso, o que permaneceu para a história foi o desencontro de Mozart com a sociedade vienense dos anos 1780.

Disso dá testemunho o que sucedeu com Haydn. Também ele conquistou sua autonomia, mas por outros meios e com outros resultados.

Casamento e angústias

A ideia, passada pelo filme, de que ele foi uma eterna criança

Ganhando bem a vida, requisitado e aplaudido pelo público vienense, saudado pelo genial Haydn, Mozart julgava-se um homem realizado no início da década de 1780. Ele casou em 1782 com Constanze Weber. Foi um casamento um tanto pressionado pela mamãe Weber. O casal se entendia bem, mas sabe-se que Mozart não era um exemplo de fidelidade. Em 1784, houve Theresa von Trattner, para quem ele escreveu a Sonata em dó menor precedida pela Fantasia em dó menor. Dois anos depois, apareceu a cantora Nancy Storace (a Susanna de As Bodas de Fígaro), para quem escreveu a admirável ária de concerto Ch’io mi scordi di te? [Que eu me esqueça de ti?] antes de ela partir de Viena.

Mozart era dúbio em muitas atitudes. Promovia a frivolidade em seu ambiente, mas dizia estar cansado da mesma. Queria ir mais longe com sua música, ignorando o ambiente musical de Viena, mas não saía da cidade. E reclamava:

Sinto uma espécie de vazio que me faz muito mal, uma certa aspiração que nunca se satisfaz e que por isso constante, dura sempre e que a cada dia cresce mais.

É significativo que os testemunhos deixados sobre Mozart por certas pessoas que lhe eram próximas insistam em traços de caráter e comportamento que condizem mais com a insatisfação do que a graça e a tranquilidade. “Ele estava sempre de bom humor, mas também muito absorto”, escreveu sua cunhada Sofia Haibel, prosseguindo: “Até quando lavava as mãos de manhã, ele ficava de lá para cá no quarto, nunca parecendo tranquilo e sempre pensativo.” Seu cunhado escreveu:

“Ele falava passando de uma coisa a outra, fazendo brincadeiras de todo tipo; descuidava-se na maneira de vestir. Parecia gostar de ver suas grandes ideias musicais contrastadas com as vulgaridades da vida cotidiana, fazendo ironias consigo mesmo.”

Esta angústia íntima pouco corresponde à lenda do menino eterno, que continuam sendo alimentadas por alguns. No entanto, quando se ouve certa música de Mozart é dessa “angústia íntima” que se é levado a lembrar.

Decadência

O gosto musical de Viena, a resposta para José II, Don Giovanni, as três sinfonias, a pobreza e o azar

Mesmo contando com a oposição do público de Viena, Mozart seguiu audaciosamente escrevendo suas obras exatamente como tinha vontade de as compor, sem preocupar-se muito com as conveniências e os hábitos do público.

O preço desta liberdade era previsível: Mozart deixou de ser o homem da moda em Viena. Os colegas e os críticos começaram a ter atitudes reticentes ou de desaprovação que foram se acentuando e dando o tom para um público que já não mais ia assistir aos concertos do compositor-virtuose. As preocupações com dinheiro apareceram. As Bodas de Fígaro nada rendem: em Paris, foi um grande escândalo, mesmo que as tiradas mais acerbas houvessem sido excluídas do libreto. Em Viena, foi um choque. Já por ocasião da representação de O Rapto do Serralho, José II — Imperador Romano-Germânico e Arquiduque da Áustria — observara: “Notas demais, meu caro Mozart.” Ao que respondeu o autor: “Nenhuma mais, Majestade, todas são necessárias” — frase que nunca sairia da boca de um cortesão experiente.

Porém no final de 1787, aconteceram dois meses marcados pelo estrondoso sucesso de Don Giovanni. Só que o fato ocorreu em Praga. Montado em Viena no ano seguinte, Don Giovanni só deu prejuízo. José II assim se expressou a respeito: “Isto não é prato para os meus vienenses.” Para Viena, Mozart, aos 32 anos, era um homem acabado, um antigo menino prodígio decadente e sem serventia.

