Bloomsday: Mrs. Dalloway encontra Mr. Bloom

Bloomsday: Mrs. Dalloway encontra Mr. Bloom

Virginia Woolf nasceu no dia 25 de janeiro de 1882. James Joyce em 2 de fevereiro do mesmo ano. São 8 dias de diferença.

James Joyce publicou seu primeiro livro, Música de Câmara, em 1907. Woolf estreou na literatura em 1915, com The Voyage Out. São 8 anos de diferença.

A curiosidade leva a gente a lugares estranhos. Deste modo, descobrimos que, adulto, Joyce media 1,78m. E que Woolf media 1,70m. 8 centímetros de diferença.

Por justificadas razões, James Joyce escolheu o dia 16 de junho de 1904, uma quinta-feira, para a ação de Ulysses. Já Virginia Woolf marcou Mrs. Dalloway, um romance que também se passa em um dia, para uma quarta-feira também de junho, mas não nos disse dia nem ano. Talvez seja 8 dias antes ou depois do dia 16, mas já estaríamos forçando um pouco, até porque ela falou em meados do mês.

Ulysses foi publicado em 1922, Mrs. Dalloway em 1925, o que quebra de vez nossa numerologia.

Enquanto o Bloomsday é comemorado há décadas, o Dalloway`s Day é bem mais recente, o que talvez seja uma prova de tudo o que Virginia sempre disse: há a ausência da voz das mulheres.

Em fevereiro de 1922, logo após o lançamento de Ulysses, Virginia Woolf escreveu para sua irmã Vanessa, então em Paris: “Pelo amor de Deus, faça amizade com Joyce. Quero saber como ele é”. Ao que tudo indica, Vanessa fracassou em sua missão, porém, em abril, Virginia adquiriu um exemplar de Ulysses por caríssimas – na época – 4 libras. Quando fez a compra, trabalhava em um romance chamado Mrs. Dalloway em Bond Street.

Sim, Virginia leu Ulysses e escreveu em seu diário uma série de considerações que ficavam entre um decidido não gostei e o respeito. Após ler as primeiras 200 páginas, sentenciou: E Tom (T. S. Eliot), o grande Tom, acha que isso se equipara a Guerra e Paz! Parece-me um livro analfabeto e malcriado. (…) É claro que o gênio pode explodir na página 652, mas tenho minhas dúvidas.

Porém, ainda parada na página 200, ela elogiou publicamente o capítulo 6…

Após finalizar a leitura, novas críticas: Terminei Ulysses e acho que foi um erro. É genial, mas difuso e pretensioso. (…) Um escritor de primeira linha, (…) surpreendente; fazendo acrobacias. Lembrou-me o tempo todo algum colegial imaturo, cheio de inteligência e poderes, mas tão autoconsciente e egoísta que perde a cabeça, torna-se extravagante, barulhento, pouco à vontade, faz com que as pessoas gentis sintam pena dele, e as severas apenas se irritem. (…) mas como Joyce tem 40 anos, não amadurece mais. Não o li com atenção; & apenas uma vez; & é muito obscuro.

Enquanto isso, o amigo T. S. Eliot rebatia: Considero Ulysses a expressão mais importante que a era atual encontrou; é um livro ao qual todos devemos e do qual nenhum de nós poderá escapar. As palavras de Eliot se aplicam também a Virginia Woolf – não importa o quanto ela tentasse escapar de Ulysses ela nunca conseguiu parar de pensar no romance de Joyce. Como observa Suzette Henke, Joyce era uma espécie de “duplo artístico, um aliado masculino na batalha modernista pelo realismo psicológico”.

Já Joyce não parece ter lido Virginia.

