Anotações parciais e não revistas para o jogo entre As Cidades Invisíveis e Ficções

No próximo sábado, dia 12, às 16h, serei um dos árbitros do jogo de fundo (?) da série Coliseu, entre As cidades invisíveis (Le città invisibili, 1972), de Italo Calvino (Santiago de las Vegas, Cuba, 1923 – Siena, Itália, 1985) e Ficções (Ficciones, 1944), de Jorge Luis Borges (Buenos Aires, Argentina, 1899 – Genebra, Suíça, 1986). O evento dar-se-á na Sala Pasárgada da Feira do Livro de Porto Alegre.

Acabo de reler ambos os livros e o verdadeiramente estranho é que comecei a traçar paralelos entre eles, coisa que supunha impossível. São muito diferentes, mas, lidos um logo após o outro, transparecem algumas semelhanças. Não que interesse, claro.

Escolhi para mostrar aqui a capa de uma edição portuguesa que estampa A Torre de Babel, de Pieter Brueghel, o Velho… Bem, é apenas uma pequena brincadeira que os leitores de Borges logo entenderão. Nesta leitura, realizada com muitas interrupções, o livro de Calvino me pareceu melhor do que na primeira vez, anos atrás. Se naquela oportunidade fiquei um pouco cansado pelo fato de cada um dos 55 relatos de pouco mais de uma página descreverem sempre uma nova cidade, desta vez não ocorreu nada disso. Mas antes devo explicar rapidamente do que trata As Cidades Invisíveis. No livro de Calvino, Marco Polo conta a Kublai Kan, imperador dos tártaros, sobre as cidades que conheceu no caminho para o Oriente. São 55 retratos de cidades obviamente inventadas, todas com nomes de mulheres. As narrativas são de beleza poética impar, tanto que me fizeram lembrar Baudelaire e seus Pequenos Poemas em Prosa. As narrativas são fantásticas e delicadas, com o autor as classificando em 11 grupos, As cidades e a memória, As cidades e o desejo, As cidades e os símbolos, As cidades delgadas, As cidades e as trocas, As cidades e os olhos, As cidades e o nome, As cidades e os mortos, As cidades e o céu, As cidades contínuas e As Cidades ocultas. As breves descrições (ou poemas descritivos) são aqui e ali intercaladas por diálogos entre Marco Polo e Kublai Khan. Mas Polo não descreve as cidades fisicamente, antes as humaniza e, de certa forma, as ama.

Marco Polo (1254–1324), célebre mercador, embaixador e explorador, foi um dos primeiros ocidentais a percorrerem a Rota da Seda. O relato de suas viagens pelo Oriente, foi durante muito tempo uma das poucas fontes de informação sobre a Ásia no Ocidente. Meu pai me obrigou ler o livro As Viagens de Marco Polo quando eu tinha menos de dez anos. Lembro que foi uma péssima experiência. Ainda há dúvidas se Marco Polo fez realmente tudo o que disse ter feito ou se simplesmente narrou histórias que ouviu de outros viajantes. Calvino não tem nenhuma intenção de verossimilhança e seu estilo tem toques de surrealismo. A figura do imperador Kublai Khan parece representar os limites do poder. Por mais territórios que domine, nunca dominará ou conhecerá tudo e todos. Por outro lado, Marco Polo não prescinde do sonho e da imaginação em suas descrições. Neste ponto, ele parece uma Sherazade não ameaçada, deixando fascinantes e mágicas suas cidades que, mais que locais de domicílio com esta ou aquela característica física, são locais surpreendentes, cheios de símbolos e sonhos.

Se em As Cidades Invisíveis há grandes ligações temáticas e de estilo entre as histórias, o mesmo não se pode dizer de Ficções, que é um livro de contos divididos em duas partes — O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941) e Artifícios (1944) — onde o próprio autor, em dois curiosos prólogos, destrói qualquer ilusão de unidade.

O problema de Ficções é que… é que… é que… é um livro que parece ter sido feito não apenas para leitores, mas para aquele determinado gênero de leitores preocupados com o fazer literário. Enormemente influenciado por Macedonio Fernández, o brilhante autor do Museu do Romance da Eterna, Borges nos mostra não apenas um portal de novas possibilidades, como a demonstração das mesmas. Tendo sido, até os anos 30, ensaísta e crítico, Borges passa a fazer ficções de leituras imaginárias. Os textos que antes provocavam seus comentários agora são imaginados. Mas isto é uma redução, pois não apenas de comentários sobre livros e mundos fictícios se fazem os contos de Ficções. Há grandes personagens — na maioria das vezes leitores — e belíssimas representações de outras camadas da realidade. Por exemplo, A Loteria de Babilônia pode receber as mais variadas interpretações — na minha opinião, por exemplo, ela representa a igreja. Há a representação do infinito em A Biblioteca de Babel e a da insônia em Funes, o Memorioso. Há uma notável argumentação sobre a forma moderna de ler textos em Pierre Menard, autor do Quixote — onde Borges nos demonstra como um mesmo trecho do Quixote pode ser lido de duas formas inteiramente diferentes. E há crimes, labirintos, violência, homens que formam outros homens em imaginações.

