Grenaica

Publicado em 12 de abril de 2006

A Idelber Avelar

Minha filha foi comigo ao Grenal de domingo. Ela tem 11 anos e aquele era o quinto – segundo ela, pois para mim é o terceiro – jogo a que assistia em estádio. Estava encantada com tudo. Lia as faixas, ria dos palavrões, juntava-se aos coros altamente ofensivos ao adversário, falava muito e transpirava certezas. Para mim, a experiência de ir a campo com ela foi a de travar contato com a mais escabelada passionalidade. As faltas cometidas em nossos jogadores eram agressões dignas de dar cadeia, o juiz era um imbecil e os gremistas, idiotas. Se um dia fui assim, esqueci. Talvez eu vá ao estádio pela beleza plástica do jogo e de sua tática (na TV não é tão bonito, nem tão interessante) ou por simples amor ao Inter, mas acredito que a verdadeira razão é a de que o futebol é um gênero de espetáculo que pode ser visto com maior variação de humores e participação do que qualquer outro disponível por perto. Por exemplo, se você for a um concerto, provavelmente não poderá ofender o artista. Vou a muitos concertos; sei que escolho bem e, quase sempre, saio feliz. Às vezes, ele é apenas aceitável. Há possibilidades bem piores, é claro, porém elas raramente incluem a vaia, chamar o artista de filha-da-puta ou a disposição de odiar-se a ponto de desejar a própria derrota – em outras palavras, de desejar o próprio fracasso.

Estou enrolando para dizer isso: um concerto ou qualquer outro espetáculo que aconteça dentro de um teatro são representações mais incompletas da vida do que um jogo de futebol. Pronto, disse! Talvez não consiga dormir hoje. Os fantasmas de Shakespeare, Pirandello, Tchekhov, Bergman, Sófocles e de tantos outros me perturbarão a noite. Sei que os aspectos culturais envolvidos fariam o futebol perder de goleada nos primeiros minutos de uma discussão, mas experimente olhar de frente para uma torcida de futebol com o jogo se desenvolvendo à nossas costas. O sofrimento, a alegria, a expectativa, a frustração e quase todos os sentimentos são coisas presentes, visíveis a ponto de serem quase fenômenos físicos. Talvez até o amor romântico tenha representação no futebol… No teatro elisabetano – época de Shakespeare -, os assistentes manifestavam-se, podiam gritar e fazer piadas sobre Otelo, Iago e Desdêmona, mas, hoje, fazer isto seria uma tremenda falta de educação e até eu concordo. Pô, já imaginaram um cara berrando ao nosso lado, fazendo-nos perder as falas?

A possibilidade de amar, de ser indiferente ou de detestar o próprio time, de ridicularizar ou sentir medo do adversário, de aplaudir ou desejar a própria derrota é exercida plenamente apenas quando estamos no estádio. Acho ridículo sentir tanta coisa na frente da TV. Aparentemente, a Bárbara concorda, pois nunca vê jogos de futebol em casa, não vê emoção naquilo; intuitivamente, sabe que a maravilha está no campo de batalha e no leque de opções por ele oferecidas. Na proximidade do fato e no oscilar entre o píncaro da glória e o possível funeral está o fascínio da coisa.

No caso do jogo de domingo, fomos enterrados. Faltando cinco minutos para o final do jogo, todos estavam em pé e meu filho sentou. Ele não queria seguir assistindo aquela tremenda exposição de incompetência de nosso técnico. Eu e a Bárbara ficamos aguardando o momento mágico e improvável da sorte. Com o jogo terminado, ficamos todos paralisados, sem nos movermos do estádio. Bernardo me perguntou sobre o que estava acontecendo. Disse-lhe que o jogo acabara e que tínhamos perdido o campeonato mais fácil dos últimos dez anos, que eles eram os campeões. Quando olhei para a Bárbara, ela chorava.

Já no papel de pai, fiz com que ela sentasse sobre minha perna e expliquei-lhe que aquilo era uma diversão, que mesmo para mim o futebol era a mais importante das coisas desimportantes e que, enfim, aquele fato não era digno do choro dela. Fomos embora passando entre torcedores boquiabertos, que pareciam hipnotizados vendo a pequena torcida do Grêmio comemorar. Eu falava sem parar. Não queria que ela visse tantos adultos chorando, contradizendo minha argumentação.

Obs. 1: tenho a leve impressão de ter roubado o título deste post de alguém. Se tivesse que chutar, diria que o furto foi feito ao Tiago. Mas é muito tarde para averiguar. Vou dormir. Update matinal: foi sim, foi tirado daqui.

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