Todos, ou quase todos, foram para o litoral a fim de desfrutarem seus carnavais, mas ele ficara em Porto Alegre. Nesses dias, a cidade quente pode ser atravessada em poucos minutos de carro, pois fica esvaída de sua população. Ele sentou-se na cama, pensando nos filhos pequenos que estavam na praia com sua ex-mulher e nos jornais do dia seguinte com a tradicional foto da avenida vazia, o título “Cidade Deserta” e a seguinte legenda: “Foto da Av. Ipiranga às 16h de ontem, sábado de Carnaval”.
Pegou o telefone celular e revisou a agenda de contatos. O calor de 33 graus e a umidade alta eram desanimadores. Escolheu o número de uma colega de sua ex-esposa. Para sua surpresa, Maria respondeu:
— Alô?
Ele desligou o telefone, assustado com o fato de ter obtido contato tão rapidamente. Mas, logo, envergonhado, refez a ligação.
— Alô – repetiu Maria.
— Alô, gostaria de falar com a Maria.
— Sim, é ela.
— Aqui é o Artur, não sei se tu lembras de mim.
— Lembro, claro. Tudo bem?
— Tudo bem. Estava ligando para todos os números da agenda do celular atrás de alguém que tivesse ficado em Porto Alegre. Depois de muitas tentativas, cheguei a ti.
— Puxa! Ligaste para todos os números até o “M” e até agora sou a única sobrevivente do holocausto?
— Sim, a cidade foi abandonada.
— Bom, eu fiquei. Tenho alguns plantões a cumprir no hospital; por isso, não pude viajar.
— Estava querendo conversar.
— Bem, é o que estamos fazendo.
Essa última frase não era muito promissora, mas ele seguiu falando que nós, os últimos representantes da civilização porto-alegrense, não somos proibidos de nos encontrar para tentar matar este calor com uma cerveja.
Ela o surpreendeu fazendo um convite para que ele a visitasse:
— Não tenho nada de importante para fazer até o plantão de amanhã, ia ficar em casa vendo os desfiles na TV mesmo.
Ele registrou novamente a frase nada prometedora e perguntou:
— Marcamos para que horas?
— Pode ser agora.
Melhorou, pensou ele. Hesitou entre tomar ou não um banho. Tomou e saiu.
Sentados no sofá, travavam uma conversa assexuada. Ele tinha ficado um pouco decepcionado com o envelhecimento e aparente cansaço da amiga e pensava que ela havia notado seu desgosto. Porém, inesperadamente, Maria fixou seu olhar no amigo, enquanto ele tergiversava sobre a música de Bach e alguns de seus simbolismos matemáticos. Ele notou a mudança de postura e concluiu que ela não responderia a mais nenhuma afirmativa e que agora teria um longo solo pela frente. Enquanto lhe explicava que a arte da composição de Bach era tão perfeita que o alemão, por puro prazer de fazer bem feito, procurava sempre desafios adicionais para ser por eles testado, percebia a beleza dos braços de Maria, mormente durante o movimento que acabou por deixar seu cotovelo direito pousado no espaldar do sofá e que levou sua mão desde o colo até o queixo, a fim de apoiar aquele rosto que o observava fixamente, em silêncio. Vendo Maria tirar lentamente suas sandálias, ainda sem tirar os olhos dele, citou várias obras onde as notas B-A-C-H – como inequívoca assinatura – apareciam em seqüência e contou-lhe das referências escondidas a vários “fatos” bíblicos, como o dos trinta dinheiros. Durante a argumentação seguinte, que o levou à constatação de que os Concertos de Brandenburgo eram o grupo de concertos mais distintos em instrumentação e estilo da história da música, Maria – sempre com o mesmo olhar – ajeitou seu vestido e pôs o pé esquerdo sobre o sofá, deixando à mostra o pico lustroso do joelho. Então, finalmente, ele se deu por vencido. Estendeu o braço e segurou a mão esquerda de Maria. Ela arqueou uma das sobrancelhas, retirou a outra mão de sob o queixo e sorriu levemente.
— Se não pegasse a tua mão, tu não pararias de me olhar… – disse ele.
— Foi por isso que a pegaste? Para que eu parasse de te olhar?
Apesar do tom carinhoso, não era uma pergunta muito auspiciosa e ele preferiu deixar seu olhar vagar pela sala, sempre com a mão esquerda de Maria em sua mão direita. Resolveu que, inequivocamente, seria o momento de lhe dar um beijo, não poderia deixar passar aquele momento.
Quando se aproximou de sua boca, Maria ergueu-se subitamente, puxando-o para o alto, junto a ela. Abraçados, beijaram-se longamente.
No quarto, ele passeava seus dedos lentamente sobre os seios e o ventre de Maria, notando inúmeras pequenas marcas, talvez criadas pelo excesso de sol numa pele tão branca. Ela estava falante e contava sobre sua viagem ao Egito, enquanto ele conjeturava sobre a idade de Maria, analisando seus seios bem mais jovens que o rosto. Depois de reclamar dos preços egípcios, ela lhe disse que não tinha cerveja em casa e que seria necessário saírem a fim de cumprirem a pauta.
Ela tomou um banho rápido e foram para a rua procurar os bares habituais. Estavam todos fechados. Finalmente, entraram num bar de bêbados, de propriedade de um amigo dele, um uruguaio. O bar estava cheio e cheirava mal. Eles beberam a cerveja da pauta e dirigiram-se a um cinema. O ar condicionado do cinema quase vazio congelava-os enquanto o personagem principal matava sua bela amante grávida, à queima-roupa, na porta do apartamento dela, com uma espingarda. Assistiram ao final do filme abraçados – um aquecendo ao outro. Durante a apresentação dos créditos, faziam comentários jocosos sobre a temperatura dos cinemas de Porto Alegre e que como eventualmente podia ser contornada.
No retorno ao apartamento de Maria, ele fez o carro ziguezaguear no meio da Av. Ipiranga vazia. Estava feliz. Ela lhe preparou uma massa, feita rápida e eficientemente. Só então ele lembrou o fato de que ela conhecia sua ex-mulher, pois, inexplicavelmente, ao ir cozinha fazer o café, Maria referiu-se a ela, gritando de lá qualquer coisa desabonadora sobre A Sorbonne do Bonfim, seus artigos e congressos.
Ele riu do pequeno discurso, pensando que estava ligado a uma pessoa que odiava, estigmatizado como “ex-marido”. Sentindo o humor esvair-se, decidiu que precisava conhecer outras pessoas. Ela serviu os cafés e anunciou que iria ao toalete. Durante sua ausência, ele ergueu-se e foi embora lentamente, sem tomar a bebida.
Com o celular desligado, dirigiu até o Morro de Santa Teresa para refletir e ver a lua espelhada no Guaíba. Ficou dentro do carro, despreocupado com os ladrões. Afinal, eles deviam estar também fazendo seu carnaval. Suado e em dúvida, acordou sozinho no mirante, com o sol batendo no carro fechado.