Notas de Concerto — 23 de setembro de 2023

Notas de Concerto — 23 de setembro de 2023

O concerto de hoje reúne três notáveis exemplos do período romântico do século XIX. As três obras foram escritas num período que compreende menos de 30 anos.

Giuseppe Verdi | Abertura “A Força do Destino”

Como primeira peça, temos a Abertura da ópera A Força do Destino (1862), de Verdi. A ópera – que é excelente — é bem típica da época e atualmente poderia ser um drama televisivo daqueles bem SBT. Aliás, esse título não costuma dar muito certo. Só deu certo na grande obra de Verdi.

A Força do Destino já foi novela mexicana…

Já foi novela turca…

Já foi filme norte-americano…

Mas o título original deste último era An Officer and a Gentleman.

E é uma grande obra de arte de Verdi.

Leonora, ou Dona Leonora, ama e é correspondida por Dom Álvaro, um jovem de origem nobre mas de sangue mestiço. Provavelmente trata-se de um peruano… Então, tal amor puro é desfeito pela família da moça, pois o pai e o irmão dela não admitem o casamento. Em determinada cena do primeiro ato, durante uma discussão onde as partes sacam suas armas, uma arma dispara quando o apaixonado atira seu revólver longe em sinal de rendição, acertando o pai de Leonora, que a amaldiçoa e morre. A moça vai para um convento. Pensa que Don Alvaro morreu ou voltou para a América. Donna Leonora pede asilo num convento que, segundo a regra, não podia acolher uma mulher. Há um lindo coral de frades aceitando Leonora no mosteiro. Por ordem do Padre guardião, os frades terão de protegê-la porque a sua vida está em perigo, já que seu irmão Don Carlo está determinado a matá-la para lavar a honra. A mulher ficará hospedada no convento e isso deve ser mantido em segredo.

Tudo é extremo: além do irmão que deseja vingar o pai, há personagens mudando de nome, homens disfarçados, há o irmão de Leonora encontrando-se com um Dom Alvaro disfarçado no exército, e os dois se tornando amigos sem saber quem é quem. Um se fere numa batalha e outro o salva, há mulheres escondidas sob trajes masculinos e final trágico, acabando tudo em sangue.

Acham que eu ridicularizei Verdi?

Não!

Quando recebeu o convite para escrever uma ópera para São Petersburgo, Verdi começou por propor como tema “Ruy Blas” de Victor Hugo, o que não agradou à censura do czar Alexandre II que o considerou pouco respeitoso para com a monarquia. O compositor então foi fazer o de sempre, foi buscar um melodrama de 1835 de Angelo Perez de Saavedra que obtivera algum sucesso quando da estreia em Teatro. A qualidade do enredo era medíocre, mas estava recheado de situações dramáticas, o que agradou ao compositor. Aliás, em 1861, Verdi já era um homem com grande experiência do ofício, e sabia que nem sempre as melhores peças de teatro davam uma boa ópera, já que, em princípio, as grandes obras teatrais se bastam a si próprias, e que o elemento “música” se revela frequentemente como um elemento redutor. Saavedra iria funcionar. Entre junho e novembro, Verdi escreveu a música. A estreia teve lugar um ano mais tarde, no dia 10 de novembro, no Teatro Imperial de São Petersburgo.

Hitchcock também criava seus filmes da literatura popular, nunca de grandes livros. Não esqueçam disso. Ele fazia questão que os livros fossem bem ruins. Sério!

Bem, a Ospa tocará hoje a Abertura de A Força do Destino. Como é habitualmente uma Abertura de ópera romântica?

Ora, a Abertura de A Força do Destino, por exemplo, está perfeitamente identificada com o clima psicológico daquilo que preludia. É uma abertura fortemente dramática, formando o famoso pot-pourri, ou seja, é uma peça musical onde se condensam os principais temas da ópera, como o do Destino, o de amor de Leonor, etc. É uma espécie de síntese prévia da obra que virá. Desse gênero são as aberturas de Wagner, de Carlos Gomes e, é claro, de Verdi.

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Franz Liszt | Concerto para Piano nº 1, S. 124
I – Allegro maestoso
II – Quasi adagio
III – Allegretto vivace
IV – Allegro marziale animato

Já o Concerto para Piano Nº 1, de Liszt, foi apresentado pela primeira vez em 1855. Franz Liszt compôs seu Concerto ao longo de um período de 26 anos. O concerto é estruturado em quatro movimentos e tem uma duração de aproximadamente 20 minutos. Estreou em Weimar no dia 17 de fevereiro de 1855, com Liszt ao piano e Hector Berlioz regendo.

Liszt foi o primeiro artista a ser recebido aos gritos de admiradora(e)s à beira de desmaiarem. Era um ídolo e os fãs colecionavam lembranças suas a qualquer custo, valendo desde autógrafos até cabelos, lenços, luvas, pontas de charuto, etc. Mas não era apenas carisma, sobrava talento ao compositor, como este concerto demonstrará. Lisztomania ou febre de Liszt foi o intenso frenesi motivado pelo compositor húngaro durante suas apresentações. A primeira vez em que se registrou tal frenesi ocorreu em Berlim em 1841, tendo o termo sido criado mais tarde por Heinrich Heine num folhetim escrito por ele em 25 de abril de 1844, ao discutir a temporada de concertos daquele ano em Paris. A Lisztomania foi caracterizada por níveis elevados de histeria de fãs, comparável ao tratamento dado às celebridades da música na atualidade – mas em um tempo não conhecido por tal agitação musical.

O Concerto para Piano Nº 1 de Liszt, é descendente direto do Concerto Imperador, o Nº 5 de Beethoven, no que diz respeito à maneira como o piano-solista se relaciona com a orquestra, com muita bravura. Aparenta-se com Paganini pelo brilho de super-virtuosismo da parte solo. Mas Liszt propõe, com esta obra, uma maneira totalmente inovadora de Concerto. Ele afasta-se totalmente da forma clássica mozartiana (dos três movimentos) e cria uma espécie de Poema Sinfônico — sua especialidade — ininterrupto tendo o piano como líder a conduzir seus 4 movimentos. Foi moderníssimo para a época, tanto na parte do piano quanto na orquestra. Vocês vão notar a pouca participação da orquestra nesta peça. Ela troveja e abre espaço aos solos do piano, apenas o acompanhando discretamente. Depois, troveja novamente. Se pensamos que, mais tardiamente no século XIX, um Brahms e um Tchaikovsky continuaram adotando o esquema clássico vivo-lento-vivo, chegaremos à conclusão de que Liszt fora de tal forma original que seus dois Concertos permanecem como caso único na literatura pianística do Romantismo.

Como disse, temos 4 movimentos encadeados sem interrupção, como uma grande Fantasia ou Rapsódia — lembrem da Rhapsody in blue — ou um Poema Sinfônico.

Henri Lehmann (1814-1882). “Franz Liszt (1811-1886), compositor e pianista húngaro (1839)”. Paris, musée Carnavalet.

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Felix Mendelssohn | Sinfonia nº 4 em Lá Maior, “Italiana”, Op. 90
I – Allegro vivace
II – Andante con moto
III – Con moto moderato
IV – Saltarello. Presto

O que há em comum entre Goethe, Thomas Mann, Hesse, Mozart, Keats, Byron, Hemingway, Stendhal e, bem, Mendelssohn? Ora, eles foram à Itália e ficaram boquiabertos com tanta arte, luminosidade e alegria.

A estreia da Sinfonia Nº 4, “Italiana”, de Mendelssohn, ocorreu em 1833 e nasceu a partir do encanto de uma viagem do alemão ao sul ensolarado, conhecendo as obras de arte, a beleza natural e a contagiante alegria dos italianos. Aliás, nos séculos XVIII e XIX existia o Grand Tour, um percurso pela Europa – com a Itália como destino prioritário – que constituía uma viagem ao coração da história através do patrimônio cultural e artístico da bota. Tudo nasceu com Goethe em seu livro Viagem à Itália. Segundo ele, essa fora a etapa mais estimulante e feliz da sua vida. Stendhal foi outro que se disse esmagado por tamanha beleza. Isto chegou ao século XX. Hesse falava com inveja do sul ensolarado, assim como Thomas Mann.

Nos primeiros meses do ano de 1831, Mendelssohn faz menção, em várias cartas, à sinfonia que estava compondo e que desejava fosse uma obra alegre. Mas ele sentia que só conseguiria terminá-la após visitar Nápoles, cidade onde seria capaz de absorver, por completo, o espírito italiano. Ao que tudo indica, ele não conseguiu terminá-la na Itália, porque, em uma carta à irmã, de 21 de janeiro de 1832, de Paris, deixa claro haver abandonado a composição da Sinfonia Italiana para terminar a abertura da cantata Die erste Walpurgisnacht, op. 60. Constantemente insatisfeito com a obra, Mendelssohn fez correções até abril de 1833, quando a levou consigo para a estreia, em Londres, no dia 13 de maio, com a Sociedade Filarmônica de Londres, sob sua direção. Embora a Sinfonia tenha sido recebida com grande entusiasmo, Mendelssohn, alguns anos mais tarde, tirou-a de circulação para revisões e nunca se viu satisfeito com o resultado. A obra só foi editada após a sua morte.

O primeiro movimento é extremamente alegre. Sua natureza festiva é apresentada logo no início. O segundo movimento, de acordo com as cartas de Mendelssohn à irmã, foi o último a ser composto. Seu caráter introspectivo contrasta com a atmosfera brilhante do primeiro movimento. O terceiro movimento é uma espécie de minueto. Doce e bucólico, carrega certa nostalgia da época em que essa dança figurava nas sinfonias vienenses. O quarto movimento é um saltarello, dança leve e alegre, típica da Itália, dançada por casais, de mãos dadas, realizando uma série de pequenos saltos (do italiano saltare). O saltarello da Sinfonia Nº 4, extremamente dinâmico, é de uma energia incrível, do início ao fim.

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Apresentação: Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
Direção Artística: Evandro Matté
Regente: Manuel Coves (ESP)
Solista: Valentin Magyar (piano – HUN)

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Fontes:
Resumo da Ópera
Guia dos Clássicos
Querido Clássico
Orquestra Filarmônica de Minas Gerais

 

Notas de Concerto para a Ospa. (03/06/2023, Notas às 16h, Concerto às 17h)

Notas de Concerto para a Ospa. (03/06/2023, Notas às 16h, Concerto às 17h)

Este concerto da Ospa apresentará 3 obras, duas de compositores brasileiros e em ordem contrária à cronológica. Começa com a obra mais recente:

Harry Crowl | E a Cidade Desperta (2017)

Apesar do nome, Harry Crowl (1958) é mineiro de Belo Horizonte e é um sábio, sendo, além de compositor, musicólogo e professor.

Quando conheci E a cidade desperta, logo me veio uma associação temática com uma canção que, musicalmente, não tem nada a ver com a obra de Crowl. Falo de Samba e Amor de Chico Buarque e que inicia com os seguintes versos:

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
Escuto a correria da cidade, que arde
E apressa o dia de amanhã

(…)

OK, mas onde há pontos em comum com Crowl é neste verso aqui:

Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito mais o que fazer
Escuto a correria da cidade, que alarde
Será que é tão difícil amanhecer?

