99 anos hoje

Ao Daniel, ao Douglas e ao J.R.,
um post escrito rapidamente porém de forma emocionada.

Não tive a menor chance. Meu pai e meu primo João Reinaldo não deixaram espaço para dúvidas ou negociação: eu seria colorado e ponto final. Meu primeiro jogo foi ironicamente no Estádio Olímpico – assim batizado certamente em honra às Olimpíadas de Porto Alegre -, um Inter 1 x 0 São Paulo pelo Robertão de 1967, gol de Lambari. Não pensem que não lembro do gol. Como todo torcedor de futebol tenho um imenso acervo de gols na memória e lembro sim. Meus primeiros anos foram complicados, o Grêmio foi heptacampeão gaúcho entre 1962 e 1968 e, no colégio, havia enorme pressão para que eu mudasse de time, mas eu temia ser desprezado por minha família se mudasse e aquele primeiro jogo, aquele primeiro gol, foi fundamental para que meu amor ficasse definitivamente com o time de camisas vermelhas que chegou a dois vices no Robertão, mas que parecia ser incapaz de enfrentar o Grêmio. O primeiro gol que comemoramos é como o primeiro sutiã da propaganda. É tão inesquecível que, depois dele, não se muda mais.

Em 1969, houve a inauguração do Beira-Rio; eu tinha 11 anos e meu pai repetia que, com o dinheiro do clube sendo revertido agora para o futebol, nós patrolaríamos o Grêmio. Mas o que tinha o dinheiro a ver com o futebol?, pensava eu. Fui na célebre inauguração do estádio, vi o gol de Claudiomiro contra o Benfica e não entendi nada quando Gainete deixou a falta batida por Eusébio entrar em nosso gol (Gainete alegou que era falta de dois toques e deixou a bola entrar quando poderia tê-la agarrado facilmente. O juiz deu o gol. Minutos depois, Gílson Porto livrou a cara de nosso goleiro.) Durante o mesmo “Festival” de inauguração – havia datas livres naquela época – vi o famoso Grenal da Pauleira: um zero a zero muito promissor para quem perdia sempre. O Grêmio foi amassado, mas era ainda um grande time e evitou a derrota. Ao final, 21 jogadores brigaram a socos e pontapés. As emissoras de TV passaram centenas de vezes os lamentáveis acontecimentos e comecei a desconfiar que jornalistas gostavam de coisas lamentáveis. Só Dorinho ficou de fora, olhando. Fiquei com raiva dele, tinha que ter brigado em vez de dar uma de bom moço! Urruzmendi e Gainete bateram nos gremistas de uma maneira que comprovava o fato de estarem no esporte errado. As televisões repetiam e repetiam especialmente uma voadora de Gainete, depois víamos os jornalistas balançarem negativamente a cabeça, afirmando que aquilo era uma selvageria e víamos as agressões mais trinta vezes durante os debates. No mesmo 1969, fomos campeões gaúchos. No Grenal decisivo, minha mãe (!) foi conosco e, quando não encontrava a bola em campo, procurava-a temerosa dentro de nosso gol. Tomava sustos. Resultado: 0 x 0 quando o Grêmio precisava vencer. Fomos finalmente campeões, coisa que repetiríamos até 1976, quando Figueroa e Minelli abandonaram o time. Mas antes, em 1975 e 76, fomos campeões brasileiros e vi o maior time do Inter jogar semanalmente. O campeonato gaúcho de 1974 foi algo nunca visto: um enorme campeonato em que ganhamos todos os jogos. Devia ser desanimador ou monótono para os adversários, mas nós achávamos normal. Em 1979, fomos novamente irrepetíveis ao vencer um Brasileiro de forma invicta.

Não vou escrever sobre as glórias do Inter até porque estou chegando ao grave período conhecido por Império Otomano, onde certamente o clube enriqueceu muita gente que pouco tinha a ver com futebol e porque o Grêmio virou o jogo e a coisa ficou sem graça. É incrível como me torno indiferente e intelectual nestes períodos; leio muito e consigo autenticamente ficar alheio. Quando o time melhora, coisa estranha, meu interesse recrudesce.