As preocupações com dinheiro dão lugar à miséria. As dívidas e os pedidos de empréstimo a agiotas se multiplicam. Wolfgang e Constanze mudam-se constantemente e adoecem seguidas vezes. Tinham altos gastos com médicos e os filhos morriam — tiveram seis, mas apenas dois meninos sobreviveram –, tudo gerava despesas. Uma série de bilhetes suplicantes escritos pelo compositor dão testemunho de indigência.

Entre junho e agosto de 1788, com vistas a um grande concerto que esperava dar, Mozart escreveu a trilogia de suas mais belas sinfonias: as três últimas. Como poucos ingressos foram vendidos, não houve o concerto, pois daria prejuízo. No ano seguinte, a mesma coisa. Sem encomendas, a produção diminuiu.

Na primavera de 1789, aproveitando um dinheiro emprestado, Mozart fez uma viagem exploratória: Praga, Dresden, Leipzig, Berlim. Voltou de bolsos vazios, sem muitas encomendas, nem esperança de melhora, mas entusiasmado com a descoberta que fizera em Leipzig. Tivera contato com alguns Motetos, ainda inéditos, de Johann Sebastian Bach. Somente Joseph Haydn continuava a proclamar sua admiração por Mozart, “este ser único”.

No outono de 1789, o imperador José II — que, embora com reservas, ainda apreciava Mozart — encomendou-lhe uma ópera, escolhendo ele mesmo o tema para evitar escândalos e intrigas: Così fan tutte. A primeira representação da ópera foi bem sucedida, mas o imperador morreu alguns dias depois e o luto da corte suspendeu as apresentações.

AMADEUS, Tom Hulce, 1984, ©Orion /

Morte

A virada que chegou tarde, o Réquiem para o Conde von Walsegg, assistindo a Flauta Mágica

No começo de março de 1791, Emanuel Schikaneder, um velho conhecido que se tornara diretor de um pequeno teatro de um bairro popular de Viena, encomendou a Mozart outra ópera. Ele teria parte da bilheteria, nada de dinheiro adiantado. A Flauta Mágica foi escrita praticamente a seis mãos. Mozart, o diretor Schikaneder e Ignaz von Born, o líder mais eminente e progressista da franco-maçonaria vienense. O texto era formado por duas histórias entrelaçadas: um conto de fadas propício ao grande espetáculo feérico e popular, e uma viagem simbólica que leva à busca de si mesmo e à descoberta da sabedoria. Tudo isso fora dos grandes teatros.

A agitação de tanta atividade, o desgaste causado pelas privações e pelas angústias da miséria, a moléstia fatal talvez já em andamento (existe hoje o consenso de que se tratava de uma infecção renal), tudo isto minou as forças de Mozart, que começou a dar mostras de dificuldades para trabalhar. Mesmo assim, foi em frente. Na mesma época, havia a encomenda de um Réquiem, que deixou inacabado, e de outra ópera para Praga, A Clemência de Tito, a qual foi escrita a toda pressa, tendo passado a um aluno a parte dos recitativos.

Meses antes de Mozart morrer, teve lugar a estreia de A Flauta Mágica no pequeno teatro de Schikaneder. O cartaz mencionava em letras garrafais o nome do dono do teatro e, mais abaixo, em formato pequeno: “A música é do Sr. Mozart” — aquele Mozart que já fora a moda de toda Viena. O sucesso foi imediato, avassalador, contínuo. A cada dia o entusiasmo crescia. Viena inteira deslocou-se ao teatro de Schikaneder. As ofertas e as encomendas agora iriam chegar — tarde demais.