E, quando lemos tudo isso, parece-nos que tínhamos lido em algum lugar aquilo antes. Ou que vimos no cinema, sei lá. Pois não é culpa nossa estarmos abraçando o ícone. Pois a criação de Borges, vinda de Macedonio e lida por centenas de outros escritores desaguou em Italo Calvino, em Roberto Bolaño, em Georges Perec, em Sebald, em Vila-Matas. Pois ler Borges é como ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven ou os Concerto de Brandenburgo de Bach. É como ler as peças de Shakespeare e achar que o que se lê é um emaranhado de citações e situações conhecidas ligadas por um enredo. Parece que conhecemos tudo, ou que o texto que lemos já estava pré-instalado em nossa memória e sensibilidade, mas não se enganem, meus amigos, mesmo isso saiu de Borges.

Charlles Campos escreveu:

Ficções é uma obra fundadora. Não só na literatura hispânica, mas mundial. Semana passada mesmo li Claudio Magris, um borgeano treinado e muito afiado. Pode-se colocar Ficções entre as maiores realizações do século passado. Já o Cidades fica diminuído, apesar de ser ótimo; mas a base de comparação nos faz cair no pecado da relativização, e vermos o Cidade como uma obra entre tantas, que não gerou escola, não difundiu tanta influência, não é citada de forma tão enfática como os contos do argentino.

E o Farinatti respondeu:

Mas que clássico é esse! Dois dos meus favoritos. Veja lá o que vai fazer, hein Seu Ribeiro. Sei que não poderiam estar em mãos melhores mas… PqP como comparar esses dois livros infinitos, esses dois universos? Dois mundos criados por escritores cerebrais, de estilo igualmente despojado… Se o critério fosse a ideologia, seria fácil decidir. Mas, sendo a arte. Sei lá… O Sul, Funes, As Ruínas Circulares, Pierre Menard… Contra todas aquelas cidades-mulheres do Calvino.
Eu preguei os últimos parágrafos de As Cidades Invisíveis no meu mural. Ele é meu breviário político. Leio todos os dias… Ah… sei lá… surtei completamente com essa!

E o Vinícius matou a charada:

Uma ideia para próxima feira: Naked Girls Reading. Podia rolar no sábado. Confiamos em você, Milton.

42 comments / Add your comment below

  1. Eu li “Funes, o Memorioso”. Não me parece uma representação da insônia, mas de algo muito mais complexo. Há um trecho em que Borges fala que o tempo não passava para o personagem, pois ele podia lembrar em detalhes a forma de uma folha que vira 20 anos antes. Há algo aí que eu não consigo por em palavras, mas que é muito maior que a insônia. É mais como a negação de um dos conhecimentos “a priori” de que fala Kant, que são o tempo e o espaço, já que para Funes o tempo não existia.

  2. Caro Milton,

    Emir Rodriguez Monegal estabelece uma chave irônica ao sugerir que o conto (?) A LOTERIA EM BABILÔNIA é uma esculhambação borgiana com a paixão dos portenhos pelas apostas na loteria nacional. E que A BIBLIOTECA DE BABEL é a transfiguração atormentada da pequena biblioteca em que Borges trabalhava nos anos 30… Bom, são leituras e Borges se diverte com o ato de ler, Como nós, seus leitores. De minha parte, desde 1980 que o meu intelecto dá gargalhadas com FICÇÕES. Gosto muito do Calvino (adoro SE UM VIAJANTE…) mas Borges é imprescindível.

  3. Já disse antes que gosto muito de Calvino, mas ele não chega a ser um dos meus preferidos. Dos italianos: Svevo e Pirandelo.

    Borges é um dilema. Já vejo professores se decepcionarem ao tentarem adotar seus contos mas os alunos reagindo negativamente. Que coisa cacete! Borges se tornará “cacete” para a futura geração Kindle. E isso é curioso, pois a versatilidade da obra do argentino, num primeiro momento, parece se prestar ao mundo portátil. Seus contos são curtos (muitos, aliás, não vão além de três páginas), e são movimentados como um romance de Dumas Pai; e falam de magia, de absurdos (não à toa a capacidade mercadológica inconsciente dos temas de Borges tornou a disparar as vendas do Paulo Coelho nos EUA, o seu romance do Aleph).

