O Fim (Minha Luta 6), de Karl Ove Knausgård

O Fim (Minha Luta 6), de Karl Ove Knausgård

Foi mais de um mês de leitura, houve um momento em que me irritei com a insistência do autor em abandonar seus personagens para partir em longas digressões, mas foi por pouco tempo. Depois, lá pela página 700, não aguentava mais ver a capa do livro nem carregar suas mais de mil páginas na mochila para cá e para lá, pois leio muito em cafés e parques, só que cada vez que o abria ficava feliz em lê-lo. Sim, Knausgård me dobrou e não apenas à coluna.

Quatro anos após a publicação de A Descoberta da Escrita, volume 5 de Minha Luta, a sexta e última parte da hexalogia chegou ao Brasil em dezembro. A Companhia estava nos devendo. Por que demorou tanto não está claro, apesar do fato de serem 1049 páginas. De qualquer maneira, valeu a espera. Eu, a cada romance de série, ficava preocupado se o livro me sugaria novamente. O que mais Knausgård poderia dizer sobre si mesmo? Quantos cigarros e cafés ele ainda consumiria? Bem, dizer que são muitos não é dar spoiler.

Vamos a O Fim. Knausgård havia escrito dois volumes de Minha Luta e estava prestes a começar a trabalhar no terceiro quando o primeiro — A Morte do Pai — foi publicado. Como tratava-se de uma autobiografia muito franca e na qual todos os personagens — parentes, amigos e colegas — , eram retratados com seus nomes verdadeiros, ele resolveu enviar o primeiro romance a cada um dos citados no livro. E aqui ele começa a registrar knausgårdianamente a rixa familiar e a crise autoral desencadeada. Seu tio o acusou de inventar coisas no romance. Isso normalmente não seria uma cobrança que incomodaria a um escritor de ficção. Porém, neste caso, o autor tinha se empenhado em escrever a “verdade”, não apenas a versão emocional dela, mas também o factual, a versão real. “O objetivo do romance”, escreve ele, “era retratar a realidade como ela era”. E a insistência do tio de que Knausgård havia inventado material para embelezar sua história (que mais tarde se revelou uma falsa acusação) o fez questionar sua própria memória e motivações, o que causou uma espécie de dúvida paralisante.

O tio Gunnar, irmão de seu pai, respondeu à cópia do livro que Knausgård lhe enviou com um e-mail intitulado “Estupro verbal”. Sua raiva e determinação em bloquear a publicação deixaram seu sobrinho perturbado, até porque sua fé em suas próprias lembranças dos eventos foi abalada. Enquanto Knausgård se preocupa e chama seu editor, ainda deve levar a vida fritando bolos de peixe para o chá de seus três filhos e certificar-se de que eles assistam ao episódio de Bolibompa do dia.

Cada fralda trocada, cada cigarro fumado na sacada, cada xícara de café derramado é a invasão da vida normal que distrai da bagunça interior. Ele sabe disso, nós sabemos disso; e ficamos presos a ele.

A descrição de Knausgård dessa crise — seu nervosismo, a forma implacável com que ele repassa os eventos repetidas vezes, seu esmagador senso de transgressão e vergonha — é fascinante. Ele está disposto a expor não apenas seu medo visceral, mas também sua falta de cálculo e de premeditação. Sua falta de jeito…

Isso e o intenso debate público a que o livro foi submetido na Noruega levaram Knausgård a ser mais contido — e, portanto, menos verdadeiro — nos volumes três, quatro e cinco. Mas em O Fim, ele garante estar determinado a contar as coisas como elas são, independentemente dos custos sociais.

Um aspecto dessa ousadia renovada é um ensaio de 400 páginas sobre a vida, os pensamentos e o apelo de Adolf Hitler. Você pode perguntar onde isso se encaixa nas angústias de um romancista pai de três filhos que mora em Malmoe. É complicado, embora Knausgård tenha tomado o título de sua série das notórias memórias do líder nazista. Mais importante, o norueguês é um romântico declarado, alguém que se sente desconfortável com algumas hipocrisias racionalizadas de uma sociedade moderna que exalta os valores da igualdade enquanto privilegia de forma flagrante as desigualdades de nascimento e da beleza física, por exemplo.

