Não tem essa de me dar carona!

Mentira. Pois quando me oferecem sempre pego na hora. Porém, hoje, evitei receber o convite quando meu vizinho saiu de casa na mesma hora que eu. Ele é muito educado e solidário, vai de carro e me faz ganhar quinze minutos. Mas hoje eu acelerei o passo e segui meu caminho para a parada. Passei reto por um simples motivo — queria ler meu livro no ônibus. Atualmente, quase só leio nos ônibus e lotações. Dá uma hora por dia. Em casa, sempre há algo solicitando minha atenção. Um saco, um saco. Mas poderia haver outro motivo. Desde há muito comecei a me deslocar sozinho para o Centro da cidade. Na verdade, desde os 9 ou 10 anos de idade. Quando conseguia sentar, aqueles eram momentos felizes nos quais divagava à vontade, como se não pudesse fazer melhor noutro lugar. Talvez a entrada e saída de pessoas desse maior criatividade aos pensamentos. O fato é sempre houve um traço poético em ser levado dentro de um coletivo. Não sei bem por quê: pode ser o balançar do ônibus, pode ser as caras das pessoas que me fazem adivinhar-lhes as histórias. É um momento de pura indireção, em que não há nada de objetivo que possa ser resolvido e me irrito muito se o celular toca. É muito bom. Então, sempre achei prazerosa a coisa dos ônibus. Ademais, há a discutível certeza de estar colaborando com a humanidade ao não estar andando sozinho dentro de um carro. Foi um boa decisão a de ter ficado com um só carro em casa, acho.

Quando criança, preferia os bondes. Afinal, eles andavam sobre trilhos e nunca poderiam alterar seus caminhos. Eu morria de medo que os ônibus saíssem por aí livremente pela fantasia de um motorista alucinado. Achava que todos os adultos conheciam a cidade. Eu não. E era muito tímido para perguntar como voltar pra casa. Então, os trilhos eram minha segurança. Hoje, nem olho muito as caras das pessoas. Entro, dou bom dia para o motorista e sento para ler. Já me falaram na possibilidade de descolamento da retina. Francamente, que descole.

(O umbiguismo voltou com tudo hoje. Acontece).

Imagem retirada do Blog de Rafael Corrêa.

25 comments / Add your comment below

  1. Concordo e assino embaixo em quase tudo, menos na parte de ler no ônibus. Nem é por causa da retina, e sim porque me dá uma baita dor de cabeça mesmo.

    (por falar em retina, já sabe: se aparecerem mosquinhas dentro do olho, vá imediatamente pra uma mesa de operação. Se deixar pra depois, fica cego)

    1. Não entendi. Deslocamento de retina por ler em ônibus? Sinceramente, nunca ouvi falar disso. Baseado em que isso poderia ocorrer? Se fixar demais em uma palavra no livro bem na hora que o motorista der uma freiada súbita, e pela lei da inércia, lá se vai a retina pro chão? Isso não acontece com óculos, aconteceria com retinas?

      E que história é essa de moscas nos olhos? Vejo uma série de células mortas boiando no líquido do cristalino, formando longas serpentinas translúcidas, e isso desde meus 8 anos, e pelo que sei muitas outras pessoas o veem. E, algumas raras ocasiões, quando me levanto rápido, vejo vagalumes por toda a visão. E quando algum reflexo solar pega enviesadamente em meus olhos, um cordão de luz vai se formando lentamente, até ganhar uma suave plenitude, para, então, da mesma forma lenta, passar a desaparecer.

      Caminhante, não me meta um novo complexo hipocondríaco, pelo amor de deus.

      Sobre ler em locais públicos, o faço constantemente. Semana passada mesmo, no banco Itaú, esperei por uma hora na fila dos caixas, suportando-a por dois motivos. O primeiro é que levei o livrinho de bolso do Hunter Thompson, “Hell´s Angels”, e pus-me a lê-lo; o segundo é que estava com um alvará expedido pelo juiz para que o banco me pagasse 3. 100 reais por danos morais, imediatamente, assim que o documento fosse apresentado. Há dois anos, caí na lista negra dos bancos, por ter entrado com uma ação revisional de juros de um financiamento contra o BMG, e o Itaú cortou meu cheque especial e demais “produtos” oferecidos. Entrei com danos morais e ganhei, pois. E a leitura sobre os criminosos despudorados e violentos, absolutamente anti-sociais do “Hell´s Angels”, me fez o que as leituras me fazem: vestir-me com a ilusão passageira de que sou um dos personagens dos livros. Imaginei-me um motoqueiro tatuado, de casaco de couro, e retirava os olhos do livro de vez em quando para encarar o guardinha, enviando-lhe um olhar de enfado que estudava se compensava dar-lhe uma surra depois ou não. E quando aproximei-me, radiante de vingança, do caixa, torci para que eles se recusassem a me pagar, para que eu arremessasse o alvará judiciário na cara moca do gerente, pegasse minha Harley-Davidson e fosse chorar de indignação no gabinete do juiz.

