Custo a acreditar que seja verdade, mas parece que é…

(Atualização feita 30 minutos após a postagem: trata-se mesmo de uma piada. Fica como registro.)

José Serra não gosta de mulher?

Engraçado, os tucanos já gostaram. O FHC tem até dois filhos fora do casamento… O que será que houve ?

Muito engraçado o post do Blog da Dilma:

Tucano não gosta de mulher

Representantes do PSDB nacional entraram semana passada junto ao TSE com um pedido de proibição da música “Eu gosto de mulher”, da banda paulistana Ultraje a Rigor, durante o período de campanha eleitoral.

A música, que fez sucesso a partir do final dos anos 80, faz em determinado momento a seguinte citação: “Mulher dona-de-casa, mulher pra presidente”.

O partido acredita que a música caracteriza propaganda para a candidata do PT à presidência, Dilma Rousseff, principal concorrente do partido tucano, e deve ser proibida de tocar nas rádios brasileiras durante o período de eleição.

“É um absurdo, temos que ficar de olho neste tipo de propaganda discreta” – disse Sérgio Guerra, presidente do PSDB – “é preciso ter atenção, pois detalhes como este ficam na mente do eleitor e influenciam no momento do voto”, completou em tom repreendedor.

Caso não consiga vetar a reprodução da música nas rádios, o partido pretende sugerir a substituição da frase por outra que não faça apologia a nenhum candidato – ou candidata – que dispute as eleições deste ano.

O PT se manifestou dizendo que não tem nenhuma ligação com a banda. Em nota à imprensa, o partido do presidente Lula e da candidata Dilma diz se tratar “de uma feliz coincidência”.

A música, que tem mais de 20 anos e fez sucesso a partir do final dos anos 80, faz em determinado momento a seguinte citação:

Não fosse por mulher eu nem era roqueiro
Mulher que se atrasa, mulher que vai na frente
Mulher dona-de-casa, mulher pra presidente…..

Fala Sérgio Guerra, isso que é ter medo de (ou da) mulher…

Com solo roubado de Khatchaturian (Dança dos Sabres)…

Em resposta, o PT deveria pedir a proibição desta marchinha de Carnaval…

Também amor, penso

Elogio (da inteireza)

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Atenção, O Aleph agora é de Paulo Coelho!

Que coisa triste! O mais influente (…) escritor (?) brasileiro (argh!) vai lançar em julho seu próximo livro, chamado singelamente O Aleph. Com isso, penso que Paulo Coelho procure agregar à sua obra a grife de Jorge Luis Borges, autor de um importantíssimo volume de contos chamado casualmente de El Aleph ou O Aleph. Coincidência?

O que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o espaço, dizia Borges (1899-1986). Para Paulo Coelho, o Aleph é um ponto que contém todo o universo e que nos transporta a outra dimensão, em busca de uma resposta. Na obra, o autor descerverá uma grave crise de fé, o que faz buscar — talvez no pontinho-tudo — o caminho da renovação e do crescimento. Notável.

Apesar do Aleph ser um ponto, o autor espertamente visitou a Europa, a África e a Ásia em plena crise, sempre na desesperada busca de si mesmo. Ou do Aleph. Nesta viagem, seguiu a recomendação de J., seu mestre espiritual: “Está na hora de sair daqui, reconquistar seu reino”. E o autor foi, talvez de TAM.

— Às vezes, é necessário deslocar-se de si próprio para localizar seus próprios passos em outros lugares terrenos e espirituais.

Interessante. Não sabemos se Paul Rabbit levou o pontinho na viagem ou acabou esbarrando com ele por aí. Os argentinos vão adorar a confusão que Rabbit criará no Google, misturando-se à Borges. Vou parar por aqui a fim de revisar meu livro de contos: Ficcciones.

Quando li O Grupo, de Mary McCarthy…

… devia ter uns 14 anos. Sim, era lá por 1971 e eu achava que devia ler livros de pessoas mais velhas. A história gira em torno da formatura e do encaminhamento na vida de um grupo de jovens formadas pela elitista universidade de Vassar. O foco é sobre o período pós-universitário. O livro é de 1963 e lembro de ter gostado demais dele. Era realista e adulto. Lembro que fiquei pasmo com uma cena logo no início: alguém mais velho, talvez um professor, masturba uma das moças com certa frieza e desinteresse. Então sexo podia ser aquilo? Que estranho. Estava na praia, lendo na rede. Fiquei sentado, pensando. Voltei a deitar e continuei a leitura.

Há também um filme de Sidney Lumet. Lembrei de O Grupo por causa deste post e da frase de Eduardo Pitta: “Enquanto houver livros como este de Mary McCarthy, os domingos nunca são chatos”. Deve ser verdade.

Biko, de Peter Gabriel

Eu, soterrado em minha profunda ingenuidade, pensei que o show de abertura da Copa pudesse conter o hino mais importante anti-apartheid das manifestações. Mas a época é de Shakira e não de canções politizadas. Abaixo, a letra de Biko, inspirada no assassinato do ativista Steve Bantu Biko (18 de dezembro de 1946 – 12 de setembro de 1977). O show de Peter Gabriel (abaixo) é de 1986.

Biko

September ’77
Port Elizabeth weather fine
It was business as usual
In police room 619
Oh Biko, Biko, because Biko
Oh Biko, Biko, because Biko
Yihla Moja, Yihla Moja
-The man is dead

When I try to sleep at night
I can only dream in red
The outside world is black and white
With only one colour dead
Oh Biko, Biko, because Biko
Oh Biko, Biko, because Biko
Yihla Moja, Yihla Moja
-The man is dead

You can blow out a candle
But you can’t blow out a fire
Once the flames begin to catch
The wind will blow it higher
Oh Biko, Biko, because Biko
Yihla Moja, Yihla Moja
-The man is dead

And the eyes of the world are
watching now
watching now

Todos esperam por Pilar del Río

Sem inspiração para um Porque hoje é sábado, volto ao assunto Saramago.

