Chá das Cinco com o Vampiro, de Miguel Sanches Neto

Para empreender um romance há que ter boa dose de motivação e um ingrediente que pode ser muito motivador é o da vingança pessoal. Na história da literatura há vários exemplos de romances e contos que se iniciaram como reações a reais ou supostas agressões e que superaram o mero objetivo de ofender. É o que ocorre com Chá das Cinco com o Vampiro: se parte de uma rixa, se a descreve, deixa-nos envolvidos num delicioso e amargo retrato das vaidades literárias e da cidade de Curitiba, descrita como um verdadeiro inferno.

Comecemos pelo cerne. O livro narra desde os primórdios a relação entre um pretendente a escritor e seu modelo, mais velho e consagrado. É um Bildungsroman (romance de formação) que parte da adolescência de Beto Nunes na pequena Peabiru até seu período curitibano. Organizado em capítulos não cronológicos, com os títulos indicando o ano em que se sucedem os fatos, é conduzido com segurança, ultrapassando em muito o simples propósito de vingança.

Os trechos dedicados à sexualidade e à adolescência de Beto Nunes em Peabiru – quase todos no início do livro – são os mais desinteressantes da narrativa. Beto Nunes, o narrador, faz uma análise psicológica bastante simplória daquilo que o circunda. O livro ganha grandiosidade quando da saída de Beto para Curitiba, quando começa a vida na grande cidade provinciana. A partir deste ponto, a narrativa engrena até o final: a procura pelo Grande Mentor, a “amizade” com ele, os estudos abandonados, os novos amores, o meio literário, tudo misturado em contraponto e primorosamente escrito.

Há belas descrições de escritores anônimos – fracassados, orgulhosos e sem obra – , assim como da vida difícil como colunista e das horas de pura paixão pela literatura. Tudo isso é contado de forma sincera e com indiscutível virtuosismo. Há enorme humanidade nos capítulos sobre a relação quase inexistente com os pais em Peabiru, em contraposição à devoção mútua entre Beto e uma tia, também ausente.

Um personagem importante do livro é a opressiva cidade de Curitiba, que nos é mostrada exatamente como este articulista a sentiu em várias visitas. É uma cidade que não adota ninguém, comandada por uma elite culturalmente pobre que busca nos sobrenomes – como os personagens de Balzac – as provas de uma boa ascendência. Ao mesmo tempo, não suporta quem se sobressai ou é diferente. Conservadora até a medula, a Curitiba de Sanches é Curitiba.

O nome do “Grande Escritor Que Ensinará Todos os Segredos” é Geraldo Trentini e seu apelido, vampiro. Vingança, vingança. Afinal, Dalton Trevisan tem seu apelido diretamente do título de um de seus livros: O Vampiro de Curitiba. Sanches não se preocupou muito em escondê-lo: Trevisan e Trentini iniciam por “Tr” e têm sete letras — o número de consoantes e vogais também coincidem. E Dalton e Geraldo têm sílabas tônicas com “al”…, ou seja, o autor não fez a menor questão de ocultar sua inspiração, modelo e… ressentimento. Tanto que o verdadeiro vampiro sentiu o golpe, contra-homenageando Miguel Sanches Neto com o grosseiro poema “Hiena Papuda”. Melhor sorte teve o recém falecido crítico Wilson Martins, que aparece como o ético e generoso Valter Marcondes; e menos sorte tiveram quase todos os outros, mas principalmente o jornalista Fábio Campana, um patético Orlando Capote, e o Valério Chaves (Valêncio Xavier) que tomou uma atrás da outra, como punhalada de louco.

Dalton deve ter ficado irritado ao aparecer como um vampiro que não sai à noite e que só come coisinhas em confeitarias… Mas deve ter ficado furioso ao aparecer como um escritor que não quer aparecer enquanto sugere que amigos escrevam isso e aquilo, aqui e ali. Aposto que é verdade.

12 comments / Add your comment below

  1. [permita-me um off, milton: estamos por fechar os times da impedcopa II – tu e o bernardo não querem participar, dia 15? já cheguei a mandar um mail…]

  2. Coloquei na lista. Me indispus com o Sanches Neto depois que li uma resenha dele para a Carta Capital, sobre o livro “memória de minhas putas tristes. Sobre esse livro prá cá de mediano da bibliografia do Márquez, Sanches achou por bem resumir tudo nessa frase clichesíssima: “obra prima da literatura mundial”. Arg!!!

    Mesmo assim, vou conferir!

  3. Ok, estou arrependida por não ter dito “envie-me imediatamente” ao invés de dar prioridade às minhas obrigações. Eu achei que teria mais sangue na tua crítica, mas já foi o suficiente pra despertar interesse no livro. Deve ser muito melhor quando a gente conhece bem a personagem principal; para aqueles que não conhecem, deve ser um desestímulo pra vir pra cá – não que os curitibanos se importem com isso. Na verdade, eles adorariam que todos esses estrangeiros do resto do país parassem de estragar a maravilhosa cidade deles.

  4. Li livro depois de assistir à entrevista do autor no “Espaço Aberto Literatura”.
    Superou em muito as minhas expectativas. É pura literatura! Como não sou paranaense não tenho obrigação de lê-lo como um roman a clef.
    Para mim este romance de Sanches Neto é uma reflexão metaliterária sobre a condição do intelectual brasileiro contemporâneo.
    Lembrou-me o Recordações do Escrivão Isaías Caminha, um dos meus livros preferidos.
    A diferença é que no romance do meu querido Lima Barreto o candidato a escritor se torna funcionário público e no de Sanches Neto, contemporâneo, torna-se produtor de soja.
    Muito bem! Cada época com a sua tragicomédia

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