Uma lenda que por muito tempo persistiu, surgida logo depois da morte de Mozart, quer mostrá-lo vivendo na angústia obsessiva da morte que se avizinhava e obcecado pela ideia de estar compondo um Réquiem para si mesmo, após ter recebido a encomenda de um misterioso desconhecido no mês de julho. Nada deveria subsistir desta lenda — já posta em dúvida por mais de um biógrafo — depois de se ter recentemente encontrado o texto de um contrato entre Mozart e um certo Conde von Walsegg zu Stuppach que nada tinha de misterioso. De fato, as cartas de Mozart do mês de outubro, apesar do estado de extrema fadiga em que ele já se encontrava, deixam por vezes transparecer uma animação quase burlesca. Nessas cartas, Mozart fala muito das representações de Die Zauberflõte, do Concerto para Clarinete, que estava concluindo, e do enorme trabalho que passava para finalizar o Réquiem.

Entregue às alegrias do triunfo que se afirmava com toda evidência, Mozart viveu mais seis semanas escrevendo música de alta qualidade, embora seu estado de saúde só piorasse. Depois, passou um mês de cama e, em dezembro de 1791 morreu.

Nos últimos dias fora da cama, dedicou todas as suas noites para assistir A Flauta Mágica. Ele acompanhava, compasso por compasso, o desenrolar da representação no teatro. Ali, Tamino e Pamina cantavam: “Pela força da música, felizes, avançaremos pela tenebrosa noite da morte.”

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E Salieri? Ele não atentou contra a vida de Mozart como certas narrativas dizem? Não o envenenou? Não comprou um Réquiem? Não foi um vilão? Não foi sequer invejoso? OK, talvez possamos admitir a última característica. Qual compositor não invejaria tal talento? O fato é que ele sofreu uma tremenda sacanagem póstuma. E foi um bom compositor. Não era genial mas era bastante bom, nada autônomo, feliz com seu empreguinho na Corte de José II.

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Buscando uma pizza na Fermentô e o retorno para casa

Buscando uma pizza na Fermentô e o retorno para casa

Eu fui comprar uma pizza na Fermentô Pizzaria e aconteceu uma coisa admirável. Estava todo mundo naquele azáfama (está na hora de recuperar esta bela palavra), naquela correria louca de pegar ingredientes, montar as pizzas, colocá-las no forno, de empilhar as pizzas sobre o forno até que fossem buscadas quando, subitamente, começou a tocar Whole Lotta Love. Estavam todos de costas para o caixa, onde eu estava, menos a moça que trabalhou no Bonobo e que estava de frente. Quando Jimmy Page atacou o riff e Bonham ligou o motor, todas as bundas começaram a se mexer da mesma forma, em perfeita sincronia, menos a menina do Bonobo, que mexia os ombros. Era lindo, parecia que eu tinha entrado num musical. Até que um dos caixas pediu para baixar o som, porque aquilo o atrapalhava para conversar com os clientes no Whats. Hã???? Sim, ele conversava por escrito! Pois é, o cara acabou com nossa alegria. Mas tudo bem, todo mundo lá é legal, só que me deu vontade de dizer que um protetor auricular custa menos de R$ 5 em qualquer boa ferragem. E funciona até se ligarem uma britadeira.

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Aí eu chamei um Uber e entrei no carro com duas pizzas.

— Seu Milton…
— Sim?
— São 20h e meu almoço foram umas fritas com Coca-Cola.
— E este cheiro está te matando.
— Sim. Tem uma de alho e óleo aí.
— Tem.
— Sabe que eu não comia alho? Mas aí, para poder beijar a minha namorada, comecei a comer, claro. Hoje adoro alho. Tudo pelo sexo.
— Acho justo, digno, fundamental.
— De acordo, seu Milton.
— Alho é um ingrediente conjugal. Se minha mulher come alguma coisa com alho no almoço, chego em casa à noite, sinto o golpe e mastigo um dente de alho para ficar em iguais condições. Aí dá para conviver na boa.
— Eu faço o mesmo. Mas tem algo pior, Seu Milton.
— O quê?
— Eu não suporto mulher que fuma, me causa enjoo.
— É mesmo?
— Sim, seu Milton. Sai aquele cheirão do hálito, dos poros, não rola.
— Tu brocha?
— Vou lhe confessar, seu Milton. Brocho mesmo. Ainda mais que não sou mais criança. E minha namorada é ex-fumante. Ela costuma me ameaçar dizendo que vai voltar a fumar.
— E o que tu faria?
— Isso seria um aviso para eu ir embora.

