“Vermeer Review”: uma das exposições mais emocionantes já concebidas

“Vermeer Review”: uma das exposições mais emocionantes já concebidas

Traduzido mal e porcamente daqui.

A cena é despretensiosa – paralelepípedos lavados, paredes caiadas, uma mulher costurando em uma porta aberta enquanto a fachada da casa holandesa sobe em direção a nuvens imóveis. No entanto, todos os visitantes ficam maravilhados diante dele. Talvez o feitiço tenha algo a ver com as janelas abertas e as ainda a serem abertas, ou a cadeia de figuras absorvidas e absorventes, ou o arranjo abstrato de molduras e arcos, ou a alvenaria que parece feita da própria coisa? Os olhos e a mente, seduzidos, procuram respostas na imagem. Como pode a pintura de Johannes Vermeer ser tão infinitamente mais bela do que a cena que representa?

A Pequena Rua (c.1657) está no início de uma das exposições mais emocionantes já concebidas. Vermeer, no Rijksmuseum de Amsterdã, reúne mais de suas pinturas do que nunca – e possivelmente nunca mais, dado o custo e fragilidade –, 28 das 37 obras conhecidas. A mostra é soberba: uma sequência de câmaras escuras, onde as pinturas (como seus temas) aparecem ora sozinhas, ora em duplas ou trios, cada uma em seu foco individual. O design reflete o aspecto revelador da arte de Vermeer a cada passo.

Revelador – e ainda profundamente misterioso. Abre-se para o exterior, com a Vista de Delft e A Pequena Rua, e depois torna-se íntima, convidando-nos a olhar cada vez mais de perto para os interiores. Uma caixa de luz, uma figura, alguns adereços, ocasionalmente uma foto emoldurada: os meios parecem tão restritos, mas as cenas são fascinantemente variadas.

O mundo de Vermeer é um mundo em espera; não congelado de repente no momento, mas ignorando completamente o movimento. A empregada derrama seu leite – mas apenas em teoria. Na verdade, o líquido não está fluindo, sua passagem (mesmo em uma ampliação gigantesca no foyer) é totalmente imperceptível.

A Leiteira (1658-59), Rijksmuseum, Amsterdã

Também não entra e sai gente dessas salas, sempre iluminadas pela esquerda. Meninas de arminho, veludo amarelo e renda, homens com capas e chapéus de castor são retratados, mas não vieram de outro lugar. Não há conversa, não importa que as transações possam estar implícitas. Todos aqueles instrumentos musicais, estão ainda sem som. Da mesma forma, você não pode descobrir o que está acontecendo nessas cenas, cada mistério paira diante de você, imperturbável.

Vermeer usa os interiores brilhantes de Pieter de Hooch, mas raramente mostra mulheres trabalhando. Uma escova está ociosa no chão, criadas trouxeram ou esperaram por cartas. Mas apenas a maravilhosa Rendeira, do Louvre, se debruça sobre sua intrincada tarefa. O tempo é mantido em absorção profunda e produtiva, que parece muito mais significativa do que a criação de qualquer renda.

A rendeira, 1666-1668. Museu do Louvre, Paris.

Certamente é aqui que entra a noção de madonas seculares. Para que serve a garota ali, em Vermeer, senão para receber a extraordinária beneficência de sua luz – uma luz como nenhuma outra, mais do que qualquer sala real poderia conter. Para alguns é sobrenatural, para outros sagrado; sente a própria essência da graça.

As anunciações de Vermeer – notícias do nada, por carta – têm uma imobilidade e quietude que não parecem relacionadas ao cenário proposto, assim como a leitura, a escrita, o olhar ou a pesagem de balanças (vazias) . A sensação de meditação prolongada parece vir do próprio ato criativo. Os curadores mostram (em painéis colocados a uma distância discreta da arte) com que frequência objetos, roupas e até mesmo pessoas foram movidos ou excluídos nas prolongadas deliberações de Vermeer. Ele é conhecido por ter feito apenas uma ou duas pinturas por ano.

