Relato de uma Viagem à Itália (IV)

Como quase todos que a visitam, chegamos a Veneza de trem. Tudo normal na estação de trens. Comemos alguma coisa, ligamos para o Flavio Prada, compramos a passagem de volta para Verona. Tudo normal.

Saindo da estação de trens para a rua tem-se uma visão extraordinária. É um choque mesmo. (Quando voltei a Porto Alegre, meu amigo Fabrício Pessoa logo perguntou: e a sensação que dá na gente ao sair da estação de trens?) Pois é. Há a calçada por onde caminhamos, uma calçada normal, há edifícios normais do outro lado da rua, só que no meio há água salgada e barcos. E há os gritos dos vendedores querendo que se entre neste ou naquele barco. Mas é difícil de decidir qualquer coisa, pois a visão é absolutamente extraordinária para o visitante de primeira viagem. Parece uma montagem de cinema muito perturbadora, pois estamos dentro do filme em situação tri-dimensional. Pegamos o traghetto para a Piazza da Catedral de San Marco e – isto não é pose – lembrei do filme Morte em Veneza. Veio-me logo à lembrança o nome do personagem principal, Gustav Von Aschenbach, escritor no livro de Thomas Mann, compositor no filme de Luchino Visconti. Minha trilha sonora era o Adagietto de 5ª Sinfonia de Mahler, também utilizada no filme e misturada com o barulho do motor do traghetto que nos levava. Antes que alguém pergunte, já vou respondendo que não!, não procurei adolescentes bonitinhos pela cidade…

Descemos em San Marco e começamos mais uma daquelas caminhadas de dia inteiro pela cidade. Um dia lindo, por sinal, em que fomos procurar pelo teatro La Fenice, pelo bairro judeu e pelas coisas turísticas, mas – maus turistas que somos – passamos a caminhar desprogramadamente por ruas cada vez mais estreitas, admirando as pequenas pontes para pedestres os pequenos canais navegados com suas gôndolas e, quando deu fome, procuramos por um restaurante onde houvesse bastante gente conversando no balcão – “bastante gente” significaria “bom restaurante” e “conversando no balcão” significaria “gente de Veneza, nativos”. Encontramos um numa viela. Uma senhora ria e gritava na porta alguma piada em dialeto veneziano para a garçonete, que lhe respondia sorridente. Não havia balcão, mas era o suficiente. Entramos, tinha poucos pratos a escolher, todos com aquele aspecto de assombrar qualquer fome, por maior de fosse. Comida maravilhosa, complementada por um musse de café inesquecível e sempre interrompida por algum morador que entrava saudando o dono do estabelecimento aos gritos, sendo contra-saudado da mesma maneira. Estava tão bom que começamos a conversar e a beber, esquecidos da cidade lá fora para ser vista.

Encontramos La Fenice e tudo o que planejáramos, fizemos declarações de amor à Veneza e compramos CDs dentro de uma exposição dedicada a Vivaldi e seu Tempo. Bem, os CDs comprados não foram de Vivaldi, foram de Piazzolla, alguém muito amado pelos italianos.

Fotos:

A caminho da Piazza de San Marco. Paisagem belíssima construída pelo homem acompanhada de vento e de um frio de 3 graus. Foto tirada de luvas, com receio de que a máquina fosse parar dentro d´água.

Vamos entrando na cidade e as ruas ficam mais estreitas. Há trânsito, berros e buzinas. Parece incrível que numa cidade tão lúdica haja pessoas apressadas e estressadas, indo trabalhar de barco.

Chamem os inquisidores novamente! Levem o blogueiro! A Catedral de São Marcos é mais impressionante do que a de São Pedro no Vaticano. É escura por dentro, cheia de mosaicos formados por pedrinhas infinitesimais. Um arraso.

Sobre uma ponte para pedestres, absolutamente perdidos, procurando pelo Teatro La Fenice.