Surpreso, um pouco chocado com a última frase, me despedi do cara. Ele estava deprimido, mal por causa do alho e óleo que a namorada lhe ensinara a comer e péssimo por causa do anúncio dos cigarros, feito pela mesma. Mas que diabo de nariz tem esse cara, né?

A pizza de Flor de Alho e Óleo | Foto: Fermentô

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Balcão de Livraria, de Herbert Caro

Balcão de Livraria, de Herbert Caro

Raramente um livro é tão prazeroso para mim quanto foi este. Fui amigo do Dr. Herbert Caro. Durante anos, aos sábados pela manhã, eu e um pequeno grupo de jovens íamos até o porão da King`s Discos, na Galeria Chaves, onde se vendiam discos de música erudita, menos para comprar discos e mais para ouvi-lo falar. As palestras eram sobre quase qualquer coisa, pois ele parecia dominar todos os assuntos relativos à música, literatura e artes plásticas. E havia os dias mais maravilhosos, onde um tema principal não se estabelecia e podíamos falar de Bach, Vermeer, Beethoven, Bosch, Mozart, Canetti, Thomas Mann, Hördelin e da literatura brasileira, tudo misturado. Não eram bem palestras, eram conversas, mas que conversas!

O Dr. Caro tinha algo de muito peculiar. Ele se expressava bem, tinha muito humor e, mesmo sabendo infinitamente mais do que nós, deixava-se interromper a cada momento. Ou seja, ele nos ouvia. Uma vez, brinquei que encontrara um problema em sua tradução de A Montanha Mágica. Ele se voltou para mim com simplicidade e disse que depois eu deveria lhe mostrar onde estava o equívoco. Todos riram, mas ele não. Ele achara natural que eu o corrigisse.

Ganhei este volume de presente de uma amiga da Bamboletras que sabia de minha relação com o Dr. Caro. É uma verdadeira relíquia e estou muito agradecido. Afinal, todos sabem que o Dr. Caro escrevia ainda melhor do que falava, vide suas inigualáveis traduções e notáveis crônicas. E ele tinha um uso peculiar do idioma, talvez apenas explicado pelo fato de conhecer as raízes dos vocábulos.

Bem, vamos contextualizar. O tradutor, crítico musical e erudito Herbert Caro foi um dos grandes alemães que aqui aportaram fugindo da perseguição aos judeus na Alemanha. Chegou em 1935. Antes de viajar, teve aulas de português — sim, ainda na Alemanha, aprendeu suas três mil primeiras palavras na língua de Camões e nossa gramática. Veio para Porto Alegre e, entre outros trabalhos, foi balconista de uma extinta livraria da Rua da Praia, a Americana. Na verdade, além de balconista, era gerente da seção de livros importados da livraria. Lá permaneceu por 5 anos. Enquanto trabalhava, publicava suas crônicas de livreiro no Correio do Povo. A coluna chamava-se Balcão de Livraria. Ele deixou a Americana antes de 1960.

Em razão da alta qualidade dos textos, as crônicas eram reproduzidas por jornais do centro do país. Caro costumava antes mostrá-las a Erico Verissimo, que as revisava, mas a voz é de Caro. (Conheço-a bem por ter  lido durante anos, semanalmente, suas críticas sobre música erudita, também publicadas no Correio).

O livro Balcão de Livraria é de 1960 e traz 17 crônicas selecionadas. Os textos são deliciosos, o humor está sempre presente e é refinadíssimo. A forma como Caro dominava o português é algo absurdamente perfeito. Os temas tratam desde de pedidos errados ou amalucados de clientes, como propostas educacionais para promoção da leitura no Brasil dos anos 50-60, reclamações de que não há no Brasil publicações para livreiros e editores que tragam os lançamentos mensais de uma forma organizada e reflexões gerais sobre o ofício e a vida brasileira.

Garanto-lhes, o livro é de qualidade espantosa.

