Leite derramado, de Chico Buarque

Leite derramado é um bom romance. Eu gosto muito de Chico Buarque, adoraria cobri-lo de elogios, mas acho que sua evolução como romancista sofreu um tropeço. Vejam bem, o romance é perfeito, bem escrito, poético, tem humor, lirismo e amargor na medida certa, utiliza inteligentemente temas já abordados em livros clássicos da literatura brasileira, ou seja, é muito bem realizado. Só há problema nele: não é relevante como Budapeste. Assemelhando-se mais a uma colagem muito bem feita, não avança como poderia, apenas mostra, mostra, mostra.

Quando comecei a ler o livro, logo pensei: “Puxa, mas isso aqui é a música O Velho Francisco em prosa!”. Fui ler as reportagens e Chico confessa ter utilizado sua canção como base para a história. Era um bom começo.

Eulálio d’Assumpção, o protagonista, é um velho centenário que, como Brás Cubas, passa a contar sua vida ora para a enfermeira, ora para a filha, ora para sua mulher que o abandonou há mais de setenta anos… A perspectiva é a mesma do célebre defunto de Machado de Assis, pois Eulálio é um morto-vivo. A narrativa em primeira pessoa é errática como se esperaria de alguém com mais de 100 anos, privilegiando os acontecimentos mais remotos à memória recente, muito mais volátil nos velhos.

É claro que Eulálio é uma metáfora do Brasil, é claro que ele traz consigo todo o racismo e as aspirações de grandeza dos personagens da Velha República, é óbvio que ele não compreende muito do que acontece a sua volta, é evidente a relação entre Matilde e a Capitu de Machado de Assis, assim como a de Eulálio e Brás Cubas, é ululante o fato de que Chico mostra muito bem a decadência da elite brasileira do começo do século XX; então, se o livro tem todas estas qualidades, onde estão os defeitos. Ora, seu problema é ser limitado do ponto de vista ontológico. Eu sei que é pedir demais, porém, se analisarmos o que Faulkner fez nas 40 primeiras páginas de O Som e a Fúria ao penetrar na cabeça de um retardado mental, talvez possa explicar que, em minha opinião, faltou Eulálio e sobrou costumes e sociologia no mosaico de Chico, faltou psicologia e sobraram os artifícios de uma bela prosa. Às vezes, Eulálio é lógico demais e só no final do capítulo fantasia. Penso que um personagem tão confuso não poderia criar outros personagens com recortes tão claros e sucintos quanto os que consegue Eulálio, antes de voltar a seus delírios. A estratégia de Chico fica clara demais e isto implica em certa deselegância. Então, minha crítica mais dura é direcionada a um protagonista que não funciona como deveria. Sim, é grave. Não mata o livro, mas é grave.

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Em 2004, publiquei uma resenha curtíssima sobre Budapeste. meu entusiasmo era outro logo após a leitura:

Budapeste é um grande livro. Belo e engenhoso. O recurso do duplo já foi utilizado por mestres como Poe, Dostoiévski, Borges, Saramago, Philip Roth, E.T.A. Hoffman, Chamisso, etc., mas não reaparece gasto nas mãos de Chico. Aliás, Chico Buarque é músico ou escritor? Anos atrás, a resposta seria simples; hoje a pergunta não faz mais sentido. Ele é os dois, é duplo. O personagem principal, José Costa, é um talentoso ghost writer que, ao retornar de um congresso de profissionais desta área fantasmal da literatura, aterrissa inesperadamente em Budapeste por problemas no avião que o levaria ao Brasil. Hospeda-se num hotel e lá ouve a língua húngara — que é, dizem, respeitada até pelo diabo –, pela qual apaixona-se, resolvendo voltar logo que puder à Budapeste a fim de aprendê-la. A partir deste início simples, Chico parece disposto a reescrever o segundo movimento do Concerto para Orquestra de Béla Bártok, no qual os instrumentos surgem em duplas: dois fagotes, dois oboés, dois clarinetes, etc. O movimento chama-se Gioco delle coppie (Jogo das Duplas) e serve bem para caracterizar o que encontramos em Budapeste. Será meramente casual o fato de Bartók ser um compositor húngaro e ter vivido em Budapeste? Além de José Costa ser uma espécie de duplo profissional quando escreve em lugar de outros, vão aparecendo duas cidades (Rio e Budapeste), duas línguas, duas mulheres, mais duas cidades (Buda e Pest), duas crianças, e, ao final, temos mais dois livros escritos por ghost writers, um deles creditado a Zsoze Kósta. O jogo regido por Chico é de tal forma satisfatório como deleite intelectual, que torna ociosos os muxoxos deste que vos escreve, que gostaria de vê-lo gravando CDs com músicas inéditas.

