O Monólogo Amoroso (XIV)

O médico informa a Nina sobre sua liberação do hospital nos próximos dias. Ela pensa que aquilo só pode ser resultado de um pedido de Ana. Afinal, o dia de seu aniversário está próximo e é provável que a filha deseje ver a mãe passá-lo em casa. Meu último aniversário, ela diz para si mesma. Não pergunta sobre o significado daquela “alta”, nem quando acontecerá. Permanece longamente em silêncio; depois, pega o gravador, deita-se de lado como lhe foi aconselhado e continua sua história para Ana.

Continuando… Bem, se eu vivia sob alguma oposição em casa, era muito feliz na universidade. Ana, tu conheces Brueghel, não? Há um quadro chamado A Batalha entre o Carnaval e a Quaresma. Não é bem uma batalha, é antes o encontro de dois grupos, um alegre e bizarro, o outro contrito. Mas o autor não parece simplesmente aprovar a felicidade do primeiro grupo – há até alguns estropiados e pedintes que são ignorados pelos “carnavalescos” -, nem desaprovar a contenção religiosa do segundo. É uma pintura curiosa e eu, naquela época, pensava viver a Quaresma em casa e o Carnaval no Instituto de Letras. Talvez a analogia não fosse feliz porque não é razoável considerar minha relação contigo como parte da Quaresma, mas, enfim, está dito. Obviamente, eu não tinha muito jeito para a contrição e a castidade e fui cada vez mais me aproximando e permanecendo preferencialmente com o grupo carnavalesco.

As caronas de meu professor preferido tornaram-se frequentes — eu o aguardava ou ele a mim e quando algum motivo o impedia de me levar, era avisada com antecedência e vice-versa –, assim como os encontros e idas aos bares com os colegas. Se as caronas significavam uma amizade de natureza um pouco dúbia, os encontros em bares acabaram ganhando grande importância. Sair à noite, beber e rir era uma novidade para mim. Nossa vida quieta em casa era afetuosa e sem incômodos, tu retribuías minha dedicação com sorrisos e amor; porém a ruidosa vida da rua prometia, finalmente, fatos novos. Tratei de manter a Quaresma organizada e emiti repetidos sinais de que precisaria passar mais tempo na universidade. Também providenciei comentários para as caronas que ganhava. O atraente professor Roberto, que depois soube ter vinte anos a mais do que eu, tornou-se “o velho que mora aqui perto e me traz em casa”. Ele morava do outro lado da cidade. Por uma questão profilática, também não fazia questão de ser visitada pelos amigos da faculdade; diferentemente (ou não) do quadro de Brueghel, achava que poderia ser perigosa a introdução do mundo carnavalesco na circunspeção de casa. Os pontos de interseção entre os dois mundos poderiam tornar-se problemas a serem administrados e o máximo de aproximação que admitia era o carro tcheco do professor na frente do edifício. Várias vezes ele brincou que acabaria apanhando do marido ou de um namoradinho nervoso. Nunca respondi se este era ou não um risco real, preferia fazer a mulher misteriosa. Na verdade, acho que inconscientemente criei uma personagem de ficção para meu professor: uma jovem madura, discreta, elegante e delicada (puf!) destinada inexoravelmente a tornar-se uma mulher inteligente, sedutora, culta e ativa (puf!). Investia na personagem em cada contato e é provável que meu objetivo fosse apenas o de satisfazer minha vaidade, pois não projetava o caminho que me levaria a ter um caso com ele. Pensava que ter uma aventura com um homem casado àquela altura seria como me drogar na tua frente ou virar alcoólatra. Seria muito bom tê-lo, mas pouco inteligente. E eu já tinha uma visão prática o suficiente para não considerar novos conflitos como “produtivos”. Claro que havia a atração física e como! Porém, por impressões difíceis de explicar, tinha certeza que ele não tomaria a iniciativa. Talvez minha presença servisse a ele de forma análoga, isto é, talvez eu servisse para satisfazer sua vaidade e estávamos empatados. Era bom ser alvo de suas atenções e retribuir me deixava feliz.