Leia um trecho do que ele diz sobre vender livros na época do Natal:

“Cabe ao livreiro envidar esforços para impedir os erros. Ele, que tem a obrigação de saber alguma coisa sobre o conteúdo de cada uma das obras expostas, pode servir de casamenteiro entre o presente e o destinatário. Como na maioria das vezes desconhecerá o segundo, deverá indagar do tipo de pessoa que este representa, dos assuntos que lhe interessam e, melhor ainda, dos livros que nos últimos tempos tenha lido com agrado. Embora na época do Natal haja muito movimento, sempre sobrará o tempo necessário para fazer algumas perguntas rápidas neste sentido. No começo, alguns fregueses estranham o pequeno interrogatório ao qual os submete o livreiro, mas depois de pouco tempo notam que desta forma se facilita a escolha. Em última análise ficam bem impressionados e retornam à livraria”.

Herbert Caro, Balcão de Livraria (1960)

Aqui, provavelmente Caro estava falando de Canetti, sempre com humildade, ouvindo seu interlocutor.

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Atrás do balcão da Bamboletras (VII)

Atrás do balcão da Bamboletras (VII)

Chega um cliente e coloca estas duas edições lado a lado no balcão e pergunta: “Qual é o correto? O Jogador ou Um Jogador?”. Eu, que por sorte sou casado com uma mulher que tem o russo como língua mãe, respondo que tanto faz.

Ele não gosta da resposta — “Como assim tanto faz?” — e eu lhe explico que o idioma russo não tem artigos. Então, para falar só em Dostoiévski, os originais seriam “Jogador”, “Irmãos Karamázov”, “Eterno Marido”, “Demônios”, “Idiota”, “Adolescente”, etc., o que ficaria no mínimo estranho em português.

Desta forma, o título do romance preferido de Thomas Mann pode ser escrito como quis Rubens Figueiredo (Penguin) ou Boris Schnaiderman (34). Tá bom?

E ambos estão esperando por você na Livraria Bamboletras.

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O Rei das Sombras, de Javier Cercas

O Rei das Sombras, de Javier Cercas

O Rei das Sombras é Manuel Mena, um tio do autor Javier Cercas. Aos 19 anos, em 1938, este tio morreu na Batalha do Ebro, a mais sangrenta de toda a Guerra Civil Espanhola. Para vergonha de Cercas, o tio era falangista, um apoiador de Franco. Mas era (é) o verdadeiro herói de sua família, principalmente de sua mãe e tias que o citavam (citam) como um ser perfeito. Pura idealização, claro. Mena morreu quando era tenente de um grupo de atiradores, uma unidade de assalto. O livro conta duas histórias entrelaçadas: o da investigação de Cercas a respeito de seu tio e a crônica de sua história até a morte.

Na narrativa dos acontecimentos, Cercas não faz conjecturas, não chuta nada. É tão pragmático que exagera, evitando usar a primeira pessoa e chamando a si mesmo de Javier Cercas, um membro a mais da família. O autor passa boa parte do livro tateando entre sombras e revelações, dúvidas e descolamentos pela Espanha, e os melhores momentos são as conversas com os companheiros de viagens e as testemunhas do passado, na tentativa de reconstruir a história fática e moral dos envolvidos.

O final do livro é excelente. Sem spoilers, digo que Cercas viaja para Bot a fim de visitar o hospital de campanha que viu os últimos momentos de Manuel Mena. Um vizinho local e sua mãe sabem quase tudo, mas como arranhar a realidade do que pensava Mena?

Pobre morador do pequeno povoado onde nasceu Cercas, há sinais de que Manuel Mena talvez tenha compreendido que estava perdido numa guerra que não era sua. Mas como fazê-lo sair de seu silêncio?

Por vergonha, Javier Cercas sempre relutara em investigar a história do tio-avô fascista herói familiar, na verdade um anônimo fora das salas da família que ostentavam sua única foto vestido como milico.

