Notas de Concerto para a Ospa. (03/06/2023, Notas às 16h, Concerto às 17h)

Notas de Concerto para a Ospa. (03/06/2023, Notas às 16h, Concerto às 17h)

Este concerto da Ospa apresentará 3 obras, duas de compositores brasileiros e em ordem contrária à cronológica. Começa com a obra mais recente:

Harry Crowl | E a Cidade Desperta (2017)

Apesar do nome, Harry Crowl (1958) é mineiro de Belo Horizonte e é um sábio, sendo, além de compositor, musicólogo e professor.

Quando conheci E a cidade desperta, logo me veio uma associação temática com uma canção que, musicalmente, não tem nada a ver com a obra de Crowl. Falo de Samba e Amor de Chico Buarque e que inicia com os seguintes versos:

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
Escuto a correria da cidade, que arde
E apressa o dia de amanhã

(…)

OK, mas onde há pontos em comum com Crowl é neste verso aqui:

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito mais o que fazer
Escuto a correria da cidade, que alarde
Será que é tão difícil amanhecer?

Será que é tão difícil amanhecer? Pois parece. Antes de compor esta peça, Crowl havia composto outra chamada Enquanto uma grande cidade dorme. Esta é muito quieta e sossegada, o que não acontece na que vamos ouvir no Concerto de hoje da Ospa. E a cidade desperta não é quieta. Assim como também não são sossegadas as motivações do compositor. A motivação nasceu de uma tentativa do prefeito de São Paulo, parece que Kassab, de apagar alguns grafites extraordinários feitos pelo artista brasileiro Eduardo Kobra, na verdade um grande muralista. Harry Crowl ficou indignado por pensar que aqueles grafites davam humanidade ao universo cinzento de concreto armado de São Paulo. E não vou discordar dele, do compositor.

Na obra de Crowl, à medida que amanhece, uma multiplicidade de cores e sons da cidade se revelam nos mais variados matizes através dos graffiti de artistas muitas vezes anônimos. Essas manifestações espontâneas, apesar das constantes tentativas de apagamento, seguem brotando dos muros e paredes como se fossem um grito de um mundo asfixiado. E a cidade desperta… propõe um diálogo com este meio de expressão artístico e é também uma homenagem ao artista brasileiro Kobra que, com suas criações imensas e fortemente coloridas, tem levado um alívio visual para espaços esquecidos ou abandonados das grandes metrópoles pelo mundo afora.

Como disse Chico Buarque em sua canção de 1970, é difícil amanhecer — ainda mais pensando no prefeito — e Crowl o faz de forma muito afirmativa, revelando que não está ao lado dos apagadores e de quem agride a arte. A explosão de vida que a cidade revela nos detalhes daquilo que antes era apenas sombras de construções, é mostrada com forte percussão, ostinati, em um virtuosístico solo de violino e outros solos de clarinete e trompete.

Heitor Villa-Lobos | Fantasia para Saxofone, W490
I. Animé
II. Lent
III. Très animé

Embora o saxofone apareça com destaque ao longo de toda a produção de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), a Fantasia para Saxofone é a única composição de Villa que tem o instrumento como solista. A peça, escrita em 1948,  equivale a um pequeno concerto em três movimentos. Quando pensamos no saxofone na música brasileira, normalmente nos vem à mente o choro e Pixinguinha, mas a abordagem de Villa é inteiramente diversa. Na verdade, esta Fantasia poderia ser uma pequena bachiana.

Villa-Lobos conheceu o saxofonista Marcel Mule em Paris na década de 1920, quando Mule tocou saxofone em uma das obras orquestrais de Villa-Lobos. Embora tenha sido escrita e dedicada a Mule, e originalmente especificasse o saxofone soprano , o instrumento ao qual Mule foi associado, a Fantasia não foi uma obra encomendada e não há indicação de que o compositor tenha se correspondido com o saxofonista sobre a peça antes de enviar-lhe a partitura completa em dezembro de 1948. Mule, no entanto, nunca executou o trabalho. Mule disse: “A  peça não me empolgou naquela época principalmente porque era muito complicado de tocá-la no sax soprano.” Diante da relutância de Mule em tocar a obra, Villa-Lobos recorreu ao saxofonista brasileiro Waldemar Szpilman. Szpilman, no entanto, não possuía um saxofone soprano, que era o instrumento especificado por Villa-Lobos, e, como Mule, achava as notas mais altas muito arriscadas. Consequentemente, o compositor decidiu transpor a peça para um tom mais baixo e permitir o saxofone tenor como alternativa ao soprano. E é esta versão que vocês ouvirão hoje, Eu assisti a um dos ensaios e afirmo que o saxofonista Samuel Alves é esplêndido, com aquele paradoxo de ter um som forte e delicado ao mesmo tempo.  