Então, é claro, ele fez jus a nosso jogo sem consequências e, num desses dias de carona, falou que estava com pressa porque precisava comprar um presente para o aniversário de seu cunhado. Naquela noite haveria a festa e Isabel tinha-lhe passado a incumbência. Isabel? Pela maneira como tinha sido citada, sem maiores explicações, era inequívoco: tratava-se de sua mulher. Ele dispunha de pouco tempo para comprá-lo. Fingi não dar importância à novidade e até tentei auxiliá-lo: perguntei que idade tinha o cunhado, do que gostava, quais eram seus interesses, grau de intimidade, etc. Mas saí do carro decepcionada, pensando que era uma imbecil. Tinha recebido, em minha opinião, a confirmação de que seríamos “apenas bons amigos”.

Nada grave, apesar de lembrar que Roberto tinha escancarado seu interesse por mim e eu por ele. Ou não? Eu o evitei? Ou ele era um medroso, apenas se regozijando em travar um joguinho de sedução com uma aluna mais jovem? Ou desinteressou-se subitamente?

Mas não foi nada grave, já disse, e decidi que me adaptaria ao papel de aluna e amiga meio-solteira do professor casado. Passados alguns dias, ele me convidou para um jantar em sua casa, onde estariam presentes Isabel e uns poucos amigos. Fui apresentada a Isabel como uma “brilhante” aluna do curso de Letras e, é claro, fiquei me comparando com ela. Minha maldade fez com que eu não me impressionasse nada. Era alta, sorridente, usava roupas caras — logo achei que fosse de família rica –, tinha trinta e poucos anos, estava em boa forma e só. Tratou-me muito bem. Eu estava bastante contrariada porque Isabel e Roberto eram muito carinhosos um com o outro, trocavam carícias, beijinhos e até fizeram um brinde particular depois de servido o vinho, como se estivessem numa festinha íntima com a libido a mil. OK, estava enciumada, mas, em torno da mesa, já indulgente pelo efeito do vinho e refletindo sobre meus fracos direitos sobre o mestre, pouco a pouco entrava na conversa e sentia-me ironicamente agradecida a meu ex-futuro amante pelo convite. Era um grupo de pessoas muito interessante e eu fora distinguida por ele para estar ali. Era a única estudante presente, a pessoa mais jovem, a mais inexperiente, a que precisou explicar que não era parente nem de Roberto, nem de Isabel, que era uma simples… estudante de graduação. Roberto respondeu que eu não era uma simples aluna, que eu era “a aluna”, alguém muito capaz, com luz própria – lugar comum roubado ao futebol – e, além de tudo – olhem bem para ela! –, muito bonita. Estava comovida, sentindo como me acolhiam e matutando, com álcool, que adoraria me integrar a um grupo assim. Isabel permanecia tranqüila e sorridente, sem demonstrar nenhum ciúme ou hostilidade. Comecei a simpatizar com ela. Depois de dois cálices, talvez simpatizasse com Hitler. Não, a comparação é injusta, sou amiga de Isabel, gosto dela.

Acabei me integrando mais rapidamente do que esperava… Como estava meio alta, um professor amigo do casal ofereceu-se para levar-me em casa. Só que no meio do caminho, ele me convidou para ir ao Alaska, onde bebemos algumas batidas de coco – eram chamadas de coquinhos – e depois ainda fomos ao Estudantil, um antro frequentado por menos intelectuais e que tinha um garçom chamado Ataliba e dois ambientes: o da frente, iluminado e com mesas, e o de trás, que era escuro e destinado às atividades sexuais. Do amasso ao coito, podia tudo. Foi interessante.

Nina desliga o gravador.