O Rei das Sombras não chega ao nível da obra-prima que é Soldados de Salamina. Há muita informação desnecessária sobre a investigação de Cercas. Apesar da prosa sempre ágil, bem humorada e original de Cercas, há muita erudição sobre movimento de tropas, batalhas ganhas e perdidas, coisas que podem fazer a alegria de um historiador, mas que incomoda um leitor comum como eu. Mas a análise dos mistérios do heroísmo pessoal e coletivo é interessante. 

Cercas: bom livro, mas que só deve ser procurado por quem já leu Soldados de Salamina

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Uma bela temporada na Esef da Ufrgs

Uma bela temporada na Esef da Ufrgs

Hoje, terminaram minhas idas à academia da Esef, na Ufrgs. Explico: certo dia, li um anúncio de uma mestranda no qual ela pedia para que homens de 60 anos ou mais participassem de seu projeto de mestrado. Este consistia, de modo geral, em dar condicionamento físico ao grupo de determinada maneira. Tudo muito científico e monitorado. Desde agosto, fui duas vezes por semana até a Ufrgs a fim de levantar pesos e pedalar como um louco sob orientação da Prof. Diana Carolina Müller, a mestranda.

O resultado foi muito bom. Minha mulher notou melhoras na postura, todos notaram certa diminuição nas circunferências gerais e eu me senti muito melhor, mas muito mesmo. Por mim, acabaria com esse negócio de férias escolares ou deixaria a Diana como eterna mestranda, só que ela e seus pupilos Henrique Bayer e Paulo Ricardo da Silva têm que dar continuidade a suas bem iniciadas vidas profissionais. Adorei ser cobaia. Agradeço e… Dá-lhe!

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Amadeus

Amadeus

Estarei lá na APPOA dizendo umas bobagens. Ver o filme é de “de grátis” e, se minha fala for pura enrolação, sempre haverá o conhecimento e a consistência do Enéas e do Robson.

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Tarciso (1951-2018)

Tarciso (1951-2018)

Tarciso foi excelente jogador e ser humano. Lembro da primeira vez que o vi jogar. Ele era do América-RJ e pegou uma bola no meio de campo. Ganhou velocidade e evidentemente perderia a bola para Pontes, zagueiro do Inter que o perseguia e que era conhecido por sua rapidez. Engano. Tarciso foi até lá dentro da goleira do Inter. O resultado foi Inter 0 x 1 América-RJ. Logo veio para o Grêmio onde foi merecidamente ídolo. Mesmo ele sendo gremista, gostava dele.

gremio.net

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Atrás do balcão da Livraria Bamboletras (VI)

Atrás do balcão da Livraria Bamboletras (VI)

Fato real, mas só lembrado porque um personagem de Javier Cercas diz o mesmo em ‘O Rei das Sombras’.

Um senhor chega no caixa, coloca uma pilha de três livros bem bons no balcão. Digo-lhe que foi uma bela escolha e ele responde:

— Sabe qual é a pior coisa que pode acontecer com uma pessoa? Chegar aos 70 anos e se dar conta que não sabe absolutamente nada. Me dei conta disso quando tinha uns 35 e desde lá sempre reservo tempo para ler e estudar. Sigo não sabendo nada, mas com tantas leituras, aprendi a disfarçar.

— Disfarça muito bem.

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O deserto tático do futebol brasileiro, por Thomaz Santos

O deserto tático do futebol brasileiro, por Thomaz Santos

Essa noite um amigo meu (que chamarei de “palestrinha”) levantou uma questão interessante em um grupo do Facebook sobre futebol quando comentou que o campeonato japonês, embora tecnicamente ainda fraco e fisicamente abaixo do nosso campeonato nacional, encerrado neste domingo, está muito acima do futebol praticado aqui no que diz respeito à organização tática. E ele pode ter muita razão em dizer isso, e mesmo discordando dele em 99% das discussões futebolísticas, vou tentar justificar porque dessa vez concordo com ele.