Há muitas coisas em comum entre Ulysses e Mrs. Dalloway. Ambos utilizam fluxo de consciência, referências ao passado, epifanias e histórias que se cruzam. Leopold Bloom sai de casa, trabalha, vai a um enterro, caminha pela praia, discute com um antissemita, vai a um bordel, pensa na mulher, volta, etc. Já Clarissa Dalloway flana por Londres a fim de comprar flores para um jantar que dará naquela noite, atravessa um parque, olha vitrines, volta. Notem que os verbos que cabem à Bloom são trabalhar e caminhar, já para Mrs. Dalloway são flanar e passear. Sim, há uma leveza que perpassa o livro de Woolf que é rara em Ulysses. Mas voltemos às semelhanças: ambos os livros dão espaço aos personagens que cruzam com os protagonistas e tocam em fatos bastante rotineiros assim como em outros nem tanto – a guerra no caso de Woolf e o papel da igreja na Irlanda, no caso de Joyce.

Woolf nasceu em berço de ouro e convivia com a nobreza e com os grandes personagens de sua época. Joyce foi um exilado sem recursos que teve lutar duramente pela sobrevivência e para ter sua obra reconhecida. Há outra curiosidade: o casal Leonard e Virginia Woolf tinha uma pequena editora, a Hogarth Press, e um dia eles escreveram a James Joyce a fim de rejeitar o manuscrito de Ulysses. Era muito longo, além da capacidade de sua editora, declararam os Woolf em carta. Era exatamente o tipo de declaração da qual eles teriam se ressentido e desconfiado como escritores.

Lendo Mrs. Dalloway, temos a impressão de que Woolf absorveu muito do livro de Joyce, por mais que o desgostasse.

São duas obras-primas, livros fundamentais da ficção moderna.

Os dois escritores morreram em 1941. Joyce em 13 de janeiro em Zurique e Virginia 74 dias depois, no dia 28 de março, em Lewes, próximo de Londres.

Sinfonia dos Mil, de Almir Amarante

Sinfonia dos Mil, de Almir Amarante

Quase tudo está dito no booktrailer abaixo, mas vamos lá. Durante a pandemia, um contrabaixista de orquestra sinfônica é convidado para uma gravação da Sinfonia dos Mil, de Mahler. A assim chamada Sinfonia é a de Nº 8 do genial austríaco. Trata-se de uma enormidade musical. Inclui orquestra, coro, solistas, órgão, mais a torcida do Galo e a do Inter. Claro que é complicado colocar mil pessoas num palco e a Sinfonia é normalmente interpretada por muito menos gente — o próprio compositor não aprovou este apelido “dos mil”, mas este permaneceu, ainda mais que alguns maestros, como Stokowski, apertaram de verdade mais de mil músicos num palco.

O convite era assim: como o tempo era de pandemia, a captação de som e imagem seria remota. Ou seja, cada músico receberia instruções detalhadas e gravaria sua parte em casa. Tudo seria depois juntado, como muitos fizeram durante aquele período. Na gravação resultante, a Sinfonia seria realmente interpretada por mil músicos. A ideia geral da obra de Mahler é a da redenção através do amor, fato que tem eco na boa história contada por Amarante, ele mesmo contrabaixista da Osesp desde 1994.

Acontece que um determinado músico, um contrabaixista argentino também convidado para participar da empreitada, busca contato com o narrador, seu colega de instrumento no Brasil. E os dois passam a conversar com certa frequência, primeiro através de e-mails e depois por videochamadas. Bem, o único spoiler que hoje sairá de minha pena é para dizer que não se trata de história gay.

Mas direi que se trata de um livro excelente que narra uma interessante aproximação. Narra sobre a construção de um elo que resulta em mudanças no presente. Como músico, Amarante tem total conhecimento e vivência da matéria musical envolvida e, como escritor, não fica nem um pouco atrás. A vida numa sinfônica, as querelas entre os músicos, o nascimento de uma amizade e de conhecimento mútuo, as motivações envolvidas de cada contato, tudo é minuciosa e extremamente bem contado, de forma a que o leitor grude de vez, desejando saber logo tudo.