Na semana passada, as vendas dos livros de Saramago dispararam 1000% na Europa. É natural , portanto, certa algaravia e ansiedade de editores e livreiros para saber se poderão contar com inéditos do Nobel da Literatura. Com muito respeito, agente literária do autor, a alemã Nicole Witt, respondeu que tudo está nas mãos da viúva Pilar del Río e da Fundação José Saramago e completou dizendo que esperará: “Afinal, o que Saramago quis publicar, ele publicou”.

Porém, as atenções estão voltadas para as dezenas de páginas do romance inacabado Alabardas! Alabardas! Espingardas! Espingardas!, titulo tirado de Gil Vicente, e também para a volumosa correspondência do autor, já mostrada — manuscritos, cartas, textos inéditos, fotografias — na exposição José Saramago, denominada A Consistência dos Sonhos, onde pode ser conferida farta troca de cartas, cheias de discussões literárias, com o romancista José Rodrigues Miguéis. Ah, e há um romance inédito, Claraboia, rejeitado por uma editora no final dos anos 40, e que o autor nunca quis, depois, publicar.

Ernesto Sábato completa 99 anos / Saramago entrevista María Kodama

Ernesto Sábato não escreveu muitos livros de ficção, talvez tenha escrito três ou quatro, mas os que li foram muito marcantes: O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas.

O Túnel é de 1948 e insere-se decidamente no existencialismo. Albert Camus era um entusiasta da obra e recomendou sua tradução para a Gallimard, o que tornou Sábato uma celebridade da noite para o dia. Lembro que gostei demais daquele vertiginoso monólogo escrito na primeira pessoa por um narrador que resolve contar o ato que cometeu. Traz tremendos debates de consciência, demonstrando as  dualidades e desvios que empurram os seres humanos a pensamentos e atos.

Mas, em minha opinião, seu grande romance é Sobre Heróis e Tumbas de 1961. São três narrativas que se completam: a do amor algo doentio de Martín por Alejandra — esta uma das maiores personagens que já conheci — ; a da morte no exílio do general Juan Lavalle, heroi da independência argentina; e o melhor de todos: O Informe sobre Cegos, que chegou a ser publicado separadamente há alguns anos. As duas primeiras, apesar de totalmente diversas, são clássicas histórias de decadência de uma certa aristocracia,  contadas sob a perspectiva da morte. Já O Informe está no limite do fantástico e é a respeito de uma seita maléfica dotada de poderes esotéricos e que une todos os milhões de cegos do mundo.

(Escrevo de memória. Li ambos nos anos 70…).

Tenho a melhor das lembranças de Ernesto Sábato, mais um grande escritor argentino.

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Kodama entre o génio de Borges e as perguntas geniais de Saramago

Obs.: Ontem, no Ciberescritas, li a estranha entrevista que José Saramago fez com (ou submeteu a) María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges. Transcrevo-a abaixo.

Por Isabel Coutinho

José Saramago revelou-se um óptimo entrevistador. María Kodama, a última companheira de Jorge Luis Borges, riu-se às gargalhadas e lá foi respondendo às perguntas sérias, íntimas e prosaicas do Nobel português. “Como é que Borges dizia que te queria? Explica-nos, explica-nos!”.

Já José Saramago tinha lido pela primeira vez o poema Elegia (1963), de Jorge Luis Borges, e estava a dizer para a assistência que quase encheu o auditório da Biblioteca Nacional, sexta-feira à tarde em Lisboa, que se tratava de “um belo poema, quase uma autobiografia”, quando a sua mulher, Pilar del Río, irrompeu pelo palco vinda da plateia.

“É um poema belíssimo mas ninguém ouviu nada”, disse-lhe, enquanto ajustava os microfones em cima da mesa.

O prémio Nobel da Literatura ainda balbuciou que alguém tinha ido mexer no seu microfone, mas Pilar del Rio virou-se para os oradores e avisou: “Para todos e para sempre, o microfone tem que estar em frente à boca!” A plateia desatou às gargalhadas.

“Pois”, afirmou Saramago. “É a sua experiência de rádio”, justificou-se perante os seus companheiros de mesa, que eram María Kodama escritora, tradutora, companheira de Jorge Luis Borges por mais de vinte anos e Carlos da Veiga Ferreira, o editor da Teorema, onde estão publicadas em português as Obras Completas do escritor argentino que morreu em 1986.

“E então passemos a ler outra vez o poema porque não perdemos nada com isso”, rematou o autor de Ensaio sobre a Cegueira. “Oh, destino, o de Borges,/ ter navegado pelos diversos mares do mundo/ ou pelo único e solitário mar de nomes diversos (…)/ e não ter visto nada ou quase nada/ senão o rosto de uma rapariga de Buenos Aires (…)”, deu-se assim o mote para a palestra-colóquio E se falássemos de Borges?, uma conversa entre a viúva e o Nobel, organizada pela Fundação José Saramago, a que se seguirão outras dedicadas a escritores. No dia 10 de Julho, no Teatro Nacional de São Carlos, falar-se-á de Jorge de Sena.

“Não achas que os leitores ficam prisioneiros dos contos de Borges?” Saramago tem a intuição de que o acesso à obra do escritor argentino se faz pela leitura dos contos e que às vezes os leitores ficam só por aí. Esquecem que Borges foi um grande poeta.

Kodama concordou. O que deu fama internacional a Borges foi a tradução dos seus contos e da sua prosa. Mas, revelou, “ele sempre se sentiu poeta”. Mesmo a sua prosa é “uma prosa poética, tem um ritmo especial”. Ele preferia ser recordado como poeta e não como contista. Mas como era muito exigente consigo próprio e perfeccionista, sentia uma nostalgia, pensava que nunca ia conseguir chegar a escrever “o poema”. “Eu como leitora acho que muitas vezes o conseguiu, mas ele não o sentia da mesma maneira”, concluiu María.

