Saramago

Saramago

Como Saramago respondeu a pergunta “O senhor é socialista?”:

“Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo.”

José Saramago

Lendo Tristram Shandy em uma era de distração

Lendo Tristram Shandy em uma era de distração

Por Sarah Moorhouse na LitHub
Mal traduzido por mim

http://www.metmuseum.org/art/collection/search/399171

Tristram Shandy, de Laurence Sterne, publicado em nove volumes entre 1759 e 1767, tem uma reputação um tanto complicada. Junto com, talvez, Ulysses de James Joyce, é conhecido por ser um romance singularmente difícil, lido principalmente por estudantes ou entusiastas do século XVIII. Talvez o que afaste as pessoas sejam as “digressões” do romance, como o narrador do livro, Tristram, as chama. Ele se propõe a escrever uma autobiografia, mas acaba vagando, continuamente desviado por lembranças sobre seu pai Walter e tio Toby.

Sterne nega-nos a ordem narrativa em que geralmente nos baseamos para diferenciar a ficção da confusão do nosso pensamento cotidiano. Sua obra se recusa a se comportar: a história é, como diz Tristram, “digressiva e […] progressiva também, -e ao mesmo tempo”. O enredo de Tristram Shandy é o ato de construir o enredo e o excêntrico Tristram se deleita com sua criação inquieta, dizendo-nos que a obra é uma “máquina” que deve “ser mantida funcionando”. Examinando as muitas engrenagens de sua história, Tristram está confiante de que seu trabalho pode se sustentar indefinidamente, girando em torno de suas próprias possibilidades infinitas.

Desde sua primeira publicação, o romance gerou críticas e foi descrito por Edmund Burke, o grande antepassado dos românticos, como uma “série perpétua de decepções”. Essa avaliação pouco lisonjeira foi superada por Samuel Richardson, o romancista dos best-sellers do século XVIII, como Pamela e Clarissa: em uma carta ao bispo Mark Hildesley, Richardson declarou que não podia deixar de descrever os volumes de Sterne como “execráveis”. É um romance que sempre frustrou seus leitores.

Não podemos deixar de desejar, às vezes, que Tristram apenas continue com suas quebras narrativas “para lembrá-los de uma coisa – e informá-los de outra”. Tristram nos faz perceber o quanto, ao ler um romance, estamos no poder do escritor. Como seu filósofo favorito, John Locke, Tristram vê as mentes de seus leitores como “tábuas em branco” nas quais ele pode rabiscar ou escrever com precisão como quiser. Devemos concordar com as ruminações desorientadoras de nosso narrador se quisermos vivenciar sua história.

Minha própria leitura de Tristram Shandy foi um processo digressivo. Quando encontrei o romance de Sterne pela primeira vez aos dezesseis ou dezessete anos, fiquei encantado com os capítulos iniciais, nos quais Tristram nos conta, com humor irônico, como sua concepção foi interrompida quando sua mãe perguntou ao pai se ele havia se lembrado de dar corda no relógio. Fiquei perplexa, no entanto, quando a narrativa mudou de curso. Os cavalos de brinquedo abundam no romance: o tio de Tristram, Toby, é obcecado por eles. Enquanto eu lia os primeiros volumes, o enredo em si parecia um cavalo de balanço, brincando de avançar em vez de realmente chegar a algum lugar.

A experiência de tempo de Tristram está muito próxima de nossa própria realidade não estruturada; consumido por distrações, nosso narrador está à deriva em sua própria mente.

Não voltei ao romance até que ele apareceu em uma lista de leitura durante meu mestrado. Minha leitura do texto foi novamente fragmentada. Seções foram designadas para leitura por meus tutores com base, ao que parecia, apenas em seus próprios interesses e fiquei mais perplexa do que nunca. Que tipo de romance é melhor lido e discutido em pedaços? Devemos realmente lidar com os lapsos de atenção de Tristram cortando o texto e digerindo-o em partes?

Fui designado para o episódio “Le Fever”, uma sequência sobre as generosidades de Toby para com os pobres escrita no estilo sentimental que era popular na época de Sterne. Lidas separadamente, essas páginas parecem algo saído de The Man of Feeling, de Henry MacKenzie, um romance famoso quando foi lançado em 1771 por fazer seus leitores chorarem de simpatia por seu protagonista. Mas Tristram Shandy não é – como a leitura desta seção. Ao experimentar diferentes gêneros e estilos, nosso narrador está se apresentando para nós.

Tristram também está fazendo outra coisa: ele está procrastinando. Ele adia contar a história de sua vida porque está bloqueado pela seguinte preocupação: um tempo muito maior decorre enquanto ele escreve sua história de vida, leva mais tempo do que o decorrer de sua própria vida, então ele nunca poderá terminar sua autobiografia, jamais alcançara o dia de hoje. Ele lamenta o tanto tempo que leva para narrar um único dia de sua vida, “em vez de avançar […] estou apenas jogando tantos volumes para trás […] nesse ritmo, eu deveria escrever 364 vezes mais rápido. Do modo como faço, quanto mais eu escrevo, mais terei que escrever – e, consequentemente, quanto mais meus adoradores lerem, mais seus adoradores terão que ler”.

Tristram precisaria de um número infinito de dias para escrever sua autobiografia: ele precisaria, como o filósofo do século XX Bertrand Russell explicou no que chamou de “paradoxo de Tristram Shandy”, ser imortal. Além do mais, nós, leitores, estamos envolvidos no problema de Tristram: quanto mais ele escreve, mais temos para ler. Nós também somos limitados por nossa mortalidade.

Ao nos dizer que a história de sua vida está condenada desde o início, o narrador de Sterne nos nega a ilusão mais reconfortante da ficção: um caminho claro no tempo. Somos, como disse o formalista russo Viktor Shklovsky em 1929, “dominados por uma sensação de caos” quando lemos o romance. A experiência de tempo de Tristram está muito próxima de nossa própria realidade não estruturada; consumido por distrações, nosso narrador está à deriva em sua própria mente.

Peguei o romance pela terceira vez no final do verão passado, tendo me formado na universidade com apenas uma vaga ideia do que queria fazer a seguir. Com a remoção da estrutura da instituição de ensino, o tempo disparou de forma alarmante. As preocupações de Tristram sobre sua incapacidade de completar o que começou ofereciam um espelho do meu próprio estado de distração. Em minha busca por emprego, adiei a decisão sobre meus próximos passos, permitindo-me ser inundado por informações, principalmente on-line.

Percorrendo páginas aleatórias de mídia social, artigos da Wikipédia ou sites de empresas, percebi que a internet nos preparou para experimentar o tempo da mesma forma que Tristram faz. Seus algoritmos nos oferecem informações ilimitadas, alimentando-se de tudo o que chama nossa atenção para nos atrair para um labirinto personalizado. Sempre que usamos uma tela, essas tocas de coelho da Internet aguardam, permitindo-nos, clique a clique, fugir de nosso propósito original.

Minha geração, como somos constantemente lembrados, teve nosso foco arruinado pela tecnologia moderna, e o turbulento Tristram é um porta-voz de nosso estado de espírito. Seu projeto – escrever sua vida e, assim, contornar sua mortalidade – é sempre prejudicado por sua vulnerabilidade a distrações. Frustrado com a linguagem, ele recorre frequentemente a imagens, oferecendo linhas rabiscadas para representar seu progresso rebelde.

