Os livros mais vendidos na Livraria Bamboletras em 2021

Os livros mais vendidos na Livraria Bamboletras em 2021

Sorry, Chico Buarque.

A Mulher Amaldiçoada, de Tassaert x A Origem do Mundo, de Courbet

Os desejos e a liberdade sexual da mulher sempre assustaram os homens — e isso ocorre até os dias de hoje, não? O que o Santander acharia dos quadros abaixo, cujo mais novo completará 156 anos em 2022?

“A Mulher Amaldiçoada” (1859), de François Octave Tassaert.

Mas em que mundo tu vive?, de José Falero

Mas em que mundo tu vive?, de José Falero

Não tenho o hábito de ler crônicas, apesar de escrever algumas. Por isso, não fiquei muito satisfeito quando vi que o segundo livro de José Falero pela Todavia seria do gênero. Claro, queria outro romance após o esplêndido Os Supridores. Mas minha contrariedade foi vencida rapidamente por Falero. Li Mas em que mundo tu vive? com grande prazer. Sim, com grande prazer, apesar dos temas abordados não serem exatamente luminosos. Acontece que o humor do autor, a habilidade para contar seus causos e a indiscutível inteligência de suas argumentações dão enorme contentamento ao leitor. Falero fala do que sabe. E ele sabe coisas que a maioria do público leitor brasileiro ignora.

Por experiência própria, Falero conhece as diferenças entre morar na periferia e no centro de uma grande cidade brasileira, sabe como os pobres são afastados dos bairros centrais, sabe o que sentem nos ônibus lotados quando vão servir aqueles têm posses e, bem, a alegria do leitor não vem destes tristes fatos — vem de ler um baita contador de histórias, vem da qualidade da prosa, do ato artístico e da revelação de coisas que ficam invisíveis ou mudas, pois os pobres parecem se comunicar por mímica com os privilegiados, jamais sendo efetivamente ouvidos, apenas limpando banheiros, atendendo em restaurantes, construindo edifícios, vendendo coisas nas ruas, permanecendo atirados nas calçadas ou vivendo a violência de seus bairros.

Neste sentido de narrar coisas tristes com humor e graça, Falero tem algo de Lucia Berlin. Ele muitas vezes faz a gente rir das desgraças, o que não as torna cor-de-rosa, pelo contrário. É que o tom geral é o de uma conversa muito peculiar, algo entre o coloquial e o culto que nos coloca na mesa de bar, louco por uma cerveja. Muitas das crônicas também são autobiográficas, onde ficamos sabendo muito do autor, do (bom) jogador de futebol, do aluno, do aprendiz de músico, do filho, irmão e amigo. Especialmente nestas crônicas, o humor de Falero reina com tudo.

Mas o cerne do livro é a exploração do trabalho, o racismo, a separação em castas e a falta de empatia de quem é privilegiado por uma melhor educação, alimentação, trabalho, transporte, tudo. (As minhas frases de muitas vírgulas vão por conta da variedade de temas…) E o bom do livro é que passamos a olhar de um modo diferente o que acontece a nosso redor. É um livro de graça e luta, de uma luta justa.

RECOMENDO FORTEMENTE.

José Falero | Foto: Flávio Dutra / JU

Nelson Rego, sobre Abra e Leia

Nelson Rego, sobre Abra e Leia

Olá, Milton. Antes de abrir e começar a ler, eu estava achando que o título do livro era brincalhão. Bom, e é isso mesmo, mas também é, ao seu modo, apocalíptico, por que não? “Tudo é movimento irregular e contínuo, sem direção e sem meta”, a epígrafe de Montaigne ficou perfeita aplicada não apenas ao conto Breve relato da aniquilação, mas ao livro todo. Há comédia nas histórias e é exatamente por aí, no breve riso, que o irregular sem pausa, sem direção e sem meta, se infiltra por rachaduras abertas a todo instante. Li na ordem em que os contos se apresentam, do primeiro ao último. Perto do fim, estava com sensação de feira do burlesco, com atores mambembes fazendo alegorias da morte. E então encontrei a tua nota final sobre O Sétimo Selo. O bom é que os teus apocalipses insinuados se fazem sem grandiloquência, coerentes com as pequenas comédias do cotidiano cheias de fraturas. Não é um apocalipse de uma só vez, hollywoodiano. A abertura do derradeiro selo acontece em conta-gotas e, por vezes, é de uma graça que desvia o drama de resvalar em direção à desgraça. O teu apocalipse deixa a dúvida, irá mesmo acontecer? E aí está o melhor. Meus contos preferidos foram Adaptações, Para não falar de todas as mulheres (uma pausa no fim dos tempos, um doce com cafezinho), Breve relato da aniquilação, Luciana e o hedonismo, Daqueles que não se denunciam e Vicentina.

