Milton versão portuguesa

Ora, pois pois, recebi minha cidadania portuguesa. Não que tenha algum interesse em me mudar ou mesmo em conhecer os parentes de meu pai. Dia desses, a internet me permitiu saber que há alguns Ribeiros nos endereços esperados em São João do Loure, distrito de Aveiro. Um deles é dono de um motel. Vi fotos dos quartos. Talvez conseguisse um test drive gratuito lá. O que gostaria de saber mesmo é porque Manuel Martins Ribeiro, meu avô, deixou Portugal. Certamente foi a pobreza que empurrou aquele homem à aventura de vir trabalhar como estivador no cais de Porto Alegre, depois conseguiu abrir uma padaria (enfim, é o caso típico do portuga chamado Manuel, dono de uma padaria chamada Lisboa…). O que gostaria de saber seriam os detalhes, as circunstâncias todas e isso só com ele (veio com quem, por que metade da família ficou, ele era da parte pobre dos Ribeiro?, etc.). Acho que sempre fomos realistas. Já tive contatos com descendentes de ucranianos que eram parentes da princesa Anastácia… Outros diziam que ela estava no navio que os trouxera. Já ouvi narrativas de imigrantes italianos que eram nobres e ricos, muito ricos na Itália. Ora, ninguém vinha para o Brasil por ser rico. Há poloneses com histórias incríveis também. Lendas e lendas.

Diziam que meu avô era um grande piadista e bem-sucedido mulherengo. Nas fotos, sempre sorri muito. Era mais bonito do que meu pai e eu. Morreu em 1960, quando eu tinha 3 anos. Parece que ficou muito feliz quando soube que se segundo neto era varão, pois tal fato garantiria a continuidade do nome Ribeiro, um sobrenome raro, exclusividade nossa. Não lembro de nada, mas soube que ele gostava de me atirar para o alto e depois pegar, coisa que sempre fiz com meus filhos. Costumava amarrar fios em notas de dinheiro que deixava na calçada em frente à padaria. As brincadeiras do filho eram mais punks, meu pai tinha a mania de cuspir em quem afagava seus belos cachinhos. As pessoas concordam que minha avó, Maria Nazaré, prima-irmã do marido Manuel e que morreu em 1954, era uma santa. E eu tenho a cara dela, como minha mulher descobriu, surpresa. Todos gente comum. Sua filha, minha tia, aprendeu a tocar piano e era professora do instrumento; mas quem adorava música era meu pai, que chegou a compor valsas… Uma delas, Férias de Julho, era dedicada a mim e minha irmã. Sei a melodia até hoje. Às vezes, ele sentava no piano e dava um recital de… Férias de Julho. (Era uma geração de pianistas. Minha mãe também tocava, preferencialmente tangos, fato que fez com que seu professor – o maestro Leo Schneider – fechasse violentamente a tampa do piano em suas mãos. Ela estava divertindo as meninas do internato que dançavam quando chegou o maestro. Ele queria que ela tocasse apenas clássicos, não aquela música degenerada…) Mas, voltando à nossa casa, um dia, o piano sumiu. Todos o haviam abandonado e o utilizavam para largar suas coisas. Minha mãe se irritava com aquilo e vendeu-o.

Há um escritor na família. Era irmão de minha avó, viveu sua vida no Rio de Janeiro e atendia pelo nome artístico de Cardoso Filho. Meu pai achava seus livros uma merda.

Então, em resumo, não conheci quem me deu a cidadania, apenas os filhos dos imigrantes. Do ponto de vista cultural, herdamos muitas coisas deles – do ponto de vista material, puf! –, mas quem deverá aproveitar a cidadania é minha filha, que poderá utilizá-la para estudar fora, se quiser. Meu filho tem 18 anos e não obterá vantagens por ser maior de idade. E eu, quando for à Europa, agora não preciso mais entrar na fila dos não comunitários, serei considerado cidadão de primeira linha. Além do mais, na improvável hipótese de desejar ir aos EUA, entro direto sem me humilhar no Consulado em São Paulo.