Com o objetivo de criar um enredo que seja uma “linha reta tolerável”, fortalecido por “uma dieta vegetal” e “algumas comidas frias”, Tristram resolve novamente arrumar sua narrativa. A questão, porém, é que nem Tristram nem seus leitores conseguem escapar do labirinto de pensamentos, e a melhor forma de ler este romance é não resistir às suas variadas correntes. Tristram articula a frustração de tentar se apoderar das coisas quando o chão abaixo de nós está constantemente cedendo.

Nossas vidas hoje existem em múltiplas dimensões: presente, passado e online. O romance de Sterne pode nos ajudar a entender esse emaranhado. Lendo Tristram Shandy pela terceira vez, percebi que minha frustração anterior não era uma falha em entender o livro. As digressões de Sterne são ricas e insatisfatórias em igual medida, como deve ser qualquer excesso de informação. Mas, embora vasculhar a Internet muitas vezes me deixe esgotada ou entorpecida pela variedade, o romance de Sterne revigora e oprime.

Como uma pintura com múltiplos pontos de vista, ou uma peça musical em estridente polifonia, ela atrai o leitor de volta, entrando novamente através de um novo ato de atenção. Tristram mantém sua história “em andamento” recusando-se a satisfazer seus leitores e, por isso, continua a me surpreender com sua vitalidade. Ao negar a estrutura organizada do tempo narrativo, o romance de Sterne combina com como o mundo parece para mim agora: indefinido, incerto, mas carregado de possibilidades.

O sumiço das livrarias, por Flávio Paiva

O sumiço das livrarias, por Flávio Paiva

Por Flávio Paiva

As livrarias estão sumindo e, pelo visto, quase ninguém se dá conta dessa desaparição. É como se elas não fizessem falta. No entanto, cada livraria desaparecida é um ponto de liberdade a menos na teia da sociedade civil de um país submetido a um estado assombrosamente acrítico, apressado e persecutório. E tudo vai ficando tão comezinho que já não se notam mais as obviedades dos posicionamentos impensados.

O sumiço das livrarias faz parte de um desastroso fenômeno de eliminação dos vínculos sociais espontâneos, desinteressados e fundamentais em qualquer processo de emancipação. Mesmo sendo uma loja, um ponto de venda, um comércio, as livrarias não são apenas negócios, elas aproximam pessoas por modos especiais de relacionamento e contribuem, inclusive, para evitar alienações decorrentes da ilusão da realidade do esquecimento funcional.

Talvez por isso mesmo muitas das livrarias que sumiram da trama urbana brasileira parecem não ter deixado nem vestígios. Por trás do fechamento das livrarias desaparece o horizonte da reflexão, da sensibilidade e do senso crítico humanizante. Com a sua plataforma física de dinamização imaginativa dissipada, a sociedade perde o contato profundo consigo mesma e com a essência dos acontecimentos.

Old Book Store, obra do artista britânico Steve Crisp para quebra-cabeças com 1.082 peças da White Mountain Puzzles. New Hampshire, EUA.

O convívio nas livrarias é ao mesmo tempo íntimo e impudico. Íntimo porque o contato com o livro, e entre quem gosta de livros, se dá pela proximidade da busca, da descoberta e do exercício livre do pensamento em convivência. E impudico por escancarar o livro e a leitura ao sentido de destino dos sonhos e dos desejos, levando o frequentador de livraria aos confins das possibilidades existenciais e de legitimação das diferenças.

Convém dizer que a necessidade das livrarias não nega nem demoniza a produção e o comércio on-line de literatura. São sistemas complementares à circulação de obras impressas e digitais. O sumiço das livrarias é alarmante porque reflete apatia social com relação a um ponto de encontro capaz de reunir lugares, tempos, sentimentos e emoções da experiência humana pelos conectivos sagrados das palavras e seus sentidos.

Naturalizar o sumiço das livrarias, como se isso fosse um determinismo hipermoderno, é sucumbir diante dos abusos doutrinários e consumistas vigentes que promovem a esterilização da autonomia do pensamento nos catálogos literários, fazendo prevalecer os livros que simplesmente entretêm, devastando assim a bibliodiversidade literária de um país tão carente de leitura e de leitores.

As livrarias são como as lavouras orgânicas e familiares em um mundo controlado pelo agronegócio. A escassez de livrarias no abundante âmbito do fluxo das ideias é como a falta de alimentos nos pequenos povoados perdidos em meio aos imensos campos de produção agrícola e pecuária. Desse modo, o sumiço das livrarias assume o caráter social de escassez em uma situação típica da nova economia de conteúdo que revitaliza o ultraliberalismo devastador.

Somem as livrarias enquanto a sociedade se perde por falta da fertilidade imaginativa que elas proporcionam. As livrarias são necessárias para a existência de atos de contraconduta. Conte-se o número de livrarias em uma cidade e se saberá o grau de humanidade que ainda lhe resta. É diretamente proporcional: quanto menos livrarias, mais medíocre a mentalidade humana dominante.

Milton Ribeiro está preso! E não está…

Milton Ribeiro está preso! E não está…

Por Flávia Cunha

Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação, está preso desde a manhã desta quarta-feira por suspeita de corrupção. Mas um homônimo da área da Literatura encara com muito bom humor a infeliz coincidência de compartilhar o nome com uma figura tão emblemática dos defeitos do governo Bolsonaro. Nesta quarta-feira, não foi diferente e ele resolveu publicar no Twitter uma “nota oficial” sobre não estar preso.

Iguais apenas no nome

Porém, é bom explicar aos desavisados: o Milton Ribeiro livreiro e escritor em nada se assemelha ao seu xará, envolvido em suspeita de liberação irregular de verbas, em um esquema que envolveria dois pastores e até propina em ouro.

Desde que o Milton pastor assumiu o cargo, em julho de 2020, o Milton dos livros ganhou junto a carga de ser hostilizado nas redes sociais por quem é de esquerda. Uma ironia do destino, já que o homônimo do ministro é contrário a Bolsonaro desde 2018 e não esconde isso nas redes sociais.

Falando com o homônimo que interessa

Em entrevista à coluna Voos Literários, Milton Ribeiro comentou que logo que o ministro assumiu o governo, sua reação foi de incômodo. Mas, com o tempo, foi aprendendo a lidar com a situação.

“Depois que o xará entrou no governo, todos os dias no twitter @miltonribeiro recebia aplausos e críticas. Em um primeiro momento, eu sempre negava ser o ministro. Depois, comecei a me divertir.”

Entre os momentos cômicos, Ribeiro cita que respondia a apoiadores do governo com comentários como “Fora, Bolsonaro”, o que provocava perplexidade. A confusão era tão recorrente que seu perfil no twitter chegou a ser marcado em publicações do Ministério da Educação. Então, o Milton que não é pastor aproveitava para fazer críticas ao governo, o que gerava espanto por parte dos seguidores.

A ressalva aos militantes de esquerda também era continuamente necessária, já que muitos não compreendiam que aquele perfil não era do integrante do primeiro escalão do governo.

“Em determinadas situações, aproveitei a visibilidade para abordar temas que achava importantes, como a descriminalização do aborto. Também aproveitei para fazer publicidade da Bamboletras e dos livros que vendemos lá. No final, consegui enxergar como cômica essa coincidência”, explicou. 

Tempos cinzentos em busca de esperança

E convenhamos que só recorrendo mesmo a um pouco de humor e à Arte para a gente suportar tantas e tantas desgraças nesse Brasil bolsonarista. Um país com uma população cada vez mais sofrida, que precisa lidar com a dor de assassinatos de quem defende causas nobres. Suportar crianças coagidas a manterem a gravidez decorrentes de estupros. Se compadecer com pessoas LGBTs atacadas diariamente por simplesmente existirem, entre outras barbáries.