Abraço. Espero que 2021 não se torne para o Inter o que 2003 foi para o Grêmio: a prévia da queda mais do que anunciada para o ano seguinte.

A Mão de Deus, de Paolo Sorrentino

A Mão de Deus, de Paolo Sorrentino

Eu e Elena vimos ontem o novo Sorrentino, A Mão de Deus. É um filme diferente dos outros do cineasta, é menos feérico, quase sem música e muito mais melancólico. É também autobiográfico, o que talvez explique a falta das belas cenas aleatórias dos outros filmes.

Nas entrevistas, o assunto de Sorrentino foi Maradona e Fellini. O gênio argentino teria salvo sua vida. Explico: o jovem Paolo ficou em casa no fim de semana para poder ver Maradona num Napoli x Empoli, livrando-se de morrer junto com os pais. Quanto á Fellini, pô, os jornalistas querem um novo Amarcord e A Mão de Deus é 100% outra coisa… Não é um filme-delícia!

Claro que recomendo, apesar de preferir Juventude e A Grande Beleza.

Sorrentino é grande!

Por mais e melhores canções de Natal

Ontem, eu estava falando com um pessoal da música erudita de Porto Alegre. Nesta época de Natal, é normal que se interpretem músicas natalinas que vão desde O Messias de Handel e o Oratório de Natal de Bach, até as várias canções populares de Natal brasileiras e estrangeiras que recentemente passaram a incluir a, desculpem, muito xaroposa Hallelujah, de Leonard Cohen. (Sim, gosto de Cohen, não gosto é desta canção).

Mas, nos últimos anos, eu noto a ausência da mais laica Happy Xmas (War Is Over), de John Lennon, que é excelente para corais — por favor, esqueçam Simone, esqueçam Simone… Por que deixam esta música de fora?

E, sonho impossível, temos a desconhecida e divertida Merry Xmas Everybody, do Slade, que tem a letra mais engraçada de todas e que jamais será tocada, creio, pois é demasiadamente rock and roll.

Mas, dentre horrores religiosos, cantam Anoiteceu — na verdade o título da canção é Boas Festas — , que também é laica e que tem uma letra-verdade bem dura, apesar da muito alegre melodia. Seus autor, Assis Valente, suicidou-se após várias tentativas e a letra é de cortar os pulsos.

Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel
Não vem
Com certeza já morreu
Ou, então felicidade
É brinquedo que não tem
(Laiá laiá, laiá lalaiá, laiá lalaiá, laiá lalaiá)

Merry Xmas Everybody
Slade

Are you hanging up a stocking on your wall?
It’s the time that every Santa has a ball
Does he ride a red nosed reindeer?
Does he turn up on his sleigh
Do the fairies keep him sober for a day?

So here it is merry Christmas
Everybody’s having fun
Look to the future now
It’s only just begun

Are you waiting for the family to arrive?
Are you sure you got the room to spare inside?
Does your granny always tell ya that the old songs are the best?
Then she’s up and rock ‘n’ rollin’ with the rest

So here it is merry Christmas
Everybody’s having fun
Look to the future now
It’s only just begun

What will your daddy do
When he sees your Mama kissin’ Santa Claus?
Ah ah

Are you hanging up a stocking on your wall?
Are you hoping that the snow will start to fall?
Do you ride on down the hillside in a buggy you have made?
When you land upon your head then you’ve been Slade

So here it is merry Christmas
Everybody’s having fun
Look to the future now
It’s only just begun

So here it is merry Christmas
Everybody’s having fun
Look to the future now
It’s only just begun

So here it is merry Christmas
Everybody’s having fun
Look to the future now
It’s only just begun

So here it is merry Christmas
Everybody’s having fun
Look to the future now
It’s only just begun

Debaixo do boné do Falero

Debaixo do boné do Falero

Ler para o outro é um ato de puro amor. Eu acho. E ler para a pessoa amada é mais ainda, claro.

