Vidas de Santos: São Pedro Claver de Cartagena das Índias

Para A.B.C. e adega de H.O.

São Pedro Claver (1580-1654), nascido na Catalunha, é um grande exemplo para a humanidade. Ele entrou na Companhia de Jesus aos 21 anos a partir da enorme influência que sofreu de Alfonso Rodriguez, porteiro do Colégio de Mallorca. Ordenado sacerdote em 1616, quando já em missão na Colômbia, exerceu até a morte um difícil apostolado entre os escravos negros de Cartagena, importante porto daquele país. Converteu e batizou mais de 300.000 escravos.

Quando os negros chegavam da África nos fétidos porões dos navios negreiros e eram loteados entre os compradores, sempre sobravam alguns que não serviam para nada, na opinião dos clientes. “Muito fraco!”, “Doente!”, “Maus dentes!”, “Gangrenado!”, “Mutilado!”, “Inútil!”, gritavam os senhores adquirentes para os pobres africanos que não os entendiam. Mas São Pedro Claver pensava diferente. Os doentes, os magérrimos e os enlouquecidos pelo sofrimento eram aqueles sobre quem o santo trabalharia para mostrar a grandeza do Deus romano àqueles bárbaros incultos. Eles eram recolhidos pelo dedicado Pedro pelas ruas úmidas de Cartagena. Outros, mesmo lazarentos e magros, eram comprados a baixo custo pelo olho clínico do santo, que lhes antevia um longo porvir.

Primeiramente, Pedro tentava recuperá-los para o trabalho. Muitos, apesar das novidades — alimentação, local seco para dormir e tratamento vip –, morriam e eram lamentados rapidamente em latim antes de irem para a vala comum. Outros, para a felicidade dos missionários e grandeza de Deus, recuperavam-se e podiam voltar a trabalhar. Porém, sobre todos ele, sem exceção, Pedro fazia seu trabalho de evangelização, ensinando-lhes latim e mostrando-lhes os ensinamentos e os caminhos de Cristo. Muitas vezes, ao observar o estranho rebanho de negros agradecidos — muitos seminovos em perfeito estado, alguns mancos e outros com seqüelas piores –, o coração de Pedro Claver confrangia-se.

Havia os que recuperavam inteiramente suas forças. A estes, era imediatamente concedida a graça do retorno ao mercado de trabalho. Ficavam ativos com a finalidade de demonstrar suas qualificações aos compradores potenciais. Orientados pelos padres, trabalhavam na construção de mais Casas do Senhor, pois, na inculta região onde estavam, não havia ainda igrejas belas e ricas através das quais podia-se sentir com maior plenitude a Glória do Deus de Roma. Aquilo funcionava como um grande show-room: os negociantes viam os negros na labuta, examinavam o resultado de seu trabalho conjunto, davam uma rezadinha básica e fechavam ou não a compra. Aquelas transações tinham o claro sentido de aumentar o capital da igreja para a Glória de Deus. Aos outros, mutilados, incapazes ou fracos, eram ministrados maiores latinórios e permaneciam com os missionários. Serviam para muitas tarefas. Alguns, de constituição delicada, serviam a Deus como faxineiros, trabalhavam nos jardins ou tornavam-se assessores pessoais dos padres.

Claro que as maledicências não tardaram. Um português dono de uma pequena frota de navios negreiros, chamado Beonardo Bofe, ficou muito enfurecido com a venda de material recondicionado (que considerava em parte seu) e quis acabar com aquilo denunciando as ações do santo. O único resultado que obteve foi o de ser silenciado pelo fogo santo dos representantes de Roma. Como ganho secundário, viu — aqui, o verbo ver é utilizado de forma severamente metaforica pelo autor destas linhas — o nome de seu opúsculo figurar no Index Librorum Prohibitorum.

Porém, as ruas quentes de Cartagena eram mais difíceis de controlar e irrefreáveis comentários passaram a dar conta de que São Pedro Claver costumava utilizar os negrinhos mais delicados e coleantes numa espécie de harém sem mulheres montado às margens do Caribe. Também as más línguas de Cartagena acusaram os padres de fazerem entrar no recinto “dominado pelo Diabo” — e certamente imaginário, pois gente inculta, ignorante, má e faladora encontra-se em todos os cantos desse mundo dominado por Deus -– os filhos mais bonitinhos dos escravos. Os comentários maldosos diziam que os negrinhos despiam-se para os padres, mas creio seja absolutamente natural o fato de que religiosos analisem detidamente a perfeição da maior criação divina, o homem, representada por seus mais belos espécimes. Estou aqui com toda a documentação necessária para rebater as acusações que se fizerem ao santo. Há registros fidedignos de aulas e mais aulas de religião e latim que os pequenos efebos recebiam. Tenho comprovações de que eles, quando cresciam e terminavam sua formação religiosa, diziam frases em latim, divertindo-se pelas ruas. Anotações autênticas daquele período demonstram que os meninos recitavam ladainhas como Vox Copuli e Pubis Pro Nobis e acabavam trabalhando em casas de reuniões noturnas freqüentadas por navegadores e negociantes daquele mar. Serviam, na verdade, como intérpretes da babel de línguas que aquelas casas recebiam. A apreciável técnica da tradução por chuchotagem principiou naquela época, em plena Colômbia caribenha. Tudo isto é atestado por farta documentação que não mostro aqui por falta de espaço.