Por isso, aproveitamos a dica de leitura do Milton Ribeiro que realmente nos interessa, o que ama os livros, e não o que exalta armas e conservadorismo (hipócrita). Sendo assim, também recomendamos Carcereiros, de Drauzio Varela. A obra trata do cotidiano dos agentes penitenciários a partir do olhar sensível de quem também vivenciou o cotidiano do sistema prisional brasileiro.

O livro tem na Bamboletras, claro. Porém, vale a ressalva: aqui na coluna Voos Literários não ganhamos propina para divulgar boas iniciativas literárias, ao contrário de algumas pessoas meio suspeitas por aí. Pois acreditamos em conceitos utópicos como redes colaborativas e amor aos livros para que, um dia, o mundo seja mais agradável para quem defende os direitos humanos e a cultura. Entretanto, estes são tempos difíceis para os sonhadores, como disseram a Amélie Poulain. Porém, seguimos em frente, com esperança de que o futuro seja melhor.

Dia 5 de maio, Dia da Língua Portuguesa

Por Eduardo Afonso

“Volta e meia alguém olha atravessado quando escrevo “leiaute”, “becape” ou “apigreide” – possivelmente uma pessoa que não se avexa de escrever “futebol”, “nocaute” e “sanduíche”.

Deve se achar um craque no idioma, me esnobando sem saber que “craque” se escrevia “crack” no tempo em que “gol” era “goal”, “beque” era “back” e “pênalti” era “penalty”. E possivelmente ignorando que esnobar venha de “snob”.

Quem é contra a invasão das palavras estrangeiras (ou do seu aportuguesamento) parece desconsiderar que todas as línguas do mundo se tocam, como se falar fosse um enorme beijo planetário.

As palavras saltam de uma língua para outra, gotículas de saliva circulando em beijos mais ou menos ardentes, dependendo da afinidade entre os falantes. E o português é uma língua que beija bem.

Quando falamos “azul”, estamos falando árabe. E quando folheamos um almanaque, procuramos um alfaiate, subimos uma alvenaria, colocamos um fio de azeite, espetamos um alfinete na almofada, anotamos um algarismo.

Falamos francês quando vamos ao balé usando um paletó marrom, quando fazemos um croqui ou uma maquete com vidro fumê; quando comemos uma omelete ou pedimos na boate um champanhe ao garçom; quando nos sentamos no bidê, viajamos na maionese, ou quando um sutiã (sob o edredom) provoca uma gafe – ou um frisson.

Falamos tupi ao pedir um açaí, um suco de abacaxi ou de pitanga; quando vemos um urubu ou um sabiá, ficamos de tocaia, votamos no Tiririca, botamos o braço na tipoia, armamos um sururu, comemos mandioca (ou aipim), regamos uma samambaia, deixamos a peteca cair. Quando comemos moqueca capixaba, tocamos cuíca, cantamos a Garota de Ipanema.

Dá pra imaginar a Bahia sem a capoeira, o acarajé, o dendê, o vatapá, o axé, o afoxé, os orixás, o agogô, os atabaques, os abadás, os babalorixás, as mandingas, os balangandãs? Tudo isso veio no coração dos infames “navios negreiros”.

As palavras estrangeiras sempre entraram sem pedir licença, feito uma tsunami. E muitas vezes nos pegando de surpresa, como numa blitz.

Posso estar falando grego, e estou mesmo. Sou ateu, apoio a eutanásia, gosto de metáforas, adoro bibliotecas, detesto conversar ao telefone, já passei por várias cirurgias. E não consigo imaginar que palavras usaríamos para a pizza, a lasanha, o risoto, se a máfia da língua italiana não tivesse contrabandeado esse vocabulário junto com a sua culinária.

Há, claro, os exageros. Ninguém precisa de um “delivery” se pode fazer uma “entrega”, ou anunciar uma “sale” se se trata de uma “liquidação”. Pra quê sair pra night de bike, se dava tranquilamente pra sair pra noite de bicicleta?

Mas a língua portuguesa também se insinua dentro das bocas falantes de outros idiomas. Os japoneses chamam capitão de “kapitan”, copo de “koppu”, pão de “pan”, sabão de “shabon”. Tudo culpa nossa. Como o café, que deixou de ser apenas o grão e a bebida, para ser também o lugar onde é bebido. E a banana, tão fácil de pronunciar quanto de descascar, e que por isso foi incorporada tal e qual a um sem-fim de idiomas. E o caju, que virou “cashew” em inglês (eles nunca iam acertar a pronúncia mesmo).

“Fetish” vem do nosso fetiche, e não o contrário. “Mandarim”, seja o idioma, seja o funcionário que manda, vem do portuguesíssimo verbo “mandar”. O americano chama melaço de “molasses”, mosquito de “mosquito” e piranha, de “piranha” – não chega a ser a conquista da América, mas é um começo.

Tudo isso é a propósito do 5 de maio, Dia da Língua Portuguesa, cada vez mais inculta e nem por isso menos bela. Uma língua viva, vibrante, maleável, promíscua – vai de boca em boca, bebendo de todas as fontes, lambendo o que vê pela frente.

Mais de oitocentos anos, e com um tesão de vinte e poucos.

Um século lendo Ulysses

Um século lendo Ulysses

Fazem exatamente 100 anos que o intrincado romance de James Joyce, que fortaleceu minha vocação de escritor, chegou à livraria Shakespeare and Company como se fosse o Santo Graal.

De Juan Gabriel Vásquez
Traduzido informalmente pelo dono do blog

Há 100 anos, em Paris, um escritor irlandês à beira do desespero escreveu cartas e telegramas e fez telefonemas para garantir que seu novo romance saísse no dia programado. James Joyce já havia publicado dois livros que teriam sido suficientes para abrir um espaço para ele na história: Dubliners, que às vezes me parece o melhor livro de contos em língua inglesa, e Portrait of the Artist as a Young Man, um romance cujas últimas páginas me fazem estremecer hoje, os mesmos arrepios que me causaram quando os li pela primeira vez, mais ou menos na idade de seu protagonista. Mas em janeiro de 1922, Joyce ficou mais conhecido por um romance que não havia sido publicado na íntegra, mas já era uma lenda: Ulysses. Vários capítulos haviam aparecido em várias revistas, dividindo os leitores da época como estão hoje: metade achou o romance uma obra-prima; a outra metade, que era de uma obscenidade incompreensível. Nenhuma editora ousara publicá-lo, prevendo — corretamente — que receberia ações judiciais e tentativas de censura. Joyce abordou o assunto desconsoladamente a um amigo livreiro e ficou tão surpresa quanto ela quando a ouviu perguntar: “Você daria à Shakespeare and Company a honra de ser sua editora?”

O nome da livreira era Sylvia Beach: uma jovem americana de olhos arregalados e lábios finos que viera a Paris para escapar das restrições de sua família presbiteriana e cuja livraria da Rue de l’Odéon era um ponto de encontro para expatriados. (Hemingway e Pound o frequentavam, também Gertrude Stein, mentora de todos). A ideia de que esta livraria se encarregasse da publicação de Ulysses era inusitado, para dizer o mínimo, mas foi feito: em abril de 1921 Joyce e Sylvia Beach concordaram em publicar mil livros, desde que fossem vendidos antecipadamente, e lembro-me da carta que George Bernard Shaw escreveu quando recebeu um convite para comprar um cópia: “Se você acha que um irlandês, já velho, pagaria 150 francos por um livro, você sabe muito pouco sobre meus compatriotas”. Durante o resto do ano, Joyce se dedicou a terminar aquele romance impossível, corrigindo os capítulos publicados e procurando alguém para limpar os impenetráveis ​​manuscritos dos inéditos. O processo já teria sido bastante difícil mesmo se Joyce não tivesse imposto adicionalmente a data de publicação: 2 de fevereiro.