Vida de todos os dias

Borges começou por ser poeta. Mas a determinada altura teve um acidente. Magoou-se na cabeça numa janela aberta que estava a ser pintada, quando ia para casa de uma amiga, e sofreu uma septicemia. Na época não havia antibióticos, ficou às portas da morte, com febre e pesadelos. Quando melhorou, “milagrosamente”, teve medo de ter perdido a capacidade intelectual, a capacidade para escrever poemas. “Então decide que vai escrever um conto porque se fracassasse não sentiria que estava louco ou que tinha perdido essa capacidade.” Escreve então o seu conto Pierre Menard, autor de ‘Quixote’ (onde está a frase “Não queria compor outro Quixote o que é fácil mas ‘o’ Quixote”).

A partir daí entra num longo período em que se dedica à prosa, aos contos, e escreve ensaios e crítica literária para jornais. “Quando perde a visão e percebe que lhe é difícil continuar a escrever, vai retomar a poesia. Porque era mais fácil decorar o texto por causa da rima, já que não podia passar ao papel imediatamente o que estava a pensar.” Começou pela poesia, por causa do acidente escreve prosa e mais tarde, por causa da cegueira, regressa à poesia. Na última fase, “já seguro de si”, mistura as duas coisas, poesia e prosa.

Como era Borges na vida de todos os dias?, quis saber Saramago.
“É que Borges era um génio e continua a ser apesar de já não estar entre nós como é que se comporta um génio na vida de todos os dias?” A esta “questão prosaica” o escritor quis que Kodama respondesse francamente. Aprendia-se muito, disse ela, era notória a profundidade e diversidade do seu conhecimento. Tinha um enorme sentido de humor e contava muitas histórias da sua avó inglesa, que ele adorava. “Era um ser encantador, divino”.

Por vezes eu tentava que os meus colegas de turma fossem assistir às aulas de línguas anglófonas que ele me dava. Eles diziam-me: ‘Não! Como queres que vamos contigo, ele é velho, os labirintos, os espelhos, por que é que não vens mas é sair connosco?’ Eu respondia-lhes: ‘Sim, ele é os labirintos, os espelhos, o que vocês quiserem, mas paralelamente a isso é uma pessoa divertidíssima com quem podemos passar momentos muito agradáveis e descobrir uma quantidade de coisas, intelectuais e não só, através do que nos conta.” Apesar da sua sabedoria, disse Kodama, as pessoas não se sentiam intelectualmente inferiores a Borges. Sabia guiar as conversas.

“Tinha muita consideração pelos outros. E tinha um sentido ético e de delicadeza no trato. Na sua obra também se reflecte isso: tudo está dito, mas tudo é dito de uma maneira especial.”

Aulas de línguas

Não há palavras para descrever o ar matreiro do escritor português quando anunciou a María Kodama que lhe ia colocar duas questões “muito íntimas”. Durante toda conversa, que durou mais de uma hora, Saramago fez sempre perguntas interessantes, foi dizendo também aquilo que pensava sobre a obra do autor argentino, não fugiu a perguntas difíceis como a sua ligação com a ditadura.

Estava visivelmente bem-disposto a longa doença do ano passado parece estar finalmente a ficar para trás, com 14 quilos a mais e a recuperar pouco a pouco a massa muscular. “Estavas realmente interessada em aprender inglês antigo ou foste aprender inglês antigo para conhecer Borges?”, foi a primeira. Seguiu-se a segunda: “Como é que Borges dizia que te queria?… Explica-nos, explica-nos!” Foi então quando Kodama tinha cinco anos que teve aulas com uma professora de inglês que utilizava um método de lhe ler os textos no original e depois traduzir em espanhol. Leu-lhe um poema em inglês de Borges, do qual Kodama não entendeu nada mas sentiu que havia algo ali que a fazia sentir próximo dele (a solidão).

Aos 12 anos, um amigo do pai, que era fanático de Borges, levou-a a ouvir uma conferência do escritor e ela impressionou-se com a sua timidez. Anos depois, já no colégio, viu Borges do outro lado da rua. Vai ter com ele: “Conheci-o quando era uma miúda.” Ele riu-se: “Claro, agora você é grande. Em que trabalha?” Ela respondeu-lhe: “Estou a terminar o secundário.” Quer estudar o inglês arcaico?, pergunta-lhe ele. “Shakespeare?”, arrisca ela. “Não, muito anterior, século X.” “Então se calhar é complicado”, diz-lhe ela mas ele convence-a, dizendo que vão estudar juntos. Passam a encontrar-se em cafés de Buenos Aires, ele aparecia com os dicionários debaixo do braço. “Divertíamo-nos muitíssimo”. E a vida foi-lhes dando outra história que terminou, realmente, “em amor”.

“E a segunda pergunta?”, insistia José Saramago. Kodama ria-se ao início e depois já estava às gargalhadas. “Que palavras utilizava para dizer que te queria…”, continuava o autor português. “Isso é importantíssimo. Posso não ser um bom escritor, mas a fazer perguntas sou um génio!”, brincou o Nobel, que assim pôs a sala inteira a rir à gargalhada.

María e Jorge usavam vários nomes, a maior parte ligados à literatura. “Um desses nomes era tirado de um conto que ele me tinha dedicado em segredo e que se chama Ulrica (in O Livro da Areia). Quis gravá-lo no túmulo em Genebra e em lugar de María Kodama e de Borges coloquei o epitáfio ‘De Ulrica a Javier Otárola’, porque eram nomes muito especiais para nós. Ulrica vinha também um pouco da Elegia de Marienbad, de Goethe, que ele me recitava em alemão. Ulrike von Levetzow era o nome da jovem amante de Goethe e quando ele fazia amor com ela contava as sílabas nas suas costas, acariciando-as com a mão. Bem, já está dito.” E María Kodama e José Saramago prosseguiram com outro assunto antes que a conversa ficasse mais complicada.

