Bernardo faz 13 anos

Publicado em 4 de janeiro de 2004 (com várias fotos que não sei quais são)

Bernardo nasceu tão calmo que assustou sua mãe. Assisti à cesariana, realizada após uma noite de tentativas inúteis  — ele não estava na posição, digamos, correta. Ao retirá-lo, o médico segurou aquela criança de olhos bem abertos e respiração forte e anunciou:

– É um belo garotão.
– Mas… por que não grita? – disse em acentuado vibrato sua mãe.

O médico deu-lhe uma chacoalhadinha e recebeu como resposta somente um rápido “Uá”. Eram 9h40 do dia 4 de janeiro de 1991 e, por toda esta calma, não ganhou nota 10 no índice de vitalidade Apgar, ficou com 9 . Entregaram-me o pacotinho de menos de 3 Kg, levei-o para junto da mãe. Ele não chorava, não dormia, apenas revirava os olhos buscando a luz do teto. Se Goethe morreu pedindo mais luz e Victor Hugo acusando o aparecimento de uma luz negra, Bernardo nasceu fazendo acrobacias por luz. Não adiantava revirá-lo no berço, ele se voltava sempre para as lâmpadas acesas. Quando eu dava por mim, estava cantarolando Vida, de Chico Buarque, principalmente o trecho:

Luz, quero luz
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás
Arranca, vida
Estufa, vela
E pulsa, pulsa, pulsa
Pulsa, pulsa mais

Mas estava apavorado. Era meu primeiro filho e eu não sabia o que fazer com aquela criança magra que tinha dificuldades para mamar e que em seus primeiros dias arrumou uma hérnia intestinal e retornou ao hospital, desta vez para a mesa de operações. A hérnia e outras complicações só serviram para amarrar mais fortemente seus vínculos com os pais. Fiquei orgulhoso quando ele, ainda bebê, escolheu-me num quesito fundamental: para dormir, preferia o colo do pai.

(Duas fotos. Quais seriam?)

Quase 13 anos separam as duas fotos acima. Quando as vejo assim juntas, dá-me vontade de rir, pois possuem os mesmos elementos, exceto o indefectível patinho. A fragilidade desta imagem contrasta com a segurança adolescente da outra. Na época da primeira, eu tinha a modesta esperança de poder criar uma boa pessoa, um cara legal, só isso; secundariamente, esperava também estar ganhando um companheiro para uma ou duas de minhas maiores paixões – futebol, música, cinema e literatura, em qualquer ordem. Na segunda, vejo retratado o quanto minhas expectativas eram modestas. É certo que ganhei mais do que esperava, recebi um oceano. É difícil imaginar minha vida sem sua atenção e carinho. A presença deste interlocutor muito inexperiente e inteligente faz-me repensar os conceitos fundamentais sob os quais vivemos. É alguém sempre disposto a falar, discutir e opinar – torna-se até chato algumas vezes! Porém, a observação da segunda foto me dá uma tranquilizadora sensação de intimidade e penso que ali talvez esteja a pessoa que mais conheço no mundo. É alguém cheio de argumentações sedutoras, mas também dotado de um humor anárquico, incontrolável e inoportuno que aprecio muito e que aprendeu nem desconfio onde… Quando saímos juntos, chegamos a um tal grau de entendimento que talvez seja nauseante para quem se detenha a assistir; é como se estivéssemos dentro de um seriado da TV americana dos anos 60, do gênero “Papai Sabe Tudo” ou “Os Waltons”, mas… puxa vida, sabem que é bom conviver assim? Creio que isto vá mudar nos próximos tempos… Penso ainda possuir uma influência avassaladora sobre suas decisões e opiniões, mas a adolescência está chegando. Talvez todo o carinho que recebo hoje vá reduzir seu fluxo para só retornar plenamente depois dos primeiros amores do garoto. Fui assim com meus pais e penso que provarei do mesmo remédio. Estou preparado.

Ele é muito informado e seus professores elogiam o acesso que seus pais lhe dão à cultura. Delicio-me com o elogio, mas sei que é uma meia-verdade, pois ele é autônomo. É só não atrapalhar. Adora explicar o que sabe – e é muito! – e o faz com clareza. Acostumado a vencer discussões, às vezes torna-se teimoso quando não tem razão, mas tudo o que sei sobre astronomia e biologia, por exemplo, foi ensinado por ele em sessões acompanhadas de farta bibliografia comprobatória.

Talvez não devesse contar a história e seguir, pois nela eu brilho tanto ou mais do que ele, mas ela serve para ilustrar um tipo de indignação muito presente no caráter dele. Ele fica louco de raiva quando vê ou é vítima de uma injustiça. Passa a não compreender o mundo, mas luta.