Era seu aniversário de 40 anos, e Joyce era um homem supersticioso. Ele nunca quis, por exemplo, que o romance fosse publicado em 1921: os números do ano somam 13. No verão ele saiu para beber vinho com um amigo, e não apenas ficou preocupado quando encontrou o conjunto de talheres estranhamente disposto, mas quase lhe deu uma síncope quando o amigo viu passar um rato: era sinal certo de azar. Por volta dos mesmos dias, para piorar a situação, ele teve um ataque de irite que o deixou acamado em um quarto escuro pelas próximas semanas. Mas ele continuou revisando as provas, enviando novos acréscimos ao seu impressor — um bom homem de Dijon que quase enlouqueceu no processo — o tempo todo lembrando-lhe que o romance deveria ser publicado em 2 de fevereiro. No primeiro dia do mês, passeando em um parque com sua esposa, Nora, e a escritora Djuna Barnes, ouviu um homem dizer-lhe: “Você é um escritor abominável”. Mas ele disse isso em latim, e Joyce achou que era um horrível presságio.

Incrivelmente, como diz Borges em um conto, o dia prometido chegou. No dia 2 de fevereiro, às sete da manhã, o motorista do expresso Dijon-Paris trouxe um pacote com os dois primeiros exemplares da primeira edição do Ulysses. Sylvia Beach os esperou na estação de trem, como se fossem dignitários de algum governo estrangeiro, levou um para a casa dos Joyce e levou o outro para mostrá-lo em sua livraria. Richard Ellmann, autor de uma biografia de Joyce que teve um lugar na minha vida que as biografias normalmente não têm, diz que a livraria estava cheia até o final da tarde. Ele conta ainda que Joyce, por sua vez, foi jantar com a família e vários casais de amigos para comemorar o evento, mas só no final do jantar ele se atreveu a tirar o livro do pacote que guardava embaixo do assento. . “Era um volume”, escreve Ellmann, “encadernado nas cores gregas — letras brancas sobre fundo azul — que Joyce considerava como boa sorte.”

Por duas vezes tive nas mãos um exemplar dessa edição. A primeira foi quando eu tinha 21 anos, no verão de 1994, quando o feitiço inexplicável causado por Ulysses estava no auge. Eu havia lido o romance um ano antes com uma espécie de reverência, e ainda não entendo que ligação misteriosa aquele livro hermético estabeleceu comigo. Li-o com uma dedicatória que nunca mais tive, acompanhada de dois livros paralelos que explicavam ou iluminavam todas as referências; hoje ainda acho que é a única maneira de ler este romance cheio de piscadelas e sinais, grandes e pequenos, e que lê-lo sem ajuda bem escolhidas é perda de tempo e explica por que tantos leitores ficam de fora. Em todo o caso, essa leitura dos meus vinte anos teve muito a ver com a consolidação da minha vocação e também — por razões mais pessoais e sem dúvida mais frívolas — com a minha decisão de arranjar um pretexto para ir a Paris.

A primeira coisa que fiz quando cheguei a Paris, aos 23 anos e com a obsessão devoradora de aprender a escrever romances, foi caminhar até o número 12 da Rue de l’Odéon. A livraria Shakespeare and Company já não existia, claro, e a que existia e existe com o seu nome não é a mesma, ainda que seja uma digna herdeira. Mas havia (e há) a placa que nos conta friamente o que aconteceu ali. Pois bem, em poucas semanas fará 100 anos que uma cópia daquela primeira edição foi exposta como um Santo Graal naquele lugar desaparecido, e nestes dias não pude evitar voltar à minha própria edição, publicada 70 anos depois, e percorrer minhas passagens favoritas: os três primeiros capítulos, o capítulo da biblioteca, a cidade da noite (ainda hilário) e o famoso monólogo de Molly Bloom. Hoje não admiro as coisas que admirava quando tinha 20 anos – nem dificuldades gratuitas nem pirotecnias sem propósito – mas encontrei outras para admirar. E há quase um ano, quando um amigo madrileno me pôs nas mãos um desses exemplares, voltei a sentir uma emoção um tanto ridícula e de qualquer modo incomunicável, porque naquele momento o passado, a amizade e a literatura se misturavam, três coisas que sempre levei muito a sério.

Juan Gabriel Vasquez é escritor. Seu último romance é Olhando para trás (Alfaguara).

Sobre Renato e os treinadores brasileiros, por Idelber Avelar

Sobre Renato e os treinadores brasileiros, por Idelber Avelar

Ontem ficou provado: qualquer treinador europeu mediano dá um baile em treinadores brasileiros considerados de ponta.

Pelo terceiro ano consecutivo, a Copa Libertadores foi conquistada por um treinador europeu, ambos — Jesus em 2019, Abel em 2020 e 2021 — oriundos de um país que talvez nem se classifique para a Copa, que é periférico no futebol europeu.

O plantel do Flamengo é muito superior ao do Palmeiras, não é pouco, não. E, com a exceção de uns quinze minutos durante o segundo tempo, depois do gol do Gabriel, a sensação que se teve o jogo todo é que o Palmeiras tinha o controle completo da peleja.

No banco do Flamengo, você tinha a cena patética do lateral Filipe Luís, que tinha saído contundido, explicando coisas ao Renato, porque o técnico do Flamengo é tão capaz de ler a disposição tática de uma partida como eu de ler aramaico.

Foi bom para o futebol o resultado de ontem, porque a pior coisa que pode nos acontecer como país é recompensar gente que estimula a ignorância, que alardeia a inutilidade do estudo. Porra, nós temos os piores índices do mundo em leitura, matemática e ciências, e vamos usar uma posição de destaque e poder — como é a de um treinador de clube grande — para estimular as pessoas a não estudarem? O sujeito que faz isso é um criminoso.

O Renato Gaúcho faz isso o tempo todo. Ele acha que, por ter sido boleiro, não precisa estudar. Vai perder o Brasileirão choramingando por um calendário que foi ruim do mesmo jeito para o virtual campeão (que tem tantos jogadores convocados em datas FIFA como o time dele), perdeu a Copa do Brasil levando goleada e nó tático de um clube médio em casa, e perdeu a Libertadores levando outro nó tático do mesmo portuga que já lhe havia aplicado um quando ele treinava o Grêmio.

Isso vindo do fanfarrão que levou 5 x 0 do Flamengo de Jesus e respondeu que se ele tivesse um time de 200 milhões, ele também ganharia tudo. O plantel do Flamengo é hoje avaliado em 700 milhões e ele conseguiu não ganhar nada. Alguém imagina a Alemanha contratando o Felipão de técnico depois do 7 x 1? Não, né? Foi isso o que o Flamengo fez.

Em condições normais de temperatura e pressão, eu torço contra o Flamengo e contra o Cruzeiro, mas os títulos do Flamengo de 2019 não me incomodaram em nada. Fiquei feliz, inclusive. É isso o que a galera mais fanaticamente clubista precisa entender quando comenta aqui: eu amo futebol, futebol bem jogado, e o Brasil precisa desesperadamente de alguns Jorge Jesus por aqui.