Será que é tão difícil amanhecer? Pois parece. Antes de compor esta peça, Crowl havia composto outra chamada Enquanto uma grande cidade dorme. Esta é muito quieta e sossegada, o que não acontece na que vamos ouvir no Concerto de hoje da Ospa. E a cidade desperta não é quieta. Assim como também não são sossegadas as motivações do compositor. A motivação nasceu de uma tentativa do prefeito de São Paulo, parece que Kassab, de apagar alguns grafites extraordinários feitos pelo artista brasileiro Eduardo Kobra, na verdade um grande muralista. Harry Crowl ficou indignado por pensar que aqueles grafites davam humanidade ao universo cinzento de concreto armado de São Paulo. E não vou discordar dele, do compositor.

Na obra de Crowl, à medida que amanhece, uma multiplicidade de cores e sons da cidade se revelam nos mais variados matizes através dos graffiti de artistas muitas vezes anônimos. Essas manifestações espontâneas, apesar das constantes tentativas de apagamento, seguem brotando dos muros e paredes como se fossem um grito de um mundo asfixiado. E a cidade desperta… propõe um diálogo com este meio de expressão artístico e é também uma homenagem ao artista brasileiro Kobra que, com suas criações imensas e fortemente coloridas, tem levado um alívio visual para espaços esquecidos ou abandonados das grandes metrópoles pelo mundo afora.

Como disse Chico Buarque em sua canção de 1970, é difícil amanhecer — ainda mais pensando no prefeito — e Crowl o faz de forma muito afirmativa, revelando que não está ao lado dos apagadores e de quem agride a arte. A explosão de vida que a cidade revela nos detalhes daquilo que antes era apenas sombras de construções, é mostrada com forte percussão, ostinati, em um virtuosístico solo de violino e outros solos de clarinete e trompete.

Heitor Villa-Lobos | Fantasia para Saxofone, W490
I. Animé
II. Lent
III. Très animé

Embora o saxofone apareça com destaque ao longo de toda a produção de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), a Fantasia para Saxofone é a única composição de Villa que tem o instrumento como solista. A peça, escrita em 1948,  equivale a um pequeno concerto em três movimentos. Quando pensamos no saxofone na música brasileira, normalmente nos vem à mente o choro e Pixinguinha, mas a abordagem de Villa é inteiramente diversa. Na verdade, esta Fantasia poderia ser uma pequena bachiana.

Villa-Lobos conheceu o saxofonista Marcel Mule em Paris na década de 1920, quando Mule tocou saxofone em uma das obras orquestrais de Villa-Lobos. Embora tenha sido escrita e dedicada a Mule, e originalmente especificasse o saxofone soprano , o instrumento ao qual Mule foi associado, a Fantasia não foi uma obra encomendada e não há indicação de que o compositor tenha se correspondido com o saxofonista sobre a peça antes de enviar-lhe a partitura completa em dezembro de 1948. Mule, no entanto, nunca executou o trabalho. Mule disse: “A  peça não me empolgou naquela época principalmente porque era muito complicado de tocá-la no sax soprano.” Diante da relutância de Mule em tocar a obra, Villa-Lobos recorreu ao saxofonista brasileiro Waldemar Szpilman. Szpilman, no entanto, não possuía um saxofone soprano, que era o instrumento especificado por Villa-Lobos, e, como Mule, achava as notas mais altas muito arriscadas. Consequentemente, o compositor decidiu transpor a peça para um tom mais baixo e permitir o saxofone tenor como alternativa ao soprano. E é esta versão que vocês ouvirão hoje, Eu assisti a um dos ensaios e afirmo que o saxofonista Samuel Alves é esplêndido, com aquele paradoxo de ter um som forte e delicado ao mesmo tempo.  

Joseph Haydn | Sinfonia nº 104 em Ré Maior, “London”
I. Adagio – Allegro
II. Andante
III. Minuet. Allegro – Trio
IV. Finale. Spiritoso

A Sinfonia Nº 104 em ré maior, de Franz Joseph Haydn (1732-1809), foi composta nos últimos anos de vida do compositor. Em 1790, após décadas trabalhando como músico da corte para a rica família Esterházy, a família reduziu seu salário e autorizou-o a viajar. Então, o compositor aceitou uma oferta lucrativa de Johann Peter Salomon, violinista e empresário alemão, para visitar a Inglaterra e reger novas sinfonias com uma grande orquestra. As chamadas Sinfonias Londres são as de número 93 a 104, sendo que esta última é a obra final de Haydn no gênero.

A invenção do quarteto de cordas é atribuída ao austríaco Joseph Haydn, que também ajudou a formatar as sinfonias. Na verdade, ele seria o pai da sinfonia. Ao contrário do normal, ninguém soube quem foi sua mãe. Haydn decidiu que as sinfonias deviam ter princípio, meio e fim, primeiros movimentos nas sonatas, nas missas e nos trios. Beethoven, em seu estilo grosseiro, desconsiderou e estragou esse belo modelo convencional.

O sentimento geral é de que Haydn podia ser tão bom quanto Mozart se não tivesse sido tão incuravelmente feliz durante a vida. Esse espírito de contentamento insinuou-se por toda sua música e diluiu-se. As últimas sinfonias foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo, e a sombra do contrato que pairava sobre ele acrescentou-lhe aquela pitadinha de desgraça que tanto lhe faltara antes. Talvez somente um homem verdadeiramente sem coração poderia ter composto algo tão assombrosamente feliz quanto o final da Sinfonia Nº 88.

Existem muitas e muitas sinfonias que praticamente não são tocadas e que você pode considerar suas favoritas, mas o excelente comentário sobre Haydn é afirmar que o melhor de suas músicas foram as missas — e não haverá necessidade de falar sobre isso.

Peter Gammond — Manual do Blefador: Música

Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
Regência: Marcelo de Jesus (BRA)
Solista: Samuel Alves (saxofone – BRA)

Data: 03/06/2023 17h
Local: Casa da Ospa
Av. Borges de Medeiros, 1501 – Centro Administrativo Fernando Ferrari

A Ospa dá seu primeiro (e ótimo) concerto de 2023. E músicos fazem protesto

A Ospa dá seu primeiro (e ótimo) concerto de 2023. E músicos fazem protesto

O primeiro concerto da Ospa deste ano foi extremamente promissor. Casa lotada e a orquestra tocando realmente muito bem. Sem exagero, talvez o concerto de ontem tenha mostrado a melhor Ospa que vi nos últimos anos.

Tudo está puxando a qualidade da orquestra para cima: a presença dos novos concursados, a atuação do maestro Evandro Matté, a necessidade de se mostrar altamente profissional mesmo sem o reajuste do valor da manutenção dos instrumentos desde 2012. Sabem que os instrumentos são de propriedade dos músicos, assim como a obrigação de mantê-los? Sabem que tudo é em dólares e euros?

Antes do concerto, houve a leitura de uma carta muito madura e digna cobrando o estado. Foi aplaudida de pé pelo público presente na Casa da Ospa, mas não apareceu na transmissão pelo YouTube, me contaram.

Voltando ao concerto, digo que aquilo que me entrou pelos ouvidos ontem foi sensacional. O desempenho em “Um Americano em ParisUm Americano em Paris” não foi nada esquecível. As duas obras de Villa-Lobos, idem.

Há coisas diferentes na programação deste ano. A Sinfonia Singular de Berwald é uma delas. Finalmente, teremos Haydn de volta, apesar de que poderíamos ter mais do que apenas a 104. Também virá a raramente executada Sinfonia Nº 1 de Shostakovich, que é linda. Teremos também a 5ª e a 9ª do compositor. Idem para o Concerto para Orquestra de Bartók e o Concerto para Piano Nª 1 de Brahms. Tem também a Sinfonia Nº 1 de Mahler. Mas não tem Bruckner, o que é lamentável. Mas fazer o quê? Fica pra 2024…

Vida longa a esta grande orquestra!

Obs.: a foto foi roubada de Max Uriarte.

Nesta quarta (14/12), temos Mozart e Khachaturian gratuitos e de alto nível no Theatro São Pedro

Nesta quarta (14/12), temos Mozart e Khachaturian gratuitos e de alto nível no Theatro São Pedro

Nesta quarta-feira (14/12), às 12h30, teremos um recital muito especial e gratuito no Foyer Nobre do Theatro São Pedro, em Porto Alegre. O clarinetista Samuel Oliveira, a violinista Elena Romanov e o pianista André Carrara interpretarão o Kegelstatt Trio, K. 498, de Wolfgang Amadeus Mozart e o Trio para Clarinete, Violino e Piano, de Aram Khachaturian. Os três músicos são professores da Escola de Música da Ospa e membros da Orquestra.

As obras para clarinete de Mozart foram escritas para seu amigo clarinetista Anton Stadler e não foi diferente neste Trio K. 498. Nas primeiras execuções caseiras da obra, Franziska Jacquin tocava a parte do piano, o amigo Stadler tocava o clarinete e o próprio Mozart a viola, que era seu instrumento favorito para música de câmara. Para o recital de amanhã, Elena transcreveu a parte da viola para o violino.

Há algumas surpresas nesta obra. O primeiro movimento não é o tradicional Allegro, mas um Andante. O Minueto que o segue tem uma forma nada comum, porque o trio inserido ganha vida própria. Mozart deve ter ficado fascinado com as possibilidades do tema do trio e o desenvolve bastante, com grande poder expressivo. O clarinete apresenta o tema do Rondó final. A música “voa” para a conclusão de uma das melhores e menos conhecidas obras de câmara de Mozart.

Existe uma velha história de que Mozart teria escrito o Trio enquanto jogava boliche, daí o nome Kegelstatt. O fato se aplicaria mais para os Duetos para Trompas, K. 487, compostos uma semana antes. Mas nunca se sabe… No caso dos Duetos, Mozart realmente escreveu no manuscrito enquanto jogava boliche.

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Aram Khachaturian é geralmente celebrado como o principal compositor armênio do século XX, fazendo a junção da música clássica européia com elementos marcantes da música folclórica de seu país. Excelente maestro e professor, Khachaturian é lembrado hoje principalmente por sua música orquestral que compreende sinfonias, concertos, música para balé e filmes. Ele nasceu e foi criado em Tbilisi, Geórgia (então parte do império russo). Aos dezessete anos mudou-se para Moscou para buscar uma educação superior, primeiro em biologia, depois em performance de violoncelo e finalmente composição. Após anos de estudo e prática, Khachaturian alcançaria uma reputação internacional atraindo elogios de Prokofiev e Shostakovich, que, como o próprio Khachturian, ganhou prêmios e censuras fulminantes do estado soviético.

Embora tenha escrito pouca música de câmara, em 1932 Khachaturian compôs um maravilhoso trio em três movimentos para clarinete, violino e piano. Este é magistral e único, uma mostra perfeita da mistura de elementos folclóricos clássicos e exóticos de Khachaturian, particularmente enfatizados pela instrumentação colorida.

O primeiro movimento cujo título é Andante con dolore, con molto espressione, imediatamente evoca um novo mundo sonoro. Aqui e ao longo do trio, você ouve melodias ondulantes que evocam cantos emotivos e improvisados. O segundo movimento celebra a dança. O final mais moderado é um tema e variações baseadas em uma melodia folclórica uzbeque.

Não percam!

