Espingardas e Música Clássica, de Alexandre Pinheiro Torres

Se todos fossem ateus, o Diabo ficava sem emprego.

ALEXANDRE PINHEIRO TORRES, em Espingardas e Música Clássica

Nenhum de meus amigos conhecem este autor e acredito que a maioria de vocês nem imagina quem seja Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999), escritor português nascido em Amarante. Mas deveriam. Romancista, poeta, importante crítico literário e professor universitário na Universidade de Cardiff, Alexandre viveu por curto período no Brasil após ser obrigado a exilar-se. O fato que o levou ao exílio está entre os gestos de que mais se orgulhava: em 1965, nomeado membro do Júri do Grande Prêmio de Ficção, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores, propôs a atribuição do prêmio ao livro Luuanda, de Luandino Vieira, que na época estava preso pela acusação de terrorismo. A atitude levou Salazar a proibi-lo de ensinar em Portugal, o que o levou primeiro ao Brasil e logo após à Cardiff, onde tornou-se catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira. Em 1970, fundou a primeira cadeira independente de Literatura Africana de Língua Portuguesa em universidades inglesas.

Mas esses são detalhes biográficos, vamos ao livro encontrado num balaio da Feira de Livro de Porto Alegre no ano passado ao preço de R$ 2,00. Espingardas e Música Clássica foi escrito em 1962 e só pode ser publicado após a queda de Salazar, pois seria impossível, naquela época, publicar um romance que se passava entre os dias 19 de dezembro de 1961 e 2 de janeiro de 1962. Na primeira data, a União Indiana de Nehru invadiu e ocupou em definitivo, para nenhum espanto do mundo, as possessões da chamada Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu). Em Goa quase não se ouviram tiros; de forma calma, inteligente e talvez pouco patriótica, os militares e marinheiros portugueses que deveriam opor-se à invasão escolheram depor as armas. A ação narrativa do romance se conclui em 2 de Janeiro de 1962, quando do assalto ao quartel de Beja.

Durante este período, a Emissora Nacional portuguesa transmitiu ao longo de todo o tempo música clássica. Sua intenção era suavizar ou esconder a verdade e aí está a explicação do estranho título que, aliás, foi o que me fez comprar o livro. Mas a curiosidade não pára aí.

Este livro altamente político tem sua história baseada no lacrimoso clássico de Camilo Castelo Branco Amor de Perdição. Mas está longe de ser um pastiche, pois a história contada supera em muito a simplicidade do modelo, seja em número de personagens, seja em visão de mundo, seja no interessante trabalho de linguagem, seja na tremenda e densa porção de sarcasmo que apresenta com elegância. A intriga não se constrói ao redor de um “amor de perdição”, mas antes de um amor de salvação ou de libertação, porque Teresa e Simão visam outros interesses. Porém, o fato de sobrepor personagens e situações se por um lado facilita a complexa trama ficcional do romance — o romance de Camilo não precisa ser lido, pois as concidências de nomes e circunstâncias são comentadas ao longo do romance pelos próprios personagens –, por outro avisa o leitor de os tempos são outros e que o final será muito diferente neste Portugal de Salazar.

O romance realiza um contraponto entre o final do período colonial nos anos 50 e 60 e a vida no interior de Portugal no mesmo período, com os agentes da Pide (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) e da GNR (Guarda Nacional Republicana) procurando, prendendo e torturando “agitadores” e “comunistas”. Espingardas em silêncio lá fora, espingardas ativas aqui; o mundo mudando lá, o mundo silenciado aqui; Goa caindo quase sem luta para vergonha e indignação de Salazar, Angola em guerra para desespero e fuga dos jovens portugueses. Tudo isso enquanto os ingleses, por exemplo, já aceitavam a irreversibilidade da História entregando o Quênia.

Um grande livro.

Bibliografia: o próprio Espingardas e alguns sites como este.

13 comments / Add your comment below

  1. Caro amigo, é por estas e outras que teu blog é essencial aqui em casa todos os dias. Na certa este livro está fora de catálogo, o que configura um tormento à compulsão adquirida de tentar ler tudo o que recomendas (bem sabes que, por mais absurdo que me pareça, SÓ conheci Bernhard e Benedetti através deste espaço).

    Tudo que escrevestes neste post parece-me no mínimo retrógrado. Retrógrado ter descoberto um romance esquecido de um escritor português exilado; retrógrado tê-lo feito em uma Feira de livro (o que me fez pensar nas escavações de Cortázar e Hemingway nas barracas de livros às margens do Sena); e, retrógrado, por final, que o autor seja um escritor que aos poucos desaparece do cenário contemporâneo: o que se sacrifica pela causa da verdade em que acredita. Como disse Faulkner, você deve ser capaz de dizer não, sempre e reiteradamente, mesmo se te oferecerem uma foto no jornal e uma conta no banco.