Ontem, sim, impunha-se torcer pelo Palmeiras. O Abel Ferreira não é nenhum Guardiola, mas para esta terra de cegos, o olho dele já tá bom demais. Ele estuda, trabalha, respeita os outros.

Agora, o time grande que contratar o fanfarrão do Renato Gaúcho merece uma zica de 100 anos. Merece o mesmo destino que merecerá o Brasil se reeleger Bolsonaro.

Gene Tierney

Gene Tierney

Publicado no perfil do Facebook de Gusthavo Stern-Ew

A mulher mais linda da história do cinema segundo o poderoso produtor Darryl F. Zanuck. Talvez ele tenha razão. Ao lado dela somente Ava Gardner, Sophia Loren, Hedy Lamarr e Elizabeth Taylor. Para o cineasta Martin Scorsese, Gene Tierney é uma das atrizes mais subestimadas do cinema norte-americano. E a sua história daria um filme de sucesso. De origem irlandesa, inglesa e judaica sefardita, Gene atuou em 37 filmes. Nascida numa família rica da Costa Leste, seu pai era um magnata. Educada nas escolas de maior prestígio do país, inclusive na Suíça. Desde cedo, demonstra interesse pela carreira de atriz, representando muitas vezes para os pais e amigos. Aos 17 anos, em uma visita aos estúdios da Warner Bros., causa sensação com sua beleza, e o diretor Anatole Litvak diz a sua mãe: “Ela deveria fazer cinema”. Fez um teste, pouco depois, mas o pai recusou o contrato. Se a filha queria representar, deveria fazê-lo “num teatro a sério”. Depois de dois anos na Europa, ela voltou aos Estados Unidos. Em 1938 se apresentou na Broadway em “What a Life!” e ao mesmo tempo em “The Primerose Path” (1938). Seus papéis subsequentes, em “Mrs O’Brian Entertains” (1939) e “Ring Two” (1939), recebem elogios dos críticos novaiorquinos. Richard Watts escreve: “Não vejo razão para a senhorita Tierney não ter uma longa e interessante carreira teatral, isto é, se o cinema não a sequestrar”. Figura voluptuosa, voz profunda e sensual, a atriz ganha destaque de pronto por sua beleza e, rapidamente, dá o salto para o cinema quando o produtor da 20th Century-Fox, Darryl F. Zanuck, a vê no palco e a levou para Hollywood, onde estreou em 1940 no western “A Volta de Frank James / The Returno f Frank James”, ao lado de Henry Fonda e dirigida por Fritz Lang. No ano seguinte, atua em cinco filmes, dando início a uma carreira de sucesso. Em 1943, com a sofisticada comédia “O Diabo Disse Não”, tem a crítica a seus pés e se torna uma das estrelas mais bem pagas de Hollywood. O ano de 1944, no entanto, foi o de sua consagração. O ano de “Laura”, onde faz o papel de uma mulher enigmática cobiçada por três homens. Lançado no dia 11 de outubro de 1944, em uma première em Nova York, a estréia no Brasil se dá em 29 de janeiro de 1945.

O filme intriga os críticos com sua mistura de estilos (noir, psicodrama, melodrama e thriller). Leva o Oscar de Melhor Fotografia e é indicado para outras quatro categorias: Melhor Diretor, Melhor Ator Coadjuvante (Clifton Webb), Melhor Roteiro e Melhor Direção de Arte. A atriz teve sua única indicação ao Oscar pela excelente atuação em “Amar Foi Minha Ruína”, de 1945, perdendo a estatueta para Joan Crawford por “Alma em Suplício / Mildred Pierce”. Elegante e boa intérprete, Tierney é dirigida por excelentes diretores: Lubitsch, John Ford, Preminger, Joseph L. Mankiewicz, Jules Dassin, Josef von Sternberg, entre outros. Casou-se em junho de 1941 com um famoso figurinista francês, Oleg Cassini, de quem se divorcia em fevereiro de 1952. Durante uma apresentação na Hollywood Canteen, grávida, é abraçada por uma fã que, sem que soubesse, era portadora de rubéola. Através desse incidente sua filha nasce com graves problemas e seu casamento acaba. Daria nasce prematura, exigindo uma transfusão de sangue completa, além de surda, parcialmente cega e com retardo mental. Isso, como era de se esperar, prejudica sua vida emocional. De uma breve reconciliação com o marido, nasceu uma segunda filha, Christina. Abandonada, ferida e desencantada, a bela e famosa atriz jogou-se de cabeça numa vida desregrada, marcada por múltiplos amantes, dentre os quais o então senador John F. Kennedy, o milionário Howard Hughes e os atores Spencer Tracy e Tyrone Power. Ao conhecer o príncipe Ali Khan, ex-marido de Rita Hayworth, apaixonou-se perdidamente. Rita já havia sofrido bastante nas mãos do príncipe, que apesar de rico, vivia às custas dela. Enamorada, Gene planejava casar-se, mas Khan não queria compromisso. Quando começou a pressioná-lo, ele se afasta. Sentindo-se humilhada e louca de amor, começa a desenvolver os primeiros sintomas da cruel depressão que iria lhe acompanhar por toda a vida.

Convidada para estrelar o clássico de aventura “Mogambo” (1953), termina sendo substituída por Grace Kelly, que recebe uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel de Linda Nordley. Com suspeita de esquizofrenia e depressão suicida, inconformada com o fracasso de seus relacionamentos, Tierney é internada em 1957 em uma instituição psiquiátrica, de onde só sai três anos depois. Segundo a própria atriz, esteve “às portas da loucura”. Passa por diversos tratamentos de choque. Tais fatos fizem com que não participasse de nenhum filme no período de 1955 a 1961. Em 1959, ainda frágil, aceita o papel principal na comédia “ Holiday for Lovers” (1959). No entanto, devido a um colapso nervoso, é forçada a deixar a produção da Fox, sendo substituída por Jane Wyman, e é novamente internada. Em busca de uma vida tranquila, Tierney casou-se em 1960 com um barão do petróleo texano, W. Howard Lee, ex-marido de Hedy Lamarr, com quem vive até a morte deste em fevereiro de 1981. Durante o casamento sofre um aborto espontâneo. Em 1962, retorna às telas no magnífico drama político “Tempestade Sobre Washington”, de Otto Preminger, aparecendo ainda em três outros filmes e alguns episódios de séries de TV, sendo o último, “Escrúpulos / Scruples”, em 1980. Em 1979 a atriz escreve sua autobiografia, onde fala abertamente sobre sua vida pessoal, doença mental e carreira. Gene foi uma republicana convicta e uma forte defensora de Richard Nixon e Ronald Reagan. Tierney faleceu vitima de enfisema em 6 de novembro de 1991, em Houston, 13 dias antes de seu 71º aniversário.

Gene Tierney (1920-1991)

Joseph Brodsky, em entrevista com o jornal Observer, em 25 de outubro de 1981

Joseph Brodsky, em entrevista com o jornal Observer, em 25 de outubro de 1981

Todos nós somos levados a uma armadilha psicológica armada por nossa civilização. Nossa mãe, babá ou outra pessoa, desde a infância, nos diz que a vida é bela, que a pessoa é bela, que o bem triunfará sobre o mal, e que o lobo malvado jamais virá. E quando nos deparamos com algo nojento, nossa primeira reação é: não pode ser, houve um erro — que cometemos nós ou, melhor ainda, outra pessoa. As mães deveriam dizer aos filhos que, cinquenta por cento das vezes, um lobo cinzento furioso aparece na soleira da porta e se parece com a gente.