Notas de Concerto (III): Borodin: Danças Polovetsianas (da ópera “Príncipe Igor”)

Borodin, Alexander (1833 – 1887): Danças Polovetsianas (ópera “Príncipe Igor”)

E lá vamos nós explicar mais um título! Quem diabos são os polovetsianos? O povo Cuman era também conhecido como Polovetsiano nos paises estavos orientais e pelos poloneses. Polovtsy significa “pálido, amarelo claro, loiro”. Eles eram um povo nômade turco. Após a invasão mongol em 1237, muitos buscaram asilo no Reino da Hungria. Eles habitavam uma área instável ao norte do Mar Negro e ao longo do rio Volga, mais conhecida como Cumânia. Eram guerreiros nômades ferozes, numerosos, culturalmente sofisticados e militarmente poderosos. A língua cumana é uma das que deu origem à atual língua turca.

A Ásia em 1200

Príncipe Igor é uma ópera de Aleksandr Borodin, escrita em quatro atos. O libreto foi adaptado pelo compositor a partir de uma epopeia do séc. XII (cuja autenticidade não tem consenso no meio acadêmico) – Canção da Campanha de Igor – que relata as lutas entre um príncipe russo e os polovetsianos, em 1185. A ópera foi deixada inacabada em razão da morte prematura do compositor em 1887 e foi concluída por Nikolai Rimsky-Korsakov e Alexander Glazunov. A estreia (póstuma) teve lugar em São Petersburgo, no teatro Mariinsky, em 4 de novembro de 1890.

Químico de reputação internacional, professor da Academia Militar de São Petersburgo, Alexander Borodin é hoje mais conhecido como compositor, apesar de esta atividade ter sido afetada pela sua carreira acadêmica.

As Danças Polovetsianas são uma das seções mais conhecidas de O Príncipe Igor, e encerram o 2º ato. A composição desta seção ocorreu em 1875 e ela foi estreada isoladamente em 1879. As Danças ocorrem num momento da ópera em que o protagonista, o Príncipe Igor, está preso no acampamento do chefe dos polovtsianos, Khan Kontchak, que o presenteia com um espetáculo em admiração pela sua valentia. O filho de Igor, Vladimir, também prisioneiro, está apaixonado pela filha de Kontchak, e este sentimento está subjacente no clima sensual da música inicial. Tal sensualidade ecoou na Broadway. O musical Kismet (1953), mais exatamente na canção Stranger in Paradise, usa a melodia de Borodin. Aliás, a música fez enorme sucesso na voz de Tony Bennet.

Borodin não utiliza a palavra sensual na partitura, mas manda a orquestra tocar de forma deslizante… Sim, a palavra deslizante está escrita na partitura logo no início, na Dança das Donzelas. Já a Dança dos Homens é caracterizada como ‘selvagem’ na partitura, seguindo-se a Dança Geral e a Dança dos Meninos. Todas estas seções vão sendo depois alternadas e revisitadas, num crescendo de energia que desemboca no clímax final.

As “Danças Polovetsianas” são o principal destaque principal da ópera e ocorrem ao final do segundo ato. Este trecho costuma ser apresentado em forma de concerto ou como balé por diversos teatros do mundo. O libreto é tipicamente de ópera, cheio de reviravoltas e situações difíceis de explicar. Conta que o Príncipe Igor e seu filho Vladimir lideraram um ataque aos Polovetsianos no século XII, tomaram uma tunda e acabaram prisioneiros. Porém, são tratados como nobres, com luxos e belas mulheres. Em admiração à coragem dos prisioneiros, o chefe Khan Kontchak resolve dar uma demo da cultura polovestsiana. Igor e Vladimir assistem boquiabertos às “Danças Polovetsianas”. Na ópera, depois, Igor arma uma confusão e consegue fugir, votando para a Rússia enquanto o filho fica por lá, casado com a bela filha do líder polovestsiano. Nada como o amor.

Apresentação: Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA)
Quando: 01/10/2022 às 17h
Regência: Manfredo Schmiedt
Solistas: Leonardo Winter (flauta piccolo)
Direção Artística: Evandro Matté
Participação Especial: Coro Sinfônico da OSPA

Abaixo, uma apresentação das Danças, no Mariinsky, com a orquestra do teatro e Gergiev no comando:

Notas de Concerto (II): Ernani Aguiar: Concertino para Piccolo e Cordas

Notas de Concerto (II): Ernani Aguiar: Concertino para Piccolo e Cordas

Aguiar, Ernani (1950 –): Concertino para Piccolo e Cordas
1 Allegro ma non troppo
2 Calmo
3 Choro

Ernani-Aguiar (foto de Ana Laura Freitas)

Se na Patética temos profundidade e variações de humores, aqui predomina a alegria e o popular, o que não é sinônimo de superficialidade, mas é outra coisa. Ernani Aguiar é um compositor carioca que vive em Ouro Preto e este seu Concertino já ganhou diversas gravações internacionais. Aliás, o compositor Ernani tem mais de 70 CDs gravados com obras suas, além de suas obras já terem sido interpretadas em mais de 64 países. O Salmo 150 é a peça mais famosa e ele se orgulha de ser o maestro campeão de Música Colonial Brasileira.

Ernani Aguiar também é pesquisador e professor de regência orquestral na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Estudou com Guerra-Peixe.

Abaixo, copio um texto do solista Leonardo Winter sobre o Concertino para flautim (piccolo) e orquestra de cordas (2008) de Ernani Aguiar que nos foi enviado:

Composto em 2008, o Concertino para flautim e orquestra de cordas foi dedicado para o virtuose flautista italiano Raffaele Trevisani. O flautim (piccolo, flauta piccolo, kleine flöte, ou ottavino), com sua sonoridade característica e inconfundível, é o menor instrumento da orquestra e apresenta a tessitura mais aguda dos instrumentos de sopro. Graças à sua sonoridade ímpar e diferenciada, o instrumento tem sido muito utilizado em orquestras e em música de câmara bem como em peças solos. Atualmente o instrumento tem sido redescoberto, explorando sua característica expressiva e timbres marcantes através numerosas composições.

Com três movimentos seguindo a forma concerto tradicional (rápido- lento -rápido), o Concertino do compositor carioca Ernani Aguiar tem duração de aproximadamente treze minutos. O primeiro movimento, em forma ABA’BA, é um movimento vivaz, rítmico e com grande virtuosidade instrumental: o solista apresenta um motivo gerador com duas semi-colcheias e semínima pontuada em trinados que perpassa o movimento através modificações rítmicas e melódicas. O segundo tema, de caráter contrastante, apresenta diálogos entre o solista e os violoncelos em colcheias e em dinâmica piano.

O segundo movimento é um movimento lento e cantábile com atmosfera seresteira e onde o flautim demonstra toda sua expressividade em longas linhas melódicas.

O terceiro movimento é um Choro, um dos gêneros musicais mais populares do Brasil. De caráter leve e galhofeiro, é um movimento divertido e rítmico onde o solista dialoga com uma linha melódica descendente nos baixos que remetem ao violão de sete cordas, (realizados pelos violoncelos e contrabaixos). O final é rápido e virtuosístico, encerrando o Concertino de forma brilhante.

Abaixo, o Concertino com o solista Leonardo Winter e a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) com regência de Ubiratã Rodrigues. Gravado ao vivo na Igreja da Reconciliação em Porto Alegre, em novembro de 2017. Sim, aquele bebê devia ser um amor, mas não precisava, né?

Apresentação: Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA)
Quando: 01/10/2022 às 17h
Regência: Manfredo Schmiedt
Solistas: Leonardo Winter (flauta piccolo)
Direção Artística: Evandro Matté
Participação Especial: Coro Sinfônico da OSPA

Notas de Concerto (I): Tchaikovsky: Sinfonia Nº 6, Op. 74, “Patética”

Notas de Concerto (I): Tchaikovsky: Sinfonia Nº 6, Op. 74, “Patética”

Tchaikovsky, Pyotr Ilyich (1840 – 1893): Sinfonia Nº 6, Op. 74 em Si menor “Patética”
I. Adagio – Allegro non troppo
II. Allegro con grazia
III. Allegro molto vivace
IV. Finale – Adagio lamentoso

A Sinfonia N° 6 de Tchaikovsky, Op. 74, também conhecida como Pathétique ou Patética, foi composta em 1893, tendo sido a última obra do compositor. Também foi a última obra que ele regeu, precisamente na estreia da mesma em São Petersburgo em dia 28 de outubro de 1893, poucos dias antes da sua morte. Por influência da língua inglesa, hoje, no Brasil, a palavra Patético significa digno de pena, mas não pensem que isto sirva à Sinfonia Nº 6 de Tchaikovsky. Ele chamou a obra de Pathétique, em francês. Só que, em francês, pathétique significa comovente, tocante, pungente, perturbador, emocionante, eloquente, trágico, dramático. O título da sinfonia em língua russa, Патетическая (Pateticheskaya) significa também “apaixonado” ou “emocional”, mas é uma palavra que também refletiria um toque de sofrimento. Tchaikovsky considerou chamar a sinfonia de Программная (Programmanaya ou “Uma Sinfonia Programática”), mas concluiu que isso encorajaria a curiosidade sobre o programa, que ele não queria revelar.

O que é uma música programática? Música programática, música de programa ou música descritiva é aquele tipo de música que tem por objetivo evocar ideias ou imagens extra-musicais na mente do ouvinte, representando musicalmente uma cena, imagem ou estado de ânimo. Pelo contrário, entende-se por música absoluta aquela que se aprecia por si mesma, sem nenhuma referência particular ao mundo exterior à própria música. Exemplos de música programática? Ora, as mais famosas talvez sejam As Quatro Estações de Vivaldi e a Sinfonia Pastoral de Beethoven.

Mas voltemos à questão do título da Sinfonia. A lenda diz que ela se chamou de Vida por alguns dias. Na manhã seguinte à estreia, Tchaikovsky encontrou seu irmão mais novo, Modest, sentado a mesa do café matinal, tendo em sua frente a partitura da Sinfonia. Eles queriam remetê-la ao editor Jurgenson, em Moscou, naquele mesmo dia, mas o compositor ainda não encontrara um título. Não queria designá-la apenas como N° 6 e, como disse, havia abandonado a intenção de intitulá-la como Sinfonia Programática.

— Por que “programática” se não pretendo explicar nenhum significado?

Ele pensou em “Sinfonia Trágica”, porém, este também não o agradava.

Seu irmão acabou indo embora, enquanto Piotr Ilitch permanecia indeciso. De repente, no meio da escada, ocorreu a Modest a palavra em francês Pathétique, e ele retornou para fazer a sugestão. E Tchaikovsky aprovou. Ficou Pathétique!

Imediatamente, Tchai escreveu na partitura o título pelo qual a Sinfonia ficou sendo conhecida.

Intermezzo. Minha relação com a Patética iniciou nos anos 70, quando eu tinha uns 13 anos e conheci o álbum Elegy, do Nice, grupo que Keith Emerson teve antes do Emerson, Lake & Palmer (ELP). Neste disco, eles tocaram todo o terceiro movimento da Patética numa versão para teclado, baixo e bateria. Naquela época, eu era um ouvinte contumaz da Rádio da Ufrgs, que até hoje tem programação de música erudita (ainda bem). Então, quando ouvi a Sinfonia pela primeira vez na Rádio da Ufrgs, logo pensei: “Olha só, isto é do Nice”… Tá bom.

Fim do intermezzo.

Há muitas lendas na música erudita, mas podemos quase garantir que o programa da Patética fazia referência à própria vida do compositor, que não foi muito fácil. Na verdade, Tchaikovsky se inspirou na ideia de criar uma obra com um conceito de programa que permaneceria um mistério para os ouvintes. O compositor insinuou que o programa seria subjetivo, ou seja, carregaria um código de experiências pessoais. Na mesma direção, um site russo diz que o primeiro título que Tchaikovsky deu à Sinfonia seria Vida, com 4 divisões:

  • Parte I – Reflexão sobre a vida e a morte.
  • Parte II – O mundo poético do herói lírico.
  • Parte III – O Scherzo do Mal, uma zombaria do destino ou uma celebração da vida, na qual uma pessoa é um elo extra.
  • IV – o desfecho trágico.