    Mas… aí vem o x da questão, na qual diverjo (essa palavra tá certa?) de você e do Luiz Ribeiro e do Idelber: o ponto em que trata da influência de Macedôneo sobre a escrita de Borges. Vocês veem como uma influência de fato, estilística e temática. Eu já penso que Macedôneo exerce um poder notável no humor borgeano. Macedôneo e a geração de escritores argentinos da qual fez parte Borges, praticamente criaram um “humor argentino”. Assim como se identifica os méritos do humor inglês na sutileza e na auto-crítica firmada no absurdo e no non-sense do esnobismo britânico, e auto-depreciação do humor judáico, o humor argentino nascido com Macedôneo bebe das fontes inglesas e se adentra numa revelação do absurdo do prosaísmo cotidiano, e o texto argentino, daí para frente, se tornou cuidadosamente metaliterário, mais cheio de mensagens subliminares do que nas capas dos discos dos Beatles e na cabala_ a maior parte, só entendida pelo grupo de escritores argentinos. O humor de Macedôneo perfila a obra de Borges e se expande em Cortázar. Macedôneo criou o Monty Python da Argentina, e só nisso (o que já é uma contribuição gigantesca) é que ele é transparente na obra de Borges. Borges mesmo, num texto sobre Macedôneo, diz que era a antítese de Macedôneo em todos os sentidos da criação literária: Macedôneo era desregrado, pouco se importando com a beleza da escrita, e Borges um estilista rigoroso.

    Então… as sutilezas da escrita de Borges é que são indigeríveis para a geração Kindle. Borges disse que conheceu a obra de Whitman em alemão (olha só o montypythianismo de Borges mesmo aqui), e só depois de lê-lo em inglês que viu o quanto era absurdo ler O Canto da Estrada Aberta na lingua de Schopenhauer. É da mesma forma absurda ler Borges no Kindle, e os leitores do Kiindle já nascem predestinados à incapacidade de ler Borges. Mas isso é outro assunto, que nos remete ao mimeógrafo adorniano (Adorno profetizou que as únicas obras relevantes desse nosso século seriam as mimeografadas): e Borges é o legítimo mimeógrafo.

    Particularmente gosto mais da seleção de contos do Aleph. E adoro os ensaios, e adoro os prólogos (releio-os todos os dias na privada). Borges é um dilema por ter sido um grande escritor que se articulava dentro de um espaço limitado. A escrita de Borges revela que por pouco ele não se tornara um autor fracassado. Ele não era exuberante (Calvino era). Nota-se que o único meio de Borges era desenvolver esse estilo conciso ao extremo. Daí que tal coisa tem seus efeitos colaterais: Ficções e O Aleph são maravilhosos, revolucionários, bombásticos, imortais; já os contos tardios, como os de A Memória de Shakespeare, a mim soam cansados, repetitivos, sem talento, já sendo o mecanicismo da criação agindo por si mesma com pouco espírito. Garcia Márquez já havia anunciado isso antes_ logo quem, que se tornou o macaco do realejo da emulação da própria técnica_, de que Borges se afundou no desgaste da incapacidade de ir além de seu estilo.

    São muitos os “filhos” de Borges. Claudio Magris é um dos maiores deles ainda vivos.

    1. A relaçao mais óbvia que me ocorreu nesta leitura é aquela entre a Compañía e a Igreja com suas “ventas de suertes”, funcionamento silêncioso de Deus, “seu carácter antiguamente plebeyo” e com o total desprezo a quem não participa de sua… loteria.

    2. Milton, escribo en español porque si intento escribir en portugués, me sale portuñol.

      Me gusta esto que escribiste sobre Dios y la Compañía:

      A relaçao mais óbvia que me ocorreu nesta rápida leitura em meio às férias (tomando café na charmosa livraria bonaerense), é aquela entre a Compañía e a Igreja com suas “ventas de suertes”, funcionamento silêncioso de Deus, “seu carácter antiguamente plebeyo” e com o total desprezo a quem nao participa de sua… loteria.

      Nunca había pensado en aspecto del simbolismo. Ya, después de leer tu interpretación, me interesa más la participación de los que ignoran o no quieren participar en el juego. La pregunta siendo, “¿Cómo debería reaccionar Dios a los que no le prestan atención? ¿Les impone su voluntad o les deja en paz, libre del azar, pero esclavos de su propio albedrío? Muy interesante, obrigado.

      Mac Williams em setembro 17, 2007 5:11 PM
      #6

      Ainda sobre a interpretação do Milton, há aquele belo trecho de “Tlön Uqbar, Orbis Tertius”:

      Buckley descree de Dios, pero quiere demostrar al Dios no existente que los hombres mortales son capaces de concebir un mundo.

      O resultado dessa fúria parricida é Tlön, o mundo regido pelo idealismo radical, onde tudo tende a desaparecer ao ser esquecido.

