A ascensão e a ascensão dos negociantes II

Parte II – A primeira ascensão dos negociantes

No dia seguinte à vitória na Libertadores, Tinga e Bolívar anunciaram suas saídas. Eu mal tinha dormido. Chegara em casa às 2 da manhã e, assim que pudera deitar minha campeã cabeça sobre o travesseiro, meu sobrinho começou a ligar perguntando sobre um ou outro endereço de gremistas amigos, pois estava inteiramente entregue à atividade de soltar rojões frente a suas casas. Porém, voltemos à nossa história, não sem antes dizer que, pela manhã, deixei a porta bater e fiquei lá fora, de pijama. Minha mulher já tinha saído e eu tive que pedir o celular de um passante a fim de ligar para minha sogra, suplicando-lhe que trouxesse a chave reserva. Fiquei no jardim da casa, lendo o jornal. Então, como vemos, o dia 17 de agosto de 2006 teve tantos sucessos quanto o dia anterior. Mais alguns dias e Rafael Sóbis e Jorge Wagner fizeram o mesmo que Tinga e Bolívar. Estava começando o desmonte, involuntário apenas no último caso.

Enquanto isso, a direção do clube, feliz com o título como todos nós, ia de festa em festa curtindo o ganho político e etílico da conquista. De forma ilógica, havia confiança de que os substitutos estavam dentro do Beira-rio. A torcida discordava e lembro de fortes críticas à diretoria no Fórum do extinto Portão 8. Isto acontecia antes do maior título do clube completar uma semana: o Inter ganhara a Libertadores e já anunciávamos – todos – o fim. E, pior, não estávamos paranoicos. É horrível quando somos obrigados a dar razão ao paranoico (como hoje temos que fazer diariamente com os DC’s, que atacaram Tite antes da letal assinatura de contrato).

As substituições aos vendidos, dentro de um time formado à base de contratações (como demonstramos na Parte I), não foram realizadas e apenas um deles tinha suplente à altura: Bolívar, que foi substituído com vantagem por Índio. A posição de Rafael Sóbis ficou em aberto, ou melhor, ficou com o imprevisível velhinho legal Iarley. Para a posição de Tinga, a torcida, o Fórum do Portão 8, os jornalistas e o mundo indicavam Guiñazu, do Libertad do Paraguai. Mas seu custo era de US$ 1 milhão, valor considerado alto para nossos padrões. Qual não foi nossa surpresa nossos negociantes adquirirem, por US$ 1,5 milhão, o obscuro Pinga, um meia-esquerda que atuara no Torino, Siena e Treviso, sempre na segunda divisão italiana e cujo maior mérito era o de ter deixado Kaká na reserva em uma das seleções sub-algo da CBF, fato que parece não ter traumatizado Kaká e sim Pinga, coitado. Ora, trocar Tinga por Pinga foi muito mais do que trocar uma consoante, foi uma tragédia. Mas outros diziam que seria Vargas, ex-volante do Boca Juniors, aquele que entraria no lugar de Tinga. Vargas era bom jogador, mas só era parecido com Tinga… Não, não o era em nada. Para piorar, o colombiano contou com a antipatia gratuita de Abel Braga, que chegou a criticá-lo publicamente sem ninguém entender o motivo… O câmbio mais ridículo foi o de Jorge Wagner por Hidalgo. Quando todos pensavam que estávamos no Paraguai buscando Guiñazu ou articulando a futura vitória de Lugo, estávamos trazendo o lateral-esquerdo do Libertad chamado Hidalgo. Ninguém que vira nossos jogos contra o time paraguaio dera-se conta de que ali estava um craque… Saía um lateral brilhante no apoio e entrava um que só sabia marcar e olhe lá. Ou seja, a direção, meramente para contentar a torcida, pegou qualquer jogador de segunda linha com a única intenção de silenciá-la. Éramos chatos incompreensivos que, uma semana após ganhar a Libertadores, reclamavam.

Enfim, em alguns dias perdemos metade do time, uma metade bem boa., diga-se. A participação no Brasileiro de 2006 já demonstrava claramente o equívoco. Sem Tinga e Jorge Wagner, ficamos com poucas opções de ataque. Dependíamos das subidas de Ceará, baseadas na força, dos lampejos de Fernandão e dos raros – mas quase sempre belos – gols de Iarley, o goleador legal. Aos poucos, a ausência de Jorge Wagner foi sendo suprida inesperadamente por Fabiano Eller, que vinha de trás com a bola, deixando o Hidalgo na cobertura e passando por cima dos volantes Edinho e Wellington Monteiro, ambos de passes medonhos. A coisa ainda funcionava precariamente e a participação num Campeonato Brasileiro de baixo nível técnico ainda foi razoável.