O primeiro movimento é um paroxismo de dor, de esperança, de alegria, de sofrimento. Tudo tem a intensidade das paixões da adolescência. Hoje, chamaríamos este movimento de bipolar… É tudo insegurança e instabilidade emocional. A valsa do segundo movimento é feliz e otimista, como se pudéssemos escapar ao destino. Sim, é uma valsa que soa como valsa, mas que possui tempo irregular (5 em vez de 3). Então, se você tentar dançá-la ou mesmo imaginar-se dançando, identificará certo desconforto por trás de toda aquela alegria. O explosivo terceiro movimento chega como uma marcha desenfreada para nos levar à euforia. A força rítmica e a orquestração brilhante convidam o público a aplaudir antes do final da Sinfonia. Ele tem aquela mola que nos faz levantar para aplaudir, só que a Sinfonia segue. E segue com tons de morte, como se Tchaikovsky antecipasse o copo de cólera que o matou dali a dias. Assim como no início da Sinfonia, o timbre do fagote domina o cenário. Como um coração, a pulsação feita pelos contrabaixos propõe a inevitabilidade da morte.

Ouvindo a Sinfonia, a mudança constante e bastante acentuada de humor, tanto entre as partes quanto dentro delas, permite-nos experimentar vários estados psicológicos, desde um sentimento absoluto de inspiração até um colapso completo. e confusão.

Se a Sinfonia Patética foi estreada em 28 de outubro de 1893, Tchaikovsky morreu em 6 de novembro, isto é, 9 dias depois. Morreu depois de beber água não fervida durante uma epidemia de cólera. Alguns falam em descuido, outros em suicídio.

Apresentação: Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA)
Quando: 01/10/2022 às 17h
Regência: Manfredo Schmiedt
Solistas: Leonardo Winter (flauta piccolo)
Direção Artística: Evandro Matté
Participação Especial: Coro Sinfônico da OSPA

Abaixo, a Patética completa com a hr-Sinfonieorchester (Frankfurt Radio Symphony Orchestra) sob a regência de Lionel Bringuier. A gravação é de um concerto realizado em 15 de novembro de 2013 na Alte Oper Frankfurt.

Brahms: Concerto Duplo para Violino e Violoncelo / Prokofiev: Sinfonia Nº 5

No próximo dia 25, às 16h, estarei apresentando o Notas de Concerto da Ospa. O Concerto será às 17h. Abaixo, algumas anotações sobre as obras do programa. 

Concerto Duplo para Violino e Violoncelo em lá menor, Op. 102, de Johannes Brahms (1887)

Johannes Brahms (1833-1897)

O belíssimo Concerto Duplo para Violino e Violoncelo de Brahms tem origem curiosa. Será verdade que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”? Pois este polêmico ditado não foi seguido por Brahms. Em 1884, o célebre violinista Joseph Joachim e sua mulher se separaram depois que ele se convenceu de que ela mantinha uma relação com o editor de Brahms, Fritz Simrock. Brahms, certo de que as suposições do violinista eram infundadas, escreveu uma carta de apoio à Amalie, a esposa, que mais adiante seria utilizada como prova no processo de divórcio que Joseph moveu contra ela. Este fato motivou um resfriamento das relações de amizade entre Joachim e Brahms, que depois foram restabelecidas quando Brahms escreveu o Concerto para Violino e Violoncelo e o enviou a Joachim para fazer as pazes. Acontece. Mas por que o violoncelo? Ora, a combinação inusitada — este é o primeiro concerto escrito para esta dupla de instrumentos — surgiu porque o violoncelista Robert Hausmann, amigo comum de Brahms e Joachim, pedira um concerto ao compositor. Então, o compositor encontrou uma forma de satisfazer ao violoncelista , ao mesmo tempo que reconquistava a amizade do violinista. Clara Schumann escreveu em seu diário: “O Concerto é uma obra de reconciliação. Joachim e Brahms falaram um com o outro novamente.”

Joseph Joachim (1831-1907) e Amalie Weiss (1839-1899)
Fritz Simrock (1837-1901)

Após completar sua Sinfonia Nº 4 em 1885 e embora tenha vivido mais doze anos depois de completá-la, Brahms produziu apenas mais uma obra orquestral, e esta não foi uma sinfonia, mas este concerto. E não era um concerto solo comum, mas sim uma composição que uniu pela primeira vez a forma de violino e violoncelo. Mozart fez os não tão díspares solistas de violino e viola quase se enfrentarem em sua Sinfonia Concertante. Beethoven fez o mesmo em seu Concerto Triplo Concerto, juntando piano, violino e violoncelo. Mas aqui nós temos realmente um casamento. O violoncelo introduz a maioria dos temas, mas há muitos trechos onde um acompanha o outro. Há menos exploração de contrastes  violino-violoncelo de Brahms, que se baseia menos na exploração das individualidades contrastantes do casal solista, mas em sua capacidade de viverem felizes juntos. O Concerto possui uma enorme riqueza de ideias que são trabalhadas com a extrema habilidade.

Robert Hausmann (1852-1909)

Brahms fez o violoncelo e o violino se fundirem em vez de projetar identidades separadas e talvez conflitantes. Há muitos uníssonos e trechos onde um instrumento acompanha o outro.  Exigências artísticas como essas são feitas ao longo do Concerto Duplo. Durante o período de testes do Concerto, tanto Joachim quanto Hausmann aconselharam o compositor sobre algumas questões técnicas de seus respectivos instrumentos.

Sinfonia Nº 5 em si bemol maior, Op. 100, de Serguei Prokofiev (1944)

Prokofiev tinha 26 anos quando da Revolução de 1917. Na época, estava resolvido a deixar a Rússia temporariamente. A decisão era pré-revolução: sua música era considerada demasiadamente experimental e ele já fora muito hostilizado quando da estreia de seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra em 1912. Em maio de 1918, o compositor mudou-se para os Estados Unidos, onde teve contato com alguns bolcheviques como Anatoly Lunacharsky. Para não ter problemas no país natal, Anatoly convenceu-o a sempre divulgar que o motivo da emigração era estritamente musical, e não uma oposição ao novo regime instalado. E era verdade, Prokofiev não era um opositor, ao menos naquela época.

Seu retorno à União Soviética foi extremamente curioso e lento. Quando Prokofiev foi morar nos Estados Unidos, fixou primeiramente residência em São Francisco. Depois, foi indo pouco a pouco para o leste, atravessou o oceano, morou em Paris, fez diversas viagens aos EUA, fixou-se nos Alpes e seguiu seu caminho para a URSS onde chegou apenas em 1935. Mas não adiantemos os fatos.

Em 1927, realizou diversas e bem sucedidas turnês pela União Soviética. No início da década de 1930, Prokofiev deu mais um passo na direção da União Soviética. Já permanecia mais em Moscou do que em Paris.

Em Londres, ele também gravou alguns de seus trabalhos para piano solo em fevereiro de 1935.

No mesmo ano, Prokofiev voltou à União Soviética para ficar. Sua família voltou somente no ano seguinte. Só foi bem recebido no aeroporto, pois, na época, a política musical soviética havia mudado; uma agência havia sido criada para vigiar os artistas e suas criações. Ela era chefiada pelo temido Andrei Alexandrovitch Jdanov, parceiro de Stálin. Ele era um ferrenho defensor do Realismo Socialista nas artes e sufocou toda uma brilhante geração de artistas através de parâmetros políticos e estéticos rígidos, principalmente a partir da década de 1940. E por que Prokofiev decidiu ficar? Por saudades.

A URSS ia se fechando. Limitando a influência externa, o país gradualmente isolou seus compositores e escritores do resto do mundo. Tentando se adaptar às novas circunstâncias, Prokofiev escreveu uma série de canções usando letras de poetas aprovados oficialmente pelo governo, além do oratório Zdravitsa (Op. 85). Na mesma época, compôs para crianças. É o período de Pedro e o Lobo, para narrador e orquestra, uma obra pedagógica e bem comportada, feita para agradar Josef Stálin e o regime. É famosíssima e até hoje é montada no mundo inteiro.

Em 1938, Prokofiev colaborou com o cineasta Sergei Eisenstein no épico Alexander Nevsky.

A Quinta de Prokofiev simplesmente não tem momentos fracos. O ritmo de relógio, tão caro ao compositor, recebe seu melhor momento ao final do segundo movimento, quando quase emperra…

A Sinfonia Nº 5 de Prokofiev tornou-se tão popular no mundo inteiro que, poucos meses após sua estreia nos EUA, um retrato do compositor apareceu na capa da revista Time. Era o ano de 1945. A Guerra Fria ainda não se instalara e os EUA e a União Soviética eram aliados contra o fascismo. A Sinfonia foi um sucesso total em todo o mundo, era a celebração musical da conclusão da guerra. Mas foi isso mesmo? Quando pesquisamos sobre esse trabalho, lemos repetidas vezes os mesmos adjetivos – “heroico” ou “alegre”. E sempre no contexto da vitória de uma nação, da vitória de um povo. Prokofiev escreveu que ela era “uma sinfonia da grandeza do espírito humano, uma canção de louvor à humanidade livre e feliz”, mas a vida do compositor não estava fácil sob os ditames do realismo socialista e talvez a obra seja mais a luta do espírito artístico individual para não ser sufocado. Porém, a grandeza desta Sinfonia supera qualquer ambiguidade. Ela pode suportar uma série de interpretações e nenhuma pode confiná-la. Uma obra-prima.

Sabemos que esta Sinfonia em quatro movimentos foi composta no verão de 1944, logo após o desembarque das tropas aliadas nas praias da Normandia e durante as investidas das forças russas em direção a Berlim. Na época de sua estreia em Moscou, em janeiro de 1945, sob a direção do compositor, disparos de artilharia comemorativos distantes fariam Prokofiev parar, braços erguidos, enquanto se preparava para começar a apresentação.

Certamente a Sinfonia abre com um tom inconfundivelmente otimista, e o clímax esmagador no final do movimento é uma crise vencida. O segundo movimento é um scherzo nervoso, um forte contraste com o triste terceiro movimento. Mas a vitória descrita no movimento final é uma conquista pessoal ou pública?

A Sinfonia Nº 4 de Brahms

A Sinfonia Nº 4 de Brahms

Fonte principal: o Symphony Guide do Guardian

Johannes Brahms (1833-1897)

No próximo sábado, dia 7 de maio, a Ospa apresentará a Sinfonia Nº 4 de Brahms. Ah, também está no programa o Concerto para Piano Besame Mucho de Schumann, interpretado pelo excelente Jean Louis Steuerman. Mas meu foco vai para o que me interessa, a Sinfonia de Brahms.

É curioso. Em vida e a contragosto, Brahms foi chamado de conservador e reacionário em contraposição a Wagner, o revolucionário. Como os wagnerianos acabaram por dominar a maior parte da crítica na virada do século, demorou muito para que a obra de Brahms fosse colocada no lugar que merecia. Um dos que mais contribuíram para mudar esse estado de coisas foi Arnold Schoenberg, que expôs, numa conferência realizada nos Estados Unidos em 1933, o quanto Brahms era inovador. Tanto Schoenberg quanto Brahms foram fiéis à essência da música de câmara e a algumas de suas técnicas de composição — como a variação contínua dos motivos e a diversidade nos modos de repetição — que permitiam criar diferentes perspectivas da mesma prosa musical.