Joseph Brodsky (1940-1996)

Para as pessoas da minha geração, ficou difícil reconhecer o próprio país (por Marcelo Coelho, na Folha)

Para as pessoas da minha geração, ficou difícil reconhecer o próprio país (por Marcelo Coelho, na Folha)

A sensação não vem de agora. Começou com a campanha presidencial de Bolsonaro, ou antes até. Algumas pessoas da minha geração — os que entraram na universidade entre 1975 e 1985 — têm dito a mesma coisa.

Não reconhecem mais o Brasil; tudo lhes parece incompreensível, selvagem, fora de alcance.

Como se, de repente (isso me aconteceu uma ou duas vezes) entrássemos de carro numa avenida deserta, sem perceber que estávamos na contramão. No instante seguinte, o fluxo avança, e teremos sorte se conseguirmos subir na calçada sem trombar de frente.

Claro, direitistas sempre houve. Longe de mim pensar que todo mundo era de esquerda. Um ou outro tio malufista; apresentadores de TV defendendo a Rota; algum conhecido que se alinhava com organizações tradicionalistas católicas; um grupo da TFP no restaurante; o zelador, o taxista, a favor da pena de morte.

Mas isso era distante. Era visível, manifestava-se todo santo dia —mas não ocupava lugar conspícuo na cabeça. A maré parecia ser outra, para quem crescera vendo a ditadura declinar.

Houve, certamente, o fenômeno Collor. De uma hora para outra, os bairros de classe média alta cobriram-se de faixas apoiando o candidato; falava-se que, ganhando Lula, os sem-teto ocupariam nossas casas e que as autoridades econômicas sequestrariam nossos investimentos no banco.

O medo do “comunismo” e o discurso anticorrupção eram semelhantes aos de hoje; Collor também se apresentava como alguém fora do sistema, e adotou um estilo populista.

Mas não me lembro de sentir, na época, o estranhamento que Bolsonaro me provoca. Talvez porque a democracia acabava de ser inaugurada; o direitismo não representava ameaça institucional. A retórica de Lula, em 1989, era por sua vez bem mais radicalizada do que seria depois.

Vejo com espanto que, com tudo o que tivesse de contrário a minhas convicções, o mundo de Collor ainda era próximo do meu. Um ministro dele, eu conhecia dos corredores da USP. O vice de Collor, bem ou mal, era Itamar Franco. O ministro da Cultura era Sérgio Paulo Rouanet. O próprio presidente, entre um e outro passeio de jet-ski, foi para a Espanha e visitou o Museu do Prado.

Sim, havia barbaridades, direitismos, neoliberalismos, anticomunismo. Mas tudo se vendia na embalagem da “modernidade” — da abertura comercial, do fim da reserva de mercado para a informática, da privatização, da compra de carros importados.

Resumindo: no governo Collor, a elite (a minha elite) ainda estava presente. O verniz de classe sobrevivia. O presidente não fazia a gente passar vergonha no exterior.

Aquele meu mundo tinha diferenças internas: havia fernando-henriquistas, lulistas, neoliberais, marinistas, adeptos do PSOL, roqueiros, amantes da ópera, ex-hippies, deslumbrados. O Brasil cabia nessas diferenças todas; o Brasil era “nosso”.

Sinto que isso foi sumindo para dentro de um buraco. Parte da “minha turma” entrou nele. Gente perseguida pelo regime de 1964 votou no defensor de Brilhante Ustra!

Mas não é só o apoio a Bolsonaro.

Quando você menos espera, um parente ou amigo anuncia que não vai se vacinar. Era uma pessoa razoável, frequentadora do Cine Belas Artes. Outro fura a fila da vacina. Era uma pessoa corretíssima, incapaz de estacionar na fila dupla.

Volto então os olhos para o antibolsonarismo. Há os amigos que sobram. Mas uma parcela significativa da oposição já não tem nada a ver comigo. Nem falo dos que odeiam qualquer um que escreva na Folha, ou dos que acreditam em Cuba, ou dos que sustentam que nunca houve corrupção no PT.

Esses ainda eu reconheço. Mas um contingente desconhecido se organiza: desconfiam de um homem que se diz pró-feminista, ou de um branco que fala sobre preconceito racial. Ai de quem criticar a queima de uma estátua, a atitude de uma cantora negra, a política de mudar regras “machistas” do português.

Talvez seja uma coisa que aconteça com todas as gerações. A minha — o que ainda resta dela — já vai perdendo seu lugar no mundo.

Marcelo Coelho (1959)

.oOo.

Há décadas — meus amigos mais antigos sabem disso –, digo que a baixa qualidade da educação causaria o que está acontecendo. Previ inclusive o crescimento dos evangélicos e sua entrada na política. Às vezes eu acerto. 

Éramos inconscientes do que havia de civilizado em nosso país? A barbárie chegou para ficar?

Concordo com a segunda frase, infelizmente. Mas sabem que eu conhecia a nossa crescente incivilidade? Mas só tive contato com ela quando fui dar aulas na periferia. Ali reina a barbárie.

Um grito | Padura escreve sobre as manifestações em Cuba

Um grito | Padura escreve sobre as manifestações em Cuba

Por Leonardo Padura

Parece bem possível que tudo o que aconteceu em Cuba desde o último domingo, 11 de julho, tenha sido encorajado por um maior ou menor número de pessoas contrárias ao sistema, algumas delas até mesmo pagas, com o objetivo de desestabilizar o país e causar uma situação de caos e insegurança. Também é verdade que em seguida, como costuma acontecer nesses eventos, ocorreram atos oportunistas e lamentáveis de vandalismo. Mas acredito que nenhuma das evidências tira um pingo de razão do grito que escutamos. Um grito que também é fruto do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise econômica e uma crise pontual de saúde, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas.

A esse clamor desesperado, as autoridades cubanas não deveriam responder com os habituais lemas, repetidos há anos, e com as respostas que essas autoridades querem ouvir. Nem mesmo com explicações, por mais convincentes e necessárias que sejam. O que se impõe são as soluções que muitos cidadãos esperam ou exigem, alguns se manifestando na rua, outros dando sua opinião nas redes sociais e expressando sua desilusão ou discordância, muitos contando com os poucos e desvalorizados pesos que têm em seus empobrecidos bolsos e muitos, muitos mais, fazendo filas em um silêncio resignado por várias horas sob sol ou chuva, inclusive com a pandemia, filas nos mercados para comprar comida, filas nas farmácias para comprar medicamentos, filas para conseguir o pão nosso de cada dia e para tudo imaginável e necessário.

Acredito que ninguém com um mínimo de sentimento de pertencimento, com um sentido de soberania, com uma responsabilidade cívica pode querer (ou mesmo acreditar) que a solução para esses problemas venha de qualquer tipo de intervenção estrangeira, muito menos de natureza militar, como chegaram a pedir alguns, e que, também é verdade, representa uma ameaça que não deixa de ser um cenário possível.

Também acredito que qualquer cubano dentro ou fora da ilha sabe que o bloqueio, ou embargo comercial e financeiro dos Estados Unidos, como queiram chamá-lo, é real e se internacionalizou e intensificou nos últimos anos. E é um fardo muito pesado para a economia cubana (como seria para qualquer outra economia). Aqueles que vivem fora da ilha e querem hoje ajudar seus familiares em meio a uma situação crítica, podem comprovar que existe e o quanto existe ao serem praticamente impedidos de enviar uma remessa para seus familiares, só para citar uma situação que afeta muitos. É uma política antiga que, aliás (às vezes alguns esquecem), praticamente todo o mundo tem condenado por muitos anos nas sucessivas assembleias das Nações Unidas.