Não sei se leio bem ou se a Elena é boa ouvinte, mas a coisa funciona e hoje eu estava terminando o livro do José Falero com a Elena deitada a meu lado quando vi que, em uma das crônicas finais de “Mas em que mundo tu vive?”, ele cita a Livraria Bamboletras.

Fiquei muito comovido por duas razões: pela livraria que tento fazer sobreviver e por Falero falar de seu pai, morto há 20 anos, tal como o meu. Sim, esta crônica foi uma das que me atingiram com força.

E a Elena acaba de perguntar:

— O Falero é aquele cara que a gente encontrou com a mãe dele no Café Cantante?

— Sim.

— Quanto talento debaixo daquele boné, hein?

Belfast, de Kenneth Branagh e A Crônica Francesa, de Wes Anderson

Acabamos de ver o magnífico Belfast (2021), de Kenneth Branagh. Às vezes, quando um grande artista volta-se para a própria infância, dá nisso. E fica claro que a infância de Branagh — passada na Irlanda do Norte das guerras religiosas dos anos 60-70 — estava pedindo atenção. Baita filme! Atenção para a linda fotografia.

.oOo.

Por outro lado, não consigo gostar de Wes Anderson. Invariavelmente, me dá um tremendo sono. Este A Crônica Francesa… Tudo muito bonitinho e bem escrito, mas não me envolve nem um pouco. Ou envolve tanto que durmo…

Livros à mancheia!

Livros à mancheia!

Livros, há presente melhor? Eles duram muito, passam muito tempo com a pessoa presenteada, costumam vir encharcados em humanidade, ajudam a entender melhor a vida ampliando nossa visão de mundo com entretenimento, imaginação, informação e reflexão. São bons de dar e receber.

Como diz Neil Gaiman, os livros são grandes presentes porque eles têm mundos inteiros dentro deles. E é muito mais barato comprar um livro para alguém do que comprar o mundo inteiro.

Melhor ainda se você comprá-los numa pequena livraria como a Livraria Bamboletras. A forma mais gostosa de receber algo querido é pelas mãos de quem realmente precisa.

Estamos combalidos, recém saindo da pandemia e, como diria Drummond, precisamos de todos. Compre livros neste Natal! E nas independentes!

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Shakespeare: o discurso do Dia de São Crispim em Henrique V

Shakespeare: o discurso do Dia de São Crispim em Henrique V

Eu não sei quem é o autor para o português da tradução que copio abaixo. E é claro que o significado deste famoso discurso ultrapassa em muito o filme de Branagh, Henrique V, pois, afinal, o Discurso do Dia de São Crispim faz parte da peça histórica de William Shakespeare, Henrique V, Ato IV, Cena III.

Na véspera da Batalha de Azincourt (parte da Guerra dos 100 Anos), que caiu num dia de São Crispim — para ser mais exato, em 25 de outubro de 1415 –, Henrique V exorta seus homens, que estavam em número muito menor do que os franceses, a imaginar a glória e a imortalidade que teriam se fossem vitoriosos. O discurso foi repetido por Laurence Olivier para elevar o espírito britânico durante a Segunda Guerra Mundial, e por Kenneth Branagh no filme Henry V, de 1989. Nele, está a famosa expressão band of brothers. A peça foi escrita por volta de 1600, e vários escritores posteriores usaram partes dela em seus próprios textos.