As primeiras pessoas a ouvirem a Quarta Sinfonia de Brahms em 1885 ficaram surpresas, muito surpresas, tanto que cometeram heresias, em minha opinião… Em dois pianos, acompanhado, é claro, por outro pianista, Brahms tocou a sinfonia em um sarau para um grupo de amigos próximos e a reação foi um daqueles silêncios desconfortáveis. Eduard Hanslick comentou: “Sinto que acabei de ser espancado por duas pessoas terrivelmente inteligente”. Outro, o escritor Max Kalbeck, apareceu no apartamento de Brahms no dia seguinte para recomendar que o compositor não mostrasse a peça ao público na forma mostrada no sarau. Em vez disso, ele sugeriu manter o final como uma peça independente e substituir tanto o movimento lento quanto o scherzo. (Para nós, isso soa como rematada loucura). Tudo isso criou enormes dúvidas em Brahms… Ele não tinha mais certeza de que permitiria que a peça tivesse vida além de sua estreia. Mas a recepção altamente positiva da obra por parte do público convenceram Brahms de que a Quarta Sinfonia deveria sobreviver. Um correspondente do Neue Musik-Zeitung noticiou o “enorme sucesso” da obra considerando-a “a conquista mais poderosa” de Brahms no domínio sinfônico.

Como sugeri acima, tais fatos são difíceis de acreditar hoje em dia, quando a Quarta Sinfonia de Brahms é apresentada em programas de concerto como uma obra infalível, com suas lindas melodias, sua melancolia confortavelmente familiar e apelo aparentemente fácil para músicos, maestros e plateias. Mas tente ouvi-la com total concentração. Ouça-a com se fosse uma novidade — ou com velhos ouvidos do final século XIX… Na verdade, ela contém algumas das músicas mais sombrias e profundas de que se tem notícia. Aqueles primeiros comentaristas estavam certos — não em termos de fracasso da obra –, mas no sentido da intransigente complexidade intelectual, expressiva tragédia e refinamento dessa música. Por exemplo, o movimento final, a passacaglia, termina com uma das melodias mais soturnos da música sinfônica.

Ouvindo-a com atenção, ficamos conscientes de que esta é uma música escrita para machucar emocionalmente o ouvinte. A gente se dá conta de que é bizarra a ideia de que a Quarta Sinfonia de Brahms represente uma sessão agradável na sua sala de concertos preferida. O que você está ouvindo nela é a impossibilidade de um final feliz. Jan Swafford vai ainda mais longe, chamando a peça de “uma canção fúnebre” que “narra uma progressão de um crepúsculo para uma noite escura”. Em vez das trajetórias “da escuridão para a luz” de tantas sinfonias em tom menor do século XIX — pensem da Quinta e Nona de Beethoven, ou de todas as sinfonias em tons menores de Bruckner –, Brahms faz o caminho contrário. Para o musicólogo Reinhold Brinkmann, “os corais de Brahms na 1ª e a 3ª Sinfonias ressoam como ‘esperança’, mas, com seu final negativo, a 4ª revoga essa esperança”.

O primeiro movimento (Allegro non troppo) é em forma de sonata, mas não o compositor não se mostra tão fanático pelas regras. Por exemplo, não há repetição da exposição, a música é continuamente desdobrada. O tema de abertura é sereno e fragmentado dando-nos um leve sentimento de conflito.

O Andante Moderato é lindo, com uma sonoridade estranhamente antiga. O Allegro giocoso chegou a ser utilizado — em formato resumido — pelo grupo de rock progressivo Yes, na faixa Cans and Brahms do LP Fragile. É um scherzo a la Beethoven, transbordante de alegria.

O movimento final, a passacaglia, é notável. É formado por 30 variações (e uma coda final) na melodia que você ouve inicialmente pelos metais e sopros. Essa melodia permanece presente na textura de cada variação, como exige a forma da passacaglia. A melodia principal é uma expansão de uma chacona da Cantata BWV 150 de Bach (movimento final) e o utilização por parte de Brahms de um método de construção barroco é sua homenagem a uma era cheia de religiosidade e tragédia da história musical, que esta peça honra. Para mim, o final tem o poder arrasador de um drama shakespeareano. É uma profecia sombria que se cumpre. A viagem da 1ª Sinfonia de Brahms à sua 4ª é do otimismo ao pessimismo, da possibilidade de remodelar o mundo à resignação. Em 1885, com 50 e poucos anos, já um tanto velho para sua época, essa era uma trajetória que Brahms sentia ser sua também. No entanto, como todas as tragédias, a Quarta Sinfonia tem um poder catártico — o que é uma explicação, pelo menos, para a popularidade dessa sinfonia desesperadora, perturbadora e surpreendente.

Principais gravações

Orquestra Sinfônica de Boston / Andris Nelsons: mostrando cada detalhe, é das melhores gravações que a Quarta recebeu neste século.

Orquestra Filarmônica de Viena / Carlos Kleiber: uma das gravações mais marcantes da obra – ouça e fique preso da primeira à última nota.

Orquestra Filarmônica de Berlim / Simon Rattle: a delicada e transparente abordagem de Rattle capta nossa imaginação de uma forma muito especial.

Orchestre Révolutionnaire et Romantique / John Eliot Gardiner: a versão de Gardiner é poderosa e realizada em instrumentos de época. Um tremendo disco!

Mahler & Mendelssohn (uma contextualização para o próximo concerto da Ospa)

Mahler & Mendelssohn (uma contextualização para o próximo concerto da Ospa)

O primeiro concerto da Ospa deste ano tem um programa muito interessante. Muito interessante em parte… Sob a regência de Evandro Matté, serão interpretadas a Sinfonia Nº 1 de Gustav Mahler (1860-1911) e o Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra de Felix Mendelssohn (1809-1847). A última peça foi programada em substituição ao Concerto para Piano de Ravel. Realmente, é uma pena que o pianista de Ravel tenha ficado doente, porque o Concerto do francês é muito mais interessante do que o do alemão. Mas a Sinfonia de Mahler vale tranquilamente a ida à bela e renovada Casa da Ospa. Abaixo, alguma coisa sobre ambas as obras.

A Sinfonia Nº 1 de Mahler

Uma caricatura de Gustav Mahler conduzindo sua Sinfonia nº 1 (imagem de 1898)

A Sinfonia nº 1 em Ré Maior de Gustav Mahler, também conhecida como “Titan”, foi composta entre janeiro e março de 1888 em Leipzig, embora o trabalho utilize temas e ideias de composições anteriores. Em 1889, no programa da estreia, sob regência de Mahler, ela não foi chamada de sinfonia, mas de “Poema Sinfônico em Duas Seções”. O trabalho foi mal recebido. Sua segunda apresentação só ocorreu três anos depois em Hamburgo, após Mahler fazer grandes revisões no trabalho. Mahler seguiu revisando o trabalho até que a partitura foi finalmente publicada em 1899, dez anos depois.

Na época da composição, Mahler trabalhava como regente assistente no Teatro Municipal de Leipzig, onde trabalhou de agosto de 1886 a maio de 1888. Como dissemos, as primeiras sinfonias de Mahler muitas vezes incorporam ideias musicais baseadas em obras anteriores. O compositor escreveu a Natalie Bauer-Lechner: “Compor é como brincar com blocos de construção, onde novos edifícios são criados repetidamente, usando os mesmos blocos. De fato, esses blocos estão lá, prontos para serem usados”.

Voltemos à estreia. Ela foi um desastre: Mahler havia apresentado ao público um poema sinfônico programático, mas nenhuma nota explicava o programa. Isso causou muita confusão e aborrecimento entre o público, que ficou particularmente perplexo com a mudança extrema e dramática de humor estabelecida pela marcha fúnebre. O que é a música programática? É uma obra musical que visa contar uma história, ilustrar ideias literárias ou evocar cenas pictóricas. A música de programa foi introduzida pela primeira vez pelo compositor húngaro Franz Liszt.

Para a estreia, Mahler descreveu a obra como um “Poema Sinfônico em Duas Seções e acrescentou “Titan”. Na segunda apresentação, ela foi chamada apenas de “Poema Sinfônico” e na terceira ficou simplesmente como “Sinfonia em Ré Maior, Titan. Da quarta apresentação em diante, Mahler passou a chamá-la apenas como “Sinfonia em Ré Maior. Fim.

Após o fracasso da sinfonia na estreia em Budapeste, a obra permaneceu intocada por três anos. Mahler começou a fazer revisões da sinfonia entre janeiro e agosto de 1893. Ele regeu a nova versão da sinfonia em 27 de outubro de 1893, em Hamburgo. Essa apresentação foi um sucesso, recebendo críticas amplamente positivas.

Mahler procurando um rumo para sua Sinfonia

Mahler fez mais alterações para uma apresentação em Weimar, como parte de um festival de música organizado por Richard Strauss. A performance recebeu uma reação controversa, como evidenciado por uma carta de Mahler a um amigo: “Minha sinfonia foi recebida com furiosa oposição por alguns e com total aprovação por outros. As opiniões se chocaram de maneira divertida, nas ruas e nos salões”.

Mahler conduziu uma quarta apresentação da sinfonia em 16 de março de 1896 em Berlim. Nesta, ele removeu o segundo movimento, “Blumine”, e descartou todos os aspectos programáticos da obra.

O tal movimento “Blumine”: as três primeiras apresentações da Sinfonia Nº 1 continham um segundo movimento semelhante a uma serenata, intitulado “Andante” ou “Blumine”. Este movimento recebeu duras críticas e acabou sendo suprimido para sempre. Deste modo, a primeira sinfonia de Mahler foi tocada como uma obra de quatro movimentos desde a quarta apresentação.

(Mas esta bela gravação aqui traz o polêmico Blumine).

Então, a versão publicada da primeira sinfonia de Mahler consiste de quatro movimentos. É curioso ler o que Mahler escreveu em seu programa inicial: “No primeiro movimento somos levados por um humor dionisíaco, jubiloso, que ainda não foi quebrado ou embotado por nada.” O deletado Blumine foi descrito como um “episódio de amor”. O scherzo: “o jovem rapaz que perambula pelo mundo é muito mais forte, mais áspero e mais apto para a vida.” A marcha fúnebre: “Agora ele encontrou um fio de cabelo em sua sopa e sua refeição está estragada”. O final seria “A súbita explosão… de desespero de um coração profundamente ferido e partido”.

Pois é, melhor considerar a obra como música absoluta.

Aqui, uma excelente versão da Sinfonia Nº 1 de Mahler.

Mahler dando um rolê pelas montanhas

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O Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra de Mendelssohn

Se Mahler compôs sua Sinfonia Nº 1 em Leipzig, o mesmo ocorreu com este Concerto, mas as semelhanças param por aí. No ano de 1835, Mendelssohn aceitou o convite para dirigir a Sociedade dos Concertos da Gewandhaus, de Leipzig. A cidade tinha um significado especial para o compositor. Lá, um século antes, vivera seu ídolo maior, Johann Sebastian Bach. O ambiente de Leipzig inspirou Mendelssohn a compor uma grande obra de estilo bachiano, o Oratório São Paulo, concluído em 1836. A obra foi executada durante o Festival de Birmingham de 1837, na Inglaterra. Nessa ocasião, Mendelssohn também estreou seu “Concerto para piano N° 2”.  Este concerto foi estreado lá com o próprio Mendelssohn ao piano.

