Morre a Batalha

A Batalha, não obstante seu jeito meio triste nas fotos abaixo, era a mais feliz dos labradores. Comprei-a em 1998 para meus filhos, mas ela logo estabeleceu um vínculo mais forte com quem lhe dava comida e banho. Com a separação, ela ficou na casa do lado de lá. Raramente a via. Algumas vezes, depois que minha filha já morava comigo, ela descia gorda e tropegamente as escadas e entrava resolvida em meu carro. Na última vez que tentou ir comigo, estava velha, surda e babou esplendidamente em  minhas calças — os pastores tinham feito com que eu esquecesse as possibilidades dos babões do Labrador — , só saiu após ser puxada, empurrada e de chorar um pouco. Parecia saber quem era seu dono, o nome que aparecia em seu pedigree. Fiquei quieto quando soube que tinha sido sacrificada, mas tive vontade de reclamar. Por que não me avisaram? Sei que a educação que aqui gorjeia, não gorjeia de modo algum lá, mas mesmo assim fico contrariado com o sistemático desconhecimento. De qualquer maneira, acredito que foi tomada a decisão correta. Devia estar muito mal perdendo pouco a pouco o movimento das patas traseiras.

A morte de um cão não é como a morte de um ser humano. Fico infeliz quando um de nossos cães morrem, mas não tento evitar  o luto através da ação. Quando envenenaram a Callas há três anos, comprei imediatamente um outro pastor alemão, a Juno, para que não ficasse um vazio em seu lugar. Em minha opinião, os cães acompanham a gente, só substituindo pessoas em casos de solidão ou abandono, principalmente de velhos. Minha filha amava a Callas — era uma das atrações de sua nova casa, a minha — e eu não quis deixá-la nem 24 horas sem um cachorro. Foi uma teleentrega. Telefonei e veio um sujeito com toda uma ninhada. Ele disse que todos custavam a mesma coisa, mas que um dos filhote seria mais caro. Como cachorreiro, logo identifiquei e escolhi a Juno, a que custava um pouco mais. Minha filha ficou dois dias olhando atravessado para a nova cachorra, queria a Callas de volta, mas como resistir?

Bem, mas o fato é que a Batalha se foi. Lembro do dia em que a trouxemos para casa, os guris brigavam para levá-la no colo; lembro do primeiro grito que dirigi a ela e que a deixou paralisada; lembro que ficou hospedada na casa de um amigo meu e que deixava os outros dois dinamarqueses sem comida. Foi uma cachorra vigorosíssima na juventude, engordou muito, decaiu como todos decaem e passou. Viveu quase 13 anos, que penso ser a média dos de sua raça. Absurdamente, nunca teve uma ninhada, erro que quero evitar com a Juno.

Ficam 4 fotos dela aí no blog.

Aviso meus sete leitores que pretendo retomar as postagens diárias, mas tá difícil.

P.S. — Meu filho Bernardo me disse que tentou me telefonar na noite anterior àquela que a Batalha seria entregue ao veterinário para me avisar. Por algum motivo, não atendi o telefone.

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  1. “Algumas vezes, depois que minha filha já morava comigo, ela descia gorda e tropegamente as escadas e entrava resolvida em meu carro. Na última vez que tentou ir comigo, estava velha, surda e babou esplendidamente em minhas calças — os pastores tinham feito com que eu esquecesse as possibilidades dos babões do Labrador — , só saiu após ser puxada, empurrada e de chorar um pouco. Parecia saber quem era seu dono, o nome que aparecia em seu pedigree”.

    Fiquei embargado lendo esse trecho. Ando fresco demais, pelo visto. Ou talvez apenas ame cachorros mais do que deveria.

  2. O poema abaixo, de Sophia de Mello Breyner Andresen, pensava eu, era a melhor e mais sintética expressão da condição humana. Melhor acrescentar também “da condição canina”.

    Nunca mais
    Caminharás nos caminhos naturais.

    Nunca mais te poderás sentir
    Invulnerável, real e densa –
    Para sempre está perdido
    O que mais do que tudo procuraste
    A plenitude de cada presença.

    E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.

  3. Uma crônica delicada.
    Tecida com emoção das boas lembranças, pois estas, sim, estas ficarão.
    Muito significativo o nome: “Batalha”. Não sei a razão da escolha, mas faz-me associar: “- Não chores meu filho / viver e’ lutar.”