O Monólogo Amoroso (XIII)

Após uma noite de paranoia e preocupação, em que temeu algumas maquinações dos médicos e de sua filha, Nina recebeu os calmantes prescritos e continuou o monólogo.

O retorno à vida normal não foi nada fácil. Era como ter saído de uma piscina num dia quentíssimo para enfrentar uma longa caminhada. Porto Alegre é uma cidade insuportável no verão e neste período deveria alterar seu nome para Forno Alegre. Minha paciência encurtava na medida em que considerava os dias de convivência amorosa, pacífica e interessante que tivera e vislumbrava como seriam os seguintes. Em nossa despedida não houve promessa alguma; a vida deveria correr livremente então. E havia outro modo? Certamente não, mas ficava incomodada com a indeterminação, sei lá. Estava decidida a cumprir o que tinha planejado fazer e, antes que o verdugo da rotina me hipnotizasse, disse para minha mãe, em voz um tanto histérica, que desejava deixar as coisas claras para mim e para todos – parentes e amigos. Queria a separação. De enfiada, pedi para continuar morando em meu quarto contigo. Ela me pediu calma, o que significava “Olha, filha, vamos varrer esta sujeira para baixo do tapete e aguardar”. Era óbvio que o paradoxo da mãe solteira porém casada lhe agradava. Meu pai, sempre ausente e ao sabor dos ventos, desta vez entrou na discussão: insistiu para que eu desse uma chance para o rapaz; afinal, Raul era um bom menino. A mim, os dois pareciam doidos varridos; ainda contavam que acabaríamos formando uma harmoniosa família a três… Resolvi então falar com Raul.

Anunciei-lhe que queria me separar oficialmente. E logo. Mas uma separação não é simples. Ou melhor, acho que até poderia ser se eu fosse direto a um advogado, sem muita conversa. Porém, alguns casais primeiro tentam enfiar seu inferno pessoal um na cabeça do outro, precisam tornar impossível o entendimento para então poder encher a boca e declarar: não dá mais, é insustentável! Ele ouviu, deu meia volta e sumiu. Dias depois, voltou, disse que me amava mas que eu nunca lhe dera uma chance real, que tínhamos uma filha e que eu deveria ser responsável e pensar no teu futuro. Quando ouvi aquilo, parecia que ia ter uma convulsão, tal o ódio de que fui tomada. Passei a gritar, será que o menininho despreparado e silencioso, que morava na casa da mãe após minha negativa de ir para um apartamento com ele, o surdo-mudo que evitava falava sobre a relação paupérrima que tínhamos, que evitava inclusive a relação, agora estava pronto a mudar de vida? Éramos uns namoradinhos que tinham gerado uma criança e ele se escondera na hora de resolver o problema e mais ainda quando tu nascente, quando passou a ser um objeto figurativo enquanto eu cuidava de ti e estudava. Estava transtornada e disse, claro, verdades e injustiças. Acusei-o de não fazer absolutamente nada, de nunca me ajudar e de passar o tempo maquinando coisas com sua mãe. Ele respondia no mesmo tom: ele sustentava uma prostituta que tinha sua filha como refém, eu o ignorava, eu o expulsava da casa em que sua filha morava, ele estava trabalhando ao passo que eu ficava em casa fazendo coisa nenhuma, indo para a rua procurar homens, eu usava os serviços de uma babá inútil e explorava a ele e a minha família fazendo um curso para mulheres desocupadas, uma faculdade de espera-marido, etc.

Enfim, quase conseguimos. Tanto fizemos que quase tornamos impossível qualquer diálogo. Eu não sei, não sei mesmo quem tinha razão e nem se interessava saber. Não sei o dia nem a hora em que deixamos de conversar para viver cada um sua vida com uma criança entre nós. Ele entrava em nossa casa, brincava contigo – tu adoravas o papai – e ia embora. É, acho que nunca dei-lhe uma chance, mas ele também nunca se impôs, sempre foi omisso e obediente. E cometi mais um erro. Propus dar um tempo… Pouco depois, voltei ao assunto.