Em algum lugar dentro dele está também o desejo purificador sobre o qual Hitler construiu seu culto ultranacionalista, apoiado por muitos que deveriam saber melhor, incluindo Heidegger. Knausgård explora essa tradição intelectual e busca entender como o desejo por autenticidade resultou no genocídio industrializado e nos maiores horrores do século XX.

Depois de algumas centenas de páginas de vida familiar e drama, o escritor se afasta de seus assuntos domésticos, levando-nos em outra direção. O ritmo febril diminui à medida que nos familiarizamos com trechos um pouco mais sofisticados, com grande nacos de reflexões filosóficas despejadas no meio do romance. No início desta seção, temos uma longa passagem sobre um curto poema de Paul Celan , cinquenta páginas de análise de parte de um homem que diz, ironicamente, que realmente não entende de poesia. Aqui Knausgård começa a explorar o contraste entre o individual e o coletivo, com foco em um poema ambientado em um deserto escuro, onde pessoas e nomes são escassos.

Mas o autor não está perdido. O elefante na sala é o Holocausto, e é nesse ponto que ele finalmente conecta seus temas. Grande parte desta seção intermediária é dedicada a resumir Mein Kampf, mostrando a ascensão de Hitler da obscuridade austríaca provinciana a líder de uma nação e de um povo, além de maestro de um dos maiores crimes da humanidade. É bastante perturbador ler sobre Hitler como pessoa, muitas vezes em suas próprias palavras. Knausgård tenta cobrir a vida de Hitler objetivamente, recusando-se a ver vestígios do mal onde nenhum é evidente, e critica os historiadores que sentem a necessidade de demonizar cada ação realizada em seus primeiros anos.

É um trecho intenso e exigente para o leitor. Apesar de toda a sua leitura atenta de Hitler e de seus vários historiadores — sua crítica ao trabalho de Ian Kershaw vai muito além de uma nota de rodapé –, ele nunca consegue realmente entender a origem ou o crescimento do antissemitismo demente do ditador, mas tateia bastante sobre isto e a cultura geral europeia, tão afeita a este conceito.

Talvez o tamanho do empreendimento seja grande demais para estar contido dentro de uma narrativa da luta de um escritor. A provocativa ironia do título torna-se, em vez disso, um estudo comparativo de duas pessoas meio alienadas — um que continua a escrever um livro aclamado pela crítica e o outro que é responsável pela morte de dezenas de milhões.

Claro que o desequilíbrio é evidente. A série de livros não matou ninguém nem mobilizou a humanidade. Ainda assim, Knausgård deve ser aplaudido por mostrar que o grande mistério da era moderna — a descida da Alemanha à loucura genocida — não é uma questão de “eles”, mas de “nós”. É claro que somos nós, todos nós, como sociedade, que elegemos ou damos chances aos monstros genocidas.

E nunca esse “eu” é anunciado de forma mais enfática do que na crítica de Knausgård a sua autoficção e, em particular, às consequências dela na vida real de outras pessoas. Isso cria um tipo estranho de feedback, no qual o autor se censura por suas intrusões anteriores na privacidade de outrem enquanto, simultaneamente, invade mais uma vez.

O exemplo mais perturbador é com Linda, sua segunda esposa, sobre quem ele escreveu em termos frequentemente negativos no volume dois, Um Outro Amor. Bipolar, com três filhos pequenos e lutando contra uma falta crônica de confiança como escritora, Linda sofre um colapso nervoso e acaba em um hospital psiquiátrico por vontade própria. No entanto, enquanto se tortura pela insensibilidade de suas descrições anteriores, Knausgård mais uma vez submete sua esposa a um olhar nada lisonjeiro, criando a imagem de uma mulher capaz e amada, mas indolente, tentando constantemente cortar a liberdade do autor para escrever.

A vida de Knausgård é monótona e exigente. É também bastante pobre em beleza. A cada dia, ele tenta preservar seu tempo de escrita enquanto zelosamente prepara o café da manhã para seus filhos, levando-os para o jardim de infância, fazendo compras e preparando-se para a publicação do primeiro volume de Minha Luta. Os arrebatadores primeiros dias de seu relacionamento com Linda deram lugar a uma leve irritação com a divisão dos deveres domésticos, e talvez seu confidente mais próximo seja seu amigo Geir (um dos vários Geirs no livro, isso pede que o leitor preste atenção).