Amarante não apressa as coisas como fazem os maus músicos. O andamento e o senso de estilo estão sempre corrretos. Sinfonia dos Mil é um livro envolvente, tranquilo e inteligente como um segundo movimento de Haydn, sem tonitruantes tutti de mil pessoas.

Almir Amarante

‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

A pianista reflete sobre as extraordinárias exigências de memória demandadas dos solistas de concerto e como ela continua a treinar esse músculo

Por Angela Hewitt
Traduzido do The Guardian

Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota’… Angela Hewitt. Fotografia: Keith Saunders

Acontece com todos os pianistas: aquele momento aterrorizante quando você está no palco e não consegue se lembrar do que vem a seguir. Certa vez, meu ex-professor, Jean-Paul Sévilla, estava tocando as Variações Goldberg de Bach quando, ao final da Variação 7, não conseguia se lembrar como começava a Variação 8. No momento em que ele saiu do palco para encontrar sua partitura, ele lembrou, mas sua noite já estava arruinada. Depois aconteceu de Vlado Perlemuter sair de casa para a sala de concertos, quando questionado pela esposa se tinha esquecido de alguma coisa, um amigo lhe disse brincando: “O começo do concerto!” Quando, algumas horas depois, Vlado subiu ao palco em Paris para executar o Quarto Concerto para Piano de Beethoven (que começa com um solo de piano famoso), ele não conseguiu encontrar as notas. Minha própria vez chegou quando eu tinha 50 anos, tocando o Cravo Bem Temperado de Bach (todas as quatro horas e meia dele) de memória em Stuttgart. Foi parte de uma turnê mundial na qual toquei aquela obra gigantesca 56 vezes em 26 países. Naquela noite, no entanto, entrei errado na grande fuga em Lá menor do Livro 1 e não consegui encontrar como sair… Eu tive que levantar para ir buscar a partitura. Você se sente muito envergonhado — mas somos apenas humanos e às vezes isso acontece.

No geral, fui abençoada com uma memória excelente — suponho que alguns diriam até prodigiosa, já que executei as obras solo completas para teclado de Bach (com exceção de A Arte da Fuga), as 32 sonatas de Beethoven e quem sabe quantos milhões de outras notas da memória ao longo dos anos. Sempre pensei que seria uma boa ideia medir meu cérebro antes de memorizar todo aquele Bach e depois novamente para ver como ele havia se desenvolvido e mudado. Tarde demais agora. Aos 64 anos, ele definitivamente está diminuindo, e a memorização tornou-se uma atividade muito consciente, frustrante e demorada. Mas continuo nisso porque a memória é um músculo que precisa ser constantemente usado.

Quando você é um jovem pianista, a memória vem quase sem pensar. Uma grande parte dela é memória reflexa; acrescente a isso a memória auditiva (especialmente se, como eu, você tivesse ouvido absoluto), a memória visual (alguns pianistas, como Yvonne Loriod, que era casada com Olivier Messiaen, tinha uma peça memorizada depois de olhá-la apenas uma vez) e a memória de associação, e você tem um processo relativamente rápido.

Digo que eu “tinha” afinação perfeita porque ela diminuiu com a idade. Quando criança, eu conseguia nomear instantaneamente todas as notas, mesmo nos acordes mais complicados. Agora preciso de tempo para pensar nisso. A tonalidade perfeita está relacionada à memória: se uma fica fraca, o outra também. Todo mundo de uma certa idade que já encontrou esse problema. Isso torna a memorização uma tarefa muito mais complicada.

A memória é um assunto sobre o qual não gostamos de falar – é como o sexo, o amor e as crenças religiosas – muito provavelmente porque temos medo de perdê-la. É preciso coragem para admitir até para si mesmo que sua memória está falhando. Muitas vezes, amigos ou familiares percebem primeiro. Não devemos nos sentir envergonhados, mas sim abraçar esse sinal normal de envelhecimento e fazer tudo o que pudermos para manter nosso cérebro vivo. Fico chateada quando não consigo lembrar onde coloquei meu cartão de embarque, como aconteceu esta manhã em Heathrow (apenas para encontrá-lo no compartimento externo da minha mala, onde devo tê-lo colocado cinco minutos antes), quando não me lembro se tomei minha pastilha diária de TRH (terapia de reposição hormonal) — agora há algo que ajuda mulheres mais velhas com memória! –, e quando cometo o mesmo erro repetidamente ao aprender uma nova peça.