E tudo recomeçou. Raul passou a falar comigo duas ou três vezes por dia, fazendo os mais incríveis pedidos e promessas. Eram súplicas que me deixavam acabrunhada. Eu era ora má, ora a mulher com que ele sempre sonhou, ora excelente mãe, ou péssima, era linda e inteligente, mas também burra e pretensiosa, um martírio. Eu nunca sabia que versão de Raul encontraria, ele mais parecia uma fila inteira de suplicantes e… Procurei mais um adiamento, cuidando para que tu ficasses fora da discussão. Mas agora ele tomava as iniciativas. Eu encarnava ao mesmo tempo tudo o que havia de bom e ruim, tudo o que ele precisava e o que ele conhecia de mais nauseabundo. Era adorável e repugnante, uma boa e desejável mãe e, ao mesmo tempo, uma megera aproveitadora e calculista que estava destruindo sua vida e planos. Como as discussões eram na minha casa, meus pais opinavam: ele dizendo nem tão veladamente que eu era uma inconseqüente, ela me aconselhando a deixar a coisa como estava. Não foi nada divertido, passei três meses no pior dos ambientes, já era março e nada tinha acontecido, pois eu estava aguardando que Raul parasse com as brigas. Mas um belo dia brigamos tanto que efetivamente conseguimos. Era impossível a menor conversa. Deves estar rindo de toda essa bagunça, Ana. Afinal, ainda hoje, deitada nesta cama de hospital, sou oficial e inutilmente casada com teu pai. Nunca nos separamos, apenas permanecemos alguns anos falando mal um do outro pelas costas e depois nem isso.

As aulas recomeçaram e, quando entrou na sala o professor de Literatura Brasileira Roberto Simões, pensei: este homem, apesar daquela aliança, me atrai. Nunca houve nada entre nós, nunca nos tocamos, mas ele me ajudou muito. Comecei a me arrumar melhor para assistir suas aulas. Fazia-lhe perguntas tentando mostrar-me inteligente. Como não estava alcançando meu intento, passei a estudar a matéria antes que fosse ensinada para poder fazer perguntas ainda mais inteligentes. Trazia as perguntas prontas e passamos a conversar depois das aulas; ele me emprestou um livro e lembrei de Ricardo; vi que ele almoçava no bar da Filosofia e resolvi que iria almoçar ali quando, coisa rara, tivesse algum dinheiro ou tempo sobrando. Nunca consegui almoçar com ele, mas passei a sentir-me observada. Dias depois, em plena aula, ele me usou como exemplo de beleza para caracterizar a bela Virgília, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, personagem de quem não gostava muito, mas que, naquele momento, me servia; só não gostei quando ele disse que Virgília tornara-se amante de Brás aos 28 anos e concluiu que eu ainda precisaria esperar alguns anos. (Procurei esta idade no livro e não encontrei). Um dia, ele, o professor Roberto Simões, chefe do Departamento de Letras, ofereceu-me carona para casa.

O percurso foi uma comédia. Ele mostrou-se engraçado descrevendo a vida de um professor sob a censura e me contando que tinham sido excluídos todos os autores contemporâneos do currículo do curso de Letras por absoluta falta de distanciamento histórico… Não valia a pena estudar autores que ainda estavam produzindo suas obras, ora. Depois, discorreu sobre o incrível número de alunas desinteressadas das letras, da literatura, da cultura. Chamou-me de avis rara e eu respondi mentalmente avis rara, avis cara. Sim, minha filha, se antes dos militares não tivessem retirado também o latim do currículo dos colégios, saberias que este ditado faz referência a uma visita rara, porém bem-vinda. Ele brincava comigo: enquanto eu flertava, ele satisfazia sua vaidade com uma aluna, mas não queria problemas. Despediu-se como um agente secreto, revelou que seu carro era um Skoda, fabricado na Tchecoslováquia, e que, portanto, eu tinha sido transportada num carro comunista. Aquela carona era a antítese do que estava vivendo em casa. E repetiu-se nos dias seguintes, repetiu-se na verdade por anos. Tudo indicava que eu ficaria célebre como a promíscua do bairro.

