Cem milagres, de Zuzana Růžičková (com Wendy Holden)

Num domingo à tarde, aqui na Bamboletras, eu estava ouvindo alguma coisa de Bach para cravo. O que ouvia era muito bonito e bem tocado. Fui conferir o nome da cravista, que já tinha visto ser impronunciável: Zuzana Růžičková (1927-2017), uma tcheca.

Consultei o Google para saber quem era. Soube que ela tinha sido a primeira pessoa a gravar a obra completa de Bach para teclado. Foram 21 LPs (depois 20 CDs) gravados entre 1965 e 74. Mas o que me impressionou mesmo foi que ela tinha vivido 90 anos e passado por três campos de extermínio nazistas. Um deles tinha sido Auschwitz.

Judia, ela sobreviveu, claro. Se não o tivesse, não estaria tocando na Livraria… Descobri também que ela tinha escrito uma autobiografia. Só que eu estou cheio de ler livros sobre o Holocausto. Mas, OK, pedi o livro, que é recente.

Depois de passar dois meses no hospital, minha mulher Elena ainda tem dificuldades para dormir. Então eu leio livros para ela todas as noites. Já terminamos vários. E comecei a ler “Cem Milagres” em voz alta para ela. O livro é ótimo e mudamos de problema, porque a Elena ia ficando cada vez mais acordada enquanto leio.

Foi escrito a 4 mãos. Uma jornalista inglesa gravou as memórias de Zuzana e passou para o papel. Um dos milagres foi que a cravista faleceu 5 dias após finalizarem as entrevistas. Ela conta não apenas sua vida com os nazistas — permaneceu quase 5 anos presa –, mas sua vida sob o desconfiado stalinismo tcheco do pós-guerra, quando dava concertos em Paris, Londres mas também em pequenas cidades do interior da Tchecoslováquia, para operários, ou conhecedores de música.

O livro não obedece a ordem cronológica. Ainda bem, porque ler juntos os capítulos sobre os campos de Terezín, Auschwitz e Berger-Belsen seria insuportável para o leitor. A verossimilhança e o detalhamento da narrativa são muito abrasivos para qualquer um. Então a biografia alterna capítulos de diversas fases da vida de Zuzana e seus diversos milagres. Milagres de sorte, de azar, de talento, de ter vivido sob o nazismo e o comunismo, de ser mulher e judia, de ser cravista em vez de pianista, de ser uma pioneira, de tentar lembrar da música nas piores condições possíveis e muitas vezes esquecê-la.

É um livro profundamente humano sobre uma grande personalidade que, sempre que não sabia para onde correr, perguntava a si mesma: e agora, o que faria Bach? Imaginem que ela foi professora de Christopher Hogwood e Mahan Esfahani, que foram residir em Praga durante um bom período para aprenderem com ela.

E quando ela fala em milagres, não está brincando. Só para dar o exemplo de uma ocorrência que está no primeiro ou segundo capítulo: certa vez, em 1960, ela estava dentro de um trem que bateu em outro. Ela voou dentro do vagão e sua mala cheia de partituras caiu sobre ela. Com uma dor forte nas costas, dispensou uma maior investigação — pois tinha um estúdio reservado para uma gravação — e foi para a casa carregando suas coisas. Na manhã seguinte, foi gravar apenas as difíceis Variações Goldberg, de Bach. Um trabalhão, ainda mais que as costas doíam muito. Depois de gravar, foi ver um médico e… Soube que tinha simplesmente quebrado a espinha dorsal. O médico não sabia como ela conseguia caminhar… A gravação? Quando já estava imobilizada, disseram-lhe que ficou ótima e que ia ser lançada.

Então, se você quer um livro encharcado em humanidade, é este.

 

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