Como Knausgård reconhece, a complexidade da vida permanecerá além do documentador mais escrupuloso. No entanto, a vida e a arte sempre se misturam, criando as gloriosas diferenças entre experiência e representação. Escrever sobre a vida, como observa Knausgård, foi seu meio de escapar à vida. Porém, quanto mais ele escreve sobre sua vida, mais ele é aprisionado pela autoconsciência que a empreitada exige.

No final do livro, podemos sentir seu desespero crescente para terminar a tarefa. Na página final, ele promete que nunca mais “fará algo assim” com Linda e as crianças. Seja qual for a verdade dessas palavras, sua vida agora está destinada a ficar à sombra dessa realização literária verdadeiramente monumental em seis volumes. E talvez não haja maior marca de sucesso artístico do que isso.

Com os seis livros finalmente terminados, vem a pergunta: é realmente bom?, valeu mesmo a pena? Sim, valeu a pena ler. Muito. Certamente foi um percurso muito interessante e não me arrependo dele. Knausgård encara o abismo como Bergman, encara o abismo como talvez só um nórdico tenha disposição de fazê-lo. Ele abre feridas e escreve sobre o que as causou, com honestidade comovente e dor palpável. O que mais vou lembrar são as seguintes cenas: a limpeza da casa no primeiro volume, seu total desamparo em face de seu pai dominador em A Ilha da Infância, seus amores por algumas mulheres e a vergonha da ejaculação precoce, as madrugadas e reuniões de Uma Temporada no Escuro, as perigosas bebedeiras e a tentativa de automutilação — sob álcool — de A Descoberta da Escrita, a relação com o irmão e o colapso assustador de Linda na última parte de O Fim. Ah, e a riqueza do cotidiano, pois há emoção, memórias e lembranças proustianas — até paixão — em cortar uma laranja ou calçar um sapato.

Se eu leria tudo de novo? Algumas partes, sim. Até porque já estou com saudades.

RECOMENDO MUITO.

P.S.: Clique aqui para todas as resenhas da série.

Karl Ove Knausgård

Lendo ‘O Fim’, de Karl Ove Knausgård

Lendo ‘O Fim’, de Karl Ove Knausgård

Estou lendo O Fim, de Karl Ove Knausgård. É um romanção de 1056 páginas. Estou lá pela 430. Faz umas 50 páginas que ele iniciou uma furiosa incursão ensaística. Parece que a coisa tem mais 300 páginas. Não gosto.

Se os livros de ficção trazem teses, prefiro que estas sejam demonstradas por situações e impasses. As situações podem falar e creio que são elas que mais arranham a realidade. Além disso, filosofia em excesso me chateia, não tenho muita inteligência para ela e preferiria até voltar a estudar matemática. Falo sério.

Neste momento, Knausgård afasta- se tanto da história que conta quanto Musil faz em seu calhamaço-mor O Homem Sem Qualidades. Acho que é roubar no jogo ficcional, ainda mais após Thomas Mann demonstrar como ficção, personagens e filosofia podem se entrelaçar, como os personagens podem representar ideias, como Dostô também fazia em O Idiota e Os Irmãos. Saudades de Settembrini, Naphta e Míchkin.

Mas sou um cara dedicado e vou tentar atravessar as 300 páginas sem pensar em outra coisa.

Importante: eu ADOREI os 5 primeiros volumes da hexalogia. Resolvi encrencar no último…

A estranha abordagem de Knausgård a Hitler

A estranha abordagem de Knausgård a Hitler

A tradução deste artigo parte mais de minha curiosidade do que pela necessidade de enquadrar Knausgård num escaninho de incorreção política. Tinha curiosidade pela origem do título da série “Minha Luta” e fui procurar textos a respeito. Como a autora do artigo — bastante equilibrado, apesar de perplexo –, eu absolutamente não recuo em minha admiração pelo autor. 

Por Maja Hagerman, no NordEuropa em 22 de maio de 2017.

Esta semana, a parte final da autobiografia de Karl Ove Knausgård, Min Kamp VI, será publicada em alemão como Kämpfen. Neste romance, há um longo ensaio sobre Hitler e o nazismo. Foi criticado na Escandinávia, por mim e por outros, porque Knausgård deseja retratar Hitler como um homem comum, ao mesmo tempo omitindo fatos importantes.