No verão passado, fui presidente do júri da competição de Bach em Leipzig, na qual os competidores podiam escolher se tocariam de memória ou com a partitura. (Com a partitura hoje em dia significa principalmente “com um iPad” acrescentado de um pedal para virar as páginas na tela, embora um concorrente tenha usado o aplicativo que permite fazer uma careta facial para virar a página – algo que achei profundamente desconcertante). Na idade deles, eu nunca teria sonhado em usar a partitura, mesmo para complicadas peças contemporâneas. No entanto, alguns deles o fizeram. Eles não poderiam ter gasto o tempo extra necessário para memorizar a música? Sei que a tendência hoje em dia é dizer que não importa, mas sei que quando consigo realizar algo com segurança de memória, isso me dá uma sensação maravilhosa de liberdade e realização.

Angela Hewitt se apresentando na sala de concertos St George em Bristol. Fotografia: Stephen Shepherd/The Guardian

Uma das falhas mais comuns dos pianistas é que passamos muito tempo tocando as notas e pouco tempo pensando no que estamos fazendo. “Pense 10 vezes e depois toque uma vez” já dizia o sábio Franz Liszt, que balbuciava mais notas por minuto do que qualquer outro (e que, junto com Clara Schumann, foi o primeiro pianista a tocar de memória – ato considerado arrogante pela público da época). Na verdade, o melhor trabalho de memória é feito longe do teclado – apenas olhando a partitura, memorizando seu dedilhado, as harmonias, os lugares onde é fácil errar, os intervalos, quantas notas há em um acorde, a dinâmica, o fraseado; nada é simples ou evidente demais para passar despercebido. Você deve se visualizar tocando a peça sem estar em um teclado. Então depois vá, toque e você ficará surpreso com o progresso que você fez.

Mesmo quando você está muito concentrado, o cérebro é constantemente assaltado por pensamentos estranhos e muitas vezes tolos. Como um pianista tocando de memória, você se treina para lidar com isso. Eu chamo isso de modo de dupla concentração. Tosse da plateia (as pessoas percebem que apenas uma tosse no lugar errado pode facilmente derrubar tudo?); o inevitável celular (sigo como se nada tivesse acontecido, senão piora as coisas); até uma vez tive um besouro subindo lentamente pelo meu braço nu durante uma fuga de Bach. Você tem que ser capaz de contar com sua concentração para passar, não importa o que aconteça.

Você também deve se treinar para pensar no que vem depois na partitura ou na memória — mesmo que apenas por uma fração de segundo. À medida que o cérebro envelhece, isso se torna ainda mais difícil, mas necessário. Acho que é por isso que os pianistas mais velhos em geral (Martha Argerich sendo a exceção) tendem a tocar mais devagar do que os mais jovens, para quem a velocidade costuma parecer o objetivo final. É também por isso que, como público, ficamos mais perturbados com os andamentos rápidos à medida que envelhecemos. É demais para nossos cérebros mais lentos processarem.

Aos 20 anos, morei no estúdio de um artista acima de uma filial do Banque Nationale de Paris por dois anos. O pessoal do banco sabia que eu era a única tocando no andar de cima, praticando, e eles afirmaram não se importar, exceto quando eu “tocava a mesma coisa repetidamente”. Para roubar uma observação do ator Roger Allam, a palavra francesa para ensaio é “répétition”, e é isso que você precisa fazer. Arranje um piano silencioso se isso deixar sua família ou vizinhos loucos; Costumo ter um em quartos de hotel quando estou em turnê.

