101 Dias em Bagdá, de Åsne Seierstad

Esta longa reportagem é um equívoco da autora do bom O Livreiro de Cabul. Se a idéia da reportagem é interessante — retratar a Bagdá pré-ataque americano — esta mostra-se inviável ao esbarrar no silêncio dos iraquianos e na duríssima censura vigente. A autora, sempre acompanhada de tradutores que não apenas tentavam determinar onde ela iria como também traduziam somente o que era permitido, permaneceu encalacrada numa Bagdá onde não circulava muita informação. Poucos ousavam falar e, para completar, nem a jornalista tinha grande idéia do que estava acontecendo fora do país, pois seus contatos eram vigiados de perto. Como se tudo isto não bastasse, a renovação do visto dos jornalistas era semanal e dependia de bom comportamento. Ou seja, era muito difícil, para uma estrangeira que não se comunicava em árabe, obter informações relevantes naquela Bagdá.

O livro torna-se mais interessante quando os americanos chegam… isso após quase trezentas páginas! Aguardadíssimos pelos xiítas, que sofreram horrores durante a ditadura de Saddam e que gostariam de saudar o invasor, os americanos chegaram atirando em tudo o que se mexia. Seu lema parecia ser “atire se quiser”. Não havia punição por matar civis e eles se divertiam atirando em janelas abertas, em vacas, galinhas e, desconfiados, em civis que vinham saudá-los — afinal, podiam ser homens-bomba. Também desenvolveram o curioso hábito de dar tiros de canhão em fotografias de Saddam e destruíram todos os prédios públicos, a maioria sem motivo aparente ou resistência; porém, curiosamente, tiveram cuidado com o do Ministério que tratava do petróleo. Ingênuo, boa parcela do povo iraquiano achou estranho que os americanos os tratassem aos safanões e tiros e que não tivessem vindo com intenções de conquistar seus corações…

O livro torna-se interessante quando um tanque resolve fazer mira no hotel dos jornalistas, antes sempre respeitado. Jornalistas e técnicos morrem. Tende a ficar interessantíssimo quando mostra a reversão de expectativa daqueles que antes odiavam Saddam e que passavam pouco a pouco a odiar os americanos, unindo-se aos partidários do ex-ditador. Em poucos dias, todos estavam decepcionados e humilhados. Só que, neste trecho, após quase cem dias no Iraque, a jornalista Åsne mostra-se de saco cheio de tantos dias de isolamento, do constante perigo e decide — seguindo o conselho de familiares e colegas — que é melhor sair do inferno. Com efeito, ninguém parece ter paciência com os iraquianos.

Salvam-se, na reportagem, as descrições das livrarias de Bagdá e os poucos diálogos intelectuais opositores ao regime de Saddam. Mas é muito pouco.

P.S.: Alberto Kopittke, em oportuno comentário escrito neste blog na última segunda-feira, observa o vezo que alguns intelectuais de esquerda têm de criticar best-sellers ou livros de entretenimento. É uma pauta à qual este escriba admirador de Georges Simenon e outros pretende retornar. “A lógica equivocada de que tudo o que faz sucesso é ruim” demonstra preconceito dos mais idiotas.

13 comments / Add your comment below

  1. Milton, não entendi essa de “vezo de intelectuais esquerdistas”.

    Primeiro: pelo menos em literatura, muitas vezes o que faz muito sucesso é literatura mediana ou francamente ruim — e é justamente por isso, pelo maior compromisso com o gosto médio, que atinge um número maior de pessoas, assim como um blockbuster cheio de explosões vai ter mais público que um Buñuel. Você certamente não vê Proust nas listas de best sellers.

    Segundo, esse crédito à intelectualidade de esquerda é falso e tendencioso. Porque essa postura me parece, historicamente, muito mais próxima de uma certa elite de direita. Esquerdistas, na verdade, tendem a ser demagógicos, até por razões ideológicas. “Olha que bonito, literatura que atinge as massas!”.

    Se os Wunderblogs ainda têm arquivos, é mais do que fácil demonstrar isso aí. Basta ler uns 3 posts deles. 🙂

    Terceiro, em qualquer tipo de arte não é algo ruim ter um certo critério estético.

    1. Rafael, eu concordo com todos os teus argumentos, nossas premissas é que partem de situações diferentes, acredito.

      Tenho uma série de amigos (de esquerda) bastante preconceituosa quando o assunto toca nos itens diversão, entretenimento até comédia. Seriam gêneros ou classificações A PRIORI inferiores. Não posso concordar com isso. Não preciso invocar Swift, Shakespeare, Gogol nem Groucho Marx para considerar a comédia um gênero superior. Da mesma forma, nada tenho contra a mera diversão de ler um bom policial de Simenon.