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  1. Meu avô também é português; da mesma forma, o passado dele está envolto em mistério. Existem vários tipos de portugueses que vieram ao Brasil, mas ricos só depois da Revolução dos Cravos, que mandou um monte de agentes da Pide e assemelhados para cá, como os donos do Restaurante Barracuda, na Maria da Glória. Nunca procurei pelos meus familiares de lá; se meu avô tivesse relações amistosas com eles, certamente teria guardado algum endereço, nomes e fotografias. Não trouxe nada de lá, só seu analfabetismo. Morreu quando eu tinha 6 anos; beijei-o no caixão, senti o cheiro do cadáver e a carne macilenta em meus lábios. Contato nada aflitivo com a morte: estava mais curioso que medroso. Cidadania portuguesa? Não me apetece. O cultivado são os autores portugueses, de linguagem quase cômica para os brasileiros, mesmo o mais conhecido Eça de Queirós. Alguma música portuguesa (uma lembrança querida, de boa cantora, porém com repertório ruim, Dulce Pontes, cujo show em teatro de Niterói, lotado, motivou-a a cantar mais uma sessão para atender as pessoas que estavam à porta, sem mais ingressos, coisa rara de se ver), culinária, vinhos, melancolia e os pés que não param no chão. Portugal, como nação, foi a primeira da Europa, na forma como se vê hoje. Todos os demais países eram retalhados em vários reinos, a começar pela Espanha. Certamente porque, de tão pequenino, Portugal não passasse mesmo de um feudo distante, assim mantido incólume por séculos, desde a independência (século XII, por volta de 1170, creio eu, mas posso estar errado até no século). Maria de Medeiros, quando jovem, com sua deliciosa prosódia alfacinha; Manoel de Oliveira e seus filmes surpreendentes (ora extraordinários, ora esquisitos em sua feitura algo improvisada). Em uma Bienal de Livros, no Rio, conheci uma penca de autores portugueses, entre eles um rapaz de uns vinte anos, cujo livrinho de contos adquiri; ele estava ao lado do conhecido arroz de festa Agualusa, tão presente por aqui que é proprietário mesmo duma editora, Língua Geral.

    Esses retalhos de lembrança são poucos e mal alinhavados. Coisas da memória. Escrevo com ecos do Madredeus, grupo cuja música tem sabor discutível (meio new age, meio world music), mas eu gosto. Mas não a seguinte, cujo refrão é assim: “Por mais que a vida me doa / ai, vida minha / ai, vida boa / eu ando sempre à vontade / e nunca me canso / e assim continua…”

    1. O Madredeus é uma grande cantora. Sua música às vezes é boa, raras vezes muito boas, mas me faz pensar naquelas lojas que vendem móveis antigos feitos ontem.

      Estou mais perto de Portugal do que tu, certamente. Meu pai conseguiu até que eu me tornasse torcedor do Benfica…

      Agualusa tem editora aqui???

      1. Acho que deu um problema na resposta anterior, não sei. Mas:

        O Madredeus é um grupo, a cantora é Teresa Salgueiro, hoje em carreira solo, porém inferior ao trabalho que ela fazia antes com o grupo. Tem 4 discos deles.

        http://www.linguageral.com.br/site/ – este é o endereço da editora do Agualusa, se não me engano, oficialmente, apenas uns dos autores, mas acho que os caras de lá não passam de uns laranjas, talvez em razão da cidadania portuguesa/angolana dele, mas com certeza é ele quem dita a editoração lá.

  2. “Morreu quando eu tinha 6 anos; beijei-o no caixão, senti o cheiro do cadáver e a carne macilenta em meus lábios.”
    Minha história é muito semelhante…

    Ficou em mim também o cheiro das flores. Até hoje, o odor de flores(colhidas) num ambiente fechado é, para mim, muito desagradável.

      1. Pergunta metafísica Marcos:
        então como é possível existir o livre-arbítrio se até para as flores não somos livres para a escolha?

        Para mim, o livre-arbítrio é uma grande sacanagem histórica. Tudo se passa como se tivessemos a liberdade de escolha para nossos caminhos. O livre-arbítrio, na realidade, é uma conquista.

  3. Sobre música portuguesa, uma cantora excepcional é a Mísia. Um de seus discos, pelo menos, é uma obra prima (Garra dos Sentidos), com algumas letras do Saramago. Ela estará se apresentando em Porto Alegre em setembro. Sobre genealogia, tenho imensa vontade de saber a procedência natural de minha família, um bacanal entre espanhóis, portugueses e índios_ nada muito original.

    A propósito do lusitanismo, descobri um escritor que não reluto em dizer que é o maior entre os que escrevem em português, vivos: o Mia Couto. Concluí neste final de semana um romance que não sabia que ainda se escrevia dos tais, cheio de uma linguagem poética própria, uma integridade narrativa que parece não dever nada a ninguém, falando sobre as tradições a história e as dores de personagens africanos. Trata-se de “Um Rio Chamado Tempo,Uma Casa Chamada Terra”.