Ainda agitada, mas agora sorridente, ela desliga o gravador.

O Monólogo Amoroso (XI)

Raul senta-se calmamente diante do psiquiatra e recomeça.

Eu era muito moço e não sabia que uma separação era algo tão terrível. OK…, sim, na vez passada eu falava sobre como descobri que a Nina estava se encontrando com seu ex-namorado, é isso? Bem, um amigo me contou. Um dia, o Flávio veio cheio de dedos, dizendo que ia me contar uma coisa pela amizade que nos ligava e que eu não me irritasse. E falou claramente que a Nina entrava e saía e passava a noite no apartamento do tal de Ricardo. Minha primeira reação foi de ódio, mas acho que uma hora depois minha tristeza e desespero eram tão profundos que eu não queria voltar a conversar sobre o assunto. Enquanto estava com Flávio, perguntei duas ou três vezes se ele tinha certeza daquilo, se ele vira, se o fato se repetira, se era ela mesmo. Quis saber sobre horários e até sobre suas roupas. Não havia a menor sombra de dúvida: era ela, era ele e só se meu amigo fosse um louco de filme americano para inventar tantos detalhes. Pior: sua mãe era quem tinha visto primeiro.

O ciúme é o inferno, o ciúme é o inferno, o ciúme é o inferno. Nossa relação quase não existia mais, mas quando vi que nosso pobre relacionamento estava sob ameaça, ele tornou-se a coisa mais valiosa de minha vida. Como não me enganava a respeito da Nina – a qual mal possuíra e agora me fugia para sempre –, punha toda minha frustração sobre o afastamento que sofreria de Ana e em minha frustração e azar de ter casado com uma puta, etc. Mas o pior era o que eu sentia. O ódio que tivera dela no primeiro momento retornou contra mim sob muitas outras formas. Passei a me sentir incapaz, infeliz comigo mesmo, perdi o prazer de participar das brincadeiras no trabalho, passei a achar tudo uma idiotice. Não tinha concentração para fazer a mais simples das tarefas, o cansaço tomou conta de mim e comia o mínimo. Minha mãe notou que eu não estava bem e disse que tudo era culpa de Nina, que eu devia obrigá-la a morar comigo ou que a mandasse pedir o desquite. (Suspira). Mas eu não queria conversar sobre o que me deixava tão triste e, se conversasse, não seria com minha mãe, sempre muito alterada quando o assunto era Nina. Fui me isolando cada vez mais; imagina que até os carros passaram a ser coisas pouco importantes, assim como a família e os amigos; sentia-me burro, incapaz, azarado, inferior a todos os que conhecia.

Então, um dia, ao visitar a Ana, segui a Nina até seu quarto, uma atitude cada vez mais rara, mas que não chegava e ser uma invasão de privacidade porque aquele era supostamente “o nosso quarto”, e perguntei com voz embargada, louco de vontade de chorar – uma constante, apesar de que nunca chorava –, como nós ficaríamos. Naqueles dias, o ar de desinteresse dela por tudo o que eu dissesse era evidente, até suas brincadeiras e piadas tinham diminuído muito, ela estava vivendo livremente sua vida, mas parecia que eu precisava ouvir dela palavras ainda mais duras, aquelas que me fariam mergulhar com maior convicção ainda na minha incompetência e desespero. Ela me olhou com ar casual e respondeu que nada mudara.

— Por que isso agora? E Raul, teu humor funéreo vai acabar assustando a Ana. Tua cara não recomenda.

— É. Acho melhor tu ficar com ela. Eu me afasto por completo e tu educa ela. Mando dinheiro.

— Mas, por favor! O que está acontecendo? É o apocalipse?