      Idelber em setembro 17, 2007 5:19 PM

  4. No ínício dos anos 90, lí uns dez livros de Borges. Estão todos lá, no fundo da minha biblioteca. Porém, não lembro de nenhum. Para não dizer que não lembro, tenho vagamente na memória um livro que na realidade era uma longa entrevista de Borges muito velho e completamente cego. Mas, definitivamente, não sobrou nenhuma frase no consciente. Talvez no incosciente… Quem sabe…

  5. Charlles,
    Mas não são os críticos literários que alardeam os empréstimos de Macedonio em Borges. É o próprio Borges que afirma isso.
    Daí é claro que você tem todo o direito conferido pelo Reader Response Criticism de trair o próprio Borges e afirmar que não há muito de Macedonio nele. Minha discordância contigo ía no sentido de que você teimava em dizer que Borges não havia feito nenhuma vênia à influência de Macedonio sobre a sua literatura. Não é o caso. A correspondência entre os dois e principalmente o discurso elegíaco no funeral do amigo são definitivos nesse ponto.
    Não vejo nada do humor do Macedonio em Borges. Não que Borges seja um autor taciturno. A sátira no autor de Ficciones é elitizada como talvez em nenhum outro autor do século XX. É preciso ter entendido todas as ironias de Quixote para sacar como as alusões em Borges funcionam também como humor.
    O humor de Macedonio transitava pelo nonsense do movimento surrealista. O cara lia Maurice Blanchot (talvez até Bataille) e tentava a transposição do surrealismo Europeu para os Pampas. Lia coisas como o L’Arrêt de mort do Blanchot, com todas as ironias que o título do livro demanda – “L’Arrêt de” deve ser entendido como genitivo de pertencimento, daí a interpretação “o fim que a morte representa”, ou como acusativo, “o fim da morte”, i.e. a ressurreição, a imortalidade? – e emulava essa coisa do ambíguo e da metalinguagem surrealistas no contexto do renascimento argentino de inícios do século XX (uso aqui Renascimento Argentino com toda a pompa e seriedade, o desenvolvimento das letras na Argentina de inícios do século XX até a Guerra e o imediato pós-Guerra é tão significativo ou mais que o Renascimento Jeffersoniano na América). O Museo de la Novela de la Eterna e suas várias versões, o inacabado da obra, a tentativa de transpor o leitor para dentro dela no sentido de que o leitor termine a obra para o autor, tudo isso que representa a quintessência do humor de Macedonio, remete a Blanchot, Bataille, et al.
    Por exemplo, a coisa dos livros do Blanchot terem mais de um título simultaneamente (para o desespero da United States Library of Congress)
    Não consigo enxergar nada disso em Borges.

    1. Luiz, mas a coisa está aí! Li o discurso de Borges no funeral de Macedônio que você me enviou, e nada nele me disse que eu estava errado. Não li as cartas entre eles, e em toda a obra (in)completa de Borges, que li na sequência os 4 volumes, há qualquer outra referência à influência literária de Macedônio sobre Borges. Um único ensaio delicioso trata de Macedônio, e nele, Borges cita literalmente ser um antagonista da escrita de Macedônio. Faz referência a seu romance, mas não menciona o título, o fazendo de forma muito passageira. Mas enaltece a personalidade de Macedônio, como se a obra fosse as atitudes e os cacoetes que Macedônio presenteava seus amigos no dia a dia. Cita todas aquelas esquisitices das quais o Idelber falou, em seu post sobre o Romance da Eterna: sua candidatura política, que não fez campanha alguma, além de esquecer livros por sobre balcões de bar com santinhos enfiados no meio das páginas; sua incapacidade total de reconhecer que estava errado em uma assunto (mesmo quando lhe provavam taxativamente a assertiva da opinião contrária, ele se saía calmamente com esta: “pois é como lhe falei”; o seu descaso quanto a palavra escrita, de forma que largava o que escrevia em quartos de hotéis e muito se perdeu. Macedônio foi um amigo maluco, hilário_ com a devida liberdade, um Dean Moriaty para Borges_, e nisso houve a influência, que foi puramente conceitual, e não formal. Percebo influências de Macedônio, p. ex., no Pierre Menard, que pra mim é um dos mais hilários contos de Borges, de deixar qualquer um com uma impressão de deslocamento: um conto seriíssiom, que atordoa leitores desavisados ao contrapor trechos do Quixote original e do Quixote de Menard, o que configura a absoluta semelhança. Isso não é um non-sense digno da turma do Terry Gilliam?

      Não vejo influências dos surrealistas e dadaístas em Borges (não foi o que você disse. Mas refere a isso em Macedônio).