E não acredito que alguém possa negar que também foi desencadeada uma campanha midiática na qual, até das formas mais grosseiras, foram divulgadas informações falsas que, do princípio ao fim, só servem para diminuir a credibilidade de seus gestores.

Mas acredito, junto a tudo o que foi dito acima, que os cubanos precisam recuperar a esperança e ter uma imagem possível de futuro. Se a esperança se perde, perde-se o sentido de qualquer projeto social humanista. E a esperança não é recuperada pela força. Ela é resgatada e alimentada com soluções, mudanças e diálogos sociais, que por não chegarem têm causado, entre tantos outros efeitos devastadores, os anseios migratórios de tantos cubanos e agora provocam o grito de desespero de pessoas entre as quais certamente havia criminosos oportunistas e pessoas pagas para tanto. Embora eu me recuse a acreditar que no meu país, a esta altura, possa haver tanta gente, tantas pessoas nascidas e educadas entre nós que se vendam ou cometam crimes. Porque se assim fosse, isso seria fruto da sociedade que os fomentou.

A forma espontânea com que um número notável de pessoas também tem se manifestado nas ruas e nas redes, sem se atrelar a nenhuma liderança, sem receber nada em troca ou roubar nada pelo caminho, deveria ser um alerta. E penso que é uma amostra alarmante das distâncias que se abriram entre as esferas políticas dirigentes e as ruas (e isso foi até mesmo reconhecido pelos dirigentes cubanos). Só assim se explica que o que aconteceu, sobretudo em um país onde quase tudo se sabe quando se quer saber, como todos nós também sabemos.

Para convencer e acalmar os desesperados o método não pode ser o das soluções de força e obscuridade, como impor um apagão digital que cortou há dias as comunicações de muitos, mas que não impede as ligações de quem quer dizer alguma coisa, a favor ou contra. Muito menos pode se empregar como argumento de convencimento a resposta violenta, especialmente contra os não violentos. E já se sabe que a violência pode ser não apenas física.

Muitas coisas parecem estar em jogo hoje. Talvez até depois da tempestade venha a calmaria. Talvez os extremistas e fundamentalistas não consigam impor suas soluções extremistas e fundamentalistas, e não se enraíze um perigoso estado de ódio que tem crescido nos últimos anos.

Mas, de qualquer forma, é necessário que cheguem as soluções, respostas que não deveriam ser apenas de natureza material mas também de caráter político. E assim uma Cuba melhor e inclusiva poderia responder às razões desse grito de desespero e perda de esperanças que, em silêncio, mas com força desde antes do 11 de julho, vinham de muitos de nossos compatriotas. Esses lamentos que não foram escutados e cujas chuvas originaram esse lamaçal.

Como cubano que vive em Cuba, trabalha e acredita em Cuba, presumo que tenho o direito de pensar e expressar minha opinião sobre o país em que vivo, trabalho e acredito. Já sei que em momentos como este e ao tentar expressar uma opinião, acontece de ser “sempre reacionário para alguns e radical para outros”, como disse certa vez Claudio Sánchez Albornoz. Também assumo esse risco, como um homem que almeja ser livre, que espera ser cada vez mais livre.

Mantilla (Havana), 15 de julho de 2021

* Tradução de Isabella Meucci

Pois é, eu e Padura | Foto: Roberta Fofonka

Compartilhando uma passagem de Vassili Grossman, sobre Tchékhov, em Vida e Destino:

Compartilhando uma passagem de Vassili Grossman, sobre Tchékhov, em Vida e Destino:

“Não, não chega. Tchékhov trouxe à nossa consciência essa massa enorme de russos, todas as classes, estratos sociais, idades… Mais do que isso! Ele nos trouxe esses milhões como democrata, entendam, como um democrata russo. Ele disse o que ninguém antes, nem mesmo Tolstói, havia dito: antes de tudo, todos nós somos pessoas, entendam, pessoas, pessoas, pessoas! Disse isso na Rússia, como ninguém antes havia dito. Ele disse: o mais importante é que as pessoas são pessoas, e só depois são bispos, russos, lojistas, tártaros, operários. Entendam: as pessoas não são melhores ou piores por serem bispos ou operários, tártaros ou ucranianos; as pessoas são iguais, porque são pessoas. Há meio século, cegas pela estreiteza partidária, as pessoas achavam que Tchékhov era o porta-voz de uma época ultrapassada. Mas Tchékhov é o porta-estandarte da maior bandeira que já foi erguida nos mil anos de história da Rússia: da autêntica e boa democracia russa, entendam, da dignidade humana russa, da liberdade russa. Pois nosso humanismo sempre foi irreconciliavelmente sectário e cruel. De Avvakum159 a Lênin nossa ideia de humanismo e liberdade sempre foi partidária, fanática, impiedosamente sacrificando a pessoa a uma concepção abstrata de humanidade. Até Tolstói, com a pregação da teoria da não violência, é intolerante e, principalmente, não parte do ser humano, mas de Deus. É importante para ele que triunfe a ideia de bondade, contudo os homens de Deus sempre tentaram enfiar Deus no homem à força, e na Rússia eles não se detiveram diante de nada para alcançar esse objetivo: degolar, matar, o que quer que fosse. Tchékhov disse: vamos colocar Deus de lado, vamos colocar de lado as chamadas grandes ideias progressistas, comecemos pela pessoa, sejamos bons e atenciosos para com a pessoa, seja ela quem for: bispo, mujique, industrial milionário, trabalhador forçado de Sakhalina, empregado de restaurante; comecemos por respeitar, ter compaixão, amar a pessoa, pois sem isso não chegamos a lugar algum. Isso é que se chama democracia, a até agora irrealizada democracia russa. O russo viu de tudo em mil anos, a grandeza e a ultragrandeza, só não viu uma coisa: a democracia. Essa é, a propósito, a diferença entre os decadentistas e Tchékhov: o Estado pode se irritar com o decadente e lhe dar um tapa na nuca, uma joelhada no traseiro. Mas o Estado não entende a essência de Tchékhov, e por isso o atura. Na nossa casa, a democracia não tem valor; estou falando da democracia de verdade, a democracia humana.”

Vassili Grossman (1905-1964)

Sobre o Gre-Nal e o racismo (aqui guardado para o próximo episódio)

Sobre o Gre-Nal e o racismo (aqui guardado para o próximo episódio)

Como certamente tais fatos se repetirão, seja em atos de torcedores, seja nas palavras de falsos mas barulhentos representantes como Eduardo Bueno (o Peninha), copio profilaticamente este excelente texto aqui no blog. 

Por Carlos André Moreira

No momento do Gre-Nal, eu estava tão alheio à partida que estava editando um vídeo para o Admirável Mundo Livro. Precisei perguntar para o meu irmão para saber quanto foi. Ao saber que o Inter ganhou, fiquei feliz, claro. Ao saber que os gremistas estão reclamando de roubo, achei natural, o mimimi tricolor é bem conhecido, mas, como não vi o jogo, não tenho opinião. E, claro, fiquei MAIS FELIZ AINDA ao saber que os gremistas estão reclamando.

Agora, a nota triste da coisa é o episódio já bastante divulgado que gerou as mesmas e inacreditáveis discussões de sempre sobre se um gremista chamar um colorado de “macaco” é racista.