      Quanto a teus argumentos, nem por sonhos pretendo combatê-los. Mas saiba que aqui no Sul — e o Alberto é gaúcho –, sentimos que há certa má vontade da “intelectualidade” (bota aspas nisso) para com aquilo que não é sério e “consequente”.

      Abraço.

      (O que achaste do Sul21??? É um Bombordo 2… )

  2. (parte 2)

    Mais: temos que criar alguns critérios de escolha; são no mínimo 10.000 bons livros para ler, e não vejo razão para “enriquecer” a lista com mais 10.000 ruins ou dispensáveis (criamos também critérios para classificar livros não lidos entre os dispensáveis e ruins). Milhares de livros e uma vida curta nos obrigam ao distanciamento das bobagens ou irrelevâncias (esses conceitos são manejados por cada um conforme critérios idiossincráticos, mas estruturados em bases sólidas, não nas nuvens).

    Por fim: entretenimento? Desconheço isso. Não existe “entretenimento” em arte (ou na vida mesmo; vivemos, não nos “entretemos”). Toda arte é criação humana que embaralha valores, conceitos, modos de ver e de fazer e, em meio disso tudo, não há diversão pura, mas coisas que divertem pelo seu conteúdo inteligente, e podem divertir apesar do conteúdo burro (se no caso possuir alguns elementos de interesse, como, por exemplo, descrições sobre a vida em Cabul ou relatos dos absurdos estadunidenses em Bagdá), mas “divertir” é estimular a inteligência, provocar o humor, mergulhar na busca do conhecimento, causar estranheza e estimular os sentidos. Nisso tudo não há pureza possível. Entreter: passar o tempo sem cogitar nada? Ler um livro só para saber quem matou? No meio desse caminho do whodunit somos envolvidos por idéias acerca dos valores humanos, papéis sociais, vieses políticos e escolhas. Bons romances policiais nos levam a querer saber quem é o assassino ao mesmo tempo em que questionamos a lógica da sociedade, a devoção ao poder ou ao dinheiro, os desvios das perversões e as versões necessárias ao desvio do comum, enfim, os preconceitos e a justeza (ou não) de nossa ética. Diálogo inteligente, é isso que queremos. A inteligência “entretém”? Só?

    Entendo a defesa do “puro entretenimento” como defesa do vazio, da condição pequeno burguesa satisfeita que pode se dedicar à tolice porque já se tem tudo, “então por que não um pouco de estupidez?”, Mas para se chegar à condição pequeno burguesa satisfeita a estupidez é pré-requisito, por isso o pequeno burguês pseudo culto pode se dar ao luxo da má leitura: o lixo é seu habitat natural.

    Para encerrar, não há lógica na afirmação de que tudo que faz sucesso é ruim, mas há lógica em afirmar que o sucesso, na maioria quase absoluta das vezes, só chega quando os interesses que o fomentam concluem que vale a pena trabalhar para o êxito de algo que se insere no ideal de conservação dos valores dominantes. Voltemos à lista dos 30 mais vendidos: quantos deles problematizam as questões da vida e nos levam à busca de novos caminhos?

  3. (parte 1)
    …“preconceito dos mais idiotas”… então tá. Não ler livros de êxito nada tem a ver com preconceito.

    Antes, um aviso: o texto a seguir deve ser lido com o distanciamento necessário para não ser levado como “ataque pessoal” – o alvo é genérico.

    Preliminarmente, vejamos a relação dos livros mais vendidos até hoje em 2010 (gêneros ficção e não-ficção; extirpei o autoajuda – aí seria demais):

    1º) A Cabana, William Young & Múltipla Escolha, Lya Luft
    2º) O Símbolo Perdido, Dan Brown & Comer, Rezar, Amar, Elizabeth Gilbert
    3º) Alice, Lewis Carroll & As Vidas de Chico Xavier, Marcel Souto Maior
    4º) Querido John, Nicholas Sparks & Mais Você – 10 Anos, Ana Maria Braga
    5º) O Ladrão de Raios, Rick Riordan & Chico Xavier – A História, Marcel Souto Maior
    6º) O Mar de Monstros, Rick Riordan & Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, Leandro Narlocho Cândido Xavier
    7º) A Batalha do Labirinto, Rick Riordan & Mentes Perigosas, Ana Beatriz Barbosa Silva
    8º) Diários do Vampiro 3 – A Fúria, L. J. Smith & Uma Breve História do Mundo, Geoffrey Blainey
    9º) Amanhecer, Stephenie Meyer & Criação Imperfeita, Marcelo Gleiser
    10º) À Espera dos Filhos da Luz, Ana Maria Braga & 1808, Laurentino Gomes
    11º) A Maldição do Titã, Rick Riordan & Pinga-Fogo com Chico Xavier, Saulo Gomes
    12º) O Vendedor de Sonhos, Augusto Cury & Um Certo Verão na Sicília, Marlena de Blasi
    13º) Eclipse, Stephenie Meyer & Guia Ilustrado TV Globo – Novelas e Minisséries
    14º) Diários do Vampiro 1 – O Despertar, L.J. Smith & O Andar do Bêbado, Leonard Mlodinow
    15º) Diários do Vampiro 2 – O Confronto, L. J. Smith & Bussunda – A Vida do Casseta, Guilherme Fiúza