  4. Eu sou descendente de duas famílias chinesas distintas (mas não parece. Frustrante) , e com uma certa rivalidade. Minha vó renegou seu próprio lado chinês e adotou o do meu avô, que era filho de mandarim (fico meio encabulada de dizer isso, de tanto que batem nessa tecla desde que me entendo por gente). Os outros chineses eram pobres. Meu avô estudava na França quando estourou a Revolução Cultural e perdeu a mesada e o contato com toda família depois disso. Veio pra cá num cruzeiro e decidiu ficar – para alguém que não tinha laços, tanto fazia. Já o outro lado chinês era de comerciantes que foram para uma feira na Argentina, depois para o Brasil e acabaram ficando.

    Soube que há anos atrás finalmente conseguiram entrar em contato com a parte comerciante da minha família na China. Receberam de lá uma carta pedindo dinheiro. Depois, nunca mais quiseram saber!

    Não deve existir essa coisa de cidadania chinesa. Com tanta gente, é mais fácil eles mandarem alguns chineses mudarem de nacionalidade! Apesar dos muitos livros, ninguém da minha família fala chinês (eu tentei!). Sem a lingua, quase tudo se perde…

    1. É triste. A cultura chinesa é muito diversa da nossa. E há a escrita e a fala, que penso serem impenetráveis para mim.

      Por motivos de trabalho, converso diariamente com chineses. Usamos o inglês que eles dominam muito bem por escrito. Devo dizer que eles são muito brasileiros, sempre fazendo piadas — às vezes é complicado entender — e não são nada discretos. Mandam fotos deles, dos filhos, da mulher… Todos são assim. Imagine que eu, que nunca fui muito de privacidade, cuidados, etc. fico surpreso e muitas vezes não retribuo…

      Um dia, aconteceu algo muito esquisito, Caminhante. O meu melhor amigo de lá pediu explicações sobre o funcionamento exato do órgão sexual feminino. Ele disse que lá não ensinam direito e ele — que tem 32 anos e um filho — estava angustiadíssimo, pois sua esposa aparecera com um fibroma no útero e ele desejava saber sobre o funcionamento do mesmo e das tais trompas… Que ele, um homem muito inteligente, simplesmente não entendia. Meu inglês não abrange tanta coisa e eu fiquei no Google Tradutor descobrindo os nomes de tudo e explicando a função de cada parte. Foi algo muito sério… E muito, muito estranho.

      Daria um excelente post, penso.

      1. Ora, muita gentileza de vocês… Gosto muito dos comentários daqui. Confesso que tenho muita preguiça em debater – pessoalmente e mais ainda pela internet – por isso tenho preferido assistir e admirar o poder argumentativo de vocês!

        Quanto a perder a cultura chinesa, todos na família achamos triste. Nenhum dos chineses conseguiu transmitir a língua aos filhos. Nos dois lados chineses, aconteceu a mesma coisa: a esposa se irritava com o fato de não entender nada e proibia o marido chinês de falar em casa. Meu avô tentou ensinar os filhos, mas a paciência não era o forte dele e acabou desistindo. Eu cheguei a fazer 2 semestres de chinês. Quando me perguntam sobre a experiência, digo que é mais ou menos como estudar Baleiês. No início parece fácil, aí vai complicando, complicando…

        A única coisa que eu realmente aproveitei do curso foi descobrir o ideograma do nome do meu avô. Ele traduziu por Kou mas atualmente se pronuncia como Guo. Sabe-se lá o porquê, as pessoas tentem a ler de maneira afrancesada, como se o OU tivesse som de U. Dá pra imaginar o que meus tios sofreram com isso! O resultado é que eu e quase todos os meus primos não possuimos esse sobrenome. Antes de casar, eu possuia os dois sobrenomes do meu pai; agora, possuo um sobrenome italiano e todos acham que tenho sangue italiano – o que muito me irrita!

        (Post sobre a conversa ginecológica intermediada pelo Google, por favor!)

  5. Depois a Caminhante diz não ter nível para comentar aqui?
    Milton, vamos ver se esse comentário chega aí, porque acho que aquele feitiço contra o blog tá voltando.
    Sobre música portuguesa, gosto da Mísia (ela estará se apresentado em Porto Alegre em setembro) com canções com letra do Saramago.
    Sobre literatura lusitânica, concluí neste final de semana um livro belíssimo, como achava que não se escrevia mais, do maior escritor em língua portugues vivo, o moçambicano Mia Couto. trata-ser de “um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”. Belíssimo.