Explicando melhor: o exército britânico estava em solo francês. Depois de uma campanha malsucedida, estavam procurando voltar para a Inglaterra, doentes e exaustos. Porém, foram alcançados pelos franceses. Logo antes de começar a batalha, os nobres ingleses discutiam entre si, comentando que o inimigo estava descansado, inteiro e, bem, em esmagadora superioridade numérica. Os ingleses tinham aproximadamente 7 mil homens, os franceses por volta de 20 mil. E o primo do rei suspirou, dizendo que gostaria de ter os homens que ficaram na Inglaterra fazendo nada.

A seguir, o vídeo do filme — Branagh faz alguns cortes –, o que diz Westmoreland e a resposta de Henrique V, em português e o original de Shakespeare:

O conde de Westmoreland, primo do rei, lamenta a falta de mais homens para pelo menos tentar equilibrar um pouco a enorme diferença dos efetivos de combatentes. O rei toma a palavra então:

Quem expressa esse desejo? Meu primo Westmoreland? Não, meu simpático primo; se estamos destinados a morrer, nosso país não tem necessidade de perder mais homens do que nós temos aqui; e , se devemos viver, quanto menor é o nosso número, maior será para cada um de nós a parte da honra. Pela vontade de Deus! Não desejes nenhum um homem a mais, te rogo! Por Júpiter! Não sou avaro de ouro, e pouco me importo se vivem às minhas expensas: sinto pouco que outros usem minhas roupas: essa coisas externas não encontram abrigo entre as minhas preocupações; mas se ambicionar a honra é pecado, sou a alma mais pecadora que existe.

Não, por fé, não desejeis nenhum homem mais da Inglaterra. Paz de Deus! Não quereria, pela melhor das esperanças, expor-me a perder uma honra tão grande, que um homem a mais poderia quiçá compartir comigo. Oh! Não ansieis por nenhum homem a mais! Proclama antes, através do meu exército, Westmoreland, que aquele que não for com coração à luta poderá se retirar: lhe daremos um passaporte e poremos na sua mochila uns escudos para a viagem; não queremos morrer na companhia de um homem que teme morrer como companheiro nosso.

Este dia é o da festa de São Crispim; aquele que sobreviver esse dia voltará são e salvo ao seu lar e se colocará na ponta dos pés quando se mencionará esta data, ele crescerá sobre si mesmo ante o nome de São Crispim. Aquele que sobrevier esse dia e chegar a velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: “Amanhã é São Crispim”. E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: “Recebi estas feridas no dia de São Crispim.”

Os velhos esquecerão; mas, aqueles que não esquecem de tudo, se lembrarão todavia com satisfação das proezas que levaram a cabo naquele dia. E então nossos nomes serão tão familiares nas suas bocas com os nomes dos seus parentes: o rei Harry, Bedford, Exeter, Warwick e Talbot, Salisbury e Gloucester serão ressuscitados pela recordação viva e saudados com o estalar dos copos.

O bom homem ensinará esta história ao seu filho, e desde este dia até o fim do mundo a festa de São Crispim e Crispiano nunca chegará sem que venha associada a nossa recordação, à lembrança do nosso pequeno exército, do nosso bando de irmãos; porque aquele que verter hoje seu sangue comigo, por muito vil que seja, será meu irmão, esta jornada enobrecerá sua condição e os cavaleiros que permanecem agora no leito da Inglaterra irão se considerar como malditos por não estarem aqui, e sentirão sua nobreza diminuída quando escutarem falar daqueles que combateram conosco no dia de São Crispim.

(A vida do rei Henrique V, ato IV, cena III)

.oOo.

O original sem cortes:

What’s he that wishes so?
My cousin, Westmorland? No, my fair cousin;
If we are mark’d to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God’s will! I pray thee, wish not one man more.

By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It yearns me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires.
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England.
God’s peace! I would not lose so great an honour
As one man more methinks would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more!
Rather proclaim it, Westmorland, through my host,
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart; his passport shall be made,
And crowns for convoy put into his purse;
We would not die in that man’s company
That fears his fellowship to die with us.

This day is call’d the feast of Crispian.
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when this day is nam’d,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and see old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say “To-morrow is Saint Crispian.”
Then will he strip his sleeve and show his scars,
And say “These wounds I had on Crispin’s day.”

Old men forget; yet all shall be forgot,
But he’ll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words—
Harry the King, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester—
Be in their flowing cups freshly rememb’red.