  6. Acabo de ler o texto do Milton e começo a pensar sobre possíveis infusões do surrealismo Macedoniano em Borges.
    Pierre Menard, el autor del Quijote seria aí a contraprova de tudo o que eu disse sobre a ausência do humor surrealista em Borges – o uso da metalinguagem, a confusão proposital entre leitor e autor, etc, etc.
    Pode ser. Mas teimo que isso remeta antes a coisas muito anteriores, a saberes e técnicas que precedem em muito ao movimento surrealista.
    Acho que há evidências significativas na obra de Borges para dizer que uma de suas escolas foi o Midrash Judáico. A irreverência reverente dos comentários midrashínicos, onde o texto do Canon é citado, aludido, referenciado, afim de ser subvertido, ultrapassado. A confusão entre comentário e texto, o emaranhado indissolúvel alusão-expansão. Que loucura literária! Vade Retro secularista à parte (já me antecipo ao Milton aqui), o Midrash é uma puta revolução literária. Subverter a estória do sacrifício de Isaac no livro de Bereshit – aquela estorinha que usa do típico sadismo Hebráico na prova em que Yahweh determina a fidelidade de Abraham testando-o a sacrificar o próprio filho – fazendo Isaac ser ipso facto sacrificado (como acontece em alguns midrashim medievos do livro de Gênesis ou no Apocalipse Judáico de Isaac) é um accomplishment literário que precisa ser reconhecido.
    Você encontra tudo isso em Borges, e principalmente em contos como o Pierre Menard. Eu defenderia então antes um Borges Talmudista que um Borges que mergulhara a ponta dos pés nas aguas do surrealismo.
    Isso porque Borges parece ignorar completamente a literatura de vanguarda Européia dos vinte – a despeito de sua amizade com Xul Solar e Macedonio e de ter circulado, ainda que não pertencido no sentido pleno, do vanguardismo Argentino.

    1. Aí sim estou em condições de concordar com você, Luiz. Há muita referência ao Talmude, à cabala, o Midrash Judáico, assim como uma rica recorrência ao Alcorão (o deserto como prisão) na obra de Borges. Mas Borges utiliza esses recursos pelo que eles oferecem de possibilidades retóricas, poéticas, e de estranhismo fantástico. Dessa mesma forma, Borges usa Tomás de Aquino (que ele considerava como um excepcional ficcionisrta_olha aí a ironia macedôneo-borgeana) e símbolos da filosofia católica medieval. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, toma de assalto as diversas referências cabalísticas no verbete perdido que se encontra em um_ e apenas um_ volume da Enciclopédia Britãnica; e em diversas visões poéticas de Borges encontramos o Cristo evangelista dos grandes filósofos católicos, principalmente nos poemas, muitos dos quais tem como títulos os capítulos e versículos das escrituras. Há um particularmente lindo que eu amo, em Elogio da Sombra, o enigmático “João 1,14”. A grande quantidade de textos de Borges sobre Dante, mostram o fascínio do argentino pelo universo religioso (entenda isso da maneira certa).

      O misticismo religioso parte do judaísmo, por isso, é inevitável a ascensão da literatura judáica sobre Borges. (Daí mais uma semelhança truncada entre Bellow e Borges que poderia ser um dia usada nesses torneios do Milton Ribeiro.)

      Mas outras influências em Borges são da literatura inglesa, os mitos escandinavos,e entre os contemporâneos, Chesterton, Kipling, e não me recordo mais…

  7. É… Borges é tudo isso que tu escreves, Milton. E também o que escrevem estes teus comentadores impressionantes. E ainda muito mais, como vocês mesmos disseram.

    Sobre Calvino e suas cidades, compartilho contigo a impressão funda que me causou a relação entre o grande Kahn, Marco Polo e as cidades.

    Uma das coisas que mais gosto no livro de Calvino, é o fato de que Kublai Kahn conquistou/herdou o maior de todos os impérios, mas está condenado a jamais conhecer muitos de seus territórios. Ele é um imperador incompleto. Quem olhar para ele, poderá ver vazios pungentes aqui e ali em seu corpo imperial. O Império é grande demais para os limites dos deslocamentos a cavalo, em camelo, nos barcos a vela e remo. O Império é grande demais para uma única vida. Assim, para conhecer o seu próprio Império e, de alguma forma, conhecer a si mesmo, o Imperador precisa dos outros, das narrativas que lhes fazem.
    Então, ele faz uso de emissários, encarregados de viajar pelos confins e dar-lhes a conhecer através de seus relatos. Marco Pólo é apenas um deles, mas é o mais amado, não porque viaje mais rápido ou percorra maiores distâncias, mas por sua arte de narrar. É através da palavra de Calvino que se presentificam as cidades para Kublai Kahn. Através, portanto, de um jogo inter-subjetivo que articula três pontas: o próprio Imperador, o narrador-viajante e as cidades, que nunca se saberá se existem mesmo ou se têm aquela forma. Mas não importa, porque a narrativa é o modo delas existirem para a experiência do grande Kahn. Pólo é o mago que restitui a inteireza ao imperador despedaçado.