  6. Ah… Milton!
    Excelente post!
    E teu pai cuspia nas pessoas, é? Pois olha só: quando eu era bem pequeno, tinha lindos e longos cabelos loirinhos. Todos mundo dizia “mas que guriazinha bem linda…”. Acontece que eu era o primeiro neto de meu avô materno, que não tivera filhos varões. Ele ficava furibundo com esses elogios que me faziam.
    Então me ensinou.
    Quando me dissessem que eu era guria, eu devia baixar os calções e dizer “SOU MACHO E BEM SACUDO!!”. Fiz várias vezes, para deleite do velho.
    Mas fui além. Um dia fomos na irmã dele. Estavam de reza, um monte de carolas. Começaram a me afofar: guriazinha pra cá, guriazinha pra lá… E eu ali, firme, comendo ambrosia.
    Quando íamos embora, fizeram silêncio para me ouvir dar Adeus. Eu estufei o peito e disse declaradamente: TCHAU PUTEDO!
    Nem sei de onde tirei. Acho que foi puro talento.

  7. Milton: não sei se consegui enviar o comentário antes, então lá vai de novo.

    Adorei o post! Gosto muito quando você escreve sobre seus pais e avós.

    Então teu pai cuspia, é?
    Pois eu também tinha lindos e longos cabelos loiros. Todo mundo me afagava: “Que guriazinha mais linda…”. Eu era o primeiro neto do meu avô materno, que não havia tido filhos varões. Ele ficava furibundo quando me confundiam com menina.
    Então, ele me ensinou.
    Quando alguém me fazia o malfadado elogio, eu baixava os calções e dizia: “SOU MACHO E BEM SACUDO!” Fiz muitas vezes, para deleite do velho.
    Mas um dia ele se deu mal.
    Fomos visitar a irmã dele, mais velha, viúva, sempre de preto. Estavam lá inúmeras carolas, todas fazendo reza. Foi um tal de “guriazinha pra cá, guriazinha pra lá…”. E eu ali, firme. Comendo ambrosia. Na hora de dizer Adeus, todas ficaram em silêncio para me ouvir falar. Ergui a mãozinha, estufei o peito e soltei: TCHAU PU-TE-DO!
    Nem sei de onde tirei. Acho que foi puro talento.

  8. milton,
    tantas reflexões interessantes no teu texto e nos comentários e a única coisa tacanha e mesquinha em que consigo pensar é que todas as piadas maldosas e – algumas – sem graça sobre portugueses englobam você.

    só pode ser a peste do ari toledo que eu via no programa do sílvio santos quando eu era guri.

    merda!

    pra você, um grande abraço!

  9. VIRA-VOLTAS
    by Ramiro Conceição

    Insignificantes-belos, somos,
    quando conhecemos em detalhe
    as rugas-rios do nosso amor singelo:
    nosso homem ou mulher
    a desabrochar por nosso afeto:
    fogo que não mata
    mas que cria matas
    do eu em nós
    em vira-voltas:
    fluxo vital
    para cima!;
    contraponto
    à gravidade
    para baixo!;
    alegria finita
    a compreender
    a infinita dor de ser:
    seres insignificantes-belos,
    simplesmente, simples, um sim…
    ao Universo!

  10. Adoro histórias de antepassados. Os meus portugueses mais próximos vieram pra cá mais ou menos na mesma época que Dom João, lá por 1808!

    Sobre o resto, não sei muita coisa.

    Adoro Madredeus tb.

  11. O INFANTE
    by Fernando Pessoa

    Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
    Deus quis que a terra fosse toda uma,
    Que o mar unisse, já não separasse.
    Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
    E a orla branca foi de ilha em continente,
    Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
    E viu-se a terra inteira, de repente,
    Surgir, redonda, do azul profundo.
    Quem te sagrou criou-te portuguez..
    Do mar e nós em ti nos deu sinal.
    Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
    Senhor, falta cumprir-se Portugal!

    PACÍFICO DESTINO
    by Ramiro Conceição

    No imaginário Norte, brancos cabelos à sorte.
    No imaginário Sul, silêncios brancos do azul.
    Entre os pés e a cabeça, sonhos e florestas
    de flores amarelas, vermelhas e azuis.

    Entre Norte — Sul o admirável sucedeu:
    conquistas, assassínios e o mistério
    de Deus.
    Entre o céu e a terra uma história nasceu:
    aquela em que os deuses são filhos, seus.

    Na Pérola Azul, uma lágrima divina
    gira o Ocidente ao Oriente ao Ocidente
    com dois corações castanhos em si:

    aquele à direita é a África bendita,
    violentada pela ganância branca e vil;
    o indígena à esquerda ferido é o Brasil!

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