E então, de repente, tudo gira e um tremor interrompe o senso de Vermeer. Três interiores aparentemente semelhantes aparecem em uma galeria. Fique no meio e testemunhará mil diferenças. Esta cena é adornada com alfinetes elevados de luz crepitante; aquele é suave e subjugado; um terceiro bem menos íntimo, com uma extensão resplandecente de parede nua. O Rijksmuseum diminui o ritmo para mostrar como Vermeer pode ter pensado sobre a realização de cada imagem.

Às vezes, a visão é parcialmente bloqueada por um homem de costas para nós ou por uma cadeira pesada. Talvez a garota pareça distante, do outro lado de uma mesa ou do outro lado da sala. Ou ela é trazida para um close-up abrupto: como a garota com o chapéu vermelho, ou a garota com o brinco de pérola voltando-se para nós na escuridão total com seu flash de cinema.

Young Woman with a Lute, do Metropolitan Museum of Art de Nova York, é tão espectral que pode ser uma memória ou um fantasma, ao contrário dos objetos sólidos ao seu redor. A janela é extraordinariamente estreita e pequena, a cortina transparente disposta de modo que a luz incide lateralmente, iluminando os pinos em uma cadeira de couro como estrelas brilhantes, mas dissolvendo a garota em halos borrados, como se ela fosse um segredo.

Na fascinante Mulher de Azul Lendo uma Carta do próprio Rijksmuseum, não há janela e toda a cena é impregnada com o azul do vestido, como se fosse uma extensão de sua mente. A carta que ela segura agora é apenas uma lasca de luz. Certamente esta é a mesma garota de um quadro pintado cerca de cinco anos antes, emprestado de Dresden, seu rosto um pouco mais velho, sua absorção agora mais profunda. A esposa de Vermeer deu à luz 15 filhos. Quem sabe algumas de suas filhas apareçam nessas fotos?

Mulher de azul, lendo uma carta (1664)

Tudo muda, mas permanece. Uma empregada olha pela janela com fria (ou irônica?) impaciência, enquanto sua patroa vestida demais lê uma carta. Outro parece flamengo, como se fosse contratado de outro lugar. A carta pode ser dobrada, inscrita, gasta como seda com leituras repetidas, ou passada fechada pela empregada para a amante insatisfeita em uma cena distante vista através de uma porta – como um vislumbre momentâneo em Alfred Hitchcock.

Os detalhes são enigmáticos: uma única gota vermelha no chão (talvez cera de lacre), uma carta de baralho brandida como se em advertência por um querubim, frisos de ladrilhos de Delft que existiam na realidade, mas parecem poder ser decodificados. Uma garota tem um rosto de lua curiosamente plano, outra parece andrógina, outras ainda estão estagnadas como sonâmbulos, mantidas imóveis por uma espécie de gravidade mística.

Por razões desconhecidas, o Kunsthistorisches Museum em Viena se recusou a enviar The Art of Painting , de Vermeer – com seu artista-mágico virando as costas para nós, mesmo enquanto pinta a cena – para que pudéssemos entrar ainda mais fundo na câmara de sua mente. Mas tudo o mais sobre essa exposição é tão perfeito quanto poderia ser. Mais pinturas, visões e variações maiores (e mais condensadas), oferecem todas as oportunidades para olhar mais longe, mais devagar e com mais precisão do que nunca. No entanto, as pinturas de Vermeer têm o mistério de sua própria criação, sua beleza e significado como parte de seu conteúdo. Quanto mais perto você chega, mais estranho ele parece.

Vermeer fica no Rijksmuseum, em Amsterdã, até 4 de junho.

Johannes Vermeer (1632-1675) – The Girl With The Pearl Earring (1665)

Edward Hopper, os 130 anos do poeta da solidão urbana

Publicado em 22 de julho de 2012 no Sul21.