Música na rua

Mahler é demais. Melhor ainda quando se está meio deprimido e preocupado. Devo ter ouvido mais de quinze CDs inteiros desde o fim de semana, quase sempre lendo artigos sobre o grande morto da semana: José Saramago. Na segunda à tarde, durante um intervalo, fui pegar algumas coisas na casa de um amigo. Entrei num ônibus, sentei-me e abri um Simenon — adoro ler em transportes coletivos, adoro mesmo! — enquanto Anne Sofie von Otter seguia cantando Rheinlegendchen e Wer hat dies Liedlein erdacht? em minha cabeça, quando um homem que nem vi me depositou um bilhete de tamanho mínimo na minha mão:

QUERIDOS IRMÃOS PRECISO DE VOCÊS PERDI MINHA MÃEZINHA SOFRO DO VÍRUS DO HIV ESTOU ME TRATANDO COM COQITEL E ESTOU DESEMPREGADO ESTA DIFÍCIL O EMPREGO TENHO UMA FILHA DE 2 ANOS QUE ESTA PASSANDO FOME PESSO SUA AJUDA OBRIGADO
LEANDRO E VITÓRIA

Sem prestar atenção, juntei R$ 10,00 ao bilhete e segui lendo o livro acompanhado de Anne, ao mesmo tempo que levantava a mão direita com a nota e o bilhete entre o indicador e o dedo médio um pouco acima de minha cabeça. Porém, o homem não viu e saiu do ônibus, certamente para tentar a sorte em outro. Então, uma senhora falou em voz altíssima que era um absurdo dar R$ 10,00 a um vagabundo e que eu faria melhor doando meu dinheiro à igreja. Lentamente, caí de meu mundo e notei que aquilo era para mim. Fiquei surpreso. R$ 10,00? Nas raras vezes em que dou dinheiro para pedintes, meu máximo é R$ 2,00, o valor aproximado de um litro de leite — um critério absolutamente pessoal. Fora um engano. Sem tirar os olhos do livro, guardei a nota, o bilhete transcrito aqui e levantei bem alto um solitário dedo médio para que a beata o visse claramente. Nem sempre sou um lord.

O ônibus achou graça e ela me chamou de mal-educado em pavoroso discurso de um minuto, no mínimo. Lembrei de um post escrito pelo Flavio Prada há anos:

Impressionante a quantidade de crentes dentre os desonestos. Ou dentre os filhas-da-puta, completo.

Desci na minha parada e, estranho, não vi o homem, nem a beata, nem ninguém. Mas como cantava Anne Sofie von Otter!

Aquele Jeitinho Fredolino de Ser

Luís Fernando Veríssimo deve ter escrito mais de dez crônicas acerca desta grande figura. Eu, aqui de baixo, escrevo a minha primeira. Fredolino Schirmer foi o proprietário, chef e maître do saudoso restaurante Floresta Negra, de Porto Alegre. A comida de Fredolino era… melhor economizar nos adjetivos. Não só o Luís Fernando ia lá, muita gente ia reverenciar as criações de Fredolino. Havia quem viajasse para conhecer o Floresta, outros atrasavam compromissos para visitá-lo e nós, que morávamos aqui, não nos incomodávamos com as longas filas para entrar no restaurante.

Conheci Fredolino numa destas filas. Ele saiu do restaurante, examinou o número de pessoas à espera – entre as quais estava eu – e berrou:

– Olha aqui, ó. Vão embora!

Não acreditei que o senhor que dissera aquilo, voltando imediatamente para o restaurante, pudesse ser o lendário Fredolino Schirmer, mas era. A cidade inteira sabia que Fredolino era um mestre da cozinha, mas que costumava tratar mal, muito mal seus clientes. O Veríssimo, que estava sempre lá, discordava. Além de exaltar a qualidade internacional de sua produção, escrevia que o dono do Floresta tinha uma espécie muito particular e incompreendida de gentileza. Eu diria que o velho Fredolino desejava apenas que as pessoas fruíssem do melhor e defendia-as agressivamente de sua própria vulgaridade. Só isso.

Mas voltemos ao restaurante: tentei novamente e consegui entrar. Já acomodados – eu, minha ex-mulher e um casal de amigos -, recebemos a atenção do maître, aquele mesmo senhor que berrara conosco na fila outro dia. Devo dizer que todos nós tínhamos um pouco de medo do velho (o Luís Fernando também, ele que negue!). Então, quase desculpando-nos por importuná-lo, pedimos nossos pratos. O meu era um linguado ao molho de maçã, coisa até então inimaginável. Minha ex me imitou, ou eu a ela, não interessa. Quando fomos servidos, ela viu Fredolino aproximar-se com uma enorme pimenteira e, ao mesmo tempo que protegia o prato com as mãos, perguntou com toda a delicadeza e receio:

– Será que vai ficar bom com pimenta?

Fredolino trovejou:

– Claro que fica bom! – e tacou-lhe enorme quantidade da coisa, enquanto ela tirava rapidamente as mãos do caminho.

Recebi outra chuva em meu linguado e afirmo-lhes: aqueles linguados não morreram em vão!

Outra vez, a mãe de uma amiga minha foi ao Floresta e – em noite de lotação completa – perguntou a Fredolino:

– Esta nata é uma coisa dos deuses! De onde o senhor tira esta maravilha?

Fredolino não respondeu, mas logo depois ela soube que receberia uma resposta literal quando o viu avançando pelo salão com um enorme balde de plástico ornamentado por uma colherona. Mostrou-o a ela enquanto mexia a colher e disse para todo o restaurante ouvir:

– Tiro daqui, ó!