Sério, eu não acredito que tem gente lá fora que AINDA discuta isso.

Eu fui repórter esportivo nos anos 2000. Cobri minha cota de gre-nais e ouvi algumas coisas de arrepiar os cabelos. Uns poucos anos antes disso, foi a época em que a torcida do Grêmio começou a adaptar o cântico da torcida do centro do país, “Ah, eu tou maluco”, para “Bah, eu sou gaúcho”. Ao mesmo tempo, a torcida do Grêmio enchia tanto saco da do Inter com essa coisa do “macaco” (não vou reproduzir a musiquinha que inclusive era tocada com banda completa pela então chamada “Alma Castelhana”, mais tarde “Geral do Grêmio”, vocês, lembram, não finjam que não) que uma hora, em um gesto de desafio, a torcida do Inter começou a parodiar a “Bah, eu sou gaúcho” por “Ah, eu sou macaco” quando vencia os Gre-Nais. Um desafio semelhante ao do Flamengo com o “Urubu” ou à apropriação da “palavra com N” pela comunidade negra americana, guardadas as proporções.

Mas como o jogo do preconceito estrutural tem cartas marcadas e é impossível de ser ganho, bastaram alguns anos se passarem para que o gremista sem noção do próprio racismo começasse a argumentar: “Aihn, mas os próprios colorados se chamam assim”. Sim, começaram a se chamar assim para jogar de volta na cara o racismo anterior: “Me chamou de macaco e perdeu assim mesmo, otário”. NÃO e JAMAIS para que tu tenha a tranquilidade garantida pra usar um insulto cuja origem é historicamente racista, seu idiota.

Foi só passar mais uns anos e chegou-se a inventar uma origem histórica alternativa e mentirosa absolutamente DESONESTA para vender a ideia de que chamavam os colorados de “macacos” porque subiam nas árvores do seu antigo estádio. Não quero dar carteiraço, mas eu pesquisei extensamente a história do clássico e ISSO É MENTIRA, e o fato de que ela precisou ser inventada, pra mim, significa, com muita clareza, que em alguma parte do seu inconsciente coletivo, digamos assim, a torcida gremista está ciente do passado comprometedor do termo e quer tentar alterá-lo (o passado, claro, não o termo, dado que muitos não parecem muito inclinados a deixar de usá-lo quando a cabeça incha).

Uma árvore lotada de torcedores | Foto: http://www.tecnologiaefloresta.com.br/

Um lindo texto de Nina Paduani que repasso para a Elena

Um lindo texto de Nina Paduani que repasso para a Elena

Sim, para a Elena que, como eu, ama Londres. A Embankment Station, Elena, é aquela para onde a gente ia a fim de chegar ao Southbank Center do outro lado da ponte, à National Gallery, à St. Martin-in-the-fields, à Trafalgar, ao Covent Garden, etc.

Por Nina Paduani

pouco antes do Natal de 2012, os funcionários da estação de metrô Embankment, em Londres, viram uma mulher visivelmente perturbada na plataforma. ela ficava perguntando para onde a voz tinha ido. eles não entendiam o que ela queria dizer. “a voz?” sim, a voz, ela respondeu. o homem que diz “cuidado com o vão”. ah, é isso? não se preocupe, disse a equipe do Embankment. o aviso ainda existe, apenas o atualizaram. novos sistemas digitais, vozes eletrônicas. diante de sua feição de tristeza, a equipe perguntou se ela estava bem.

“aquela voz”, explicou ela, “era meu marido.”

a mulher, uma médica de família chamada Margaret McCollum, explicou que seu marido era um ator chamado Oswald Laurence. Oswald nunca foi famoso, mas ele se tornou o cara que gravou todos os anúncios da Northern Line nos anos 1970.

e Oswald morreu em 2007. a morte de Oswald deixou um vazio imenso na vida de Margaret, mas uma coisa a confortou mais do que qualquer outra: todos os dias, a caminho do trabalho, ela ainda ouvia sua voz.

por cinco anos, isso se tornou sua existência. ela sabia que ele não estava realmente lá, mas sua voz, sua memória, sim. para todos os outros, era apenas mais um anúncio como tantos outros sem importância no sistema de som da estação. mas para ela, era o fantasma do homem que ela ainda amava. e que agora a havia deixado para sempre.

a equipe do Embankment se desculpou e prometeu, no entanto, que se a gravação antiga ainda existisse, eles tentariam encontrar uma cópia para lhe dar. Margaret sabia que isso era improvável, mas agradeceu a todos e se despediu.

no dia de ano novo de 2013, Margaret McCollum sentou-se na plataforma da Embankment Station, indo trabalhar como sempre. quando, dos locutores, uma voz que era familiar para ela soou. a voz de um homem que a amou tanto. e que ela nunca pensaria que ouviria novamente. “mind the gap”, disse Oswald Laurence.

uma força tarefa foi voluntariamente formada. arquivos foram escaneados e fitas antigas foram encontradas e reformadas. várias pessoas tiveram que trabalhar para localizá-los, recuperá-los e digitalizá-los. outros tiveram que mudar o código do sistema de anúncio, e ainda outros tiveram que preencher papéis e correspondência para autorizar a exceção. mas juntos, eles deram voz a Oswald novamente.

e é por isso que ainda hoje, em 2021, quem quer que desça para a estação Embankment em Londres e pare na plataforma da Northern Line, ouvirá uma voz completamente diferente dizendo ‘mind the gap’, uma voz que já não existe mais em qualquer outro lugar do metrô de Londres.

é o Oswald. falando para a Margaret.

(eu hoje conheci essa história linda e quis contar para vocês.)

Margaret McCollum

Holandeses avançam no cenário pós-pandemia e propõem um modelo econômico baseado no decrescimento

Holandeses avançam no cenário pós-pandemia e propõem um modelo econômico baseado no decrescimento

Da revista IHU

Compartilhamos o curto e claro manifesto com o qual acadêmicos holandeses propõem uma mudança do paradigma econômico mundial depois da crise da pandemia.

A nota é publicada por El Clarín, Chile, 27-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Aparentemente a Holanda é o país que com mais força está tomando o desafio de reestruturar sua economia a partir do que nos vivemos no presente. Nesse contexto, 170 acadêmicos holandeses escreveram um manifesto em cinco pontos para a mudança econômica pós-crise da covid-19, baseado nos princípios do decrescimento:

1. Passar de uma economia focada no crescimento do PIB, a diferenciar entre setores que podem crescer e requerem investimentos (setores públicos críticos, energias limpas, educação, saúde) e setores que devem decrescer radicalmente (petróleo, gás, mineração, publicidade, etc.).

2. Construir uma estrutura econômica baseada na redistribuição. Que estabelece uma renda básica universal, um sistema universal de serviços públicos, um forte imposto sobre a renda, ao lucro e à riqueza, horários de trabalho reduzidos e trabalhos compartilhados, e que reconhece os trabalhos de cuidado.

3. Transformar a agricultura em um sistema regenerativo. Baseado na conservação da biodiversidade, sustentável e baseada em produção local e vegetariana, ademais de condições de emprego e salário justas.

4. Reduzir o consumo e as viagens. Com uma drástica mudança de viagens luxuosas e de consumo desenfreado, a um consumo e viagens básicas, necessárias, sustentáveis e satisfatórios.

5. Cancelamento da dívida. Especialmente de trabalhadores e donos de pequenos negócios, assim como de países do Sul Global (tanto a dívida a países como a instituições financeiras internacionais).