      1. Estou pesquisando. “Moscas volantes”. Nunca tinha ouvido falar. Pô, me deixou preocupado. Nos sites médicos que estou vendo, há a informação de que “No entanto, elas são normalmente de pouca importância, representando um processo de envelhecimento natural.” Você usou um tom alarmista desnecessário, Caminhante.

  2. Me vêm já olhando torto quando digo que gosto de andar de ônibus e metrô no Rio de Janeiro. Só faltam prescrever uma pilulazinha aí.
    Ir para a UFRJ às 6 da manhã é ficar de pé no 910, tiro certo. Antes incomodava, mas agora já estou totalmente acostumado a ler em pé mesmo, importando pouco ou nada o tamanho do livro.

  3. Taí, que disso eu tenho inveja. Não consigo ler em veículos automotores terrestres em movimento sem ficar enjoado. Mas já em avião eu leio na boa. Vai entender. Coisa de gente chique. Quanto ao descolamento da retina, segundo meu oftalmologista, é mito.

  4. OLHOS DE SARAMAGO
    by Ramiro Conceição

    Nessa nossa efêmera viagem,
    se soubéssemos olhar, saberíamos
    efetivamente do significado d’outro.
    Mas enxergamos o capital primeiro:
    por isso efetivamente somos cegos.

    PS: Boa viagem, Milton!

  5. Como usuário, me sinto perfeitamente à vontade num ônibus, lotação e até no trensurb. Sinto falta do carro apenas em alguns momentos, mas, acho, perdi definitivamente a coragem de dirigir. Quanto à leitura, me somo aos que ficam com enjôo e tontura. Uma carona é sempre bem vinda, desculpem-me os amigos.

  6. Charlles, a das mosquinhas nos olhos eu não falei à toa. Falo como pessoa que tem casos de descolamento de retina na família e como pesquisadora, já que alguns dos entrevistados da minha pesquisa sobre cegueira tiveram descolamento de retina.

    É difícil explicar o que são as moscas. Foi assim: o meu tio teve descolamento de retina e se operou imediatamente num especialista. Depois dele, todos meus tios e primos fizeram exame, e meus tios todos tinham tendência e alguns dos meus primos. Geralmente existe um histórico familiar, e isso parece estar associado a graus de miopia muito altos (da minha família é superior aos 10 graus). Preventivamente, é possível fazer aplicação de laser para manter a retina grudada. Minha mãe fez e poucos tempo depois a retina dela quase descolou. Ou seja, a aplicação salvou.

    Quando existe essa sensibilidade, a retina descola com movimentos bruscos, ou com o corpo ficar chacoalhando. Minha mãe não pode correr, por exemplo. Nem numa esteira. Ela parou de andar de bicicleta também com medo desse impacto. Coisas que outras pessoas fariam sem problema. Não sei dizer qual a relação da retina e a leitura no ônibus especificamente, mas acredito que esteja ligado ao movimento junto com o esforço da leitura.

    Essas células que você tem são normais. O problema é se surgirem de repentem como se fossem moscas, ou uma teia no campo de visão. Foi a metáfora que a minha mãe usou. Enfim, algo repentino e persistente na visão. É a visão do próprio líquido do olho que invadiu o espaço da retina. Quanto mais o tempo passa, mais líquido invade e não é possível fazer nada. Quando a pessoa vai ao médico imeditamente, não tem problema (quero dizer, se for um bom oftalmo…) . A questão é que muitos vão pra casa dormir ou só procuram ajuda quando percebem que não estão vendo mais nada. Aí já é tarde.

  7. Sou exatamente assim também. De manhã pego ônibus vazio e vou sentado, e depois no trem vou em pé. Na volta a mesma coisa. Trem em pé, ônibus sentado. Mas mesmo em pé já me acostumei, mesmo com livros maiores. Li dois dos três volumes dos miseráveis (quase 400 páginas, capa dura) no trem lotado, me esquivando, e já nem sinto mais.
    E também tenho passado a carona da manhã pra ir lendo. Troquei de parada pra não topar com ele e ter que escolher entre me sentir mal de negar a carona ou aceitar a carona e ficar sem ler.

Deixe uma resposta