A obra foi escrita logo após a lua de mel do compositor. Ele escreveu em carta para um amigo: “Eu gostaria de escrever um concerto para a Inglaterra e não consigo. Quero saber o motivo pelo qual isso é tão difícil para mim”. As dificuldades de Mendelssohn — reputado pianista que costumava compor muito bem e de forma rápida e inventiva — provavelmente se originaram de um desejo de se destacar no novo trabalho, escrito expressamente para o Festival, e assim impressionar o público inglês. A tarefa é atestada pelo fato de que existem mais versões autografadas para o Concerto do que para qualquer outra composição sua. O trabalho durou de abril até o início de setembro de 1837 — um exagero para os padrões de Mendelssohn. Em outubro, ocorreu uma segunda apresentação no Gewandhaus de Leipzig. Mesmo depois da segunda apresentação, ele continuou a trabalhar na partitura, entregando uma partitura final a seus editores só em 12 de dezembro. Depois da publicação, os problemas continuaram: Mendelssohn ficou descontente com o resultado, reclamando, entre outros assuntos, que a página de rosto estava em francês e não em alemão. O compositor Robert Schumann, na sua crítica, chamou-a de “uma obra menor”. Acertou em cheio. Infelizmente, teremos um Mendelssohn mais ou menos no retorno da Ospa. A única coisa que me agrada é o movimento lento. O resto nem parece o Felix de sempre.

Aqui, uma excelente versão deste concerto meia-boca de Mendelssohn.

Mendelssohn descabelou-se para escrever seu Concerto Nº 2

Pergolesi, meus queridos, Giovanni Battista Pergolesi!

Pergolesi, meus queridos, Giovanni Battista Pergolesi!

Pergolesi morreu em 1736, aos 26 anos, de tuberculose. Tinha imenso talento e, é claro, jamais se saberá o que poderia ter feito se tivesse vivido mais.

Deste modo, a imagem de Pergolesi cristalizou-se com base em poucas obras — e algumas são obras-primas absolutas.

Suas melodias demonstram uma personalidade criativa extremamente sofisticada. As obras sacras são caracterizadas pela devoção e intimismo comovedor, onde o sagrado é entendido como fonte de experiência emocional.

Seus últimos meses de vida foram passados no mosteiro franciscano de Pozzuoli, para onde se retirou, aparentemente convencido de que a tuberculose não lhe permitiria regressar a Nápoles.

Foi no mosteiro e no ano de sua morte que escreveu o Stabat Mater. É uma peça sublime que a OSPA apresentará neste sábado, às 17h. (Aliás, a nova sede da orquestra está ficando linda, Evandro. E o novo logo ficou perfeito).

Para ficar ainda melhor, veremos Raquel Helen Fortes cantando, com a Elena no concertino e regência de César Bustamante.

Sábado, tá?

Dá para ir e dá para ver no YouTube, o que não dá é para não apoiar a Ospa.

P.S. — E ainda tem o Exsultate, Jubilate, de Mozart, no programa.

Raquel Fortes | Foto: Leandro Rodrigues
Elena Romanov

Algo aconteceu

Algo aconteceu ontem durante a Marcha Fúnebre da Eroica (Sinfonia Nº 3), de Beethoven. Eu e mais dois amigos confessamos que derramamos umas furtivas e dignas lágrimas durante a execução do movimento pela OSPA, mas creio que o clube de lacrimejantes seja bem maior.

Minha amostragem é 0,0001 % de um DataFolha.

Ano de muitas mortes, de limitações e absurdos. Tá todo mundo frágil. Aí vem Beethoven e já viram.

Neste sábado (11), a Ospa apresentará a Sinfonia Nº 10 de Shostakovich

Neste sábado (11), a Ospa apresentará a Sinfonia Nº 10 de Shostakovich

Eu tinha 16 anos e simplesmente precisava conhecer a Sinfonia Nº 10 de Shostakovich. Era o inverno de 1973. Shostakovich, imaginem, ainda estava vivo — ele faleceu em 1975. Então escrevi uma carta — sim, papel, selo, envelope, correio — para a Rádio da Universidade, dirigida ao programa Atendendo o Ouvinte. Duas semanas depois, pude ouvir a maravilha deitado em minha cama. Hoje é muito fácil ouvi-la.

Dmitri Shostakovich em 1953
Dmitri Shostakovich em 1953

Shostakovich foi provavelmente o único compositor nascido no século XX a desenvolver um tipo de sinfonia instantaneamente reconhecível, que poderia estar ao lado das de Beethoven, Mahler ou Sibelius. Embora cada uma das sinfonias de Shostakovich tenha suas características distintivas, elas compartilham muito uma com a outra. A maioria delas se baseia nos movimentos tradicionais, com scherzo, adagio, alegretto, etc. O que Shostakovich fez com essas categorias, no entanto, foi único. Seus scherzi, sombrios e sarcásticos, não são como quaisquer outros — haverá o exemplo em vídeo do scherzo da décima abaixo –, e seus movimentos de abertura, muitas vezes mais lentos do que o que se está acostumado, também são inconfundivelmente seus.

Sua Sinfonia Nº 10 é um monumento da arte contemporânea que contém música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tudo isso em esplêndidos quatro movimentos. Tem, ademais, uma história bastante particular. Stálin…

A Sinfonia Nº 10, Op. 93, foi estreada pela Orquestra Filarmônica de Leningrado sob regência Yevgeny Mravinsky em 17 de dezembro de 1953, após a morte de Joseph Stálin em março daquele ano. Não está claro quando foi escrita: de acordo com a composição das cartas do compositor foi entre julho e outubro de 1953, mas a extraordinária pianista e colaboradora Tatiana Nikolayeva declarou que foi concluída em 1951, quando o compositor estava proibido de estrear obras pelo regime soviético.

Em 1948, Shostakovich, Prokofiev, Khachaturian e outros notáveis compositores da URSS foram censurados por escrever o que os censores do partido chamavam de música “formalista”, uma palavra-código para dissonâncias e expressões de emoções negativas ou cinismo. Naturalmente, examinados contra tais padrões vagos, virtualmente qualquer composição estava vulnerável a ataques, e muitos trabalhos de Shostakovich foram criticados. A partir de 1948, a maioria dos compositores do país não tinha certeza do que era seguro escrever.

Como escrevi antes, em março de 1953, quando da morte de Stálin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram normalmente negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stálin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo. Sua oposição ao restante da obra faz-nos realmente pensar em alguma segunda intenção do compositor.

De qualquer forma, este movimento diabólico tem ecos de obras anteriores de Shostakovich, como a Sexta e Oitava Sinfonias e o Primeiro Concerto para Violino. É, de certo modo, o outro lado do primeiro movimento sério e trágico. Talvez precisemos dessa brincadeira grosseira, antes de seguirmos para um estado mental mais tranquilo.

Abaixo, este segundo movimento da Sinfonia com Andris Nelsons.

Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo pela primeira vez o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Ele é repetido várias vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stálin está morto, Shostakovich, não. Ou então que o compositor, orgulhoso, diz “Eu escrevo o que eu quero”.

Aqui, Shostakovich toca o tema DSCH ao piano de uma forma extravagante:

O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Dada a complexidade da Sinfonia e as terríveis experiências de Shostakovich com os críticos do Partido Comunista, é compreensível que o compositor não quisesse comentar sua 10ª Sinfonia em detalhes. Sua declaração para o Sovietskaia Muzyka foi absurdamente auto-depreciativa. Shostakovich, que com tanta frequência fora forçado a exercer autocrítica no passado, agora a levou a um ponto inacreditável: “Como meus outros trabalhos, escrevi isso muito rapidamente. Isso é provavelmente mais um defeito do que uma virtude, porque há muito que não pode ser bem feito quando se trabalha tão rápido”. O que essa afirmação estava tentando fazer era evitar os críticos em seu jogo sujo. Então, minimizou a importância do trabalho. Os críticos engoliram a isca e castigaram a peça apenas por ser “pessimista” e “individualista”. Porém… Os músicos e plateias, por outro lado, assumiram imediatamente a 10ª, tanto na União Soviética quanto no exterior. É uma de suas sinfonias mais frequentemente executadas. Uma compilação recente lista nada menos que 70 gravações.

A Sinfonia completa com o grande Bernard Haitink:

No próximo sábado, às 17h, a Ospa apresenta esta sinfonia na nova Casa da Música da Ospa.

O programa completo do concerto:

Gilberto SalvagniConcerto para Trompete e Orquestra 
Dmitri ShostakovichSinfonia nº 10

Solista: Tiago Linck (trompete – Brasil)
Maestro: Stefan Geiger (Alemanha)

Quando: 11 de maio de 2019 (sábado)
Local: Casa da Música da Ospa

Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Milton Ribeiro

Antônio Télvio de Oliveira | Foto: Joana Berwanger / Sul21

Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.

Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.

Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.

Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.

Guia21: Teu nome completo é?

Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.

Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?

Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.

Guia21: Faziam saraus na tua casa?

Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.

Guia21: E então, como tudo começou?

Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.

Guia21: Sem acompanhamento?

Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.

Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?

Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E tu entraste no Belas Artes.

Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.

Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?

Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.

Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?

Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)

O Correio deu | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Como era a Ospa naquela época?

Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!

Télvio está de óculos, sentado, bem no centro da foto, durante a execução da 9ª com a Ospa em abril de 1963 | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Onde foi?

Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).

Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.

Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.

Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.

Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E seguiste cantando.

Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.

Guia21: Mas tu acabaste viajando.

Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?

Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?

Em pé, Télvio e Montserrat Caballé | Foto: Arquivo Pessoal / Joana Berwanger / Sul21

Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.

Guia21: E a paixão?

Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.

Guia21: Cantaste muito na Espanha?

Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.

Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?

Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.

Em catalão: um programa de um recital de Télvio em Barcelona | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E voltaste…

Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.

Guia21: E foste ver a família.

Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: Perigo.

Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.

Guia21: E o que fizeste?

Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.

Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…

Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.

Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.

Télvio: Sim, molhava tudo.

Guia21: E a carreira?

Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.

O programa do concerto de Télvio e da Ospa apresentando Cantatas | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?

Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.

Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.

Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.

Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?

Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.

Caderno sobre a Revolução Farroupilha ilustrado por Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.

Guia21: Mas tu és formado em…

Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.

Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?

Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!

Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.

Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…

Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?

Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.

Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.

Télvio: Sim.

Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?

Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.

Matéria do Jornal do Comércio com ilustração de Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.

Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.

Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?

Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.

Guia21: Tu passa os dias escutando música?

Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.

Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.

Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.

Guia21: Tu cantarolas por aí?

Télvio: Não. Nada.

Guia21: Nada?

Télvio: Nada.

Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?

Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.

Guia21: E tu frequentas concertos?

Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.

Guia21: Tu não ficaste frustrado?

Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.

Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.

Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…

Guia21: Isso eu estou ouvindo.

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Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.

Nesta sexta (18), a Ospa interpretará o polêmico 4´33, de John Cage

Nesta sexta (18), a Ospa interpretará o polêmico 4´33, de John Cage

4’33 (1952) é uma obra do compositor John Cage que, às vezes, é descrita erroneamente como “quatro minutos e meio de silêncio”. A música se enquadra no movimento happening e é uma das obras precursoras da arte conceitual por não executar nenhuma nota musical.