Devo dizer-lhes que esta senhora é uma mulher finíssima, educadíssima, destas que a simples idéia de estar num restaurante lotado, sendo observada pelos circunstantes enquanto olha para baixo, bem dentro do balde de nata de um Fredolino aos gritos, basta para perturbar o sono por meses.

Hoje almocei com a minha mulher e perguntei-lhe se ela o conhecera. Dez anos mais jovem do que eu e tendo passado muitos anos fora de Porto Alegre, disse-me que apenas conhecera sua fama de cozinheiro e de intratável. Mas, sendo ela também habilíssima nestas coisas de culinária, pensa que um chef tem que ter opinião e que não deve curvar-se inteiramente aos gostos pessoais dos clientes, se achar que o resultado ficará prejudicado. Mas ela disse mais sobre Fredolino: acredita que é normal os artistas terem certos desvios de comportamento e que o contato com certos porto-alegrenses metidos poderia gerar efeitos danosos ao humor do velho. Recordo-me que alguns de nós – provincianos que tínhamos o privilégio de conviver com o mestre – pretendíamos dar palpites em seus pratos e éramos quase expulsos do Floresta Negra! Ainda estão em minhas retinas as vezes em que vi Fredolino balançar negativamente a cabeça, dizendo para uma mesa de desavisados:

– Se vocês querem comer isto, erraram de restaurante. Vão embora!

Outra vez ouvi uma senhora de idade solicitar determinado prato. Como resposta, obteve esta pérola: minha senhora, na sua idade e a esta hora tardia eu não aconselharia este prato. Vou trazer-lhe outro mais leve e adequado, de minha escolha. E dirigiu-se à cozinha.

Outro fato curioso era a política de preços do Floresta. Naqueles tempos de inflação, Fredolino demorava meses para reajustá-los. Assim, nosso melhor restaurante tornava-se muito barato em alguns períodos. Porém, um belo dia, tínhamos a surpresa de ver os preços multiplicados por três ou cinco. E ai de quem reclamasse! O período mais sensacional do Floresta foi o ano de 1986. Com o congelamento de preços baixado por Dílson Funaro durante o governo Sarney, pudemos comer meses e meses no Floresta a preços módicos. Foi um ano inesquecível.

Fredolino Schirmer faleceu há uns 20 anos. Sua esposa Christa publicou um livro com as principais de receitas de seu marido pela Editora Tchê!, em 1992. Para encontrá-lo, só em sebos. Como ele ficou na casa da minha ex, não tenho certeza se Christa publicou a receita do linguado com o qual sonhei esta noite.

Em tempo: acabo de encontrar uma crônica de Luís Fernando Veríssimo com referências aos grande Fredolino:

(…)Quando conheci o Gerry Mulligan, em Porto Alegre, a fase das drogas já ficara muito, muito para trás. Ao contrário de Chet, Gerry tinha vencido sua luta contra a dependência, era um respeitável senhor de barbas brancas. E a longa sucessão de mulheres na sua vida – que incluíra a atriz Judy Holliday – tinha acabado numa bela italiana chamada Franca, que Gerry conhecera durante a gravação do seu disco com o Piazzolla, na Itália, e aposto que ficou com ele até o fim. Era evidente que a Franca tinha tudo dominado.Depois da apresentação fomos jantar com Mulligan, mulher e trio, a convite do adido cultural americano. O melhor restaurante de Porto Alegre, na época, era o “Floresta Negra”, cujo dono e maitre, “seu” Fredolino, era uma figura controvertida: muitos confundiam com rudeza o que era apenas bom humor alemão, já que as duas coisas nem sempre se distinguem. Estávamos acostumados com seu jeito, e com o fato que em noites de muito movimento a dona Christa e sua equipe, na cozinha, não davam conta, e a comida demorava.

Mas Franca não queria saber do folclore do lugar, queria alimentar o seu homem. E deu-se o choque de culturas. “Seu” Fredolino já expulsara gente do restaurante por menos do que ouviu da italiana, naquela noite. Por um momento a mesa ficou suspensa, à beira de um incidente internacional. O adido cultural e eu, representando nações neutras, ficamos calados. Mulligan nem tomara conhecimento do confronto, aquela era a área de ação da mulher. Manteve a sua pose de patriarca viking.

“Seu” Fredolino talvez tenha se dado conta de que enfrentava uma leoa, e a possibilidade de grandes estragos materiais no seu restaurante. Recuou. Ninguém foi expulso. Dali a pouco veio a comida. Estava ótima. Acho que a Franca até elogiou. As forças do Eixo estavam recompostas. Durante o jantar, não adiantou eu querer perguntar ao Mulligan sobre Zoot Sims e outros que tinham tocado com ele, inclusive o Chet Baker. Ele só queria falar no Garcia Marquez.

Eu nunca fui expulso por Fredolino. Um dia, arranquei dele uma gargalhada. Foi uma pequena glória ver a mesa me olhar boquiaberta.

 

Saramago e o ranço

Em nosso país e em Portugal parece ser pecado grave destacar-se. Bom mesmo é a vida de gado. Não pensem que sou um admirador das grandes estrelas, apenas acredito que algumas delas aparecem naturalmente, por seus méritos. Saramago foi um escritor que começou a produzir mais intensivamente em idade madura e por obra do desemprego. Nada em sua postura trai um desejo de ficar famoso, todas as suas opiniões e dureza demonstravam vontade de ser lido, ouvido e de influenciar. Não é um pecado um autor desejar ser lido. E ele era instigante, sem conceder.