    1. Charlles,

      Continuo a conversa mesmo sob o risco (aqui) sempre contínuo de ilustre penetra.

      Gosto mais da comparação que fez em algum lugar entre Borges e Bashevis Singer. Essa entre Bellow e o Argentino é muito idiossincrática. O que o Bashevis Singer faz com a apocalíptica e mitologia Ashkenazi – apegar-se ao literário do religioso norte-europeu e resgatar todo o seu potencial mas agora emancipado do paroquialismo – é exatamente isso o que Borges faz ao encarar a tradição teológica judaico-cristã como literatura fantástica, colocando-a no mesmo patamar etnológico da mitologia escandinava e anglo-saxã (remeto-o ao livrinho de crítica do Todorov traduzido pela editora Perspectiva, “Introdução à Literatura Fantástica”)
      Se há nisso a ironia do Macedonio, não sei. Não entendo bem porque isso teria de vir de Macedonio. Seu comentário aliás pontua bem que Borges teve vários mestres.
      Acho que o jovem Borges escolhe por esconder as referências a Macedonio na sua literatura. A elegia ao amigo morto vai mais ou menos nessa direção. De que emulara Macedonio assintosa e declaradamente e de que fora uma influência consciente, um exercício deliberado. Como Borges imitando Wells em alguns dos contos de Ficciones. Ou os exercícios de Historia Universal de La Infamia, nos quais vejo esboços de R. L. Stevenson. É preciso ler o jovem Borges com cuidado para perceber esses sinais e traços deliberados. Leitura essa que nunca me propus a fazer.
      Não sei bem se entendeu o paralelo que tracei entre Borges e o Midrash. Ele ía muito além do fato consumado de que Borges lera e bebera também do mundo rabínico e do folclore Ashkenazi. Parece-me que Borges toma esse universo como técnica e procedimento literário. Se ele o faz a partir de sua fonte – ou seja, a partir de Rabbi Akiba, do Príncipe Judah, dos sábios Amoraítas ou, mais tardiamente, do Zohar, ou se ele o faz a partir da releitura decantada desses no universo cristão de Orígines, Tertuliano, Agostinho, não sei.
      Questiúnculas a parte (a querela Borges-Macedonio já deve estar cansando os demais), acho que entendi agora o embate Cidades Invisíveis e Ficciones (embora não tenha lido o primeiro). A julgar pelos comentários do Milton e do Farinatti, ambos tratam de abolir o aborrecido cotidiano no acesso a essas terras longínguas nas quais as leis próprias do mundo são interrompidas ainda que temporariamente.
      A partir de determinada ótica essa última afirmação parece banal, posto que a literatura como um todo é esse espaço fantástico onde o aborrecido cotidiano é colocado em suspense. Mas existe um abismo enorme entre refugiar-se no universo de um Zohar, ou nas saletas e antesalas especulares da Biblioteca de Babel, e na África do Sul de um Coetzee.

      1. Luiz,

        sempre muito bom ler suas palavras, de modos que até perdoamos o mimo em se sentir um “penetra”.

        É bom alimentarmos esse antagonismo sobre Macedôneo. Eu cultuo um cordel de ideias disparatadas que vem de leituras muito idiossincráticas. Aportar em um horizonte longuínquo da nossa realidade, e ver que ele tem os limites bem definidos e a geografia bem traçada, me desanima. Algo parecido quase aconteceu quando li o excepcional ensaio de Canetti sobre as cartas de Kafka a Felice. Canetti mesmo, reconhecedor primeiro do potencial desestimulante do que havia escrito sobre a relação anômala entre o autor checo e uma de suas pretensas noivas, avisa, na segunda página, que as informações das cartas não devem servir para restringir as ricas interpretações de O Castelo e O Processo, a apenas uma: da rejeição banal que Kafka sentia diante as negativas trocadas com Felice. Reli O Processo depois disso, para provar, temeroso, de que não havia perdido Kafka para sempre.

        Defendi uma monografia sobre Garcia Márquez x V.S. Naipaul, em que fui bastante degladiado pela banca de doutores pela minha taxativa afirmação de que GGM era um autor apolítico. Meu orientador mesmo, esquerdista aguerrido, desses que traçavam de forma infalível o Cem Anos de Solidão com a crítica social dos filmes do Glauber Rocha, pediu insistentes vezes para que eu repensasse o que ele tinha como única falha do texto. Mas eu lia GGM desde os 17, e tinha um arsenal de referências, a meu ver, muito sólida. Quanto mais eu via a babaquice do partido instalada como tradição conceitual no universo acadêmico, mais me certificava de que eu deveria manter firme meus pés nesse erro. E eis que, somente mês passado (após cinco anos!), me chega um texto do Perry Anderson, através da revista Piauí (tá no site da dita), em que ipsis verbis, se diz que GGM é o nosso autor menos político, contrapondo-o a Llosa. Não sei se isso valeria para Macedôneo/Borges.