Na primeira série, quando tinha 7 anos, um colega roubou-lhe uma lapiseira. Bernardo queria recuperá-la e os dois estavam gritando um com o outro. Bateu a sirene do recreio e, para por fim à discussão, a professora – bastante tola, por sinal – determinou que o objeto era do outro colega. Resultado: foi seguida pelos protestos de um Bernardo indignado. Depois, ela me chamou para uma conversa.

– Eu sei que ele tinha razão, mas ele não podia vir atrás de mim no corredor discutindo. Foi um desrrespeito.
– Mas a senhora pegou a lapiseira dele e deu para outro menino!
– Eu errei, mas não interessa. Ele foi muito veemente, me seguiu até a sala dos professores. O senhor deve adverti-lo.
– Não vou fazer isso.
– Não vai fazer isso?! Mas ele não pode sair desafiando professores pelo corredor.
– Olha, Rosaura, eu era o maior cagalhão na idade dele e sofria por isto. Acho admirável que ele tenha te enfrentado; afinal, quem tinha a razão? Não vou fazer nada.

Abaixo, uma foto do Bernardo injuriado. Tinha acabado de discutir com sua irmã e a mirava cheio de raiva.

Sempre gostou muito de ciência e tecnologia. Uma vez, com três anos, chegando à escolinha, viu o pessoal do Departamento Municipal de Esgotos abrindo um buraco no meio da rua e perguntou:

– Pai, são paleontólogos?

Logo que começou a falar, demonstrou ser um cético mirim. Quando o maternal escolheu como tema religião, voltou para casa preocupado.

– Não quero deixar a tia chateada, pai.
– Por que, Bernardo?
– Ela falou que no céu tem anjos, Deus, um monte de coisas.
– E daí?
– Daí que eu andei de avião e vi que lá em cima não tem nada, só nuvens. Mas não vou dizer prá ela, ela pode ficar triste ou braba…
– É, deixa assim.

Como todo menino, ele adora as piadas e os sons escatológicos. É capaz de fazer maravilhas, principalmente com arrotos. Obrigou-me a baixar uma lei aqui em casa, a qual não é muito respeitada. A lei reza que É vetada a emissão de ventosidades por determinados orifícios corporais, mormente os traseiros. Com o tempo, o texto da lei não ficou mais coloquial mas ficou resumido a Não são admitidas flatulências ou eructações! Ignoro o que faz os homens acharem os arrotos e peidos coisas engraçadas. O Bernardo tem que ser advertido a cada reunião formal sobre a última frase grifada, pois parece pensar que os outros podem se divertir com a eufonia (é eufonia mesmo) de suas emissões.

Ganhou o apelido de Dado de sua irmã menor, Bárbara, que achava mais seguro dizer isto em lugar daquela forma complicada cheia de erres. Mas tem todos os apelidos do mundo. Para alguns tios americanizados é Benny ou Bernie, para outros é Bê, no colégio é Bena e, para algumas amigas da Bárbara, é Matagal, alusão clara a seu inacreditável “corte” de cabelo. Aliás, o cabelo é um capítulo à parte: antes queria parecer um roqueiro, depois um jogador de futebol argentino e agora está em fase de pleno experimentalismo. Está experimentando, bem entendido, o fundo do poço estético. Está com um cabelo que, apesar de limpo, raramente é cortado e nunca é penteado. Não sou nada conservador, critico exclusivamente a estética. Porém, deixemos o rapaz viver sua vida.

Apesar da cara de selvagem mal dormido, ele não morde, tem cuidado em nunca ofender as pessoas, em ser sempre gentil, etc. É claro que isto não funciona muito com os de casa, mas funciona com o resto, inclusive comigo. Preocupa-se com os problemas dos outros e não os esquece, voltando sempre depois ao assunto. Aplicou grandes doses de companheirismo durante a separação – o que me foi de grande consolo.

Nos últimos tempos, notei que ele queria introduzir um assunto importante. Desembuchou dizendo que sua mãe tinha um namorado. Deixei-o falar. O detalhe que mais me interessou foi saber que os dois tinham saído em plena terça-feira pela manhã com a finalidade de jogar tênis. É um bom sinal. A única coisa que me importa é que meus filhos estejam bem.

A mesma aceitação ele tem em relação à minha namorada. Como exemplo da abordagem cuidadosa do Bernardo, busco um trecho do e-mail que mandei em 11 de julho de 2002 para meu amigo Marcelo Backes, época em que estava pensando em apresentar a Claudia a meus filhos.

Fiquei me preparando uns dez dias até chegar no Bernardo para contar. A reação dele foi a seguinte:

– É claro que vou sentir muitos ciúmes, mas acho que tu é legal e merece isto.

É possível ser mais correto e sincero?

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