Certa vez, creio que em 1989, José Saramago deu uma palestra ao lado de Arnaldo Jabor. Não sei de quem foi a ideia de juntar uma dupla tão pouco miscível. Era um ciclo de palestras sobre o “Fim da História” e Saramago veio ao debate com sua inteligência e lógica afiadíssimas. Ele ironizou amplamente toda a noção de que a história tinha acabado, a ponto de dizer que duvidara, pela manhã, se valia a pena fazer a barba. Depois, refez todas as suas ações do dia, a leitura dos jornais, o almoço, o trabalho e a vinda para a palestra de táxi e sua relação com a história. Foi uma explanação muito engraçada, clara e irrefutável — talvez enlouquecida pelo tema — , mas tornou-se muito séria quando o assunto derivou para a Guerra dos Bálcãs. O “Fim da História” simplesmente não cabia na realidade da Jugoslávia (em portugal é assim: Jugoslávia). Lembro que ele fez várias perguntas retóricas a nós, público, comprovando a tolice daquela teoria. Então Jabor entrou com sua pobreza de ideias oficialistas — pois concordava minuciosa e, perdoem-me, tolamente, com o mote do ciclo — e houve um debate.

Poucas vezes eu tive oportunidade de ver outro massacre semelhante àquele. Em vez de adotar uma estratégia conciliatória, Jabor atacou os posicionamentos esquerdistas de Saramago. O contra-ataque do português — cujas convicções foram pensadas e repensadas durante toda uma vida por um cérebro evidentemente privilegiado, superior mesmo — foi tão arrasador que Jabor foi vaiado ao voltar a falar. E não esqueçam que a plateia era formada por pessoas de posições neoliberais, em evento patrocinado pela RBS.

Saramago, afora sua grande literatura, era um polemista de primeira linha. Provocava com vara curta à direita e à esquerda — não esqueçam seu importante artigo anti-Fidel Castro “Até aqui cheguei” — e tornou-se popular pela qualidade de suas obras e pela notável coerência de ideias. Não houve nada de oportunista na vida e na atuação de Saramago. Porém uma série de intelectuais brasileiros criticavam sua onipresença e má literatura. Ora, todos são livres para gostar ou não de Saramago, eu mesmo me irritei profundamente com a ruindade de Todos os Nomes, em minha opinião uma fracassada imitação de Kafka, mas o que alguns diziam a seu respeito era apenas ranço e má vontade. Li que havia um esgotamento das ideias em seus livros (sem dizer quais, mas parecendo ser essas coisas de esquerdismos e solidariedade), li que por trás de seu barroquismo (*) — acusação que poderia prosperar por ser verdadeira — não haveria mais nada, e li gente muito boa simplesmente e por vício perguntando “Who`s next?”.

Lembro que a revista Veja, que já foi uma publicação respeitável, ter dado páginas e páginas a Tom Jobim, no início dos 80. O motivo, confessado pelo editor da época, era que o ranço de alguns estava tornando Tom um compositor de inspiração americana: “Águas de Março” era um plágio, tudo o que ele fazia era jazz menor (!), etc. Havia tanto ressentimento ao sucesso de Tom que a revista publicou a reportagem de capa “O Tom do Brasil” como uma espécie de desagravo a quem fez mais pelo Brasil do que todos os seus críticos juntos.

Creio que o mesmo estivesse ocorrendo com Saramago. Sua morte, ocorrida na última sexta-feira o torna novamente fabuloso. Uma pena que seja assim.

(*) Sabiam que “Barroco” significa “Pérola imperfeita”?

Que orquestra! Fico taquicárdico.

São fragmentos, mas que fragmentos! Abaixo, a Orquestra Filarmônica de Berlim, regida por Pierre Boulez, dá um show no Finale da Música para Cordas, Percussão e Celesta de Béla Bartók.

E aqui, com Hélène Grimaud ao piano e sob a regência de Tugan Sokhiev, no Concerto para Piano e Orquestra em Sol Maior de Maurice Ravel:

Aqui, com o regente titular Simon Rattle, parte do Finale da Sinfonia Nº 1 de Brahms (notem sua felicidade ao reger uma das melodias mas belas jamais compostas e que foi utilizada no Fausto de Mann):

Novamente com Rattle na Sinfonia Nº 10 de Shostakovich:

E com Gustavo Dudamel na Sinfonia Nº 5 de Prokofiev:

Morre José Saramago (1922-2010)

“No fundo, não invento nada, sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e a pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando me saem monstros”.

Morreu nesta sexta-feira o escritor português e prêmio Nobel de literatura José Saramago, aos 87 anos, em Tías, Lanzarote, Espanha. Dia triste, tristíssimo para todos os amantes dos livros, da literatura e das ideias. Faleceu em casa.


Reproduzo aqui o texto de Luiz Schwarcz para o blog da Companhia das Letras.

Saudade não tem remédio

Acabo de ver o escritor José Saramago morto. Quando a notícia apareceu na internet, liguei pelo skype para Pilar, que sem que eu pedisse me mostrou José deitado na cama, morto. Tenho falado com Pilar quase todos os dias. Sabia que não havia chance de recuperação, o destino de José já estava traçado, os médicos não acreditavam mais na possibilidade de um novo milagre, como o do ano passado, quando venceu, contra todas as expectativas, os problemas pulmonares que o acometiam.

Posso dizer que José Saramago era um grande amigo meu e da minha família. Quando vinha ao Brasil hospedava-se em minha casa, no quarto que foi da Júlia, minha filha. Ele detestava hotéis. Viu meus filhos crescerem. Fui conhecer sua casa em Lanzarote logo que se mudou com Pilar, abandonando Portugal. Assisti emocionado a cerimônia do Nobel em Estocolmo — pouco antes, no hotel, aprovamos, Lili e eu, o vestido de Pilar para o evento. Estava em Frankfurt quando ele recebeu a notícia do prêmio; celebramos juntos.

A obra de Saramago veio para a Companhia das Letras por acaso. No fim da feira de Frankfurt de 1987 (no segundo ano de vida da editora), ao me despedir de Ray-Gude Mertin, uma amiga pessoal e agente literária de muitos autores brasileiros, comentei que José era dos meus autores favoritos. Conversa à toa, de fim de feira. Não fazia ideia de que ela representava o escritor português, junto com a editora Caminho, e que estava para mudar Saramago de editora no Brasil. Atrasei minha partida e voltei, com a bagagem no porta-malas do táxi, para falar com Zeferino Coelho sobre a Companhia das Letras.