Sua primeira apresentação foi ao piano, interpretada por David Tudor, embora a peça tenha sido composta para quaisquer outros instrumentos ou conjuntos. A partitura está estruturada em três movimentos que são identificados por movimentações do regente e dos músicos. Eles se mexem, de alguma forma…

John Cage (1912-1992)
John Cage (1912-1992)

Questionando o paradigma da música ocidental, que explicava a música como uma série ordenada de notas, Cage se voltou para o silêncio de forma eminentemente conceitual. Todos os mínimos ruídos, comuns em salas de espetáculos, criam a aura do happening, provocando o público e fazendo com que uma execução pública seja diferente da anterior e de contornos inesperados.

As execuções costumam ser muito engraçadas. Nem todos os músicos conseguem permanecer sérios e parte do público não entende o que está acontecendo. Normalmente, a galera custa a se manifestar, mas era isso que desejava Cage. O budista Cage achava que a peça seria “incompreensível no contexto ocidental”, e relutou em “escrevê-la”: “Eu não queria que parecesse, nem para mim, como algo fácil de fazer. Eu não queria viver com esta impressão”.

Apesar do caráter provocativo, Cage conseguiu destacar a importância do silêncio na música, a sua impossibilidade real e, por consequência, ampliar os limites da arte.

O silêncio já tinha desempenhado um papel importante em várias das obras de Cage compostas antes de 4′33. O Dueto para Duas Flautas (1934), composto quando Cage tinha 22 anos, começa silenciosamente. O silêncio é um elemento estrutural importante em algumas das Sonatas e Interlúdios (1946-48), Música das Mutações (1951) e Duas Pastorais (1951). O Concerto para piano e orquestra preparados (1951) encerra com um silêncio prolongado e Waiting (1952), uma peça de piano composta apenas alguns meses antes de 4′33, consiste em longos silêncios emoldurando um único e curto ostinato. Além disso, em suas canções The Wonderful Widow, de Eighteen Springs (1942) e A Flower (1950), Cage manda o pianista tocar um instrumento fechado.

Serviço

Data: 18/05/2018 20h30
Local: Salão de Atos da UFRGS
Av. Paulo Gama, 110 – Bom Fim, Porto Alegre – RS, 90035-121

Programa

Armando Albuquerque: Evocação de Augusto Meyer
John Cage: 4’33”
Antônio Carlos Borges-Cunha: Noturno para Piano e Orquestra (estreia) | Solista: André Carrara
George Gershwin: Concerto para Piano em Fá | Solista: Olinda Allessandrini

A Ospa tocará ‘Um Réquiem Alemão’ (ou Humano) no próximo sábado

A Ospa tocará ‘Um Réquiem Alemão’ (ou Humano) no próximo sábado

Um Réquiem Alemão, de Johannes Brahms, existe por um só motivo: a morte da mãe do compositor em fevereiro de 1865. Escrito entre 1865 e 1868, ele tem várias curiosidades: é composto de sete movimentos, que juntos resultam em algo entre 65 a 75 minutos, tornando-o a mais longa composição de Brahms. Há mais: Um Réquiem Alemão é música sacra, mas não é litúrgica e, ao contrário de uma tradição musical de séculos, não é cantado em latim e sim em língua alemã, de onde vem seu título Ein deutsches Requiem ou Um Réquiem Alemão.

brahms-requiem

A primeira referência ao Réquiem está em uma carta de 1865 que Brahms escreveu para Clara Schumann, pianista, compositora e viúva de Robert. Escreveu que pretendia desenvolver uma peça a ser “uma espécie de Réquiem alemão”. Depois, Brahms teria dito ao diretor de música na Catedral de Bremen que teria de bom grado chamado o trabalho de Um Réquiem Humano. Mais adiante, vocês verão que este sujeito de Bremen era um chato de primeira linha.

Embora as Missas de Réquiem na liturgia católica comecem com orações pelos mortos, o de Brahms centra-se nos vivos, começando com o texto “Bem-aventurados são aqueles que suportam a dor, porque serão consolados”. O tema do conforto aos que ficam repete-se em todos os movimentos seguintes, exceto o final, sobre a morte.

Em seu Réquiem, Brahms omitiu propositalmente qualquer dogma cristão. Até pelo fato da ideia de deus ser visto sempre como fonte de consolo. A simpatia e compaixão pelo humano persiste por todo o tempo, o que não significa dizer que o Réquiem seja ateu — ateu sou eu, mas alguns escreveram este absurdo sobre a obra –, apesar de sua contenção religiosa. De qualquer forma, a enigmática escolha dos textos fica para os musicólogos decifrarem. Quando o diretor da catedral de Bremen expressou sua preocupação com isso, Brahms recusou-se a adicionar o movimento que lhe fora sugerido: “A morte redentora do Senhor, etc.” (João 3 : 16). Mas, por incrível que pareça, o citado diretor obrou finalizar o Réquiem por uma ária do Messias de Handel, — ??? — “I know that my redeemer liveth”. Tudo para satisfazer o clero. Um total abuso.

O Réquiem foi inicialmente contestado. Wagner achou-o ridículo, mas temos que lhe dar o mérito da coerência: ele errava sempre. Na verdade, estava apenas contrariado com o título “Alemão”. “Alemão” seria a ele mesmo, Wagner. O que Brahms estava pensando? A reavaliação do Réquiem veio através de Schoenberg e seu brilhante ensaio Brahms the progressive. Então, a história da percepção a Brahms descreveu 180º: seus trabalhos passaram de “acadêmicos” a “modernos”. Agora, são eternos.

SERVIÇO

A Ospa apresentará Um Réquiem Alemão no próximo sábado (12/05) às 17h, na Casa da Música da Ospa. Estarão no palco o Coro Sinfônico da Ospa, a soprano Raquel Fortes e o barítono Alfonso Mujica. Regência de Manfredo Schmiedt.

Na ocasião, a Ospa presta homenagem à memória de Eva Sopher, falecida neste ano — uma grande incentivadora da cultura porto-alegrense e da orquestra. A Casa da Música da Ospa fica no Centro Administrativo Fernando Ferrari (Caff), na Avenida Borges de Medeiros, 1501, no Centro de Porto Alegre.

E a Ospa finalmente tem uma Casa

E a Ospa finalmente tem uma Casa
Foto: Maí Yandara / Ospa
Foto: Maí Yandara / Ospa

No último sábado, fui assistir ao concerto inaugural da Casa da Música da Ospa. Fiquei muito impressionado com o belo resultado obtido em tão pouco tempo. O que nos salta aos olhos e aos ouvidos de cara: a sala é muito bonita, o local é adequado, as cadeiras e o colorido das madeiras lembram a Sala São Paulo e o teto baixo parece ter sido bem resolvido do ponto de vista acústico. Talvez apenas os instrumentos de madeira tenham sofrido um pouco com a cortina de cordas logo à frente.

É claro que era uma noite especial, nervosa e muito emocionante. Afinal, após várias décadas difíceis de nomadismo, a orquestra finalmente teria uma sede própria. A sequência de discursos e leituras foi massacrante — duraram mais de uma hora –, houve muito estresse nos últimos dias e horas a fim de finalizar a obra, chovia forte lá fora, o público de Marchezan City chegava lentamente, tudo atrasou, a orquestra esfriou e o concerto não foi lá essas coisas, mas jamais deixaria de dar todos os descontos citados.

Foto: Maí Yandara / Ospa
Foto: Maí Yandara / Ospa

Imaginem que não havia ingressos disponíveis, só que a chuva era tal que muita gente optou por permanecer em casa. Creio que a lotação não ultrapassou os 80% da capacidade do teatro de 1100 pessoas. Soube que o segundo concerto (o de domingo)  teve resultado artístico muito melhor, além de um público mais entusiasmado e afeito à música, diferente das autoridades, jornalistas e penetras indiferentes de sábado.

O programa não era do meu agrado, apesar de coerente. Uma obra de Arthur Barbosa, Mba’epu Porãcujo tema era a formação musical do sul da América, a ultra norte-americana Rhapsody in Blue, de George Gershwin com o excelente pianista Cristian Budu, e a Sinfonia Nº 9, Novo Mundo de Dvořák, mistura de música checa com uma tentativa de fazer música norte-americana em 1893. Ou seja, não era uma coisa de louco, mas tem gente que ama este repertório.

Foto: Maí Yandara / Ospa
Foto: Maí Yandara / Ospa

Só que ontem nada disso interessava. Afinal, estávamos dentro de uma raríssima construção de nosso estado feita exclusivamente para a cultura. Há quantos anos não se fazia uma obra dessas para o setor patinho feio do Estado? Além da sala de concertos, haverá camarins, café, salas de estudos, saguão, entre outros espaços. Tudo para a música. É claro que faltam ainda algumas coisas, porém a sala já é superior a tudo o que há disponível para a orquestra em Porto Alegre. E para o público também.

A Ospa, o diretor artístico (e herói) Evandro Matté — principal líder desta odisseia –, o superintendente da Ospa Rogério Beidacki e o engenheiro acústico Marcos Abreu estão de merecidíssimos parabéns. Nós também.

A construção, que é a primeira Sala Sinfônica de Porto Alegre, produzirá muita felicidade. A Casa está de pé e será um dos principais pontos de cultura de nosso combalido Rio Grande.

No último sábado, vimos a barbárie dar um passo atrás.

Foto: Augusto Maurer
As cadeiras | Foto: Augusto Maurer
Foto: Augusto Maurer
O teto | Foto: Augusto Maurer

Ajude o Renato. Não falta muito

Ajude o Renato. Não falta muito

Naquele fim de tarde terrível de tempestade no Jardim Botânico, quando o palco  onde a Ospa se apresentava foi destruído pelos ventos e pela chuva, conheci casualmente a mãe do jovem trompetista Renato Oliveira. Ele estava tocando com a orquestra e ela estava na porta do JB tomando o maior banho, esperando o filho ao mesmo tempo que estava sem poder sair, como todos nós. Conversamos e ela se identificou. Boa gente, orgulhosa do filho, mulher com jeito de quem leva uma vida dura e honesta.

Renato Oliveira (centro) | Foto: Maí Yandara
Renato Oliveira (centro) | Foto: Maí Yandara

Nós não sabíamos que, mais ou menos naquele momento, o Renato tinha salvado a tia do lanche da Ospa, a D. Lourdes, de um acidente maior. Ele simplesmente se atirara sobre a senhora de 70 anos para que a armação do camarim do evento não caísse sobre ela. Mas o Renato, além de solidário, é bom trompetista. E vejam o que está acontecendo agora com ele.

Renato Oliveira estuda na Escola de Música da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Neste ano, foi convidado para estudar trompete no conservatório de música International Brass Studio, na Bélgica. Quem fez o convite foi o próprio idealizador da academia, o trompetista belga Dominique Bodart, quando realizou masterclass aqui em Porto Alegre. Por seu talento, Renato chamou a atenção de Bodart. Então, em setembro, o Renato, de apenas 19 anos, lançou uma campanha de financiamento coletivo para estudar lá. O objetivo é arrecadar o valor de R$ 33,2 mil, para custear gastos como passagens aéreas, alojamentos e alimentação.

A campanha encerra na segunda-feira, dia 6 de novembro, e Renato está ainda no meio do caminho. O Renato é tímido e não vai se rasgar por aí pedindo ajuda. Mas merece.

Então, se você tiver uma graninha sobrando, ajude o Renato. Clique aqui e dê uma força ao guri que é bom instrumentista e boa pessoa.