Deixe-me começar dizendo o quanto gosto de ler Knausgård quando ele descreve sua própria vida. Há uma presença nervosa e enérgica mesmo nos dias mais cinzentos e comuns, quando ele escreve sobre suas atividades diárias em Malmö, na Suécia, nos anos de 2009 a 2011, como pai de três filhos pequenos e com companheira: é uma leitura tremenda. Mas eu realmente não gosto da maneira como ele escreve sobre Hitler e o nazismo no ensaio de mais de 400 páginas, inserido no meio do romance.

Obviamente, não se trata apenas de história. Muitas coisas acontecendo em nossos dias ressoam assustadoramente nos escritos de Knausgård.

Quando Panfletos de Violência se Tornam Realidade

No exato momento em que o romance se passa em Malmö, há — na própria cidade não ficcional — um assassino em série nas ruas. Mas isso nem é mencionado no livro, pelo que posso ver. Quando Karl Ove no romance vai para o parquinho com seus filhos, existe — na vida real de Malmö — um homem limpando suas armas não muito longe. Ele mira em completos desconhecidos em qualquer lugar e atira para matar. Mas ele apenas direciona sua visão a laser para aqueles que parecem estranhos a seus olhos. O assassino em Malmö é um nazista e, para ele, a guerra racial tem um significado mais profundo; é uma espécie de cruzada. Ninguém sabe quantas pessoas ele tentou matar entre 2003 (época do primeiro assassinato conhecido) e novembro de 2010, quando foi finalmente preso pela polícia. Ele foi condenado por dois assassinatos e pela tentativa de assassinato de outras oito pessoas. A Filosofia Teutônica estava em seu computador no momento de sua prisão. [i]

O título da autobiografia de Knausgård é Min kamp em norueguês e sueco; uma tradução literal em alemão seria Mein Kampf. Knausgård está brincando de forma sofisticada com espelhos e identidades na sexta e última parte de sua obra. Seu personagem principal no romance é Karl Ove Knausgård, que está escrevendo um livro com o mesmo título daquele que o leitor está segurando. Neste livro, há uma longa sequência de não ficção de várias centenas de páginas sobre Hitler e o nazismo. Mas é o verdadeiro autor ou o personagem autor do romance que é o seu escritor? Isso é ficção ou realidade? Não importa qual seja, o texto está lá. O texto existe na realidade — e afeta a realidade.

No romance, lemos sobre como os primeiros escritos de Knausgård — sobre ele mesmo e outras pessoas — começam a influenciar sua vida e a vida de outras pessoas, quando os textos são publicados como autobiografia. Isso também afeta a percepção do texto. O personagem do autor — Knausgård no romance — observa cuidadosamente todos esses reflexos no corredor de espelhos que ele mesmo criou com seu texto.

E ele faz uma comparação com o Mein Kampf de Hitler. Ele discute como a percepção daquele texto mudou após o Holocausto e a guerra, uma vez que sua mensagem monstruosa se tornou realidade. Knausgård pergunta: mas quem era Hitler quando escreveu o livro quinze anos antes? Ele encontra um jovem sério e idealista, pronto para ir a extremos na defesa de suas ideias, um jovem com forte apego à mãe, mas com medo das mulheres e do contato humano mais próximo, o que leva o autor a pensar que Hitler era na verdade, um pouco como o próprio Karl Ove quando jovem.

Knausgård tem um sentimento de fascínio, um sentimento que deseja examinar. O nazismo também está presente na história de sua família; ele encontra um distintivo de lapela nazista entre as coisas deixadas após a morte de seu pai e descobre que a avó tinha uma cópia antiga do Mein Kampf em um baú na sala de estar. Ela não se livrou dele depois da guerra.

Knausgård explica (no jornal norueguês Dagsavisen, 10 de maio de 2016) que deseja compreender o nazismo examinando-o com sua própria empatia e sentimentos. Assim, ele se deixa seduzir pelos ambientes e explosões emocionais fundamentais para o nazismo.

Uma história sobre um homem comum?