Tocando com a Aurora Orchestra em Kings Place em Londres. Fotografia: www.kingsplace.co.uk/kplayer

Outra coisa que você pode fazer para treinar o cérebro é pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Você pode praticar isso estando em um restaurante lotado e ouvindo duas ou mais conversas simultaneamente. Você precisará disso se estiver tocando uma fuga de Bach, que pode ter até cinco vozes, cada uma tão importante quanto a outra. Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota; na verdade, quando pratico, estou constantemente cantando, tentando imitar a voz humana em um instrumento cujos sons são produzidos por martelos batendo nas cordas. Ao cantar, envolvo minha concentração e minhas emoções, assim como minha memória. Ao contrário do meu compatriota Glenn Gould, quando estou no palco ou em um estúdio de gravação, faço isso silenciosamente.

Se tudo isso soa muito cansativo então, acredite, é mesmo. Faça pausas quando sentir que seu cérebro está cansado e certifique-se de que ele receba todos os nutrientes de que precisa. Álcool e pílulas para dormir não ajudam – e é por isso que evito o primeiro e me recuso a usar o segundo. Nos bastidores das salas de concerto, tenho os alimentos para o cérebro prontos: sardinhas enlatadas, abacates, manteiga de amendoim, biscoitos de centeio, mirtilos, bananas e muita água.

Muitas vezes ouço as pessoas dizerem que não conseguem mais memorizar nada. Sim, mas você realmente tentou? Se você não é músico, pegue um poema, uma receita ou o telefone dos seus melhores amigos. Acima de tudo, não desista. Conheça o seu cérebro e trabalhe nele.

Sempre digo que não conseguiria decorar as obras completas de Bach e ter quatro filhos. Isso teria sido impossível. Eu não tenho nenhum. Mas tive uma vida maravilhosa na companhia de algumas das maiores mentes que já existiram, e para eles, e para meus pais músicos que me colocaram na frente de um piano de brinquedo aos dois anos de idade, eu sou para sempre grata.

Notas de Concerto para a Ospa. (03/06/2023, Notas às 16h, Concerto às 17h)

Notas de Concerto para a Ospa. (03/06/2023, Notas às 16h, Concerto às 17h)

Este concerto da Ospa apresentará 3 obras, duas de compositores brasileiros e em ordem contrária à cronológica. Começa com a obra mais recente:

Harry Crowl | E a Cidade Desperta (2017)

Apesar do nome, Harry Crowl (1958) é mineiro de Belo Horizonte e é um sábio, sendo, além de compositor, musicólogo e professor.

Quando conheci E a cidade desperta, logo me veio uma associação temática com uma canção que, musicalmente, não tem nada a ver com a obra de Crowl. Falo de Samba e Amor de Chico Buarque e que inicia com os seguintes versos:

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
Escuto a correria da cidade, que arde
E apressa o dia de amanhã

(…)

OK, mas onde há pontos em comum com Crowl é neste verso aqui:

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito mais o que fazer
Escuto a correria da cidade, que alarde
Será que é tão difícil amanhecer?

Será que é tão difícil amanhecer? Pois parece. Antes de compor esta peça, Crowl havia composto outra chamada Enquanto uma grande cidade dorme. Esta é muito quieta e sossegada, o que não acontece na que vamos ouvir no Concerto de hoje da Ospa. E a cidade desperta não é quieta. Assim como também não são sossegadas as motivações do compositor. A motivação nasceu de uma tentativa do prefeito de São Paulo, parece que Kassab, de apagar alguns grafites extraordinários feitos pelo artista brasileiro Eduardo Kobra, na verdade um grande muralista. Harry Crowl ficou indignado por pensar que aqueles grafites davam humanidade ao universo cinzento de concreto armado de São Paulo. E não vou discordar dele, do compositor.