  4. Meus sentimentos a você e a Bárbara, Milton.
    Eu te falei que sempre tive cães, não é? Sempre cadelas. E sempre que uma delas se ia, meu avô e depois meu pai saíam a achar um cão, nem que fosse emprestado. Mas não era substituição, não. Meu avô dizia que cuidar de um novo animal, com suas exigências, sua busca por espaço, acabava distraindo um pouco a dor.
    Lembro quando a última cadela que chamei de minha foi envenenada. Ela era uma mãe fantástica, teve várias ninhadas, e morreu junto com o filho que nunca separamos dela. Foi um dia ruim, pois perder um animalzinho para o tempo e a doença é uma coisa ruim, mas para um vizinho malvado que joga veneno no seu pátio dói bem mais. A minha bolinha não era jovem, mas ainda tinha alguns anos e o filho dela tinha muitos.
    Naquela mesma noite, meu pai nos trouxe a Lilica. Um filhote traumatizado que se recusava a dormir sozinha. Foi criada dentro de casa e mais tarde tivemos de lhe dar um cachorro para ela parar de insistir de comer na mesa com garfo.
    As duas eram poodles, as duas pretas. Mas era impossível confundi-las. O pai dos filhotes da Bolinha veio certa vez e viu a Lilica, bastou cheirá-la e foi embora, decepcionado e cabisbaixo. A Lilica nunca foi boa mãe, ela era o bebê da casa e foi até a morte.
    Ainda se chora por elas.

    Acho que me excedi. Desculpe.
    De um abraço na Juno por mim.

  5. Li o texto com o coração na mão, meus sentimentos a vocês. Como definiu um amigo, cachorros são nossos filhos peludos. Sempre tive cães mas nunca vivi de perto a morte de nenhum. Eu estava em Curitiba quando o Flock morreu, em Salvador. E o poodle da minha mãe, o Quincas, foi doado ainda jovem (ela também não me falou nada e me senti traída). Deve ser um vazio muito grande.

    Um abraço.

  6. Sobre isso, meu amigo Milton, sou delicado e vulnerável demais para escrever. Não me vejo sem o Miles Davis. O único cão do qual abri mão foi um dog alemão de nome Duke, que se apaixonou tão perdidamente por uma cadela da mesma raça, que tive, para o bem dele, que doá-lo para o dono da namorada. Hojes eles vivem bem, ainda que isso tenha me custado um terreno inteiro do coração.

    Hoje cobri o Miles de uns trocentos beijos e abraços a mais do que o normal.

    Abraços.

    1. Essa história me lembra outra, de um pequeno livro infantil de um escritor brasileiro (esqueci o nome dele, droga!.) O título do livrinho, acho que é “Titina”. A personagem é um funcionário de primeiro escalão em Brasília, e ganha uma filhote de raça, a que dá o nome de Arusha, nome de uma cidade russa. (Mas o amigo do escritor, que comenta a obra, brinca com ele, perguntando se não era uma gatinha de nome Nefertiti… .) Um dia, um pedreiro é chamado a consertar a casa e, quando termina o trabalho, os donos dão por falta de Arusha. O pai investiga, chegam, ele e a filhinha, Teresa (Titina) à casa do pedreiro, que está a brincar com Arusha, agora com o nome de Marabá, cidadezinha do Maranhão de onde tinha vindo. Pobreza e solidão comovem pai e filha, que se afastam aos poucos.

  7. Lembrei da minha cocker, a Tussi, muito valente ao ‘enfrentar’ o câncer que a consumia. Amigona inesquecível.
    Meus sentimentos, Milton.
    Abraço.

  8. Perder um cão querido é das coisas mais tristonhas da vida…

    O que sempre quase me consolou nessas situações foi saber que meus cãezinhos foram animais muito felizes durante todo o tempo em que estiveram comigo.

    Labradores têm mesmo um ar meio melancólico, mesmo os que são extremamente alegres e ativos, como o meu Nelson Rodrigues. Tem o olhar mais doce e meigo que se possa imaginar. Não quero nem pensar que um dia ele também não estará mais conosco.

    Meus sentimentos para vocês.

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