Edward Hopper, Nighthawks, 1942

Edward Hopper nasceu em 22 de julho de 1882, há 130 anos, numa localidade próxima a Nova Iorque, Nyack. Viveu até os 85 anos — faleceu em 1967 — e foi um pintor essencialmente realista, “pequeno” e urbano na sociedade norte-americana, a qual, principalmente no pós-guerra, valorizava a grandiosidade e o ufanismo. Este pintor que ia contra a corrente distinguia-se principalmente pela escolha de seus temas. Seja na pintura de paisagens rurais devastadas da Nova Inglaterra, seja nos panoramas arquitetônicos, há espaços quase esvaziados de figuras humanas – são composições de situações que evocam sentimentos de solidão e tristeza, quadros narrativos em que a cena é representada quase sempre imóvel, sob perspectivas que lembram muito as convenções do cinema e do teatro.

Hopper, Chair Car, 1965

A arte de Hopper permaneceu afastada do sonho americano, da “América” como o grande país da liberdade e da prosperidade. A arquitetura de Nova Iorque e de outras cidades são mostradas meticulosamente – fachadas de lojas e farmácias vazias, lanchonetes quase vazias ou postos de gasolina igualmente – e parecem trabalhar apenas como pungentes símbolos da solidão e da desesperança daquelas pessoas, tão bem caracterizadas nos romances e nas peças de teatro da época, onde, como disse Sinclair Lewis em Rua Principal, Deus era o tédio. Essa relação com a literatura não é nada casual, pois foi nela que a alma dos EUA da primeira metade do século XX foi melhor retratada.

Hopper, Drugstore, 1927

O realismo de Hopper não é uma tradução literal ou mimética da realidade, é antes interpretação. Em sua longa carreira, apenas em 1933 passou ver seu imaginário especificamente descrito como “solitário”. Perguntado sobre o motivo que o levava a pintar a Macomb’s Dam Bridge (1935), uma pintura vazia de pessoas que retrata uma parte bastante populosa de Nova York, inteiramente vazia, ele respondeu com simplicidade que achava que aquela era sua melhor representação.

Hopper, Macomb’s Dam Bridge, 1935
Hopper, Gas, 1940

Segundo o crítico Rolf Renner, a popularidade de Hopper, seus quadros vazios de seres humanos e suas figuras solitárias sugeriam as dores da solidão a um público cada vez mais interessado no pensamento psicanalítico e consciente do anonimato da vida urbana. Em 1964, a insistência destas interpretações de sua obra levaram Hopper a dizer que “a coisa da solidão é exagerada”. Porém, paradoxalmente, na mesma época ele respondeu a um jornalista sobre a solidão profunda e a falta de comunicação em sua arte com o comentário: “Isto é provavelmente um reflexo de minha própria vida e não sei dizer o quando isto é tem pontos de contato com outras pessoas ou com a própria condição humana”. Por algum motivo, mesmo quando as pessoas estão juntas em suas telas, a sugestão da solidão permanece presente.

Hopper, Summer Evening, 1947

Há um exemplo muito claro disso: quando Alfred Hitchcock filmou Psicose, desejava que a casa de Norman Bates tivesse um aspecto de isolamento e solidão, de um lugar onde ninguém entrava. Como o gordo inglês não era nada desconectado do que acontecia em outros setores da arte, pediu que se construísse isso aqui e estendeu a seus produtores uma cópia de um quadro de Hopper, House by the railroad, dizendo: “Vamos construir parecido com isso. Nada pode ser mais isolado. Não vamos reinventar nada, OK?”

Hopper, House by the railroad, 1925
A casa do filme Psicose, de Alfred Hitchcock
A residência de Norman Bates sempre aparece no filme em ângulo semelhante ao utilizado por Hopper

Como referimos acima em palavras do próprio Hopper, ele foi, desde a infância, um solitário ou ao menos alguém que raramente falava de si. Muitas publicações falam em frustrações, mas pensamos ser mais acertado falar-se em timidez ou numa inadequação que ele representou de forma grandiosa em sua arte, não só através de melancólicas figuras solitárias, mas também através de metáforas de isolamento em lugares onde esperamos ver pessoas presentes.