Joseph Haydn | Sinfonia nº 104 em Ré Maior, “London”
I. Adagio – Allegro
II. Andante
III. Minuet. Allegro – Trio
IV. Finale. Spiritoso

A Sinfonia Nº 104 em ré maior, de Franz Joseph Haydn (1732-1809), foi composta nos últimos anos de vida do compositor. Em 1790, após décadas trabalhando como músico da corte para a rica família Esterházy, a família reduziu seu salário e autorizou-o a viajar. Então, o compositor aceitou uma oferta lucrativa de Johann Peter Salomon, violinista e empresário alemão, para visitar a Inglaterra e reger novas sinfonias com uma grande orquestra. As chamadas Sinfonias Londres são as de número 93 a 104, sendo que esta última é a obra final de Haydn no gênero.

A invenção do quarteto de cordas é atribuída ao austríaco Joseph Haydn, que também ajudou a formatar as sinfonias. Na verdade, ele seria o pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música

Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
Regência: Marcelo de Jesus (BRA)
Solista: Samuel Alves (saxofone – BRA)

Data: 03/06/2023 17h
Local: Casa da Ospa
Av. Borges de Medeiros, 1501 – Centro Administrativo Fernando Ferrari

10 coisas que deveriam mudar nas salas de concertos. Ou não

10 coisas que deveriam mudar nas salas de concertos. Ou não

Este post é baseado na polêmica opinião do maestro Baldur Brönnimann. Minha tradução é mais ou menos traidora. Traduttore, traditore. Os itálicos são observações minhas.

Johnny Greenwood é guitarrista do Radiohead. Ele publicou recentemente um artigo no qual opinava que a música clássica ao vivo era excludente. Era uma constatação de alguém que vinha de fora do mundo da música clássica. Ele disse que, ao longo dos anos, tem assistido — e realizado — uma série de espetáculos e que, se a música clássica quer atrair um novo público, deve pensar sobre alguns fatos de fora de sua vivência habitual.

Pensando no assunto, o maestro Brönnimann elaborou um decálogo de sugestões. Na sua opinião, sentar em uma sala de concertos e não fazer qualquer outra coisa que ouvir música por duas horas é uma grande e radical experiência. E que há muitas regras e convenções em concertos de música clássica que muitas vezes aceitamos sem discutir e que tornam a experiência de concerto clássico pior do que deveria ser.

Uma Sala de Concerto de Copenhagen | Foto: Divulgação
Sala de Concerto em Copenhagen | Foto: Divulgação

Abaixo, Brönnimann sugere alterações no ritual da música erudita (meus comentários, como já disse estão em itálico):

