O Monólogo Amoroso (XI)

Raul senta-se calmamente diante do psiquiatra e recomeça.

Eu era muito moço e não sabia que uma separação era algo tão terrível. OK…, sim, na vez passada eu falava sobre como descobri que a Nina estava se encontrando com seu ex-namorado, é isso? Bem, um amigo me contou. Um dia, o Flávio veio cheio de dedos, dizendo que ia me contar uma coisa pela amizade que nos ligava e que eu não me irritasse. E falou claramente que a Nina entrava e saía e passava a noite no apartamento do tal de Ricardo. Minha primeira reação foi de ódio, mas acho que uma hora depois minha tristeza e desespero eram tão profundos que eu não queria voltar a conversar sobre o assunto. Enquanto estava com Flávio, perguntei duas ou três vezes se ele tinha certeza daquilo, se ele vira, se o fato se repetira, se era ela mesmo. Quis saber sobre horários e até sobre suas roupas. Não havia a menor sombra de dúvida: era ela, era ele e só se meu amigo fosse um louco de filme americano para inventar tantos detalhes. Pior: sua mãe era quem tinha visto primeiro.

O ciúme é o inferno, o ciúme é o inferno, o ciúme é o inferno. Nossa relação quase não existia mais, mas quando vi que nosso pobre relacionamento estava sob ameaça, ele tornou-se a coisa mais valiosa de minha vida. Como não me enganava a respeito da Nina – a qual mal possuíra e agora me fugia para sempre –, punha toda minha frustração sobre o afastamento que sofreria de Ana e em minha frustração e azar de ter casado com uma puta, etc. Mas o pior era o que eu sentia. O ódio que tivera dela no primeiro momento retornou contra mim sob muitas outras formas. Passei a me sentir incapaz, infeliz comigo mesmo, perdi o prazer de participar das brincadeiras no trabalho, passei a achar tudo uma idiotice. Não tinha concentração para fazer a mais simples das tarefas, o cansaço tomou conta de mim e comia o mínimo. Minha mãe notou que eu não estava bem e disse que tudo era culpa de Nina, que eu devia obrigá-la a morar comigo ou que a mandasse pedir o desquite. (Suspira). Mas eu não queria conversar sobre o que me deixava tão triste e, se conversasse, não seria com minha mãe, sempre muito alterada quando o assunto era Nina. Fui me isolando cada vez mais; imagina que até os carros passaram a ser coisas pouco importantes, assim como a família e os amigos; sentia-me burro, incapaz, azarado, inferior a todos os que conhecia.

Então, um dia, ao visitar a Ana, segui a Nina até seu quarto, uma atitude cada vez mais rara, mas que não chegava e ser uma invasão de privacidade porque aquele era supostamente “o nosso quarto”, e perguntei com voz embargada, louco de vontade de chorar – uma constante, apesar de que nunca chorava –, como nós ficaríamos. Naqueles dias, o ar de desinteresse dela por tudo o que eu dissesse era evidente, até suas brincadeiras e piadas tinham diminuído muito, ela estava vivendo livremente sua vida, mas parecia que eu precisava ouvir dela palavras ainda mais duras, aquelas que me fariam mergulhar com maior convicção ainda na minha incompetência e desespero. Ela me olhou com ar casual e respondeu que nada mudara.

— Por que isso agora? E Raul, teu humor funéreo vai acabar assustando a Ana. Tua cara não recomenda.

— É. Acho melhor tu ficar com ela. Eu me afasto por completo e tu educa ela. Mando dinheiro.

— Mas, por favor! O que está acontecendo? É o apocalipse?

— Tu sabe o que está acontecendo. Quero dizer, eu estou nesta merda e tu feliz por aí.

— Que merda, o que está acontecendo? Poderia ser mais claro? Tu está me criticando por ser ou estar ou parecer mais feliz do que tu? É isso?

— Nina, nossa situação é uma tragédia. Eu gostaria de morar contigo, temos uma filha, a chance de construir alguma coisa e tu fica por aí balançando o rabo como uma inconseqüente.