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  1. uia, e acabei de comprar o livro, moço!! foi a maior coincidência entrar aqui agora e ler sua crítica.

    nossa, mesmo não achando que superaria budapeste, apostei que seria tão bom quanto…vamos ver daqui alguns dias. hehehehe

    beijos

  2. Resta saber se qualquer livro do Chico Buarque seria publicado se não fosse… livro do Chico Buarque, e receberia críticas favoráveis se não fosse… livro do Chico Buarque, e seria adaptado ao cinema se não fosse… livro do Chico Buarque, e não seria criticado por utilizar esquemas narrativos tomados de empréstimo de forma até abusiva se não fosse… livro do Chico Buarque, e assim ad infinitum. Depois de Estorvo e Benjamim, continuo alimentando enormes dúvidas sobre o autor, até porque as mensagens favoráveis a Leite Derramado e Budapeste ratificam o hábito do autor de sobrepor seus pés aos pés alheios. Penso que, na verdade, Chico tem respeitro pela literatura, tanto que tateia sem liberdade nela, reconhecendo suas enormes dívidas com aqueles que, ahn, copia, ou, ahn, se inspira, ou, ahn, cita, etc. e tal.

    Há um romance, intitulado O Nome do Bispo, de Zulmira Ribeiro Tavares, que passeia por caminhos análogos e, acredito eu, com muito mais, digamos, originalidade. Todo mal estar da burguesia decadente brasileira com seus traços negróides merece, no romance citado, tratamento deveras divertido. Só tem um defeito: quem é a Dona Zulmira?

    1. Conheço e admiro Zulmira. É mais do que excelente. É triste ser anônimo e ainda ser chamar Zulmira.

      A questão é que não podemos proibir Chico de escrever, podemos apenas pensar quem ele seria se apenas escrevesse. Não tenho dúvidas de que seria um Chico qualquer, autor de um bom livro: Budapeste.

      Talvez as editoras nem o deixassem chegar a Budapeste. Morreria afogado no Atlântico.

      1. Bem, a Zulmira não é tão anônima assim, seu livro possui boa fortuna crítica, sua última edição, se não me engano, foi publicada pela mesma Companhia das Letras do Chico; comparando com ele, é claro, a Zulmira é a famosa quem?

        Não tenciono proibir o Chico de escrever, nem ninguém. Mas a ressonância é exagerada, mesmo considerando os poucos nomes relevantes, vivos e produtivos, no Brasil. Se você morasse no Rio de Janeiro, te digo: não aguentaria mais ouvir falar em Chico, Caetano et caterva, correndo o risco de possuir todos os discos do Gaúcho da Fronteira, por “artista autêntico”. Quá-quá-quá.

        1. Bá, mais autêntico que Gaúcho da Fronteira? Impossível, talvez só o Suassuna — sobrenome que significa exatamente “Veado Preto”.

          Abraço.

  3. Até concordo com você quanto à pouca originalidade e ao tema assim bem gasto, mas que é gostoso de ler, é. E algumas imagens são bem bonitas. Mas seu texto é justo, clap clap, e você está me saindo um crítico de truz (uia!). Beijo aqui de longe.

  4. Claro que ninguém saberia quem seria Chico, se existisse apenas o escritor. Assim como o livro de memórias musicais do Caetano é bonitinho, do qual ninguém mais se lembra (Paraíso… alguma coisa), mas não o torna um biógrafo excelso. Personalidade que trafegou bem entre esses dois gêneros, até onde minha vasta ignorância permite, acho que o Leonard Cohen, e só. Mas tal deslumbramento também se vê em países que não tem essa carência de escritores a quem elogiar como o nosso, e nos EUA do citado Faulkner, chegaram a fazer uma ativa propaganda para que Bob Dylan fosse cogitado ao Nobel de Literatura.

    Mas estou comentando por pura falta do que fazer, seguindo a linha “não li e não gostei”. Já não preciso mais prestar vestibular, que seria a única ocasião em que perderia tempo com livros assim. Além do mais, passei a noite lendo de cabo a rabo “O Náufrago”, o que torna impossível descer para as platitudes buarquianas ou outras que não sejam do porte do primeiro. Lá pela metade do referido Bernhard, cheguei a acha-lo pra lá de superestimado, uma fraca apoteose do desencanto, o típico reflexo da crise espiritual de nossos tempos que procura se satisfazer com a água rala do que sobrou de Thomas Mann “Doutor Fausto”. E as Variações Goldberg, então, me soam ainda incompletas, me faz pensar: “Queria ver esse Gould manter esse pique por mais que segundos ou dois minutos, queria ver ele executando o concerto n° 5 para piano do Beethoven” ( os orixás virtuais não conseguiram localizar o concerto n°4). Fiquei seriamente sentindo o que Borges sentia, decretando que nada escrito depois do século xix lhe interessava realmente. Em resumo, pensei: que tempos de merda.

