Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (terceira parte de três)

Com importantes mudanças e uma vontade incrível de ampliar a parte do monólogo de Molly. Mas, por enquanto, deixemos assim.

Primeira parte: Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Primeira parte de três, quatro ou mais)

Segunda parte: Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Segunda parte de três ou quatro)

Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enorme, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela expõe-se de uma forma muito transgressora — não está sozinha enquanto o marido dorme ao lado? — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo de dentro dos pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino com primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a psicanálise ainda não o fazia.

Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.

Angelina Ball no filme Bloom (2003), de Sean Walsh

E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois Gerty faz o mesmo.

Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o leitor entra nos pensamentos de Molly enquanto ela se encontra na cama ao lado de Bloom, ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.

Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.

Howth head
Howth Head map

Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.

Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, muitíssimas de nossas ações.

Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo em background, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco a toda a existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.

Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo Ulysses exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas do Ulysses tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre seus personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.

Segundo Álvaro Lins citado em artigo do escritor Franklin Cunha, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes.

Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana.

 

11 comments / Add your comment below

  1. Ok, Milton.

    Mas volto a concordar com o Rodrigo: sinto mais prazer em ler você, a interpretar o que Ulisses quer dizer, do que o efetivamente escrito. Essa é a fundamental questão estética:

    a forma devorou o conteúdo!

    Quando coloco a “Tabacaria” diante do “Ulisses”, me parece que esteticamente o português é superior ao irlandês – sem qualquer tipo de “…ismo”. Não consigo ver gorduras no poema de Pessoa.

    E o que chama a atenção é que os dois textos tratam, em essência, do mesmo drama: a imperfeição da condição humana.

    1. PÁSCOA DAS CIGARRAS
      by Ramiro Conceição
      .

      Acordei em meio a uma melopeia nativa
      de uma tribo do Xingu a dançar ao redor
      da cama onde eu, sem medo, dormia nu.
      Enquanto ocorria, levantei-me à alegria
      e fiz com fé um café e – às gargalhadas! –
      sambei no seio da casa do velho “eu” que se auto-olhava
      não acreditando em mim, ali, a cantarolar qual as cigarras.

  2. Tou querendo embarcar no livro e gostaria de saber qual das 3 traduções você acha a melhor, a mais fiel, etc.? O que tem a falar sobre elas? Obrigado. E belo texto.

    1. Na revista Entre Livros da época do lançamento da tradução do Ulisses da Bernardina, há uma análise até bastante contundente sobre qual dessas três traduções seria a melhor. É uma edição de 2006, se não me engano, e mesmo àquela época, várias partes da tradução de Galindo já eram conhecidas. Ficou uma inclinação sugerindo que a tradução da Bernardina é a melhor. Colocaram lado a lado um mesmo longo trecho do livro nas três versões. A mim, que sucumbi na empreita de ler a de Houaiss, e folheei exaustivamente e de Galindo, parece que a da Bernardina realmente é a que corresponde melhor ao espírito livre e coloquial que Joyce colocou na obra.

  3. Excelente texto, Milton! Realmente excelente!

    Programei a leitura de Ulisses pelo Galindo para o final de ano, e vou me atentar a todos esses detalhes a que você menciona, principalmente o do feminismo na masculinidade de Leopold Bloom.

  4. Milton,
    reproduzo a seguir um comentário, pouco modificado, que fiz nos blogs do Idelber e do Charlles Campos, associado à infeliz declaração de Paulo Coelho sobre o mencionado.

    O Ulisses de Joyce? Ah, levei um ano para lê-lo – em paralelos! Briguei. Mandei Joyce tomar no cu. Pisei no livro. Abandonei-o. Retornei. Cheguei ao fim… Percebi que eram diversos livros e diversos autores: num só. Percebi que a personagem principal era a linguagem. Achei extraordinários dois capítulos, o 17 e 18: o primeiro, por provar que é possível escrever um romance através da dialética (fiquei assombrado quando Joyce escreveu sobre a água); o segundo, pelo sucesso conseguido em expressar através da escrita o fluxo do pensamento. Percebi também em muitas passagens a origem de textos de muitos autores: por exemplo, a certa altura, Joyce descreve um cachorrinho que enterrava e desenterrava ossos, pois bem Elliot, em seu memorável “A Terra Devastada”, se utiliza da mesma figura de linguagem para descrever a tragédia humana acontecida no século XX; percebi também numa certa passagem algo que poderia ter inspirado Drummond em seu famosíssimo poema sobre a pedra no caminho (não tenho qualquer informação se isso foi possível; contudo li: estava lá no Ulisses). Percebi também que toda a linguagem direta usada, hoje, na publicidade dirigida às massas, estava lá. Percebi também a profunda revolta contra o domínio inglês sobre a civilização irlandesa. Percebi também a crítica ácida, principalmente, contra a Igreja católica. Percebi também o amplo domínio, em todos os campos da linguagem, que Joyce possuía. E percebi, principalmente, que Joyce era um erudito em semiótica: creio que o Ulisses poderia ser considerado um quadro de Miró feito de palavras. Contudo, qual a minha grande crítica ao livro de Joyce: o rigor da forma, do estilo, atrapalhou o fluxo dinâmico do livro. Para mim, dezenas e dezenas de parágrafos poderiam ser eliminados sem que se perdesse a originalidade; por exemplo, para que o leitor entendesse a crítica à Igreja Católica, não seria necessário ler, praticamente, uma página inteira a listar somente nomes de santos, para mim, tal opção estética foi um erro; porém isso é um julgamento estético e, portanto, alguém, com todo o direito, pode achar o contrário. Mas gostaria de deixar claro: o que mais me comoveu foi conhecer o contexto em que Joyce escreveu tal obra, ou seja, Joyce levou até as últimas consequências, inclusive materiais, seu TRABALHO literário à superação da mediocridade contida em seu tempo; só por isso: ele deve ser lembrado, mas jamais cultuado. Portanto, creio que Paulo Coelho foi leviano em seus comentários sobre Ulisses.

    1. Milton, eis uma das minhas dívidas a Joyce e a Elliot…

      MOQUECA
      by Ramiro Conceição
      .
      Não sou vermelho, branco, preto ou amarelo.
      Muito menos mulçumano, judeu ou cristão.
      Não cuspo no chão. Santo? Não sou não!
      Sim, tenho o estranho hábito de enterrar
      e desenterrar os ossos do nosso desatino
      e, com carinho, planto girassóis no quintal.
      Sim, sou um cachorrinho,
      um quase canibal, um misto de coveiro,
      jardineiro e cozinheiro que faz uma moqueca
      de estrelas aos convidados – à mesa triunfal.

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