        Sobre as influências de Borges, nada mais didático que ler suas resenhas literárias e seus prólogos. É com surpresa que se descobre que lhe agradava muito a pulp fiction de romances policiais. Há um texto do Teron, no site da Companhia das Letras, em que ele quer passar a imagem de um Borges que desde menino só se inteirava em eruditos ingleses e germânicos. Há muita informação na literatura “de segunda classe” do argentino: ele traduziu alguns dos principais romances de Faulkner; gostava do Hemingway de antes do “Ter e Não Ter”; compôs um livro inteiro de milongas, assim como escreveu diversos tangos; foi Borges que restituiu a estatura literária de Chesterton, que então se encontrava esquecido; escreveu críticas de cinema; julgava Simenon um romancista policial ruim, mas um grande estilista da lingua; etc, etc.

        Ou seja, Borges não era uma múmia de biblioteca, como se percebe numa primeira impressão.

        No mais, não tenho nada a acrescentar a seu rico comentário, Luiz.

    2. Farinatti,

      Já leu por um acaso os relatos de utopias longínguas do historiador helenista Diodorus Siculus? Não me recordo bem agora da data do Diodorus, mas penso que se encontra circa século II da Era Comum. Seu relato dos Heliopolitanos, gigantes da altura dos pivôs da NBA que constituem uma república mais formidável que a de Platão. Diodorus Siculus é o início dessa tradição que vai aportar em Marco Polo.

      Não sei se me agradam mais as utopias ou as distopias.

      1. Luiz
        Não conheço. Muito obrigado pela dica. Vou atrás. A tradição utópica /distópica tem me interessado cada vez mais.
        Qualquer auxílio para me por em contato com os textos do Diodorus em línguas mais acessíveis que o grego, serão bem-vindas!
        Grato!

        1. Farinatti,
          Você talvez conheça a excelente Loeb Classical Library. Eu indicaria a edição bilingue em vários volumes da coleção, que traz a tradução de Oldfather (Até onde sei, essa é a tradução que sempre serve de referência ao Diodorus Siculus)

          Fiz uma rápida busca pela net eu não encontrei o Diodorus em vernáculo. Tentei a biblioteca Perseus, http://www.perseus.tufts.edu/hopper, mas acho que eles só tem o texto grego lá.

          Já vi você comentar lá no Charlles que é historiador. Você trabalhar com que tipo de história?

  8. Fui à rede e revisitei Borges. Li às pressas uns 40 poemas. Dentre tantos, um me chamou a atenção e creio que mereça reflexão. Ei-lo:

    NÃO ÉS OS OUTROS
    by Jorge Luis Borges

    Não há-de te salvar o que deixaram
    Escrito aqueles que o teu medo implora;
    Não és os outros e encontras-te agora
    No meio do labirinto que tramaram
    Teus passos. Não te salva a agonia
    De Jesus ou de Sócrates ou o forte
    Siddharta de ouro que aceitou a morte
    Naquele jardim, ao declinar o dia.
    Também é pó cada palavra escrita
    Por tua mão ou o verbo pronunciado
    Pela boca. Não há pena no Fado
    E a noite de Deus é infinita.
    Tua matéria é o tempo, o incessante
    Tempo. E és cada solitário instante.

    1. SONHAR O MUNDO
      by Ramiro Conceição

      Às margens do Rio da Prata,
      um pássaro voou…às cegas.
      Necessitado de cantar,
      porém impedido de ver,
      retirou da sua imaginação
      uma precisão…imprecisa.
      Descobriu com espanto a memória
      e o talento de escrever de histórias.
      Superou ser argentino: virou judeu;
      árabe; islandês: um simples menino.
      Ao morrer, deixou afetos, desafetos,
      tal qual qualquer um que viveu tudo.
      Seu legado?… Sonhar o mundo!
      .

  9. Luiz
    Obrigado pela indicação. Vou entrar em contato com um amigo helenista para ver se ele tem.
    Sou historiador sim. Minhas pesquisas são em História Social, século XIX. A micro-história italiana de Giovanni Levi, Edoardo Grendi, Simona Cerutti e Maurizio Gribaudi é uma grande inspiração metodológica para mim. Entre outras, naturalmente.
    Temas como relações sociais (reciprocidades, morfologia social), família e processos de hierarquização social acabam sempre me rondando.
    Mas não consigo me prender à super-especialização. Assim, tenho amplos interesses para minha “formação geral” em história, antropologia, sociologia, literatura. Formação essa, á qual tenho dedicado menos atenção do que devia. Mas tento ser vigilante nesse aspecto.
    Também vi que você trabalha com história e literatura. Quais são teus interesses e tuas pesquisas?