A prova maior era que na Casa dos Negrinhos não entravam prostitutas. É óbvio que aqueles bem formados e torneados jovens africanos não tolerariam a presença do pecado morando ao lado.

É, portanto, notável a contribuição de São Pedro Claver no desenvolvimento da região de Cartagena, conforme podemos conferir a seguir através de suas principais realizações, que esquematizo para que nossas crianças possam abordar com maior facilidade a vida deste grande santo:

1. Recuperou milhares de negros doentes e mutilados.
2. Construiu grandes obras que aumentaram o patrimônio da Igreja Católica.
3. Aqueceu a economia local com negros recondicionados.
4. Salvou negros que morreriam por falta de um responsável.
5. Formou como tradutores-intérpretes os negros jovens mais agradáveis que chegavam machucados à Cartagena. Especialidade: a difícil arte da chuchotagem.
6. Converteu e batizou 300.000 escravos.
7. Inventou a sauna.

21 comments / Add your comment below

  1. Depois do anátema das damas, a Igreja. Antes da emergência do agora sagrado capitalismo, Milton Ribeiro (esse Ribeiro é nome artístico derivado de Bach?) seria queimado na fogueira. Mas não fique muito alegrinho, pois ainda corres o risco. Pior que padres e déspotas, resistem, como herdeiras, as “feministas”. Afinal, elas querem é poder (e não foder); assim sendo, representam reacionários, não libertários, embora não engulam essa (nem outras).

    Bem, foram as últimas linhas de uma implicãncia feroz. Parei por aqui.

      1. Uma Igreja Feminista seria uma contradição em termos; não darei sequência ao comentário porque, como já escrvi, parei com isso e me penitenciarei.

        Agora, depois do último trocadilho infame e suas más consequências, você disse que se preservaria. Mais uma vez, a recaída: Vox Copuli e Pubis Pro Nobis ensejam mais um processo… É melhor procurar os Trocadilhistas Anônimos: isso é um vício, tão ou mais nefasto que o de qualquer droga, principalmente quando os trocadilhos são, de fato, uma droga.

        Olha, eu não sou muito chegado ao Marcelo Mirisola e seus romances histéricos pósbeatniks, mas os comentários dele ao livro do Zé Chico me pareceram bastante pertinantes. Leia em http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/#199409

        1. Eu não me sinto obrigado a acompanhar a evolução do sinhozinho. Acompanho porque a mi me gusta fazê-lo.

          Agora, o livro é fraquinho e fecho com o Mirisola.

  2. Oi Milton. Desculpe o comentário totalmente fora de contexto, mas acho que ele pode ser útil para outros porto-alegrenses (com ou sem hífen?) aqui.

    Poderia dar uma lista de boas livrarias e sebos em Porto Alegre, com endereços? Eu sempre vou na Cultura (tenho uma coleção de marcadores) e queria variar um pouco.

  3. Darcy Ribeiro – em “O Povo Brasileiro” – estraçalha as figurinhas carimbadas dos padres Anchieta e Manoel da Nóbrega. Vale a leitura como reflexão sobre o papel da Igreja Católica na história do Brasil.

    Nota: está em andamento, no seio da Igreja Católica, um processo de canonização do padre Anchieta.

    É de foder de rir!!!

  4. Primeira vez que vejo alguém apresentando Pedro Cláver como crápula.

    Olha que até o historiador Martin Dreher, expoente da Teologia da Libertação e professor aí em São Leopoldo (Unisinos) fala bem dele em seu livro “A igreja latino-americana no contexto mundial”.

    E olha que ele não é um autor elogioso ao catolicismo ou à colonização. E é luterano.

    Pode-se esperar qualquer coisa do estudo do passado da cristianização da América, mas eu fico curioso para saber em que bibliografia se baseia esta peroração…

    1. Em nenhuma, André.

      Eu apenas imaginei o complemento da “Verdadeira História de Pedro Claver”. Porém, afora as coisas de ordem sexual, sou capaz de apostar que estou certo sobre os “negros recondicionados” de minha farsa.

      O que não deixa de ser piedoso, claro. Pelo fato do africano ser escravo, não deveria ser tratado como um animal inútil, estando ou não doente. Posso até acreditar no bom coração de Claver, mas prefiro pensá-lo como uma espécie de recrutador esperto, OK?

      1. Entendi,

        é o que chamamos de anacronismo. Esperar que um jesuíta do século XVII defendesse os direitos humanos como não fazemos ainda sequer no século XXI.