This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be rememberèd—
We few, we happy few, we band of brothers;
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;
And gentlemen in England now a-bed
Shall think themselves accurs’d they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day.

Batalha de Azincourt em miniatura do século XV | Autoria de Thomas_Walsingham

Origem, de Thomas Bernhard

Origem, de Thomas Bernhard

Origem reúne 5 pequenos livros — trata-se de relatos autobiográficos de mais ou menos 100 paginas cada um —  que Thomas Bernhard publicou  entre 1975 e 1982: são eles Uma criança, A causa, O porão, A respiração e O frio. Bernhard publicou-os fora de ordem cronológica mas, neste volume de 501 páginas, a Companhia das Letras reuniu todos os textos em ordem cronológica. O resultado é estupendo e forma uma bela autobiografia da juventude do autor, desde a infância até seus quase 20 anos de idade.

Este período foi marcado por  extremas dificuldades — Bernhard nasceu em 1931 e cresceu, portanto, durante a guerra e depois. Também jamais conheceu seu pai e teve uma relação conflituosa com a mãe. Foi criado pelo avô anarquista, seu mestre para toda a vida.

Não existe escritor que una com maior brilhantismo mau humor, ranzinice, inteligência e talento como Bernhard. Ninguém odeia como Bernhard. Ele odiava sua Áustria natal, odiava seus professores, seu médicos e achava que a quase totalidade da humanidade era perfeitamente imbecil. Só que tinha enormes fatias de razão e sabia como ninguém expressar seu ódio e repugnância. Ele tinha vergonha de Salzburgo e de seu país — e explica tudo em detalhes. “Minha existência sempre perturbou, o tempo todo. Sempre perturbei e sempre irritei as pessoas. Tudo que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas. Porque chamo a atenção para fatos perturbadores e irritantes. Existem aqueles que deixam os outros em paz e aqueles que perturbam e irritam, categoria à qual pertenço”, escreveu o escritor em Origem.

Cada um dos cinco relatos têm apenas um parágrafo de mais ou menos 100 páginas, mas são facílimos de ler. Extremamente musical, ele faz repetições pontuais que jamais fazem com que a gente se perca. Ele avança e retorna, avança e retorna com extrema habilidade.

O primeiro relato — Uma criança — é sobre sua infância e é algo lindo desde a decisão de Thomas em fazer uma viagem logo que aprende a equilibrar-se sobre uma bicicleta. A causa trata do internato e seu justificado ódio a Salzburgo. O porão é o extraordinário relato de quando Thomas desistiu de ir à escola, descobrindo o comércio e a música. A respiração e O frio são sobre as doenças que o acometeram na adolescência — Bernhard é realmente um sobrevivente.

Origem é espetacularmente bem escrito e mostra lindamente a formação de um ser humano não somente literário, mas principalmente musical. Explico: Bernhard descobriu seu grande talento musical durante a adolescência. Se não fossem seus combalidos pulmões, seria um barítono e sua formação com a professora de canto Maria Keldorfer e seu marido Theodor W. Werner está descrita em trechos inesquecíveis.

Recomendo muito!

Thomas Bernhard (1931-1989)

O oitavo pecado capital, o que foi retirado: a Melancolia

O oitavo pecado capital, o que foi retirado: a Melancolia

Os sete pecados capitais já foram oito. O oitavo era a Melancolia, entendida no sentido da tristeza profunda, aquela que pode acabar em suicídio, atentando contra a “obra de Deus”. Ou seja, tal melancolia não seria a tristeza comum e inevitável que todos sentem. É a doença da depressão, do isolamento extremo, da tristeza que parece, à pessoa que a sente, sem fim.

Em sua palestra no Fronteiras do Pensamento de 2018, o escritor José Eduardo Agualusa citou o fato da retirada da Melancolia como um dos pecados. Depois, ele entrou em considerações mais literárias sobre a criação e a cura através da literatura. A melancolia, vista como um pecado, é polêmica mesmo, pois ela não depende de um ato, mas de uma condição, de uma postura pessoal, digamos. Não é uma ação, mas uma vivência.

