Ao atacar o Governo, Nassar apenas honrou uma velha tradição da literatura

Freire diz suas bobagens ao lado de Nassar, que observa as duas páginas de seu bombástico discurso | Foto: Wanezza Soares / Carta Capital
Freire diz suas bobagens ao lado de Nassar, que observa as duas páginas de seu bombástico discurso | Foto: Wanezza Soares / Carta Capital

Eu e dois amigos bem conhecidos de todos, já totalmente bêbados, criamos o conceito da “bundamolização da literatura”. No passado, o escritor era ouvido, consultado e participava da vida política. Thomas Mann tinha programa de rádio onde falava contra o nazismo. Orwell criou seus últimos livros não apenas falando de política, mas patrocinado pelo serviço secreto inglês, altamente anti-soviético. Céline, Greene, Brecht, Borges, Cortázar — que escreveu um belo conto homenageando a Revolução Cubana, lembram? –, para não falar em Vargas Llosa e García Márquez, todos tiveram participação na vida política de seu tempo. Nem que fosse para chamar os outros de idiotas. Enfim, a coleção não tem fim. Mais: como escreveu Idelber Avelar, “o argumento da independência entre a qualidade da obra e a coerência ou a virtude da posição política do autor é universalmente aceito”. Eu acho que a literatura perdeu — E MUITO — ao se demitir da vida política secular. Hoje, todos têm medo de falar para não perder aquele convite — e a consequente graninha — para a feirinha ali da esquina e resultado está aí, com a literatura lá atrás, no último banheiro da casa.

Charlles Campos também foi oportuno ao escrever no Facebook que “Nassar, além de ser o maior escritor — de longe  — nacional, se comportou segundo uma tradição literária muito antiga”.

O que me surpreende não é terem dado o microfone para Raduan Nassar e ele ter dito o que disse. O que me surpreende é o ministro da Cultura, Roberto Freire — verdadeira antítese da cultura — ter sugerido que Nassar deveria recusar o Prêmio Camões, no valor 100 mil euros. Também chamou Raduan de adversário político, o que é verdadeiro e até ceitável, dependendo do tom da fala. Porém, o tom de Freire foi ríspido e o poeta Augusto Massi fez muito bem ao dizer que Freire “não estava à altura do evento”. Bem, na minha opinião, será complicado achar algo à altura de Freire e do PPS.

Outra pessoa respeito muito, a tradutora Denise Bottmann, veio com tudo: “Roberto Freire sempre foi uma das grandes vergonhas nacionais, desde antes dessa nossa era neoneanderthal. Agora estreia em alto estilo na vergonha lítero-internacional. Parabéns multiplicados ao Raduan, por levar mais esse prêmio, o discurso do bocó de platina. E vivas ao amiguinho Massi, que não deixou passar barato”.

A vergonha nacional fez-me rir ao declarar: “Esse histrionismo oposicionista está com seus dias contados”. Então tá, ele vai implantar a ditadura.

O Ministro também disse que Nassar estava “recebendo um prêmio do Governo que ele considera ilegítimo”. Não, em primeiro lugar, ele recebeu o prêmio de dois governos  — tanto que Nassar agradece a Portugal em seu discurso –; em segundo lugar, o anúncio do vencedor deu-se quando Dilma era presidente e, terceiro, o prêmio é literário. É pela obra.

A propósito, Raduan Nassar é autor de dois romances fundamentais da literatura brasileira, Lavoura Arcaica e Um copo de cólera. O Prêmio Camõesinstituído pelos governos do Brasil e de Portugal em 1988, é atribuído aos autores que tenham contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua portuguesa. O prêmio é sempre concedido pelo conjunto da obra.

Confira a íntegra do discurso de Raduan Nassar:

“Tive dificuldade para entender o Prêmio Camões, ainda que concedido pelo voto unânime do júri. De todo modo, uma honraria a um brasileiro ter sido contemplado no berço de nossa língua.

Estive em Portugal em 1976, fascinado pelo país, resplandescente desde a Revolução dos Cravos ocorrido dois anos antes. Além de amigos portugueses, fui sempre carinhosamente acolhido pela imprensa, escritores e meios acadêmicos lusitanos.

Portanto, Sr. Embaixador, muito obrigado a Portugal.

Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil. Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes. Prima inclusive por uma incontinência verbal assustadora, de um partidarismo exacerbado, há vídeo atestando a virulência de sua fala. E é esta figura exótico a indicada agora para o Supremo Tribunal Federal.

Esses fatos configura por extensão todo um governo repressor: contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim. Governo atrelado, por sinal, ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração de riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro.

Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal. Tanto que o ministro Celso de Mello acolheu, há três dias, o pleito de Moreira Franco. Citado 34 vezes em uma única delação, beneficiou-se do foro privilegiado, com julgamento a perder de vista e provável prescrição. Em sua decisão, o ministro acrescentou um elogio superlativo a um de seus pares, Gilmar Mendes, por ter barrado Lula para a Casa Civil no governo Dilma. Dois pesos e duas medidas.