        Há que se criticar os erros do passado.

        Mas, para usar um termo recente, podíamos chamar o que ele fazia de “redução de danos”.

        Escreve um dia aí sobre o Bartolomé de Las Casas. Esse dizem que foi abertamente contra a escravidão…

  5. Comentários do blog anterior:

    Comentário: Milton, excelente! Dizer mais o quê? Hoje já é quarta. Faltam 3 dias pra o próximo sábado! Respondi pra você no Varal. Abraço.
    Quem: Ery Vidas de Santos – São Ped… May 23 2007
    Comentário: Vivendo e aprendendo, sô! Terá sido o herói de sua narrativa o inventor daquela expressão: “Mulier amici mei sicut homo, retro manduco”?
    Quem: Cláudio Costa Vidas de Santos – São Ped… May 23 2007
    Comentário: Em tempo: SESI (Serviço Extensivo de Salvação para Inválidos) SENAC(Serviço Nacional de Aprimoramento na Chuchotagem)
    Quem: gugala Vidas de Santos – São Ped… May 23 2007
    Comentário: Milton, o Ery, produziu uma ILUSTRAÇÃO para o Varal, e a seu critério, escolheu seu blog entre outros sete, para pendura-lo no VARAL DO DIA! Abçs
    Quem: Eduardo.P.L Vidas de Santos – São Ped… May 23 2007
    Comentário: Milton, o pecado mora abaixo, no volume LII do Porque hoje é sábado. Maravilhosa paródia. Respeita a verdade histórica, afinal, os negros labutavam para o glória do senhor.
    Quem: Manoel Carlos Vidas de Santos – São Ped… May 22 2007
    Comentário: São Pedro Claver, patrono dos cursos técnicos de especialização oral, veio mais tarde a fundar o Sesi e o Senac.
    Quem: gugala Vidas de Santos – São Ped… May 22 2007
    Comentário: eu gostei das orações Vox Copuli e Pubis pro Nobis!!!! tens aí as íntegras delas???
    Quem: Serbão Vidas de Santos – São Ped… May 22 2007
    Comentário: e eu ando perdendo coisas assim! risos. buenas, ando infreqüente por conta do ritmo, mas sempre vale cair aqui para momentos de (errr) erudição. Um baita beijo!
    Quem: Laura Paz Vidas de Santos – São Ped… May 22 2007
    Comentário: Sobre o “Index” o mesmo foi “abolido” da Igreja Católica, na época do Beatles!
    Quem: Ramiro Conceição Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Milton, outro comentário complementar: a quem se interessar pelo papel da Igreja Católica na colonização do Brasil, consultar “Historia do Povo Brasileiro” por Darcy Ribeiro. É imperdível os comentários do padre Anchieta sobre os Índios. Detalhe: o padre Anchieda é um outro “Santo” que nos querem enfiar guela abaixo!!
    Quem: Ramiro Conceição Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Marconi e Meg, obrigado. Swift para mim está bom… (Vá ser pretensioso assim…) Ramiro, obrigado. Branco e Ramiro. Curiosa questão. O Index pôs a si mesmo no Index ou foi, digamos, desativado? Bender, passo o meu feriado buscando informações verídicas e honestas para vocês e tu me vens com isso? Rapaz, aqui tudo é verdade! Prezo minha credibilidade e minha ex pensa que só falo a verdade aqui no blog… (o incrível é que pensa mesmo!) Marília, namorei várias meninas católicas e elas não eram lá muito castas. Espero que meus filhos possam se divertir com os(as) católicos(as) como eu fiz. Valter, eis um cara consciente. Pesquisa histórica! E é verdade. Montei um arquivo Word de 7 páginas com um dossier Pedro Claver. Tão pensando o quê?
    Quem: Milton Ribeiro Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Milton: Great! Mordente, como deve ser, este gênero difícil. Dose de sarcasmo ideal. Invejo o comentário do Marconi, curto, e certeiro. Milton Swift! Beijos Meg
    Quem: Meg (Sub Rosa) Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Muito bom, Milton Swift. E agradeço os peitões do sábado passado.
    Quem: Marconi Leal Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Esse texto dá um belíssimo pega-ratão para estudantes plagiadores. “Achei o texto que a prôfi pediu, uau!”
    Quem: Bender Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Ramiro, não deixa de ser um contrasenso colocar o Index librorum proibitorum no índice de livros proibidos. hehe. Branco
    Quem: branco Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Milton, você sabia que o “Index Librorum Prohibitorum” foi proibido, apenas, em meados da década de 60!!!!!
    Quem: Ramiro Conceição Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: “Seu” Milton, texto genial!
    Quem: Ramiro Conceição Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Santidades bizarras. O papa quer a castidade. Deo gratia.
    Quem: marilia Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007
    Comentário: Milton, pesquisa histórica. Resquícios da passagem papal por estas bandas? Abraço, tchê!
    Quem: valter ferraz Vidas de Santos – São Ped… May 21 2007

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