Ela foi colocada como pecado por ser uma insatisfação profunda que, segundo a igreja, surge da percepção errada de que falta sentido à vida. Isso atacaria a religião. Também seria uma forma de não aceitarmos a realidade, de não estarmos contentes com o que temos.

Melancholia, de Albrecht Dürer, séc. XV | Wikimedia Commons
Melancholia, de Albrecht Dürer, séc. XV | Wikimedia Commons

Após uma discussão de séculos, foi o Papa Gregório I quem atualizou a lista de pecados. Na época da criação dos oito pecados, os mais graves eram os mais egocêntricos. Portanto, o orgulho e a vaidade seriam os piores de todos. Logo depois viria a melancolia, pois confundia-se algo que hoje consideramos doença com a “característica extrema” de voltar-se para si mesmo.

A palavra melancolia tem origem grega e significa “bílis negra”. Victor Hugo escreveu que “a melancolia é a felicidade de estar triste”. Não o entendo. Ele devia estar se referindo àquela tristeza leve que nos acomete, não ao estado de paralisia que associamos à depressão.

Depois, a melancolia foi substituída pela preguiça. E o orgulho e a vaidade juntaram-se no pecado da soberba.

Então, ficaram os atuais Soberba, Avareza, Luxúria, Inveja, Gula, Ira e Preguiça.

Melancolia – por Albert György. O trabalho está em Genebra.

Bamboletras recomenda um verdadeiro suco de Brasil

Bamboletras recomenda um verdadeiro suco de Brasil

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Três excelentes livros!

O primeiro da lista fala sobre a pandemia e o que virá e é o livro que mais vendemos atualmente na Bamboletras. Sim, Abrão Slavutzky e Edson Souza são best-sellers!

O segundo vem de Ruy Castro falando novamente sobre o Rio antigo, tema sobre o qual Ruy é irresistível.

E o terceiro é a deliciosa biografia de nada menos do que João Gilberto escrita pelo especialista Zuza Homem de Mello.

É mole?

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Imaginar o Amanhã, de Abrão Slavutzky e Edson Luiz André de Souza (Diadorim, 216 páginas, R$ 55,00)

Ainda falta muito? Todos nós já fizemos essa pergunta. Na infância, obrigados a suportar provações de toda espécie e, ao longo da vida, quando percorremos longos caminhos e estradas desconhecidas, e o cansaço e a impaciência nos abatem. Nos quase dois anos da pandemia do coronavírus, essa pergunta, ou pelo menos o sentimento de angústia que ela contém, se fez presente em cada um de nós. Para grande parte dos brasileiros, a passagem dilacerante do tempo teve como agravante o estarrecimento diante da indiferença do presidente do país à tragédia vivida pela população, cuja expressão mais dolorida são os quase 600 mil mortos pela Covid 19 contabilizados até agora. Drama ao qual se somaram o desemprego, a crise econômica e a carestia generalizada dos bens de primeira necessidade. Privadas da rotina e relacionamentos cotidianos, as pessoas tiveram nas redes sociais sua principal companhia no mundo pandêmico, marcado pelo isolamento, pelo medo, pelo luto e… pela esperança. Sim, a esperança foi imprescindível para nos mantermos lúcidos ou pelo menos humanos nestes tempos. Que nada mais é do que uma parte do eterno labirinto que enreda nossa existência. Neste livro, os autores se propuseram a imaginar o amanhã que será de todos nós.

As Vozes da Metrópole, de Ruy Castro (Cia. das Letras, 464 páginas, R$ 79,90)

As vozes da metrópole joga luz sobre a produção literária, poética e jornalística dos escritores que foram protagonistas e testemunhas dos anos loucos cariocas. Cenário de Metrópole à beira-mar, o Rio dos anos 20 estava em ebulição e já era moderno na arquitetura, na música, nas artes plásticas, no pensamento, nos costumes – e, é claro, na literatura. Dividido em frases, crônicas, reportagens, trechos de romances, poemas e provocações, o livro reúne cerca de quarenta autores, desde os mais conhecidos, como Murilo Mendes, Lima Barreto e João do Rio, até nomes que tiveram edições restritas ou que estão fora de circulação há décadas, a exemplo de Adelino Magalhães, Mercedes Dantas e Romeu de Avellar. Eis aqui uma amostra irresistível do que foi feito num Rio que mudou a história – organizada por quem conhece a cidade como ninguém.