  4. (parte 1-2)

    Quantos desses livros acima citados devemos ler para não sermos tachados de preconceituosos e idiotas? Não seria o caso de sermos idiotas justamente porque lemos dez ou vinte desses horrores aí de cima (com umas duas exceções que confirmam a regra)?

    Além disso, alguns livros não precisam ser lidos porque a divulgação é tanta que todo o conteúdo passa a ser de domínio público. Italo Calvino elaborou tabelas de livros a ler e a não ler e, entre esses últimos, inseriu clássicos, cuja leitura se tornou dispensável em razão da capilaridade dos mesmos na cultura, de forma que a leitura em si nada acrescentaria ao leitor, representando mero ingresso ao universo do já sabido.

    1. O sucesso de um livro é igual a 3000 exemplares vendidos. Só. Isso garante que o cara estará no mercado editorial quando quiser.

      Pois há pessoas que criticam o pessoal que consegue isso. O bonito é se foder, entende?

      Agora, entrar na lista da Veja de mais vendidos… Seria bom, mas com essa turma…

      1. Pô, cara, 3.000 exemplares vendidos não é sucesso em lugar nenhum, mas talvez sirva para atiçar a ira de panelinhas acadêmicas contra este ou aquele feliz distribuidor de 3.000 exemplares de seu livrinho, até porque o tal pode se achar o máximo com esse pico de vendas.

        Mas o caso não é este.

        É aquele de achar que há arte, literária ou não, que só entretém sem problematizar muito. Os exemplos do Charlles ajudam a entender isso: Shakespeare fazia teatro popular, usava fórmulas fáceis e personagens algo estereotipados, mas seu texto é repleto de questionamentos profundos, por isso ele ficou, e não seus compadres que talvez fizessem um teatro menos comprometido com a avaliação das coisas, ficaram na superfície, fizeram má arte e, por isso, foram esquecidos.

        O Simenon, no mínimo, mantém um olhar irônico sobre os ambientes que seu detetive analisa; no final das contas, também faz crítica social, por isso sobrevive, embora seja preso a convenções da narrativa policial e releve o aprofundamento de seus personagens.

        Mas o lixo relacionado (os 15 mais vendidos da Veja) responde à generalização contra o leitor diante do sucesso da subliteratura. Picuinhas menores não contam, mas dizer que “li Don Brown sim, e daí, o cara escreve histórias que prendem, é puro entretenimento” é fazer pouco caso da própria cabeça.

  5. Lembremos que Shakespeare era muito popular em sua época, e suas peças eram consideradas entretenimento popular. Há mais sangue e morte em Hamlet, ou Rei Lear, do que em Rambo. Quando lançadas cada uma das traduções de Ulisses aqui no Brasil, elas entraram na lista de best-sellers. Não há nenhuma distância entre Shakespeare e Pynchon, ambos utilizam elementos do pop tanto para cativar audiência quanto para cambiar estética e pensamento superior. Tema pra lá de interessante, e proponho ao Milton que faça um post sobre isso. Estou sem tempo, e só comentarei isto para conter a síndrome de abstinência.

  6. Milton, não sabia que você era fã de Simenon! Que alegria!
    Ainda sobre este grande autor, discordo do que disse o Marcos Nunes, de que ele só sobrevive porque mantém um olhar irônico e faz crítica social. Aliás, discordo do cerne de outro ponto levantado pelo Marcos, e digo que Simenon sobrevive sobretudo porque é excelente entretenimento. Às vezes a impressão que passam os críticos da “literatura de entretenimento” é que ela é fácil de fazer. Nada mais enganoso. Basta ler uma boa ficção comercial, como “Os Pilares da Terra” do Ken Follett ou os livros do Harlan Coben, para ver como essas obras se destacam em comparação com uma montanha de outros livros publicados.
    Outra coisa: 3.000 exemplares vendido só é considerado muito dentro de um esquema muito alternativo de publicação. 3.000 vendidos POR DIA, aí sim, a coisa está ficando boa. 🙂

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