No centenário, gostaria de escrever uma série sobre a história do Inter, mas, para não fazer apenas imitação do Idelber, desejaria escrever sobre a enorme sedução que meu time exerce sobre mim, sobre o tempo que perdi-ganhei com ele, sobre o amor-desamor que me liga-desliga de meu clube de eleição (eleição, João Reinaldo?). Vou ao Beira-Rio 30 vezes ao ano, sei que os gremistas são meros equivocados, que nos divertimos muito mais e tenho absolutíssima razão ao dizer – muito antes que o Cacalo ficasse repetindo minha frase em programas de rádio – que o futebol é a mais importante das coisas desimportantes, que o futebol pode ser encarado como metáfora e representação da vida e como tal é uma arte que pode ser amada ou desprezada como alguns desprezam o teatro, por exemplo.

Eu estava preparando o final do post, mas lembrei da pergunta que um jovem, Daniel Cassol, do Impedimento, fez-me certamente em honra à minha idade: como foi ver o gol de Falcão contra o Atlético-MG nas semifinais de 1976?

Daniel, foi assim, exatamente assim:

“Estava no Beira-rio. O Atlético triturou nosso supertime da época no primeiro tempo. Não tivemos a menor chance e o 0 x 1 fora saudado como um bom negócio. Paulo Isidoro detonava nossa defesa. Só que o segundo tempo mostrou como um jogo pode mudar totalmente. O Inter passou a pressionar o Atlético de tal forma que era impossível que nosso gol não acontecesse. Só que ninguém avisou Ortiz – goleiro do Atlético-MG – desta impossibilidade. Aquele argentino não apenas pegava tudo, como atirava-se ao gramado, vítima de crudelíssimas e imaginárias lesões, que ocorriam a cada toque do adversário em sua delicadíssima constituição ou a cada momento em que era atingido pela brisa. O ódio que senti daquele argentino certamente deixou-me seqüelas irrecuperáveis que se estenderam por toda minha vida futebolística… O final da partida aproximava-se e Ortiz negava-se a admitir que os gols deviam acontecer. Chegamos então àquele momento em que, se a coisa não vai por bem, vai por mal. Batista arriscou um chute violentíssimo de longe, logo ele que era péssimo nisto, e acertou o ângulo de Ortiz. Gol. Foi uma vibração com som diferente, pois ao mesmo tempo em que comemorávamos, dizíamos horrores ao goleiro adversário. 1 x 1. Foi então que a magia tomou conta do estádio. Não há explicação para aquele gol. Quem viu o gol de Falcão, aos 45 minutos do segundo tempo, sabe: foi magia pura. A bola saiu do pé de Figueroa para Dario. Desde Figueroa, a bola não mais tocou o chão até bater no joelho de Ortiz e ir para as redes. Do pé direito de Dario, foi para a cabeça de Escurinho, da de Escurinho para Falcão e da de Falcão de volta a Escurinho. Então, o negão viu que Falcão entrava no meio da zaga atleticana para receber a bola de volta e fez o passe. Tudo de cabeça. Então a magia desfez-se mas, como todos estavam abobalhados vendo aquilo, o gol saiu assim mesmo. Falcão errou o chute, apenas raspou na bola. Só que Ortiz, hipnotizado por aquela bola que nunca tocava o chão, deixou-a bater em seu joelho e entrar. Não foi um frango, mas era um chute defensável. Luís Artime, grande artilheiro argentino, ensinava: 30% dos gols saem por “erro” do atacante… Foi o caso. Falcão enganou involuntariamente o odioso Ortiz.

“Quando Falcão marcou este gol – o mais bonito que vi em estádio até hoje -, eu não soube como comemorar. Não era gol para pular, pois não se pula, nem se soqueia o ar e grita na frente de um quadro de Vermeer. Desci uns três degraus das arquibancadas das sociais, subi de volta a meu lugar e sentei. Lembro que pensei, enquanto era quase pisoteado pelo resto da torcida: eu nunca mais vou esquecer este gol. Era tudo – emoção, estética, felicidade oceânica, adrenalina e surpresa pela vitória inesperada àquela altura -, foi tudo. E quem pulava a meu lado e me procurava para um abraço enquanto quase me pisoteava? Meu pai, é claro.”

E aqui, o gol:

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=ksbCX0Jh5nc&feature=related[/youtube]

Agora, para finalizar, leiam este comentário de um atleticano, escrito em 17/05/2005:

Amigo Milton:

Realmente um dia teremos que reunir-nos para recordar juntos. Tenho memórias dos dois jogos, apesar de ser 11 anos mais novo que você.