Foi tudo muito rápido, Jangada de pedra foi o primeiro livro, lançado em abril de 1988 com a presença do autor no Brasil, junto com Pilar, jornalista que conhecera em 1986 e que mudou tanto a sua vida. A empatia foi imediata, apesar da minha gafe inicial —perguntei-lhe em plena praia de Copacabana se era verdade que, em Portugal, Psicose, de Hitchcock, fora intitulado O filho que era mãe, e Vertigo, A mulher que morreu duas vezes.

Em seguida fui a Lisboa. Já éramos bem amigos, ele queria me mostrar o novo livro que escrevia. Em sua casa, na rua dos Ferreiros à Estrela, José leu trechos de A história do cerco de Lisboa, e me levou para jantar no seu restaurante favorito, o Farta Brutos. Pilar foi minha guia de Lisboa na ocasião, reservou o hotel num velho convento na rua das Janelas Verdes, e mostrou os locais que aparecem no meu livro favorito de Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis. Comprei com Pilar o primeiro computador de José. Antes disso, ele datilografava três vezes cada livro para entregá-lo completamente limpo a seus editores.

No Brasil, o lançamento de Jangada de pedra foi uma festa interminável. Filas enormes na livraria Timbre e a efusão de beijos e abraços no escritor fizeram-no exclamar, “Luiz, esta gente quer me matar de amor”. Daí para frente, esse amor dos brasileiros por José Saramago só cresceu, suas visitas se tornaram mais frequentes, e vários dos últimos livros lhe ocorreram em viagens pelo país, nas quais estávamos juntos. Lembro-me ao menos de três ocasiões em que isso aconteceu. A mais recente delas foi em sua última estada no Brasil, quando da publicação de A viagem do elefante, livro que José resolveu lançar mundialmente aqui, em novembro de 2008, como presente ao carinho e aos amigos brasileiros. Ele já estava muito fraco, e a viagem era mesmo uma ousadia. Ao chegar em minha casa, numa das nossas primeiras conversas, me disse que não escreveria mais, estava se sentindo velho e cansado.

Depois do evento de lançamento no SESC Pinheiros, vencida uma fila enorme de autógrafos — Saramago nunca recusava autografar, nem mesmo doente —, fomos ao Rio, para a continuidade dos eventos. Ao pousarmos na cidade, enquanto eu recolhia as bagagens, José anunciou, para Lili, Pilar e eu, que decidira voltar a um velho projeto e que no voo achara a solução que faltava para Caim, que acabou sendo seu último livro.

Eu poderia contar outras tantas histórias aqui. Poderia até falar das nossas discordâncias, de uma discussão amigável que tivemos, sentados no alto do Bauzinho, em São Bento do Sapucaí, olhando para o horizonte da Serra da Mantiqueira, que nós dois adorávamos. Mas o espaço é curto: um blog, mídia que Saramago curtiu muito antes que eu. Em outro momento, quem sabe. Agora só quero me despedir mais uma vez de José. Com as melhores lembranças, o amor, e minha saudade. Maldita palavra, tão portuguesa, que agora ficará associada ao meu amigo. Mas saudade não tem remédio, não é, José?

A Autocensura

Post publicado em 24 de maio de 2007 e republicado agora com adaptações e cortes. É que ontem soube de mais um processo de separação que utiliza como provas o conteúdo de um blog. Desta vez de uma mulher. Quando publiquei este post, recebi dois comentários que achei notáveis e os publico ao final do post.

A moda está pegando. Como todos os posts confessionais dizem a verdade (?); então qualquer advogado lê um texto que escrevemos e o utiliza num processo familiar. Mas não é bem assim. Acreditar em nós é perigoso por várias razões.

A primeira razão é a mais humana: num texto confessional e mesmo naqueles de aparência visceral, o blogueiro ou escritor está publicando o que decidiu publicar. Os posts são seletivos como nossa memória, que arquiva os acontecimentos com alterações que podem deixá-los no formato de livros com belas capas para serem colocados na estante — podendo descer dela a qualquer momento — , ou ficam impressos com sangue, lágrimas ou lama para reaparecerem quando do Grande Ressentimento ou da Grande Irritação. Há infinitas formas de arquivamento, tudo depende do caso contado e da personalidade e honestidade de quem conta. E vêm misturados com sentimentos. Não são como os antigos diários, são diários ou textos ou ficções ou resenhas ou crônicas para serem expostas e, portanto, recebem tintas de exagero, contenção, poesia, educação, correção, escatologia, putaria, etc. Respondam: são prova de alguma coisa? Não há outro modo de se produzir provas?

Uma vez, estava no telefone conversando com o Carpinejar e lamentei sinceramente alguns graves problemas que o poeta tinha relatado em seu blog. Ele me respondeu:

— Problemas? Que problemas?
— Pô, cara. Aqueles lá com a tua mulher.

Ele ficou hesitante e, inesperadamente, estourou numa gargalhada. Depois, respondeu:

— Então, tu acreditaste naquilo? — disse ainda rindo.
— Mas…
— Milton, é tudo mentira. Teve gente que me ligou, ligaram até para a minha mãe perguntando. É normal, já aconteceu muitas vezes. Eu uso pessoas da vida real, só que as histórias são inventadas.

Se houver difamação é outro problema — e isso o Fabrício não fez. Estamos aqui discutindo a veracidade de textos que estão entrando em processos judiciais. Por quê?