— Raul, eu não pretendo responder a tuas agressões. Acho que a única expectativa que tu deves depositar em mim é a de que eu cuide e ame nossa filha. E mais nada. Para mim, tu és um ex-namorado ou ex-marido, se um dia chegamos a tanto. É assim que tu deverias me tratar. Fui clara?

— E já que tu acha que é assim, isso te permite encontros com ex-namorados e outras putarias por aí?

O rosto dela ficou muito vermelho. O meu também. Conseguira falar. Incrivelmente, meu objetivo interno era reconquistá-la e viver uma vida confortável noutro lugar, mas tinha feito com ela o que não fazia com mais ninguém: despejei nela um pouco do que estava pensando e sofrendo, um pouco do meu enorme ressentimento. Hoje sei que virar meu caminhão de lixo em cima dela não me traria resultado nenhum, só que eu não conseguia pensar, só tinha certeza que minha vida estava sendo destruída pela única pessoa que me interessava no mundo. Pensei que a vermelhidão no rosto dela era de raiva, mas tinha mais: ela se sentira atingida por eu saber de suas escapadas. Ela falou calmamente:

— Então tu e o mundo já sabem.

— Não, acho que só eu, o Flávio e a mãe dele.

— E todas as amigas dela e os dele.

— Mas tu tens te encontrado mesmo com o tal de Ricardo?

— Sim, Raul. Eu me sinto separada de ti, apesar de tu me veres como a prometida.

— É que temos toda a possibilidade de uma vida…

— Pára com isso, Raul. Está tudo atravessado, fora do lugar. Eu sou a mulher casada que dá para outro e tu és o corno. Até o “nosso futuro” da tua imaginação é impossível. Tua família logo vai saber e eu serei tratada como uma bruxa a ser queimada.

— Eu não deixarei que aconteça isso.

— Bah, tu não tem mesmo pudor de ser patético, hein? Agora, dane-se. A culpa é minha de não ter me protegido. Me encontro com Ricardo em qualquer lugar, entende? Não fico me esgueirando.

Com a confirmação, comecei a fantasiar todo tipo de suicídio, viagens para lugares longínquos onde me estabeleceria deixando tudo para trás. Era um merda. Por meses não conversei pessoalmente com Nina. Escrevi me comprometendo a pagar para minha filha um valor que inventei e até hoje ela não me respondeu. Mas eu pagava. Era um valor decente. Quase tudo o que ganhava. Em finais de semana alternados, ia a sua casa pegar Ana e retornava para entregá-la de volta segunda pela manhã. Nada disso, mas absolutamente nada disso melhorou meu humor e minhas negativas a comentar os fatos. Meu trabalho voltou ao normal, o resto demorou muito mais ou nunca voltou ao normal. Quando minha mãe me perguntava sobre meu casamento, recebia de volta um grito dizendo que aquilo não interessava a ela, ela que fosse cuidar de sua vida. Meu pai dizia que a “véia” estava muito triste e preocupada comigo e eu o mandava à merda. Comecei a sair à noite e ia bastante com prostitutas. Parecia bem, acho, mas a nuvem em torno da minha cabeça me ameaça até hoje. Uma separação, qualquer separação, é o maior dos horrores e não desejo para ninguém. A auto-estima some. Não é assim com todo mundo?

O psiquiatra aponta para o relógio e Raul ergue-se lentamente, dizendo-lhe que seu emprego era chato, mas que não dava incomodação.

3 comments / Add your comment below

  1. Muito bom nos dar a conhecer o Raul! Espero que a terapia ajude…
    Já te falei como não gosto desse negócio de “ilustração”?
    Nada a ver, Milton! Pra quê isso?
    bj, f

  2. às vezes tenho a impressão de que o homem não nasceu para o amor ou para a glória ou para os instintos ou para o fracasso ou para qualquer coisa que o valha: o homem nasceu para o obsessão.

    gostei bastante desse monólogo amoroso. lerei os outros.

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