Na final de 1975, eu ainda não tinha preferência clubística, mas lembro-me muito bem de ter os olhos na televisão, fixos, angustiado porque era o dia da formatura no pré-primário e eu era o orador da turma! Tive que sair de casa antes do gol de Figueroa, xingando, amaldiçoando os rituais. Desde então formei-me no primário, ginásio, 2o grau, licenciatura, mestrado e doutorado mas com muito orgulho nunca mais pisei numa formatura. Se há uma formatura à qual eu deva comparecer, faço questão de procurar um estádio de futebol, em memória de Manga, Figueroa e daquele primeiro inesquecível título.

De 1976, nem falar. Já atleticano, vivê-lo foi de partir o coração. Aquela tabelinha de cabeça foi uma das coisas mais inacreditáveis que já vi no futebol. Quando lembramos que aconteceu aos 44 do 2o de uma semifinal empatada, realmente dá para se ter uma idéia do que representou.

Belas, belas lembranças.

14 comments / Add your comment below

  1. Quem assiste esse gol e continua perguntando “qual é a graça de ver 22 barbados correndo atrás de uma bola” deveria ser enviado para Guantánamo. É das coisas mais belas que há. O detalhe chave é esse que você destacou: Falcão erra o chute, que Ortiz estava bem posicionado para defender. O outro detalhe é que Cerezo e Danival marcam direitinho a jogada. Na hora do último toque de Escurinho, Cerezo recua, tirando o miolo da área do ângulo do passe. Foi um ato institucional de Deus. Eu não me queixo daquele campeonato. O Inter era mais time.

    O outro detalhe, claro, é que esse jogo era a final antecipada: a final era uma formalidade. O Corinthians de Tobias, Russo e Romeu não seria páreo nem para os reservas de qualquer uma daquelas duas equipes.

  2. Não era gol para pular, pois não se pula, nem se soqueia o ar e grita na frente de um quadro de Vermeer.

    jesus, que frase. Obrigado.

    eu senti algo bem menor, porém semelhante, no gol que Rentería que manteve viva a conquista do campeonato de ’05. Mas nada aconteceu e nunca ninguém vai me perguntar sobre aquele dia.

    talvez me perguntem sobre ’06, mas espero que minha filha veja outros tantos anos como aqueles

  3. Rapá, se tem uma coisa que me provoca uma profunda inveja nesse mundo é a tal de memória futebolística. Explico: nego lembrar da arrancada de contra ataque, da troca de passes no meio de campo e da cabeçada que resultou no gol de Zé Jurássico em milinovicento i guaraná de rolha no jogo em putaquepariu do oeste.
    Eu não lembro. Não adianta, não consigo lembrar. Conheço futebol, mas não consigo guardar lances.
    A coisa funciona como um espetáculo de dança.
    Pô, mas seu post tá impecável.
    com direito a me fazer lembrar de Figueroa e uma época maravilhosa em que os uniformes eram curtinhos hehehe
    Sorte e saúde pra todos!

  4. Milton, parabéns pelo texto e obrigado pela lembrança.

    Meu pai também esteve na inauguração do Beira-Rio. Uma epopéia vir de fusca a Porto Alegre, desde São Sepé. Conta ele que, desacostumado a estádios de futebol, comeu mosca quando todos se levantaram no momento do gol do Claudiomiro, e não viu o gol.

    Abração.

  5. Tio.

    Sempre que algum energúmeno me critica pelo fanatismo, pela perda de tempo ou com a mera pergunta “Não tens mais nada com o que se preocupar?” ou “O que tu ganhas com isso?”, respondo que nem tudo na vida gira em torno do dinheiro e do benefício propriamente individual (e sabes bem, aqui fala um defensor nato do capitalismo). Pensar assim é a maior das pobrezas de espírito.

    Torcer pelo Inter é muito mais do que isso… é a felicidade do gol, é a satisfação da vitória, é o orgulho das conquistas. É como se cada momento tivesse um dedo da participação de cada um de nós. É onde negros e brancos, árabes e judeus, ricos e pobres, empresários e empregados se encontram e formam uma NAÇÃO. É curtir as coisas simples da vida. Tua frase “futebol é a coisa mais importante dentre as menos importantes” faz todo sentido e a canso de repetir aos quatro ventos. Morrerei pensando dessa forma e jamais alguém será capaz de me convencer do contrário.

    Abaixo, um texto escrito por um grande amigo colorado, em homenagem aos 99 anos do Internacional. Vale a leitura.