Há uma passagem importante no livro em que ele permite que seu próprio texto se confunda com o de Hitler. Aqui, os leitores finalmente obtêm uma explicação de sua surpreendente escolha de nome para o ciclo autobiográfico de romances. Knausgård escreve: “Adolf Hitler era um homem comum; quando o escreveu, não matou ninguém, não ordenou a ninguém que matasse, não roubou nem incendiou nada ”. [ii]

Isso é uma coisa estranha para Knausgård escrever. Hitler era um criminoso quando escreveu a primeira e mais conhecida parte de Mein Kampf. Enquanto redigia seu trabalho, ele estava cumprindo pena em uma prisão por um crime muito grave; ele havia sido condenado por alta traição e uma tentativa de golpe de estado. Em 8 de novembro de 1923, quando milhares de pessoas se reuniram em um bierkeller de Munique para ouvir o governo bávaro falar sobre a situação política, Hitler deixou 600 de seus homens da SA cercarem o bierkeller e bloquearem a entrada enquanto ele disparava sua arma, atirando no teto e gritando: “A revolução nacional estourou!”. Sob a mira de uma arma, os membros do governo bávaro foram forçados a deixar o palco e foram feitos reféns. Mas no dia seguinte o “Beer Hall Putsch” foi derrotado pela polícia em uma batalha que deixou 19 mortos. Não sei por que Knausgård escreveu que o líder desse partido violento e antidemocrático que liderou o golpe era um homem inocente. Mas o texto esta aí.

Knausgård está principalmente interessado no jovem Hitler. Ele lida longamente com eventos que ocorreram mais de dez anos antes de Hitler escrever Mein Kampf. Mas ele tem muito pouco a dizer sobre as ações de Hitler um ano antes. Ele discute o sucesso de Hitler como orador público e se pergunta qual pode ser o segredo de um orador que pode hipnotizar as massas. Mas ele não tem muito a dizer sobre o fato de que esse envolvimento político e agitação também incluíram violência. O tempo de Hitler com o “Kampfbund” quase não é mencionado, embora ele tenha sido nomeado líder de todos os corpos armados privados que marchavam nas ruas de Munique, demonstrando sua força e sua capacidade de introduzir violência na política, no outono de 1923. Milhares de combatentes organizados, não apenas as SA, mas uma coalizão de vários “Kampfbünde” nacionalistas diferentes, estavam treinando suas habilidades de combate e organizando manifestações armadas nas ruas e nos parques de Munique, para assustar e provocar o governo da Baviera. Isso não é explicado adequadamente na obra de Knausgård.

Knausgård quer que entendamos que o nazismo não se destacou como obviamente monstruoso ou maligno no início. Esta é uma abordagem perigosa, pois abre o caminho para uma espécie de cegueira para o que a ideologia racial realmente é e que efeito pode ter na mente das pessoas. A violência organizada fez parte do movimento nazista desde o início. A violência foi fundamental, e a ideologia, em seu cerne, uma explicação da legitimidade da guerra racial. Isso significava que você tinha que se livrar dos velhos padrões éticos e impor novos – com base na suposição explícita de que as vidas humanas têm valores diferentes .

Knausgård escreve que os alemães abraçaram o nazismo como se o amassem, e que Hitler acendeu o fogo em todos que o ouviram falar. Mas isso não é verdade: muitas pessoas achavam o nazismo repelente na década de 1920. Omitir-se de mencionar isso equivale, de certa forma, a “elevá-lo”, transformá-lo em algo sedutor. A verdade é que Hitler, após sete anos como líder do partido e orador público, não acendeu o fogo em mais do que uma mera fração dos que o ouviram. Na eleição geral de maio de 1928, o NSDAP obteve apenas 2,6% dos votos. E, até a quebra do mercado de ações em 1929, a passagem dos nazistas ao poder não era de forma alguma evidente. No entanto, acontecimentos dramáticos em todo o mundo assustaram as pessoas e isso levou ao sucesso do NSDAP nas eleições. Hitler obteve 30% dos votos na primeira eleição presidencial em 1932, e no segundo e último segundo turno, entre apenas dois candidatos, obteve 36%. Isso é menos da metade dos votos.

Fascinado, Knausgård descreve um entendimento profundo e misterioso entre as massas e Hitler. Mas minha impressão é que ele reproduz algo que viu em imagens de propaganda nazista de comícios partidários, etc., produzidas depois que os nazistas chegaram ao poder em 1933, quando a democracia foi abolida e os oponentes políticos foram colocados atrás das grades, assassinados ou assustados silêncio.