— Tu sabe o que está acontecendo. Quero dizer, eu estou nesta merda e tu feliz por aí.

— Que merda, o que está acontecendo? Poderia ser mais claro? Tu está me criticando por ser ou estar ou parecer mais feliz do que tu? É isso?

— Nina, nossa situação é uma tragédia. Eu gostaria de morar contigo, temos uma filha, a chance de construir alguma coisa e tu fica por aí balançando o rabo como uma inconseqüente.

— Raul, eu não pretendo responder a tuas agressões. Acho que a única expectativa que tu deves depositar em mim é a de que eu cuide e ame nossa filha. E mais nada. Para mim, tu és um ex-namorado ou ex-marido, se um dia chegamos a tanto. É assim que tu deverias me tratar. Fui clara?

— E já que tu acha que é assim, isso te permite encontros com ex-namorados e outras putarias por aí?

O rosto dela ficou muito vermelho. O meu também. Conseguira falar. Incrivelmente, meu objetivo interno era reconquistá-la e viver uma vida confortável noutro lugar, mas tinha feito com ela o que não fazia com mais ninguém: despejei nela um pouco do que estava pensando e sofrendo, um pouco do meu enorme ressentimento. Hoje sei que virar meu caminhão de lixo em cima dela não me traria resultado nenhum, só que eu não conseguia pensar, só tinha certeza que minha vida estava sendo destruída pela única pessoa que me interessava no mundo. Pensei que a vermelhidão no rosto dela era de raiva, mas tinha mais: ela se sentira atingida por eu saber de suas escapadas. Ela falou calmamente:

— Então tu e o mundo já sabem.

— Não, acho que só eu, o Flávio e a mãe dele.

— E todas as amigas dela e os dele.

— Mas tu tens te encontrado mesmo com o tal de Ricardo?

— Sim, Raul. Eu me sinto separada de ti, apesar de tu me veres como a prometida.

— É que temos toda a possibilidade de uma vida…

— Pára com isso, Raul. Está tudo atravessado, fora do lugar. Eu sou a mulher casada que dá para outro e tu és o corno. Até o “nosso futuro” da tua imaginação é impossível. Tua família logo vai saber e eu serei tratada como uma bruxa a ser queimada.

— Eu não deixarei que aconteça isso.

— Bah, tu não tem mesmo pudor de ser patético, hein? Agora, dane-se. A culpa é minha de não ter me protegido. Me encontro com Ricardo em qualquer lugar, entende? Não fico me esgueirando.

Com a confirmação, comecei a fantasiar todo tipo de suicídio, viagens para lugares longínquos onde me estabeleceria deixando tudo para trás. Era um merda. Por meses não conversei pessoalmente com Nina. Escrevi me comprometendo a pagar para minha filha um valor que inventei e até hoje ela não me respondeu. Mas eu pagava. Era um valor decente. Quase tudo o que ganhava. Em finais de semana alternados, ia a sua casa pegar Ana e retornava para entregá-la de volta segunda pela manhã. Nada disso, mas absolutamente nada disso melhorou meu humor e minhas negativas a comentar os fatos. Meu trabalho voltou ao normal, o resto demorou muito mais ou nunca voltou ao normal. Quando minha mãe me perguntava sobre meu casamento, recebia de volta um grito dizendo que aquilo não interessava a ela, ela que fosse cuidar de sua vida. Meu pai dizia que a “véia” estava muito triste e preocupada comigo e eu o mandava à merda. Comecei a sair à noite e ia bastante com prostitutas. Parecia bem, acho, mas a nuvem em torno da minha cabeça me ameaça até hoje. Uma separação, qualquer separação, é o maior dos horrores e não desejo para ninguém. A auto-estima some. Não é assim com todo mundo?

O psiquiatra aponta para o relógio e Raul ergue-se lentamente, dizendo-lhe que seu emprego era chato, mas que não dava incomodação.