Encontramos o Teatro La Fenice após ter passado duas vezes por trás dele, lendo as placas de Ingresso Personale di Servizio, Entrata e Uscita dei Musicisti, etc. Visto de fora, o teatro não chega a impressionar. O La Fenice foi destruído por um incêndio em 1996, sendo reaberto em 2002 para concertos e em 2003 para óperas. Dois eletricistas foram acusados de provocar o incêndio e hoje estão na prisão. Durante o período de reconstrução, as óperas eram levadas sob uma lona de circo, em uma piazza próxima. A faixa que vocês lêem significa: Do fogo se ressurge, da ignorância não e é endereçado a Berlusconi, que quer reduzir drasticamente as verbas para a cultura. Será que Berlusconi ressurgiria do fogo? Poderíamos tentar. Falando de coisas mais agradáveis: quem é o diretor deste teatro? É o maestro brasileiro Isaac Karabtchevsky. Sim, aquele mesmo que só programa merdas para a OSPA, aqui rege Mahler.

Espalhadas pela cidade, há estes rostos em pedaços. São restos de uma Bienal.

Ah, se as fotos tivessem som! Ao entardecer, ao lado de outra daquelas esculturas e vestido a rigor, um alaudista enfrenta com competência a Fuga da Suíte BWV 997, de J.S. Bach.

3 comments / Add your comment below

  1. Bárbaro! bárbaro! bárbaro! tá decidido. Lua-de-mel na Itália. Juro! Você arrasou no post e nas fotos.
    nora borges Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 23 2005

    Olá Milton, Para mim, Veneza é o lugar mais bonito do mundo. Vou voltar! Beijos Feliz Natal. Não ter as crianças por perto deixa um vazio profundo e angustiante, não deixa de ser uma preparação para a futura independência deles.
    Stella Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 22 2005

    Belas fotos. Perder-se em Veneza é uma experiência voluntária das mais agradáveis.
    Allan Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 22 2005

    MILTON, fazendo uso da expressão máxima deste maravilhoso álbum de fotos contido no post, eu te desejo uma “b-e-l-e-z-a” de NATAL. Abraço, amigão.
    Ery Roberto Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 22 2005

    A hora do rush em Veneza foi o máximo. Uma gôndola buzina e a outra, na frente: “Passa por baixo!”
    Nelson Moraes Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 21 2005

    Isso eh que eh guia de viagem! Como vc esta? Po, o livro foi lancado e eu nem dei minha contribuicao!!! Hahahahahah, don’t worry. Sou mesmo um blogueiro anonimo! Um grande abraco e vou registrar essas dicas para a minha proxima viagem para a Europa.
    RMax Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 21 2005

    Isso eh que eh guia de viagem! Como vc esta? Po, o livro foi lancado e eu nem dei minha contribuicao!!! Hahahahahah, don’t worry. Sou mesmo um blogueiro anonimo! Um grande abraco e vou registrar essas dicas para a minha proxima viagem para a Europa.
    RMax Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 21 2005

    Estou simplesmente adorando viajar com vc! As fotos de Veneza estao maravilhosas! Veneza eh a cidade mais exotica do mundo, com seu ruido de agua. Fantastico, Milton!
    Lucia Malla Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 21 2005