    Mas…”O Náufrago”, lá pelo final, quando o narrador recusa o convite para almoçar da irmã de seu amigo suicida (não estou com o volume aqui, e não abrangerei minha imperícia linguística para o nome deste personagem), o livro começa a provocar aquilo que Hemingway definia como um arrepio na nuca, o momento trabalhado em que o autor consegue passar sua mensagem, dar sua estocada no leitor. E o narrador, até então elitista, preconceituoso, limitado em seu rancor europeu pelo socialismo, a vida no campo, as pessoas simples, Salzburg, e até contra a própria música, começa a se humanizar, começa a reinvidicar, de seu modo muito particular, muito subtextual, aquela crença pelo homem que o faulkner, na tribuna do recebimento de seu prêmio em Estocolmo, tão lindamente resumiu em quatro parágrafos. Então, com essa lembrança de Faulkner na cabeça, reafirmando que as únicas matérias da escrita que realmente são verdadeiras e importam, são o amor, a denúncia da injustiça, a luta contra toda opressão, a reinvidicação do homem- fora isso, disse Faulkner, tudo não passa de expressão sem sentido de hormônios e emoções supérfluas. Daí então, “O Naufrago”, nesta madrugada que se findava e trazia o compensador cansaço da leitura concluída, se revelou um dos melhores livros que me passou pelas mãos.

    Estou com “A Trégua”, comprado por 12 contos na Lotérica. Cê tem que dar um tempo nessas suas críticas literárias, senão não vai sobrar pro leite das crianças.

  5. Rapaz, O Náufrago é obra-prima. Não é um Extinção, mas chega perto.

    Ler as novidades me deixam com uma tranquilizadora sensação de contemporaneidade. Mas é só.

    Não falemos sobre o “Imperador”. Mesmo sob Pollini ou qquer dos pianistas antigos é um concerto

    Boa noite…

  6. “….então, se o livro tem todas estas qualidades, onde estão os defeitos.”
    Somente complentando sua resposta, comecei a ler livro ontem, particularmente estou adorando, é irrelevante em minha opinião a idéia e o tema não serem de fato assim tão originais, mas acreidito que o estilo da prosa do autor é adorável, prosa, prosa sim porque não. A despeito dos comentários sobre uma supervalorização do livro pela fama do autor, o efeito contrário também ocorre, talvez até com mais intensidade como pude observer nos comentários aqui postados….

  7. Puxa , achei um homônimo meu .Prezado e familiarmente identificado Milton ,como posso me comunicar com você ?
    Bom , com relação ao Leite Derramado , isto eu já pude ver o Chico fazer muitos anos atráz quando percebi realmente sua face maquiada .Este livro condensa a idéia da intenção financeira do autor.Não entendo como existe um sistema que não fomente a ascensão de autores voltados para o progresso ou melhoramento do homem. È uma questão de custos de formação , por acaso ? Por enquanto o que resta são obras como esta , que desviam a objetividade humana .Creio que este livro tem que ser visto como um entretenimento apenas .Como uma oportunidade de faturamento .
    Milton Ribeiro

  8. Quando eu era jovem , tinha um amigo chamado Gatão que mesmo não sendo belo , tinha a maior labia do mundo com as garotas , e por este motivo ganhava todas que ousassem cruzar seu caminho .
    Mas êle era soturno.
    Invariavelmente êle dizia que com um bom papo você ganhava qualquer mulher a toa.
    Dizia também que no fim de toda festa sempre sobrava uma (me perdoem) vagabunda .
    Após tentar ler este livro do Chico Buarque uma sensação de estar sendo levado na conversa , tal qual diziam as vitimas do Gatão.

  9. Mílton, sua crítica traduz, em pouquíssimas palavras, o que é o livro. De fato, ele “mostra, mostra, mostra…”. Foi exatamente a sensação que tive. Embora anos-luz de Brás Cubas, a leitura de Leite Derramado é agradável. Ao contrário do leitor Charlles Campos – quanta empáfia, cara – , não acho que ler esse livro seja perda de tempo.

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