É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções. Coerente com seu passado à época do regime militar, o mesmo Supremo propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado.

O golpe estava consumado!

Não há como ficar calado.

Obrigado.

10 comments / Add your comment below

  1. E o Governo cagão, que não dá a cara a tapa e tem medo de vaia, postergou ao máximo a entrega do prêmio, imaginando que panos quentes fossem calar o grande Nassar – um autor tão à altura do Prêmio Camões quanto Freire à do PPS e do Governo Temer.

  2. Escrevi no meu facebook e reproduzo aqui, de olho nos milhares de leitores do Milton, o que penso do Freire:
    O Ministro da Cultura Roberto Freire perdeu uma boa oportunidade de ficar calado durante a entrega do Prêmio Camões, dos governos do Brasil e Portugal, a Raduan Nassar. Quando o escritor, autor de Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera, usou seu direito de homenageado para criticar o governo Temer (chamou de golpista) e o Supremo Tribunal Federal (de se acovardar durante a ditadura e de cumplicidade no golpe contra Dilma) durante seu discurso, Freire, certamente se sentindo devedor pelo cargo que ganhou, defendeu o governo Temer e foi merecidamente vaiado. Freire é o típico político oportunista. Fez carreira durante o regime militar em cargos de segunda linha no nordeste, o que não o impediu de se filiar ao PCB,chegando a ser candidato a Presidente em 1989. Foi estalinista, depois eurocomunista e acabou fechando o partido para fundar o PPS,ao qual aderiram outros oportunistas políticos, como o ex-governador Britto.

  3. A crítica ao Celso de Melo é injusta. Talvez seja o mais qualificado e coerente do STF. A impressa precisa para de tratar citação em delação premiada como prova. Prova é um instituto processual com definição e aplicação bem diferente do que as pessoas comuns imaginam. Mas ninguém quer saber disso. Quando citam um inimigo, a delação vira prova; quando citam um “cumpadre”, erguem institutos e princípios do Direito Penal. Dois pesos e duas medidas. Citação em delação premiada, por si só, não é instrumento de prova. Todo mundo sabe disso, mas todos só lembram disso quando seus “amiguinhos” aparecem na história. Celso de Melo tem adotado essa postura em todos os seus julgados, pelo que tenho visto. Mas essa turma não lê os acórdão e tampouco atenta-se para as divergências presentes neles e seus fundamentos jurídicos. Leem apenas notícias de jornalistas sem conhecimento básico processual e constitucional. Segunda a impressa, “promotor decide”, “juiz dá parecer”, citação em delação premiada é prova e por aí vai. Ou somos coerentes ou assumimos a postura de torcedor. Nassar mostrou bem de que lado ele está.

    Golpe? Ok! Mas tenham coerência. Comecem pelo Cunha, pois a decisão que o afastou é flagrantemente inconstitucional. Mas onde estão os ´defensores do nobre deputado nessas horas?! A democracia só parece está em risco quando os “cumpanheiros” são atingidos…

    1. Coerência… palavrinha danada essa, né ?
      Quando deve-se começar a considerá-la. A partir do Cunha talvez…

      Mas, como és tão cioso das decisões judiciais, poderias nos explicar como encaixar a palavra coerência no voto de Celso de Mello (no caso Angorá), em que o mesmo teve o cuidado de elogiar o voto do colega GM (oposto ao dele) no caso da nomeação do Lula para a Casa Civil.

      “Ou somos coerentes ou assumimos a postura de torcedor.”

        1. Eu acho que essa polêmica será solucionada caso o Temer realmente coloque em prática o último pronunciamento dele. Seria ótimo se isso fosse até convertido em lei: se o sujeito tornar-se réu, ele será afastado. Isso acabaria com essa putaria e daria um pouco de segurança jurídica.

          E não confunda coerência do SFT com coerência do Celso de Mello. Gilmar Mendes é advogado do PSDB.

          1. A respeito do foro privilegiado tratado nesse artigo cujo link mandou, ele seria ótimo caso os julgamentos ocorressem em menos de 5 anos, pois decisão do STF não comporta muitos recursos. O trâmite em julgado costuma ocorrer mais rápido. Já um processo da primeira instância até o SFT costuma demandar uns 15 anos sem muito esforço (especialmente porque essa turma costuma ser patrocinada por advogados com bastante lobby nos tribunais superiores). Ou seja, a prescrição intercorrente ocorreria facilmente…

          2. Acho q a questão tem muito mais a ver com coerência no trato da lei do que com novas leis.

            De que adiantam novas leis quando o judiciario em geral e o STF em particular tem um leque de jurisprudências a serem usadas ao gosto do “freguês” ?

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