  1. O público deveria poder aplaudir entre andamentos: Gustav Mahler introduziu o hábito de sentar em silêncio até o final de uma peça e eu acho que, depois de cerca de 100 anos, é hora de mudar isso. Eu adoro quando as pessoas batem palmas entre os movimentos. É uma expressão espontânea de prazer e as pessoas devem se sentir livres para mostrar seus sentimentos em um concerto. Acharia estranho aplaudir nas passagens dos movimentos lentos para os rápidos. É um momento em que, quase sempre, está presente uma tensão a ser quebrada. Acho que os aplausos atrapalhariam. Mas também acho ridículo “não poder” aplaudir. Fico em cima do muro.
  2. As orquestras deveriam afinar nos bastidores: Há algo autenticamente emocionante sobre a audição de uma grande orquestra em uma grande sala. Não devemos estragar o impacto dos primeiros sons de uma peça adiantando muitos desses sons mágicos, de forma aleatória, no início de um concerto. Eles devem emergir de completo silêncio. Teríamos então que equalizar a temperatura do palco e dos camarins. A luz do palco é muito mais quente e desafina os instrumentos. Por isso é que os músicos afinam no palco. Discordo.
  3. Deveria ser permitida a utilização de celulares e dispositivos eletrônicos móveis em modo silencioso: Eu não quero dizer que se permitam fazer chamadas telefônicas, é claro, mas se, ao invés de desligar os aparelhos, as pessoas pudessem tuitar, facebookear, tirar fotos ou gravar em silêncio. Se o espectador compra ingresso, deve ter o direito de registrar o que vê e partilhar com os amigos. Concordo.
  4. Os programas deveriam ser menos previsíveis: As orquestras devem assumir o risco e nem sempre imprimir todo o programa, mas apenas algumas obras-chave. Deve haver um elemento de imprevisibilidade sobre um concerto. Algo inesperado. A surpresa deve vir é da interpretação individual ou coletiva da peça. Discordo.
  5. Deveria ser permitido levar as bebidas para a sala de concerto: Eu gosto de me sentir relaxado em um concerto, ter tempo e não ter que esvaziar o copo rapidamente no intervalo. É uma boa, desde que fossem servidos cálices de vinho ou bebidas em copos. Nada de abrir garrafas ou latinhas. A coisa seria comprara num bar lá fora. Por que não?
  6. Os músicos deveriam falar com o publico no bar ou nos bastidores: Ser capaz de fazer uma introdução oral a uma peça, cumprimentar a platéia ou assinar um programa — isso deveria ser obrigatório para todos os artistas. Pior, muitas vezes o público é impedido de ir aos bastidores depois de um concerto. Todo mundo deve poder falar com os músicos para compartilhar com eles pensamentos e opiniões. Nós não vivemos em uma torre de marfim e devemos falar com as pessoas que amam a música tanto quanto nós fazemos. Seria uma forma interessante de precisamente aproximar a música do espectadores sem perturbar o essencial. Concordo.
  7. As orquestras não deveriam atuar com fraques: Essa é velha. Claro que camisas coloridas seria um exagero, mas os fraques com cauda também são. Há opções muito elegantes de ternos. Uma forma de vestir menos formal ajudaria a reduzir a distância. Concordo.
  8. Os concertos deveriam ser mais fáceis para as famílias: As pessoas com crianças pequenas também querem ir a concertos, mas eles têm que ser capazes de deixar a sala de forma rápida e silenciosa quando os pequenos cansam. As salas de concerto deveriam pensar nas famílias com crianças e dar-lhes assentos prioritários perto das saídas. Os bebês choram e ninguém se importa muito, mas os pais devem ter a possibilidade de irem e virem, porque alguns concertos são longos até para os adultos. Complicado de realizar, não? Discordo. Que chorem à vontade.
  9. As salas de concerto deveriam utilizar tecnologia de ponta: Todos gostariam de ver o artista de perto. Então por que as salas de concertos não usam telas para mostrar detalhes de uma performance? Por que não usamos  amplificação para as salas de concerto de acústica deficiente? Há um purismo desnecessário quanto a tecnologia em salas de concerto. Como artistas criativos, devemos estar na vanguarda do uso da tecnologia de forma criativa. Concordo com reservas. Nada de amplificação, por favor. Amplificação = bagaceirice.
  10. Cada programa deveria conter pelo menos uma obra contemporânea: Temos que voltar a ligar o repertório clássico com nossas vidas contemporâneas, precisamos tocar a música do nosso tempo. Isso não quer dizer que não devemos tocar as obras-primas históricas, mas a música clássica tornou-se uma espécie de “fetichização do passado”, como Alex Ross escreveu em um ótimo artigo sobre a influência de Beethoven na música clássica. Programação das grandes obras do passado ao lado da música do nosso tempo vai lançar uma luz diferente sobre o passado, bem como sobre o presente musical. Nossa salas são museus sonoros. Concordo, a menos que o concerto seja de uma orquestra de época, com violas da gamba, bandurras, vielas de roda, etc. Instrumentos medievais não devem tocar música moderna, é óbvio.