    Fraterno abraço!

    “PARABÉNS INTERNACIONAL

    COMPLETANDO HOJE 99 ANOS DE IDADE!

    O clube criado pela intenção de dois irmãos e um primo,os Poppe, buscando igualdade social e oportunidades iguais de montar um time no qual todos pudessem atuar.

    Clube que, quando precisou, viu sua torcida construir DOIS ESTÁDIOS, sem ter grandes investimentos do governo e dependendo unicamente do trabalho dos seus torcedores. Fez os Eucaliptos nos anos 30, ampliou o mesmo nos anos 50. E depois fez o Beira-Rio.

    Que viu seu primeiro herói, Carlos Kluwe.
    Que viu o mítico “Rolo Compressor” com Carlitos e Tesourinha, de Alfeu, Abigail.
    O genial “Rolinho”, base do primeiro título da Seleção Brasileira no Exterior (o Pan de 1955 no México), de Larry e Bodinho, comandado pelo lendário Teté.
    Que viu Figueroa, Valdomiro, Falcão, Carpegianni, Manguita Fenomeno, Dadá, Batista, Escurinho em uma década fabulosa.
    Que viu nascer o maior goleiro brasileiro de todos os tempos, Cláudio André Taffarel.
    Que teve um susto em 1999. E repetiu a dose em 2002.
    Que viu um título de Campeão Brasileiro ser ROUBADO por dois juízes safados.
    Um no STJD e outro no campo.

    Mas que se reergueu para conquistar a América, em uma noite de “Morumbazo” comandado por um jovem atacante. E que viu o Capitão América levantar a taça em um Beira-Rio lotado e embevecido.
    E, mais do que tudo isto, se preparou para enfrentar o galático Barcelona, com o bi-melhor do mundo Ronaldinho, algoz de outras épocas. E viu nada isto ser páreo para o time que se consagraria como “MELHOR DO MUNDO”.

    E que nos últimos seis anos e meio, subiu de 5 mil sócios para quase 60 mil, sendo modelo nacional de administração, organização, estrutura para o time profissional e categorias de base. Exemplo a ser seguido por todos os grandes times do Brasil e muitos do mundo.

    Mas que ainda vai crescer mais, se tornando uma potência continental estável, sempre disputando os principais títulos e com um gigantesco número de associados.

    OBRIGADO POR EXISTIR, SPORT CLUB INTERNACIONAL”

  6. Vocês já viram como o Cassol sempre dá um jeito de lembrar que eu tenho idade para ser pai dele?

    Ane, vi o link; legal. A memória para besteiras é inseparável do sexo masculino, parece-me.

    Tiago e Claudia. O fato dos daltônicos do tipo chinelão verem o azul á uma questão de preservação. Assim, identificamos nossos inimigos.

    Idelber. Não tenho culpa se resolvemos fazer isso no Atlético-MG. Considere uma honra.

  7. Filipe, nossos comentários entraram quase juntos.

    Uma coisa: conto contigo e com o material do Portão 8 para fazer dez posts – um por cada década – entre fevereiro e abril de 2009. O último será sobre a 1999-2009, uma década realmente de ALTOS e baixos.

  8. Milton, muito obrigado pela referência.

    Tento e tento imaginar, mas sei que nunca conseguirei chegar próximo do que sentiram aqueles que presenciaram o gol do Falcão.

    Mas depois me acalmo porque sei que terei muito a contar sobre 2006. : )

  9. Com atraso, queira aceitar os meus parabéns pelos 99 anos do Inter. E a final de 76 deveria ter sido contra o Fluminense, um time muito superior ao Coríntians de então – e que só venceu o tricolor por uma ironia do destino. Abraços.

  10. Milton:
    Tenho sempre presente a minha responsabilidade (e até um certo orgulho) por tu seres um Colorado! Também não esqueço o quanto teu Tio, meu Pai, ficou incomodado com o que eu e Milton Pai fizemos, comprando escudos, bandeiras (acho que houve um time de botão, também) do Inter para ti.
    Aquele gol inesquecível no Atlético, vi pela TV. Ironia. Eu morava em Belô naquela época.
    Relembrando mais, após aquele 1×0 no Cruzeiro, em 1975, cruzei com o Palhinha, na rua , com o nariz quebrado!
    UM GRANDE ABRAÇO! A dengue não há de me pegar (espero!).
    João Reinaldo

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