Na obra de Crowl, à medida que amanhece, uma multiplicidade de cores e sons da cidade se revelam nos mais variados matizes através dos graffiti de artistas muitas vezes anônimos. Essas manifestações espontâneas, apesar das constantes tentativas de apagamento, seguem brotando dos muros e paredes como se fossem um grito de um mundo asfixiado. E a cidade desperta… propõe um diálogo com este meio de expressão artístico e é também uma homenagem ao artista brasileiro Kobra que, com suas criações imensas e fortemente coloridas, tem levado um alívio visual para espaços esquecidos ou abandonados das grandes metrópoles pelo mundo afora.

Como disse Chico Buarque em sua canção de 1970, é difícil amanhecer — ainda mais pensando no prefeito — e Crowl o faz de forma muito afirmativa, revelando que não está ao lado dos apagadores e de quem agride a arte. A explosão de vida que a cidade revela nos detalhes daquilo que antes era apenas sombras de construções, é mostrada com forte percussão, ostinati, em um virtuosístico solo de violino e outros solos de clarinete e trompete.

Heitor Villa-Lobos | Fantasia para Saxofone, W490
I. Animé
II. Lent
III. Très animé

Embora o saxofone apareça com destaque ao longo de toda a produção de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), a Fantasia para Saxofone é a única composição de Villa que tem o instrumento como solista. A peça, escrita em 1948,  equivale a um pequeno concerto em três movimentos. Quando pensamos no saxofone na música brasileira, normalmente nos vem à mente o choro e Pixinguinha, mas a abordagem de Villa é inteiramente diversa. Na verdade, esta Fantasia poderia ser uma pequena bachiana.

Villa-Lobos conheceu o saxofonista Marcel Mule em Paris na década de 1920, quando Mule tocou saxofone em uma das obras orquestrais de Villa-Lobos. Embora tenha sido escrita e dedicada a Mule, e originalmente especificasse o saxofone soprano , o instrumento ao qual Mule foi associado, a Fantasia não foi uma obra encomendada e não há indicação de que o compositor tenha se correspondido com o saxofonista sobre a peça antes de enviar-lhe a partitura completa em dezembro de 1948. Mule, no entanto, nunca executou o trabalho. Mule disse: “A  peça não me empolgou naquela época principalmente porque era muito complicado de tocá-la no sax soprano.” Diante da relutância de Mule em tocar a obra, Villa-Lobos recorreu ao saxofonista brasileiro Waldemar Szpilman. Szpilman, no entanto, não possuía um saxofone soprano, que era o instrumento especificado por Villa-Lobos, e, como Mule, achava as notas mais altas muito arriscadas. Consequentemente, o compositor decidiu transpor a peça para um tom mais baixo e permitir o saxofone tenor como alternativa ao soprano. E é esta versão que vocês ouvirão hoje, Eu assisti a um dos ensaios e afirmo que o saxofonista Samuel Alves é esplêndido, com aquele paradoxo de ter um som forte e delicado ao mesmo tempo.  

Joseph Haydn | Sinfonia nº 104 em Ré Maior, “London”
I. Adagio – Allegro
II. Andante
III. Minuet. Allegro – Trio
IV. Finale. Spiritoso

A Sinfonia Nº 104 em ré maior, de Franz Joseph Haydn (1732-1809), foi composta nos últimos anos de vida do compositor. Em 1790, após décadas trabalhando como músico da corte para a rica família Esterházy, a família reduziu seu salário e autorizou-o a viajar. Então, o compositor aceitou uma oferta lucrativa de Johann Peter Salomon, violinista e empresário alemão, para visitar a Inglaterra e reger novas sinfonias com uma grande orquestra. As chamadas Sinfonias Londres são as de número 93 a 104, sendo que esta última é a obra final de Haydn no gênero.

A invenção do quarteto de cordas é atribuída ao austríaco Joseph Haydn, que também ajudou a formatar as sinfonias. Na verdade, ele seria o pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música

Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
Regência: Marcelo de Jesus (BRA)
Solista: Samuel Alves (saxofone – BRA)

Data: 03/06/2023 17h
Local: Casa da Ospa
Av. Borges de Medeiros, 1501 – Centro Administrativo Fernando Ferrari