Ao descrever Hitler como um homem comum, Knausgård deseja desafiar o leitor. No entanto, ele também contribui para minar os limites e tabus que cercam essas ideias perigosas. A escrita afeta a realidade; texto e vida estão interligados. Um dos autores mais apreciados da Escandinávia opta por ter uma atitude estranha em relação à verdade sobre Hitler — ao mesmo tempo em que o nazismo, como ideologia por trás da guerra racial, encontra novos seguidores na Europa.

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Este texto de Maja Hagerman é uma versão editada de um artigo escrito para o jornal norueguês Klassekampen e reflete a visão do autor sobre o livro de Karl Ove Knausgård.

Maja Hagerman é uma autora, historiadora, jornalista e produtora de TV sueca que vive em Estocolmo (www.majahagerman.se).

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[i] Um livro sobre o serial killer Peter Mangs em Malmö, Suécia, é Raskrigaren (2015) de Mattias Gardell.

[ii] “[…] Adolf Hitler, quando o escreveu, era um homem comum, não havia assassinado ninguém, não havia ordenado o assassinato de ninguém, não havia roubado nada nem incendiado nada.” Página 481 na edição norueguesa do Min kamp 6, página 480 na edição sueca.

A Descoberta da Escrita (Minha Luta 5), de Karl Ove Knausgård

A Descoberta da Escrita (Minha Luta 5), de Karl Ove Knausgård

A Descoberta da Escrita é o quinto volume da série autobiográfica Minha Luta, de Karl Ove Knausgård.

(A propósito, a Companhia das Letras acaba de anunciar a publicação do sexto e último volume, chamado O Fim, para a segunda metade deste mês. O novo livro tem mais de mil páginas, enquanto que este que acabo de ler tem 628… Sim, os livros foram crescendo).

A Descoberta da Escrita é o melhor que li até agora. Com texto permanentemente intenso e envolvente, Knausgård conta ao mesmo tempo a história de sua luta para tornar-se escritor, sua vida amorosa e familiar e as tentativas de livrar-se de certas tendências absolutamente delinquentes e autodestrutivas que se manifestavam cada vez que bebia demais, o que ocorria com frequência.

Sem spoilers, digo que aos 20 anos Knausgård ingressou numa oficina literária como o mais jovem membro. Seus textos era rejeitados ou ignorados. A bebida e suas atitudes não melhoravam muito as coisas. Participar daquele grupo era uma grande honra para um jovem ambicioso. Ele se juntava a um grupo de escritores mais velhos, alguns já publicados, em uma classe de elite, mas… A ideia de uma luta travada internamente ganha corpo neste romance. É um aprendizado angustiante e tenso, cheio de leituras e tentativas a maioria das vezes fracassadas. Todos os escritores em algum momento pensam que são uma fraude, que o talento que pensam possuir é apenas uma ilusão — provavelmente porque, para a maioria, é a realidade. É raro um jovem escritor não se perguntar se o inferno da mediocridade tomará conta de sua vida definitivamente.

Este volume nos leva dos 19 anos até a dissolução de seu primeiro casamento, 14 anos depois. Trata de bebedeiras, constrangimento social, das bandas de rock das quais participou e do bloqueio criativo do escritor, sua única, constante e real ambição.

Ao mesmo tempo em que procura sua voz, temos toda a vida amorosa de Karl Ove. Bastante movimentado é seu amor por Tonje, uma doce figura pela qual ele é apaixonado. Como disse, ele absolutamente ama Tonje, mesmo de seu modo egoísta que deixa tudo de lado para tentar escrever. Aliás, Knausgård é o escritor que fez o egoísmo trabalhar a seu favor.

O limbo que A Descoberta da Escrita nos demonstra não é uma exclusividade de Karl Ove, ele é familiar para todos nós. É aquele período da juventude em que tudo parece uma questão de vida ou morte, e um enorme período de tempo é gasto querendo, planejando e esperando sexo, sensações ou inspiração literária.

Como sempre, temos as melhores descrições da natureza — efetivamente lindas — e as narrativas impecáveis de casos amorosos que dão mais ou menos certo, mais ou menos errado. E que nos encantam.

Um grande livro!

Recomendo!

Tonje e Karl Ove