Hopper, Rooms for Tourists, 1945

Já sua associação com a arquitetura é mais complexa. A primeira metade do século XX foi um tempo de nacionalismo emergente e cenas típicas americanas aparecem como sujeitos de sua arte. Sua cidade natal, Nyack, por exemplo, oferecia exemplos de estilos arquitetônicos característicos da América do século XIX. Embora esses estilos tenham sido absorvidos por Hopper em sua juventude, foi só depois que ele viajou para o exterior, entre 1906 e 1910, que veio a apreciar seu encanto. Escrevendo na revista The Arts, em 1927, Hopper comentou sobre artistas contemporâneos norte-americanos cujo trabalho admirava e salientou a necessidade de desenvolver uma “arte nativa”.

Hopper, Pennsylvania Coal Town, 1947

Hopper apreciava especialmente um tipo de telhado frequentemente encontrado em casas americanas do estilo Segundo Império — nome emprestado aos franceses –, construídas entre 1860 e 1890. Este estilo, desenvolvido durante o reinado de Napoleão III, é caracterizado por um telhado coberto com telhas pintadas. Entre 1907 e 1909, Hopper fez várias pinturas do Pavillon de Flore do Louvre, que ele podia ver a partir do local onde morava na margem esquerda de Paris. Mais tarde, Hopper redescobriu estes telhados em casas de vários locais dos EUA — Gloucester, Massachusetts, Rockland, Maine, e, provavelmente, no estado de Nova York – e permaneceu atraído pelo estilo, que trazia logo abaixo arcos como no Pavillon ou janelas em arco.

Pavillon de Flore do Louvre
Hopper, The City, 1927

Porém, seus temas e especialmente os lugares que ele pintou, parecem ser produto da necessidade de criar e parte de sua batalha constante contra o tédio que muitas vezes sufocava seu desejo de pintar. O que manteve Hopper em movimento foi sua busca por inspiração, que provocada em pequenas viagens.

Hopper, Automat, 1927

Como explicou a um crítico: “O mais importante é ir adiante, ver tudo. Você sabe como as coisas são belas quando você está viajando, não?”.

Hopper, Summertime, 1943

Conversei uma vez com Guy Pène du Bois sobre isso. Ele utilizou o termo “inspiração”. Eu disse, “essa é uma palavra excelente”. Bem, talvez exista inspiração – talvez seja o clímax de um processo de pensamento. É, no entanto, é difícil saber o que quero pintar. Por vezes passam-se meses sem descobri-lo. Depois vem lentamente: aí entra em cena a imaginação. Acredito que muitas pinturas são pura invenção – nada vem de dentro. É claro que é preciso usar a imaginação: nada se faz sem ela. Mas há muita diferença entre a imaginação e o que o pintor encontra em si mesmo.

Hopper, Compartment, 1938

Belas e silenciosas como paisagens são suas figuras humanas. O realismo de Hopper flagra e capta o interior de cada uma delas – numa ida ao café, sozinhas na entrada de um cinema, num quarto de hotel, no trem, tomando sol. As figuras humanas pintadas por Edward Hopper demonstram uma melancolia e um silêncio que mais facilmente associaríamos a paisagens.

Hopper, New York Movie, 1939

Hopper parece apenas convidar-nos para comentários verbais acerca dos quadros. Observador e observado entregam-se a um jogo onde o observador acompanha e procura a identidade daqueles que são retratados pelo artista. Os elementos de tal jogo são uma parte do conteúdo de suas obras — desaparecimento, silêncio, sossego, tensão, olhares fugitivos, mas nenhum desfecho.

Hopper, People in the sun, 1960

Sua obra também documenta o paradoxo entre a contradição entre progresso material e individualidade, entre  mito coletivo, experiência social e repercussão íntima, transforma em signos uma sociedade que perdeu contato consigo mesma. E esta riqueza é o que faz que seus quadros sejam tão valorizados por nossa cultura. Após a morte do pintor, sua esposa doou o que restava de seus quadros para o Whitney Museum of American Art. Outros trabalhos importantes de Hopper estão no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, no The Des Moines Art Center, e no Instituto de Arte de Chicago.

Hopper, Night Windows, 1928