Bueno, sempre gosto de lembrar uma história do Inter dos anos 1960/1970, que foi o debate interno entre dirigentes (os chamados “Mandarins”, termo usado pelo Luis Fernando Verissimo para se referir ao grupo político que chegou ao poder no clube na virada da década e que foi responsável por mudar a gestão de futebol do clube) sobre quem deveria ser titular no time treinado pelo Daltro Menezes: se Bráulio, o Garoto de Ouro, joia da base colorada e que era um jogador extremamente técnico, ou Sérgio Galocha (*), nem de longe um primor de técnica, mas um jogador fisicamente forte e veloz.

Montagem da página História do Sport Club Internacional (Facebook)

Pois então, os Mandarins entendiam que um jogador de futebol tinha três atributos básicos: técnica, força e velocidade. E, para ser jogador do Inter daqueles anos, o jogador tinha de ter no mínimo duas dessas habilidades. Falcão, que subiu aos profissionais em 1973, por exemplo, era um primor nos três atributos, assim como Figueroa, contratado em 1971. Mas Valdomiro, chegado ao clube em 1968 e titular absoluto até 1979, era tecnicamente muito limitado, dependendo quase que exclusivamente da bola parada (os gols nas finais do Campeonatos Brasileiros de 1975 e 1976 saíram todos, direta ou indiretamente, de suas cobranças de falta), mas extremamente forte e veloz.

Voltando ao debate inicial, quem deveria ser titular: o Garoto de Ouro, que era extremamente técnico mas fisicamente frágil e não muito veloz, o ou Galocha, que até sabia chutar uma bola mas tinha como vantagem mesmo ser forte e rápido? Ganhou a regra do “melhor de 3” dos Mandarins e uma nova forma de pensar o futebol nascia.

E o que essa história tem a ver com a questão levantada pelo meu amigo? Porque, quase 50 anos depois, ainda escolhemos jogadores da mesma forma, mas com um quarto atributo básico: a famosa “obediência tática”. Hoje, nossos jogadores precisam ser aptos a cumprir diversos papéis em campo: goleiro tem que saber sair jogando com os pés, zagueiro tem que saber atacar, todos os jogadores de meio-campo precisam participar do jogo ofensivo e defensivo e atacante que não marca o zagueiro adversário não tem lugar no futebol moderno. Podem ver, o cara é tecnicamente fraco, lento, pesado, mas forte e “cumpre bem sua função tática”. Pronto, é titular absoluto com venda para a Europa garantida. Agora, com 4 atributos, ainda bastam dois, mas um deles sempre será a obediência tática.

Tite | Foto: Wikimedia Commons

Só que esses mesmos critérios usados para selecionar jogadores e montar elencos não são levados em conta na hora de formar e contratar técnicos de futebol. Sério, a formação de técnicos de futebol, sobretudo no que diz respeito a tática, é uma piada no Brasil. A própria Argentina, que tem diversos problemas no seu futebol nacional, forma mais e melhores técnicos do que nós, e eles muitas vezes são disputados a tapa pelo mercado europeu.

Então, mesmo não tendo visto um jogo sequer no campeonato japonês, concordo com palestrinha (ou melhor, acho que eu sou o palestrinha do grupo, levando-se em conta o quanto eu já escrevi) que o futebol jogado no Brasil é uma mixórdia tática, e a prova disso é que o melhor treinador brasileiro da última década não conseguiu fazer o a Seleção Brasileira jogar na Copa tudo o que podia, e isso é função única e exclusiva do técnico, fazer o time jogar.  Mas isso não vai ser resolvido com, sei lá, a vinda do Guardiola. Tem que pedalar a porta da CBF, mudar o calendário do futebol nacional, reformular TODAS as categorias de base no Brasil e ocupar os cursos de formação de técnicos de futebol com gente que não vive ainda em meados do século XX.

.oOo.

Thomaz Santos é professor do curso de Relações Internacionais da UFSM e acha que entende mais de futebol que a crônica esportiva gaúcha.

(*) Nota do Milton: o “Galocha” de seu apelido foi-lhe atribuído por um motivo agressivamente racista — segundo os braulistas, Sérgio seria preto e mole. Os narradores e comentaristas da época chamavam-no apenas de Sérgio, mas o tempo consagrou o Galocha.

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