Uma boa Ospa numa das últimas noites frias de 2016

Uma boa Ospa numa das últimas noites frias de 2016

Tão boa a noite de ontem. Aproveitamos bem uma das últimas noites frias de 2016. Lá vem o longo período de canícula. Fomos ao concerto da Ospa com Beatriz Gossweiler, ex-clarinetista da orquestra, hoje aposentada. Tiramos a moça de casa para que ela revisse seus colegas tocarem. O programa era o Concierto Levantino de Manuel Palau e o Concerto para Orquestra de Béla Bártok, obra que ela adora.

Sobre o concerto para violão de Palau. O Salão de Atos da Ufrgs não tem boa acústica e, no caso de concertos para instrumentos menos potentes, a coisa ainda piora. Se o violão de Fabio Zanon era audível, também estava claro que perdíamos muita coisa. Quando a orquestra entrava junto, era complicado de ouvir. E a peça era daquelas que só interessam aos violonistas. Durante a música, sentado na nossa tradicional fila P, olhei para o lado esquerdo, duas pessoas dormiam; olhei para o direito, uma. Muito melhor foi o bis, quando Zanon tocou a Dança Espanhola nº 5 – “Andaluza”, de Granados. Aí sim, em versão solo, apareceu o grande e sofisticado solista que já conhecia. Quem não sabe que precisamos de uma Sala Sinfônica em nossa cidade? Aliás, no jantar após o concerto, lembramos daquelas pessoas que rejeitaram o atual Shopping Total como local para a Ospa. Lembramos que o democratismo de resultados nulos do então prefeito José Fogaça deu enorme espaço àqueles imbecis dos “Amigos da Rua Gonçalo de Carvalho” que gritavam que “resistir é preciso”. Resistir à Cultura é preciso.

Abaixo, coloco para vocês o que ouvimos no bis. Vale muito a pena clicar.

O Concerto para Orquestra foi composto num período difícil da vida de Bartók. Ele estava desde 1940 exilado nos EUA, após assumir corajosamente posições públicas de condenação à políticas nazistas. O húngaro experimentava sérias dificuldades econômicas, de adaptação e também de saúde — sofria com a leucemia que o levaria à morte em 1945. Doente e muito pobre, sobrevivia graças à ajuda de amigos, que lhe faziam encomendas. E ele só respondia com obras-primas. Uma destas encomendas foi do regente russo Serge Koussevitzky, que dirigiu a Sinfônica de Boston por 25 anos. Este encomendou uma obra para orquestra, “do jeito que você quiser”.

Bartók compôs a peça em um curto período de trabalho intensivo, de agosto a outubro de 1943. Fazia dois anos que não escrevia nada. Estreada no ano seguinte – em 1º de Dezembro de 1944, no Carnegie Hall de Nova Iorque, com Serge Koussevitzki regendo a Orquestra Sinfônica de Boston –, a obra foi um enorme sucesso de público. Calculando bem para evitar um confronto com Mahler e com a Sagração, Koussevitzki descreveu o Concerto para Orquestra como a melhor obra orquestral dos últimos 30 anos.

“O surpreendente título deste trabalho — Concerto para Orquestra — indica a intenção de tratar os instrumentos individualmente ou em grupos de forma concertante ou solista. O tratamento “virtuose” aparece em vários momentos”, escreveu Bartók, que esteve presente à estreia. Bartók utilizava a proporção áurea em suas composições, na forma da Sequência de Fibonacci. Como leigo, não sei localizá-la, mas é fato que ouço em suas obras extrema lógica e proporção. A estrutura do Concerto para orquestra é semelhante à da 7ª Sinfonia de Mahler. Ambas têm cinco movimentos simétricos. Em Bartók, o movimento central é lento (Elegia), em Mahler é um scherzo. Em Bartók, o segundo e o quarto movimentos são scherzi, em Mahler são “músicas da noite”. E ambos iniciam suas obras com movimentos lentos e as finalizam na maior festa.

Os dois scherzi de Bartók são dignos do nome. São brincadeiras de verdade. No primeiro, Giuoco delle coppie (Jogo das Duplas), os instrumentos entram em duplas, claro. Se ouvir é ótimo, ver ao vivo é muito melhor. A música passa de uma dupla à outra de modo muito cênico. E como estiveram bem a dupla de oboístas — Javier Balbinder e Rômulo Chimeli — e de flautistas — Artur Elias Carneiro e Ana Carolina Bueno!  No outro scherzo, há uma curiosidade. Bartók tinha ouvido a 7ª Sinfonia, “Leningrado”, de Shostakovich no rádio, quando estava no hospital. Esta é uma sinfonia sobre a guerra que tanto estava fazendo sofrer Bartók. Pois sabem que ele roubou o tema da Marcha de Shosta, transformando-o em algo quase irreconhecível é cômico? Pois é.

Animado com o resultado de seu Concerto, Bartók reviveu, voltando a compor. Apressou-se para completar sua Sonata para Violino Solo — outra obra-prima — encomendada por Yehudi Menuhin e o último dos seus notáveis três Concertos para Piano, além de aceitar uma nova encomenda para escrever um Concerto para Viola para William Primrose, o qual ficou incompleto em poucos compassos. A leucemia venceu-o em 1945.

A imensa repercussão do Concerto para Orquestra levou o público a ser menos, digamos, hostil para com os trabalhos anteriores de Bartók. E eles passaram a integrar o repertório das salas de concerto. Lembro que quando li Solo de Clarineta — revejo de memória a fonte do livro e penso que talvez tivesse sido em O Senhor Embaixador — , de Erico Verissimo, ele citava os Quartetos de Bartók como as maiores obras musicais do século XX. Não sei, mas podem ser sim.

Falarei pouco sobre a execução de ontem. O resultado seria melhor se o excelente maestro Nicolas Rauss tivesse recebido mais tempo para trabalhar. É impossível preparar de quinta para terça uma peça difícil como o Concerto. Só que Rauss obteve um resultado excepcional, juntamente com a Ospa. Ainda que um pouco estropiada, a música e o espírito de Bartók estavam lá. Rauss é um mestre. Putz, deve ter se esforçado muito,

Depois do concerto, rimos muito durante o jantar — não, não rimos do concerto –, mas esta é outra história.

Bartók: grande música e uma saudação para Shostakovich
Bartók: grande música e um alô para Shostakovich

Ontem, uma grande noite da Ospa no Salão de Atos da Ufrgs

Ontem, uma grande noite da Ospa no Salão de Atos da Ufrgs

Eu antecipara no Facebook que o Concerto da Ospa de ontem à noite tinha tudo para ser o melhor de 2016. E foi. Repertório bom (e difícil), solista espetacular, maestrina de alta musicalidade e comando, e uma orquestra tocando bem acima de sua própria média garantiram uma bela função no Salão de Atos da Ufrgs.

O repertório era formado por apenas duas peças: o Concerto para Viola de Béla Bártók e a Sinfonia Nº 2 de Camargo Guarnieri.

O Concerto para Viola de Bartók tem uma história triste e bonita. Em 1945, o compositor húngaro — um ateu socialista que anos antes declarara, em seu país natal, que gostaria de converter-se ao judaísmo para ser também perseguido pelos nazistas — estava morrendo de leucemia no exílio norte-americano. Sem dinheiro, passava dificuldades e aceitava trabalhos de composição para viver e deixar algo para sua esposa.

E as encomendas pingavam, poucas e importantes. Algumas das maiores figuras da música dos EUA fizeram-lhe encomendas: Benny Goodman, Yehudi Menuhin — que recebeu uma Sonata que é uma obra-prima — e William Primrose, violista, que pediu um concerto.

A violista russa Anna Serova | Foto: Ugo Zamborlini
A violista russa Anna Serova | Foto: Ugo Zamborlini

É notável como o Concerto para Viola tem a cara de Primrose. É a música mais norte-americana de Bartók, mas recebeu igualmente toques escoceses em razão das origens familiares do violista. O primeiro movimento, Allegro non troppo, é tomado por solos de viola, um mais belo que o outro. Antes de morrer, Bartók sofrera uma transformação. Amenizou um pouco seu estilo e aparou algumas arestas, enquanto a doença o vencia. O movimento lento, Adagio religioso, é uma emocionada despedida da vida. A compreensão da solista Anna Serova e da maestrina Valentina Peleggi a respeito daquilo que transmitiam era completa. Foi uma interpretação rarefeita, a música levitava linda, verdadeiramente expressando o desejo de que houvesse um outro plano ou continuidade, algo em que Bartók não acreditava. (O ateu Bartók tem também um Andante religioso no Concerto Nº 3 para Piano e Orquestra, composto quase na mesma época a fim de ser deixado para sua esposa atuar como solista e ganhar sua vida).

O último movimento é agitado e feliz, e a passagem do Adagio para ele foi especialmente trabalhada por Peleggi no ensaio de segunda-feira, assistido por mim. É aqui que aparece o tema escocês com que Bartók homenageia Primrose. Olha, é difícil caracterizar o nível de alta cultura musical envolvida no trabalho da russa Serova sob a direção de Peleggi. O resultado foi esplêndido. Aquilo que se interpretou ontem foi efetivamente o Bartók maduro de seus poucos anos nos EUA, não foi outra coisa.

A Sinfonia de Camargo Guarnieri também veio com uma demonstração de sensibilidade da maestrina. Desrespeitando o “protocolo”, ela pegou o microfone e explicou o que seria tocado através de exemplos retirados da Sinfonia e tocados pela orquestra. Foi oportuno e adequado. A italiana Peleggi trabalha na Osesp como assistente de maestro e sabe que os brasileiros conhecem pouco seus compositores. Então, tratou de contextualizar a música de Guarnieri. Na saída do concerto, a plateia elogiava a atitude de Peleggi ao falar sobre o objeto de seu trabalho.

A maestrina Valentina Peleggi | Foto: Augusto Maurer
A maestrina Valentina Peleggi durante um ensaio em 2015 | Foto: Augusto Maurer

Vamos a mais alguns detalhes: Guarnieri escreveu a Sinfonia Nº 2 em 1945. Em 1947, enviou-a para um Concurso Internacional realizado em Detroit, destinado a escolher uma “Sinfonia das Américas”. Tirou o segundo lugar entre as oitocentas obras inscritas. Villa-Lobos e Oscar Lorenzo Fernandes também enviaram trabalhos. Com 5.000 dólares a mais no bolso e crescente reconhecimento internacional, Guarnieri regeu a estreia da obra em 1950, em São Paulo, com a Orquestra Sinfônica Municipal.

Sofisticada e aparentemente mais difícil do que o Concerto de Bartók, a Sinfonia Nº 2 tem um primeiro movimento na forma de sonata, o segundo é contemplativo e praticamente monotemático e o terceiro é uma espécie de dança que é “uma loucura”, como disse simpaticamente Peleggi. Destaque para o trabalho da orquestra e para os belos solos de Paulo Calloni (corne-inglês), Flávio Moraes (fagote) e Wenceslau Moreyra, o Celau (violoncelo).

Foi uma grande noite, merecedora de um jantar com muita alegria e risadas. Uma observação final: nos últimos anos, a Ospa foi regida três vezes por mulheres. Em pouco tempo, tenho certeza que será absolutamente indiferente se o comando for masculino ou feminino. O que será importante será a concepção e o gesto. Da primeira vez, ouviram-se piadas machistas e o concerto não foi muito bom; da segunda, houve menos, o resultado de palco foi excelente; ontem, a aceitação era quase geral, com os narizes torcidos definitivamente vergados pela competência. Gente, esqueçam o patriarcado. Logo logo, ele estará enterrado e será muito brega e antinatural.