    E esqueci, no fervor da dialética de ontem, reconhecer que agora estamos quites. Sempre preferi as companhias sem papas na língua, taí o Nunes para provar. E não, HOJE não me drogaram. (Aliás a única droga que tomo atualmente é esse leite goiano de mil utilidades, servindo para descolorir os pêlos, matar germes e envernizar madeira.)

  2. Os escritores portugueses são singulares desde Camões. Recomendo os encontráveis livros de Helder Macedo e José Cardoso Pires, mas creio possuir, lá em casa, mais alguns livros de autores diferentes, desconhecidos por aqui, além dos já manjados (na verdade africanos, não portugueses) Agualusa, Pepetela e Mia Couto, apesar do complexo roseano deste último.

    Pertinente ao livro do Alexandre Pinheiro Torres, acima tratado (nunca ouvi falar do autor e muito menos do livro) há o delicioso romance O Último Suspiro do Mouro, do Rushdie, mas não sei se foi publicado no Brasil (o li numa edição primorosa… portuguesa!), que se passa na Índia “portuguesa” (Goa e afins), e considero muito, mas muito melhor mesmo do que os últimos vagidos pops do ex-condenado Salman.

    E da próxima vez, por favor, recomende livros que possamos ler, não coisas que ficam entesouradas na tua arca!

  3. O Último Suspiro do Mouro realmente é maravilhoso, uma espécie de avesso ao O Tambor: o narrador vive numa velocidade duas vezes superiora à normal, de forma que aos 35 anos já está no final da existência, com 70 anos. Rushdie não conseguiu superar o talento deste romance em expor sua tese de multiculturalismo, e, na minha opinião, é melhor escrito que Os Filhos da Meia Noite. Me recordo (tem sim uma tradução, pela cia das letras) de um tio do protagonista, no corpo do qual um médico esquecera uma agulha, e toda a vida dele é aproveitar ao máximo antes que a agulha lhe atravesse o coração. Depois ele lançou “Fúria”, um romance bem menor e mal acabado, mas que contém alguns pensamentos de seu protagonista (algo como Solinka) que são tão bons como as melhores páginas reflexivas de Roth. É curioso que também esse romance segue um outro de Gunter Grass (o que pode ser a mera telepatia inconsciente entre artistas), o Anos de Cão: ambos tratam da violência e do niilismo moderno através de um personagem que se dedica à construção de bonecos. O romance seguinte, o do equilibrista, é muito bem construído e melhor ainda escrito, ficando atrás só do Mouro. Rushdie, acho eu, é subestimado por estas terras.

    Outro autor português de valor: Gonçalo M. Tavares: seu último romance já tem um título que um conto em miniatura sensacional: Aprender a Rezar na Era da Técnica.

    1. Putz, esqueci do Gonçalo! Li todos os livros dele, inclusive o que citaste. É escrita sintética e modernosa, trabalha dialogando com o horror, sexo, ciência e os muitos anacronismos humanos, de forma que talvez aborreça alguns que pretendem articular elaborados sistemas de crenças, justamente contra os quais incide nosso M. Tavares. Gostei muito de seu romance Jerusalém, mas existem uns 10 livros dele publicados no Brasil. E não sabia que O Último Suspiro havia sido publicado no Brasil; meu volume português tem um acabamento fantástico, parece mais um livro de arte, com uma capa linda (o melhor é que não tem foto do Rushdie, com aquela cara de sonolento emaconhada de sempre que é dele) mas o principal mesmo é sua tradução no português da terrinha, que é uma língua mais trancada mas repleta de termos para nós insólitos, mas para eles linguagem cotidiana.

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  5. Caríssimos leitores: Sou brasileira, nascida no estado de São Paulo. Em 2005 defendi minha tese de doutoramento na Universidade de São Paulo, cujo título é: Espingardas e Música Clássica e Em Liberdade – Intertextos/intertempos (uma contextualização intertextual/paródica). Tenho um carinho imenso pelos autores em questão e, após ter lido alguns comentários sobre Pinheiro Torres, coloco-me à disposição.
    A tese encontra-se no banco de teses da USP. É só acessar.
    Grande Abraço
    Leila Cabral

  6. To be a good charitable being is to from a make of openness to the in the seventh heaven, an cleverness to trust undeterminable things beyond your own control, that can front you to be shattered in hugely extreme circumstances for which you were not to blame. That says something exceedingly impressive thither the fettle of the ethical autobiography: that it is based on a trustworthiness in the fitful and on a willingness to be exposed; it’s based on being more like a weed than like a treasure, something kind of fragile, but whose very precise attractiveness is inseparable from that fragility.

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