    Feliz Natal, Milton
    Ramiro Conceição Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    Feliz Natal a todos!!! MOQUECA DE ESTRELAS by ramiro conceição Não sou vermelho, branco, preto ou amarelo, nem mulçumano, judeu ou cristão. Sou alguém que não bate em criança. Não chuto cachorro; me escondo e — choro… Não cuspo no chão! Não sou santo, não! Tenho o estranho hábito de enterrar — e desenterrar — os ossos do meu destino. Em desatino, planto um girassol em meu quintal. Sou um cão, um misto de coveiro e jardineiro, um ser entre o bem e o mal. Inventei uma moqueca de estrelas; ao fazê-la — temperada ao Sol, uma especiaria da Ilha-da-Poesia —, todos são convidados à mesa triunfal.
    Ramiro Cocneição Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    MESTRES By Ramiro Conceição “Vem na aragem noturna um cheiro de estrelas. E, súbito, eu descubro que estou fazendo a vigília dos pastores. Aí está o grande mistério. ” (1) “Entre o luar e a folhagem Entre o sossego e o arvoredo, Entre o ser noite e haver aragem Passa um segredo. Segue-o minha alma na passagem.” (2) (1) Nelson Rodrigues (2) Fernando Pessoa
    Ramiro Conceição Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    IGNORÂNCIA by Ramiro Conceição Veneza e a Vida são cidades das faces a dizer: “Se nasce da morte e do fogo: mas não da ignorância!”
    Ramiro Conceição Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    TREM VOADOR By Ramiro Conceição Sou um trem voador que não precisa de trilhos, mas de tesouras a controlar o crescimento das asas. Meu trem vem lá detrás da aurora e parou na estação “Do Agora”. Entram novos passageiros… E saem seres humanos. O trem encantou. Quem está fica. Quem não entrou caducou. O destino infinito é um trem trovador!
    Ramiro Conceição Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    Milton, você tem a imaginação muito fértil.
    Marcão invejoso Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    Que espetáculo. Que espetáculo. Veneza é um espetáculo. Conheci há dez anos, numa passada rápida de dois dias. E até hoje vez ou outra lembro muito claramente de várias coisas, como não lembro de outras cidades muitas que passei até mais tempo. Veneza é muito foda. Ainda volto lá um dia. Abraço! 🙂
    Gejfin Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    MENINO CANANEU By Ramiro Cocneição (Quando voltei a Porto Alegre, meu amigo Fabrício Pessoa logo perguntou: e a sensação que dá na gente ao sair da estação de trens?) Quando voltei à São Paulo, Meu amigo Pessoa Pessoa me ensinou: I. Preciso adormecer o Sol cansado da tempestadeque não quer passar na rua do Homem.Vou adormecê-Lo num acalanto, explicando-Lhe que no infinito há estrelasqual Ele grávidas — do mesmo amor.Só então irei sonhar — junto ao meu artista:um menino cananeu, nativo, que vive de sobejos.Preciso dormir cedo, acordar… e ver o Sol. II. De mãos dadas à manhã, caminhavam dois caminhos,procurando algum destinoquando, com espanto, o poeta se deu contaque seu menino o levara, pela mão, ao encontrode alguma coisa luzidia sobre a flor da fantasia.E revelou iluminamento um sol pequenininho na ramagem que luzia.
    Ramiro Conceição Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    Milton, Vc passou momentos raros, qta sorte. Este homem tocando Bach no alaude deve ser de chorar de lindo, sem contar todo o resto. Ahhhhhh! Veneza!! Beijão
    Mônica Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    Muito bom ler e ver esse seu diário de viagem. Lindo mesmo. Mais um detalhe sobre a Catedral S. Marcos é aquele piso ondulante – por causa do movimento das águas embaixo.
    Marilia Mota Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 20 2005

    Pode mudar de profissão você clicou com arte quantas fotos lindas !Depois quando colocar sua máquina a venda avisa para a gente .
    monica Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 19 2005

    Oi, lindinho! Aqui tudo é sonho… Adoro vir sonhar por aqui. Bjinhos e boas festas.
    Violet witch Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 19 2005

    Lindas as suas fotos, Veneza é uma cidade única no mundo, e uma das mais lindas e românticas, com certeza. Ninguém devia morrer sem antes visitá-la. bjs,
    Leila Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 19 2005

    Tô dizendo que qualquer foto na Europa fica artistica!! Esta última então com este cara tocando aquele negócio(violão veneziano). Parabéns Europa pelas fotos.
    Fabricio Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 19 2005

    Juro que não sou invejoso, mas você já está abusando.
    Marcos Relato de uma Viagem à Itália (IV) Dec 19 2005

  2. POLITICAMENTE INCORRETO
    by Ramiro Conceição

    De hoje em diante,
    não serei otário
    nem voluntário – pra nada!
    Não serei um Big Burro Boçal
    a fazer parte da manada:
    esta massa de manobra
    que se dobra a qualquer
    click duma câmara global.

    De hoje em diante,
    não darei ouvidos
    a bispos, a padres a pastores
    nem a mentores da qualidade.
    Não acreditarei na caridade
    que carece de dentes podres
    nem nas ONGS que se protegem com tartarugas
    mas que, na realidade, se enriquecem da miséria
    dos homens.

    De hoje em diante,
    penso-sinto; leio e reflito;
    amo e escrevo, se possível,
    de modo certo:
    sou politicamente incorreto!

Deixe uma resposta