    1. Farinatti,

      Li Herança Imaterial do Giovanni Levi e achei formidável. Aquele ensaio do Edoardo Grendi, , pautou grande parte da minha pesquisa passada.
      Isso sem mencionar o Carlo Ginzburg, esse gigante intelectual da Itália que não perde em nada para U. Eco ou até mesmo, tape os ouvidos Charlles, Pirandello. Ginzburg é o historiador que eu gostaria de ser quando crescer.
      Essa turma do Quaderni Storici é fera mesmo! (Uma das maiores felicidades minhas foi a coincidência de ter a minha salinha na Biblioteca da U. of Toronto de frente para a coleção completa do Quaderni Storici)
      Meu ganha pão é Judaísmo Antigo e História das Mentalidades no Mediterrâneo Antigo.
      Minha paixão, história intelectual na França do pós-guerra e Literatura.
      Uma curiosidade, trabalhaste com o Ronaldo Vainfas na sua formação? (Pergunto isso pelo interesse em Micro-História)

      1. Luiz.
        Não trabalhei com o Vainfas, mas com o João Fragoso (meu orientador de doutorado na UFRJ), que veio da história econômica de inspiração serial para uma história social cada vez mais micro-analítica. Percurso que eu mesmo percorri.
        Aliás, não gostei do livro do Vainfas sobre a Micro-História. Acho que ele faz uma generalizações pesadas, como colocar C. Geertz como influência da Micro-História. Levi tem uma resenha ácida de “O grande massacre dos gatos”, de R. Darton, cujo título é “Os perigos do Geertzismo”. A interface antropológica dessa gente é muito mais Fredrik Barth do que Geertz, embora este também esteja um tanto presente, principalmente em Ginzburg.
        “A Herança Imaterial” foi, para mim, um livro que mudou o rumo das minhas abordagens. Li no mestrado, entendi muito mal. Voltei a ler pouco antes do doutorado, e mudei mesmo.
        Vou ministrar uma disciplina, no semestre que vem, onde vamos tentar ler (com alunos de graduação e mestrado) “A Herança Imaterial”. Vamos ver no que vai dar, mas sei que vou me divertir muito.

        1. Ainda sobre Ginzburg, eu sou imenso admirador, sobretudo de seus percursos metodológicos e da sua imensa erudição. Estava relendo o “Ficções”, do Borges, para poder ler bem os comentários de vocês, aqui. E, de fato, a estrutura de “Tlön, Uqbar e Orbis Tertius” parece mesmoter sido inspiradora para o estilo de Ginzburg.
          Aliás, você conhece o livro de Henrique Espada Lima Filho “A micro-história italiana” (Civilização Brasileira)? Para mim é a melhor obra sobre o tema escrita em português. O Ginzburg faz o prefácio e considera que uma obra assim não existe “nem em italiano, nem em qualquer outra língua.”

        2. Farinatti,

          Preciso revisitar o livretinho do Vainfas. Faz um tempinho que o li e não me recordo muito mais dos argumentos. Mas agora que você tocou no assunto, sim, é mesmo forçar a barra alinhar Geertz e a Micro-História. O Vainfas, se não me falha a memória, vê um pouco da thick description do Geertz (a descrição densa de exercícios etnográficos como o excelente sobre a briga de galo Balinesa) na micro-análise Italiana.
          Tenho o livro do Henrique Espada Lima mas ainda não calhou tempo para lê-lo.
          Boa lembrança de que a historiografia de ponta no Brasil não se limita ao Vainfas e que, por muitas vezes, passa longe dele.
          Fica o meu voto de que a gente converse mais. Aqui com a bênção do Milton. Ou no Charlles com a anuência dele. Ou até mesmo no seu próprio blog. Depois te envio o meu e-mail institucional.
          Felicidade imensa saber que somos dois devotos do Quaderni Storici.

  10. Milton
    Desculpe usar teu post para, entre outras coisas, entrar em contato com as pessoas. Mas, afinal, além dos teus excelentes textos e imagens, isso aqui também tem uma atmosfera de bar ou café, onde as pessoas se encontram, não é mesmo?

    Além, disso, em duas semanas, tu vais estar em Londres e Paris, e eu torrando no calor de Santa Maria!

    1. Gutu, acho realmente ótimo que as pessoas se encontrem aqui. Isso aqui é para ser uma extensão da casa da gente, não? Um local de leitura e convivência. E, caralho, estou muito feliz, deu tudo certo na Feira. Deu a maior briga a respeito do Borges. Tudo no mais alto nível, mas um monte de gente — na maioria escritores — pedindo o microfone. Foi bonito de ver. Jamais imaginaria que Borges e Calvino pudesse provocar tanta paixão.

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