Amoroso — Uma biografia de João Gilberto, de Zuza Homem de Mello (Cia. das Letras, 344 páginas, 89,90)

Já não restam superlativos para caracterizar a música de João Gilberto. Com sua voz e seu violão inigualáveis, o criador da bossa nova foi reverenciado no mundo inteiro – até nos deixar, aos 88 anos, em julho de 2019. Escrito pelo produtor e pesquisador musical Zuza Homem de Mello, Amoroso é a primeira biografia dedicada ao baiano de Juazeiro. Personagem tão apaixonante quanto idiossincrático, João Gilberto é aqui retratado pelo prisma de sua arte. De Salvador a Tóquio, passando por Nova York, Rio de Janeiro e Cidade do México, somos levados aos estúdios, teatros, bares, clubes e festivais por onde João circulou, e conhecemos os compositores, arranjadores, instrumentistas, produtores, jornalistas, técnicos de som e empresários que cruzaram seu caminho. Melômano de conhecimento enciclopédico, o autor reconstrói a trajetória musical de seu amigo e ídolo em prosa leve e alegre, elegante e precisa – como ensinou João.

Pai

Hoje faz 28 anos do falecimento de meu pai. Acho que foi o primeiro dia tão-somente triste, o primeiro dia 100% e absolutamente triste de minha vida. Fui acordado pela notícia. Ele tinha 30 anos a mais do que eu. Então, fico pensando se pode ser verdade que tenho apenas mais dois anos.

Hoje, dentro de minha cabeça, Clara Nunes está cantando uma canção de Chico Buarque chamada Umas e Outras que lá pelas tantas diz: “Cruzes, que vida comprida / Pra que tanta vida, pra gente desanimar”.

É, os dias 10 e 11 de dezembro nunca mais foram os mesmos após 1993.

Porque era ela, porque era eu, de Clara Corleone

Este é o segundo livro e primeiro romance de Clara Corleone. Primeiro vieram as excelentes crônicas de O homem infelizmente tem que acabar. Este Porque era ela, porque era eu tem todo o jeito de história real, mas, sabe-se lá, talvez seja apenas uma realidade ficcional. Uma das personagens principais — chamada Clara Corleone — e passa por um conflito interno entre feminismo e estilo de vida. Afinal, ela aceita de ser a “amante”, a “outra”, de um homem. Sim, é uma crise, mas o é leve, bem humorado e é novamente escrito na prosa afiada e fluida de Clara.

Pois não é um tratado feminista ou filosófico. O conflito de que falei é perfeitamente encoberto por conversas jogadas fora, mil detalhes, garrafas de cerveja, por descrições de encontros entre amigas, entre amantes, em bares e em camas, tudo com a autora no controle. A história é contada pela Clara personagem. por um lado, e por Clarissa, de outro. No início do romance, a autora nos confunde sobre quem está narrando.

Quase todo mundo já lançou olhares ou se apaixonou ou ficou com alguém “comprometido”, creio eu. E é simplificar muito as coisas considerar a(o) amante um(a) mera vilã. Porém, para além do desejo, pegar um cara casado é uma opção ética. Neste caso, ela se une a ele no desrespeito que tem pela esposa, correto? Ela se une a ele e não à outra… Uma mulher que faz isto não estaria sendo machista? O feminismo não deveria ser também uma construção de apoio mútuo entre mulheres? É saudável uma relação que aniquila outra?

Mas a gente se diverte muito lendo Porque era ela… Há uma visão real e colorida da contemporaneidade do bairro Bom Fim e adjacências de Porto Alegre. É onde moro e é uma maravilha poder ir ao Miau da Cabral e pensar se podemos mesmo levantar (vá ler o livro). É uma delícia entrar na Lancheria do Parque pensando nas conversas e no aconselhamento entre as mulheres nas mesas. Aliás, anteontem, fui na Lancheria com a Elena quando repentinamente surgiu Clara Corleone herself na nossa frente.