Chegamos ao Japão para disputar o Mundial sem um grande time, porém muito bem preparados, com grandes conhecimentos sobre o Barcelona. Com enorme disciplina tática e sorte, vencemos o Al Ahly e, com enorme disciplina tática e merecimento, ao Barcelona. Nova festa e mais motivos para imobilismo…

O notável na nova diretoria é que ela não dava sinais de ter visto decadência alguma no segundo semestre de 2006, vira apenas uma vitória e seguiu fazendo bobagens. Por pura desídia – preferiu tirar férias em vez de ir à Turquia -, deixou Fabiano Eller decidir seu destino sozinho junto ao clube que detinha seus direitos federativos. (Explico: os turcos têm uma milenar “cultura de negociação”, querem falar sentados e cara a cara até quando compramos um paninho qualquer, querem abraço e amizade ao final e ficam ofendidíssimos se não sentamos para negociar e tomar chá – sempre excelente – com eles. Se não tomamos chá, não vendem nada. Onde estava o Império Otomano num momento desses?) Igualmente, ignorou a importância do multi-campeão Paulo Paixão em nosso vestiário e deixou-o ir para Rússia. Da forma mais arrogante imaginável, confiou na capacidade de renovação do próprio clube – o qual, como mostramos na Parte I, não subsiste de suas divisões inferiores – e tivemos que ouvir, derrota após derrota, a falta de conhecimento futebolístico de nosso presidente pronunciar-se:

– Somos o Campeão do Mundo, não precisamos de reforços. Temos grupo.

Discurso que, semanas depois, foi mudado para:

– Não entendemos o motivo de nossas derrotas, 90% do time Campeão do Mundo está aí…

Qualquer um sabe que, a cada início de temporada, há que se fazer algumas mexidas motivadoras. Jogador de futebol é assim. Então, Vitório Píffero, é culpa sua se o Inter do começo de 2007 espantava-se com limitações intransponíveis – “limitações intransponíveis” significam um Grêmio pouco respeitador no Gauchão e uma cômica Libertadores. Faltava um Paulo Paixão para evitar as panelinhas que tanto atrapalham. Erraste também, Vitório, nisto: se a saída de Jorge Wagner foi compensada por Fabiano Eller, a saída deste não teve substituto, ou melhor, o plano era substituí-lo por Rafael Santos… Erraste, Píffero, ao deixar tua arrogância tornar-te surdo à torcida, que sempre pediu reforços. Erraste também ao não te livrar dos jogadores protegidos por Abel ou por empresários influentes no clube: poderias ter começado por Michel ou pelo recém valorizado Gabiru ou talvez por Clemer, merecedor desde aquela época de uma aposentadoria dourada… Erraste mais ainda ao deixar que ele trouxesse mais amigos como o ridículo Jean, que foi inscrito na Libertadores sem nunca ter jogado, como se fosse um craque indiscutível, desses que entram como uma luva em qualquer time…

E, para matar de vez com nossas pretensões, tornou-se finalmente claro um erro cometido desde a época de Fernando Carvalho: os contratos longos para qualquer perna-de-pau. O Inter sempre se orgulhou de não perder jogadores de graça para o exterior. Casos como o de Ronaldinho Gaúcho nunca aconteceram no Beira-Rio e isto era motivo de ufanismo. Só que a profilaxia foi exagerada. Na metade de 2007, o Inter mantinha 66 jogadores sob contrato. Todos recebiam bem e em dia. Só que a maioria destes jogadores jamais revelou-se apta para ser titular. Era um enorme grupo de come-dormes (ou seria comes-dormes ou comem-dormem?…) que, ao receberem propostas de Figueirense e Goiás, como aconteceu, não fecharam seus empréstimos porque ganhariam menos e ainda tinham quatro ou cinco anos de contrato com o grande Campeão do Mundo. Diego, Mossoró, Ramón, Gustavo, Leo, Chiquinho e outros (muitos outros) são exemplos de atletas que não passaram de promessas e que ficaram meses confortavelmente instalados e com salários em dia. É difícil negociar jogadores ruins, caros e com longos contratos a cumprir. Imaginem qual era o nível do Inter B se o Inter A mantinha Michel e Gabiru em suas fileiras! Não chega a ser surpreendente que só haja negócios para quem é visto em campo, atuando bem. Atualmente, nem os coreanos são trouxas. Houve muita confiança nos come-dormes… (ou o correto seria “naqueles que, exclusivamente, comiam e dormiam”?) Só que, como diz o Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada”. Contratos longos é para quem joga muito e não para todo o Inter B, que hoje viaja pelo interior jogando a segunda divisão gaúcha a fim não ficar parado.

Quando chegamos a 16 de agosto de 2007, éramos um amontoado de lembranças.

Publicado em 11 de setembro de 2008 no Impedimento.

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