Anteontem, uma amiga que descreve seus casos amorosos num blog foi acusada de puta e vagabunda num processo. O pai de seu filho quer a guarda da criança. As provas? Ora, os poemas e textos publicados em seu blog, que narram “experiências diárias”. Piada, né? Suas experiências diárias ocorrem na frente do computador, sozinha, insone, enquanto o filho dorme. Senão não passaria tantas horas no twitter…

De minha parte, já falei o que considerava as maiores verdades, procurando ser frio, claro e racional, mas também já casei com Juliette Binoche (nosso caso era puro sexo e durou anos, nunca tivemos problemas, apesar de eu não falar francês), já mantive diálogos com outros Miltons que eram eu mesmo, só que uns anos antes ou depois e ,ah, no meu aniversário do ano passado estava namorando Sophie Marceau, lembram? (Sempre o problema do francês, merde!) É claro que estou utilizando exemplos extremos nos quais só um idiota acreditaria, porém como ficam os casos intermediários, aqueles em que as confissões são romanceadas com jeito e cheiro de verdade, mas que talvez sejam apenas desejadas?

Minha ex fez isso num processo. Lá, havia trechos escolhidos deste blog. Em um deles, o mais importante, meu filho protege sua mãe de mim. Estou a sós com ele. Duas frases são trocadas num post sobre rock. Eu começo a falar mal de Pâmela (ou Suélen, não lembro) e ele interrompe dizendo que aqueles são problemas nossos. Só. Era uma forma de mostrar que o Bernardo sabia das coisas. Ele sabe mesmo e minha intenção apareceu nos comentários dos leitores: disseram que ele tinha mais bom senso do que eu. Porém, no processo, foi uma atitude de mau pai… Claro, tive de responder com o blog inteiro, com todos os posts. Na metade do ano passado eram mais de mil páginas. Muita gente sabe de minhas opiniões sobre Suélen (ou seria Pâmela?), mas não sou louco de preencher a vida de meus filhos com reclamações contra sua mãe. Eles me detestariam. (A propósito, as mulheres do “Porque Hoje é Sábado” foram para o juiz? O doutor achou essa aqui gostosinha?)

Bem, mas há mais: o fato de manter um blog “bem montado” – expressão de sua advogada – seria prova de que passo muito tempo trabalhando nele e, se acrescentarmos a isto algumas viagens que faço, pronto!, chegamos à conclusão de que tenho largo tempo livre e um estilo de vida, digamos, confortável. Lendo aquilo, senti-me como um malandro da velha guarda carioca.

Cervantes reclamava que não lhe davam muito dinheiro, mas admite que, se lhe dessem, iria se divertir mais e escrever menos. Queixava-se que seus mecenas sabiam disso e o mantinham à mingua. Interessante. (Oh, sei. Comparar Milton Ribeiro e Miguel de Cervantes é caso de internação.)

Neste ínterim, tenho exercitado a autocensura. O blog piorou, também sei. Entre alterar meu texto em função de um advogado e não publicá-lo, tenho escolhido a segunda opção. Então substituo o post previsto por algo sobre futebol ou tiro sarro da Igreja Católica. Afinal, o Papa não pára de dizer besteiras nem o Inter de fazê-las. Permanecerão no micro até não sei quando. Ou será que tudo isto é mentira e não tenho textos por publicar nem ex-esPosa? (Pronunciem esPosa com pê cuspido, por favor.)

E agora, publico este ou não? Assim mesmo, cheio de parênteses?

Comentário do Dr. Claudio Costa:

Já aprendi – com Lacan, veja só! – que o significado do que se diz é dado por quem escuta e não por quem fala. Freud, muito antes, já descobrira que a chave da interpretação está com o analisando, não com o analista. Este, quando não atrapalha, oferece a escuta e… aí o analisando diz e exclama: -“Eu sabia!”. Assim vivemos: num mundo imaginário onde até mesmo a imagem de si mesmo é constructo imaginário, putz! Por isso acredito piamente em TUDO que você escreve – o que é a mesma coisa que dizer: “não acredito em NADA” disso.

Comentário de Maria Elisa Guimarães, a Meg:

MILTON, Olha, não entendo de muita coisa, mas algumas, as de que vou falar aqui, pelo menos, ENTENDO e não é POUCO, entendo muitíssimo. 1- Muito embora, hoje em dia, um email seja aceito com prova num processo e qualquer bom advogado já saiba disso – felizmente, ainda não mudou absolutamente NADA, a respeito da questão da VEROSSIMILHANÇA, conceito este que não significa e à vezes é muito diferente da VERDADE ou pelo menos da *relação* desta com a realidade.. 2- Textos literários ou poéticos trabalham com o simulacro, (e muita gente desconhece o real sentido dessa palavra) e não com fatos. O *simulacro* , grosseiramente simplificando, é a MÍMESE, uma espécie de representação livre do que se viu ou se vê na realidade. Nesse caso, seria muito bom que todo mundo lesse as tragédias gregas. Há muito o que aprender lá. Por outro lado, uma crônica, um conto, um romance, ou um texto que se pretenda literário, tanto que se publica, não é notícia , é literatura!! Boa ou má, mas sempre literatura e não jornalismo investigativo. Nem depoimento. 3- E mais uma coisa, e disso entendo mais ainda: o “mundo não é dos inocentes”, e definitivamente, “justiça é balela, é conto de fadas”. Parece, só parece, pelo que tenho visto, na História antiga ou recente, que sai-se melhor SEMPRE quem está ou ao lado dos poderosos ou ao lado de quem lhe oferece mai$$$. Ou dos que parecem poder oferecer. Espero que te saias muito bem nesse caso que já se arrasta (e estou falando na condição de leitora e portanto quem lê teu blog sabe algo sobre esse caso, pelo menos o que permitiste que soubéssemos). Um dia as chateações todas acabam! Um dia tudo acaba. E de preferência, antes que nos tornemos ressentidos ou amargos. Solidarizo-me contigo: eu sei o que é a injustiça: dá vontade de morrer. Um beijo M.