A cena final do livro é realmente muito boa. Não há facadas, gritos e nem canos fumegantes. Ninguém arranca os cabelos. Há elegância.

Leia!

P.S. 1 — Clara leu esta resenha e esclareceu que só 10% daquilo ali aconteceu de fato.

P.S. 2 — O título do livro foi inspirado pela canção de Chico Buarque que, por sua vez, a trouxe de Montaigne, conforme está bem explicado aqui.

Clara na festa em que recebeu o Prêmio Jacarandá de “Aurora do Ano” | Foto de Bruna Paulin

Bamboletras recomenda uma mineira e um monte de gaúcho(a)s

Bamboletras recomenda uma mineira e um monte de gaúcho(a)s

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Um livro da mineira Carla Madeira, autora do excelente Tudo é rio, outro que marca o retorno de Martha Medeiros à poesia e uma antologia tocada à base de talento e algum álcool, pensamos. Estas são as recomendações da Bamboletras nesta segunda newsletter de dezembro.

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Véspera, de Carla Madeira (Record, 280 páginas, R$ 49,90)

Em Véspera, o leitor se depara com dois tempos narrativos. O tempo passado traz Custódia e seus dois filhos gêmeos, Caim e Abel, assim batizados pelo pai à revelia da genitora. Um salto temporal coloca Vedina, mulher de Abel, no papel de protagonista, logo de cara cometendo um ato que provavelmente só uma pessoa numa situação emocional limítrofe faria: ela abandona seu carro com o filho do casal dentro, deixado à própria sorte. O arrependimento se dá rapidamente, só que, quando ela volta, o garoto não está mais lá. A autora conta: “A questão central é: como uma pessoa pode chegar a tal extremo? Como essa mãe chegou a ponto de abandonar o filho?”. Para tentar responder, Carla optou por esse cruzamento temporal exatamente para mostrar a ‘véspera’ do acontecimento. “Vou lá atrás, na história dos gêmeos Caim e Abel. Falo do nascimento dos meninos, do motivo de terem recebido esses nomes, etc.”.

Horas Íntimas — Master Class Santa Sede para Vinícius de Moraes, antologia organizada por Rubem Penz (Santa Sede, 240 páginas, R$ 40,00)

Este é o oitavo livro nascido no ambiente da Master Class Santa Sede, um seleto grupo de cronistas de botequim que se reúne em Porto Alegre. Nele, há crônicas e poesias. Pedro Gonzaga diz: “Poucos mestres do gênero ensinarão tão fortemente a arte da conversa, a coloquialidade do português brasileiro e moderno, a leveza profunda de quem olha para a vida como um fenômeno passageiro e fatal, mas ao mesmo tempo permanente e esperançoso. Por essas e outras razões, parece-me difícil imaginar um autor mais versátil como fonte de inspiração para uma antologia de crônicas. (…) Mais uma vez Rubem Penz consegue produzir o espaço em que a celebração de clássicos e a energia da novidade se encontram”.

Noite em Claro Noite Adentro, de Martha Medeiros (L&PM, 144 páginas, 39,90)

A rebeldia, a ousadia, a inconformidade estão neste livro, mas temperadas pela maturidade, pelas frustrações, pelo cansaço de quem já viu muita coisa na vida e não se abala por pouco. A primeira incursão de Martha Medeiros na literatura foi com o livro de poesias Strip Tease, publicado em 1985. O livro ganhou a admiração de Millôr Fernandes e Caio Fernando Abreu. Seguiram-se vários best-sellers. Cartas extraviadas e outros poemas foi lançado em 2001 e desde então Martha não publicou mais versos, dedicando-se às crônicas e às narrativas em prosa. Agora, ela retorna à escrita poética, com as 51 composições deste volume. Além disso, este volume traz a novela Noite em claro, publicada em 2012 mas pouco conhecida do público. Um livro leve, delicioso, para matar a saudade da poeta e que fará o deleite dos fãs da autora.

Carla Madeira | Foto: Versatille